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Janeiro/Junho 2013 A Moldávia, país da Europa Oriental, é líder absoluta no quesito consumo de bebidas alcoólicas. São 23 litros por pessoa anual- mente (a análise é feita a partir dos 15 anos de idade). O Brasil, por sua vez, fica no meio da ta- bela em pesquisa feita pela Organização Mundial da Saúde (OMS), com 10,2 litros para cada um dos quase 200 milhões de habitantes em 365 dias. Parece pouco? Rússia e Alemanha, famosos pe- las produções em larga escala de vodca e cerveja, respectivamente, estão apenas um pouco acima. Os russos consomem 16,2 litros, contra 12,1 litros per capita dos alemães. As estimativas são de que entre 10% e 12% da população mundial sofra de dependência alcoólica. Pelos dados analisados, o Brasil não parece estar no pior dos quadros. Mas, no país do des- caso com infrações consideradas leves, é preciso olhar com mais cuidado. Os adolescentes brasi- leiros, mesmo abaixo dos 18 anos – idade em que é permitido beber – têm acesso fácil a bebidas. É aí que está o problema: o alcoolismo é uma rea- lidade que pode começar precocemente. Quando isso ocorre, pular de um estágio para outro mais grave é questão de tempo. O alcoolismo é uma doença incontrolável, incurável e progressiva. O maior perigo é que muitos ignoram esse aspecto. Membros do grupo Alcoólicos Anônimos (A.A.), psicólogos, jovens, viciados e ex-viciados em be- bidas têm a resposta para a pergunta: como en- carar o excesso na hora de beber? Quando o “ desce mais uma ” é desabar de vez Os depoimentos exclusivos de membros do A.A., a opinião de jovens que convivem com a bebida e a concepção de especialistas sobre o alcoolismo, problema que afeta 13% da população brasileira GUILHERME MARÇAL E SARAH MORAES Símbolo Oficial dos Alcoólicos Anônimos: o círculo simboliza o A.A. no mundo e o triângulo representa os três legados do A.A. - Recuperação, Unidade e Serviço 30 SITE ALCOÓLICOS ANÔNIMOS

Quando o “desce mais uma” é desabar de vezpuc-riodigital.com.puc-rio.br/media/07 Ecletica 36 bebida 30 a 34.pdf · em recuperação, os livros Viver sóbrio e Alcoólicos anônimos

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A Moldávia, país da Europa Oriental, é líder absoluta no quesito consumo de bebidas alcoólicas. São 23 litros por pessoa anual-

mente (a análise é feita a partir dos 15 anos de idade). O Brasil, por sua vez, fica no meio da ta-bela em pesquisa feita pela Organização Mundial da Saúde (OMS), com 10,2 litros para cada um dos quase 200 milhões de habitantes em 365 dias. Parece pouco? Rússia e Alemanha, famosos pe-las produções em larga escala de vodca e cerveja, respectivamente, estão apenas um pouco acima. Os russos consomem 16,2 litros, contra 12,1 litros per capita dos alemães. As estimativas são de que entre 10% e 12% da população mundial sofra de dependência alcoólica.

Pelos dados analisados, o Brasil não parece estar no pior dos quadros. Mas, no país do des-caso com infrações consideradas leves, é preciso olhar com mais cuidado. Os adolescentes brasi-leiros, mesmo abaixo dos 18 anos – idade em que é permitido beber – têm acesso fácil a bebidas. É aí que está o problema: o alcoolismo é uma rea-lidade que pode começar precocemente. Quando isso ocorre, pular de um estágio para outro mais grave é questão de tempo. O alcoolismo é uma

doença incontrolável, incurável e progressiva. O maior perigo é que muitos ignoram esse aspecto. Membros do grupo Alcoólicos Anônimos (A.A.), psicólogos, jovens, viciados e ex-viciados em be-bidas têm a resposta para a pergunta: como en-carar o excesso na hora de beber?

Quando o “desce mais uma” é desabar de vez Os depoimentos exclusivos de membros do A.A., a opinião de jovens que convivem com a bebida e a concepção de especialistas sobre o alcoolismo, problema que afeta 13% da população brasileira

Guilherme marçal e Sarah moraeS

Símbolo Oficial dos Alcoólicos Anônimos: o círculo simboliza o A.A. no mundo e o triângulo representa os três legados do A.A. - Recuperação, Unidade e Serviço

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Psicóloga aponta impactos em diferentes etapas da vida

O hábito de ingestão de bebidas alcoólicas pode se originar em várias etapas da vida e por diferen-tes motivos, conforme apontam as pesquisas en-comendadas pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) do Ministério da Justiça. Entre estudantes do ensino médio e fundamental, o ato de beber já havia sido experimentado por 65,2% dos entrevistados. Quando o consumo se inicia nesta faixa de idade, o risco de o proble-ma se agravar com o tempo é grande, devido a uma prática comum na juventude: o binge, ou o abuso do álcool em um curto espaço de tempo. A medida para se atingir o binge varia com o sexo: cinco doses ou mais para homens, contra quatro ou mais para mulheres.

Drogas psicotrópicas, como o álcool, atuam diretamente no cérebro e alteram a forma de pensar e agir, por serem depressoras do sistema nervoso central. Em organismos mais frágeis, como o de adolescentes, elas atuam com maior intensidade. A psicóloga Elizabeth Dantas ex-plica porque os jovens são mais vulneráveis aos efeitos do álcool.

– A adolescência é um período de risco por vá-rios fatores: a necessidade de aceitação pelos ami-gos, o desejo de experimentar se comportar como adulto e, por vezes, o de querer se sentir onipoten-te. É um momento de insegurança e de início de envolvimentos afetivos, além de transformações de ordem física, cognitiva e social. Certamente o uso do álcool pode comprometer esses processos – afirma.

Segundo Elizabeth, o jovem dependente atinge em cheio as pessoas a seu redor. Muitas vezes, a estrutura familiar não permite a imposição de li-mites, o que pode gerar prejuízos a ambos.

– A pessoa fica agressiva, rebelde, diminui a autoestima e a confiança. Isso dará prejuízos em todas as esferas, principalmente no engajamento profissional. Mas a primeira área onde o dano é visível é na família – diz a especialista, que re-mete o fácil acesso de menores ao álcool à fraca fiscalização nos locais de venda.

Entretanto, nem todos os jovens consomem álcool descontroladamente. Apesar de ser consi-derado «diferente» entre os seus colegas por ser

abstêmio, o estudante de Cinema da PUC-Rio, Marcos Carvalho, de 19 anos, permanece com uma opinião irredutível sobre o consumo de be-bidas alcoólicas.

– Desde criança eu tomei o costume de não beber, talvez porque eu tenha tido uma influên-cia muito negativa da bebida na família. Vários dos laços familiares foram postos em risco ou se desfizeram, quase sempre por causa da bebida. E, além disso, eu fui criado na igreja (Evangélica Universal) até meus 12 anos e beber não era per-mitido – explica o universitário.

A depressão é o motivo mais comum para expli-car o consumo regular do álcool por jovens numa fase mais amadurecida da vida. Seja por mudan-ças no âmbito familiar, social ou ocupacional. Nesse contexto, estado civil instável, histórico de parentes que bebem e infelicidade com ambiente de trabalho são bons exemplos de inconvenientes que levam ao alcoolismo.

No caso dos idosos, o panorama é ainda pior. Elizabeth explica que a vulnerabilidade é equipa-rável à dos jovens, mas os motivos que levam ao consumo são distintos. A perda de pessoas pró-ximas, as limitações físicas, a aposentadoria e o

A psicóloga Elizabeth Dantas alerta para os perigos do consumo precoce de álcool.

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sentimento de inutilidade acabam predispondo a pessoa ao excesso com bebidas. Os impactos variam entre redução dos reflexos motores e au-mento da frequência cardíaca. Por isso, encarar o vício alcoólico como arriscado na terceira idade é fundamental para evitar mais transtornos.

Por dentro do A.A.

“Por mais de 24 horas não darei o primeiro gole”

“Sentir fome e trocar a fome por um copo de ca-chaça, amigo, ninguém merece”. É com esta frase que um alcoólatra encerra seu depoimento em uma reunião de um dos vários grupos de Alcoóli-cos Anônimos do Rio de Janeiro. São duas horas de reunião, onde é possível observar os mais va-riados tipos de dependentes do álcool comparti-lhando histórias sobre a vida e sua eterna luta pela recuperação. “Por mais 24 horas não darei o primeiro”, diz um dos lemas, referindo-se ao gole inicial. Os membros têm total consciência de que

a doença é incurável e que é preciso resistir todos os dias. Como eles dizem: “É só por hoje”.

O A.A é uma irmandade criada nos Estados Unidos com o objetivo de ajudar homens e mu-lheres a se recuperarem da dependência alco-ólica. O único requisito para se tornar membro é manifestar o desejo de parar de beber. Não é necessário pagar taxas. O anonimato é garanti-do, bem como a certeza de que os envolvidos são capazes de compreender uns aos outros, já que encaram o mesmo problema. Apesar de a Oração da Serenidade ser lida no começo e no encerra-mento de cada encontro, não é necessário seguir ou acreditar em nenhuma religião.

Cada participante tem a oportunidade de com-partilhar sua experiência com os colegas durante 10 minutos, caso se sinta à vontade. Durante as duas horas de reunião, ouve-se todo o tipo de his-tórias de vida.

– Não bebo há quatro anos. Isso foi bom para mim. Mas hoje é só mais um dia. A bebida é a chave da porta do inferno. O alcoólatra acha que vai acontecer com os outros, não com ele. Eu fazia “avião” (intermediário entre traficante de drogas e consumidor) para poder beber. A bebida come-çou a me definhar, virei vagabundo. Me tornei outra pessoa, outra pior, um cara brigão. Perdi vários amigos. Estou tentando parar há 10 anos, mas estou sóbrio há quatro. Hoje eu tenho paz, meus amigos, dou valor às coisas simples, sou uma pessoa feliz – conta Valdemir.

Cada grupo segue uma rotina de reuniões, de-terminada por um comitê de plantonistas e pales-trantes – todos voluntários e ex-alcoólatras – es-colhidos democraticamente pelos membros. Mas, apesar dos cronogramas distintos, é possível ob-ter orientações sobre como se recuperar em todos eles. Existem três salas principais. Uma para reu-niões abertas, outra para reuniões fechadas (ape-nas membros) e uma para quem recém-ingressou no A.A.

O uso excessivo de bebidas alcoólicas pode cau-sar consequências físicas graves. É comum ocor-rerem gastrites, úlceras, inflamação no esôfago, pancreatite, cirrose, ou até mesmo a morte.

– Meu pai era militar, morreu de whisky. Era no almoço e no jantar. Meu irmão estava na mesma praia. Um dia, meu pai faleceu e meu

O estudante Marcos Carvalho não se rende ao álcool por conta do histórico familiar

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irmão foi quase ao mesmo tempo. Comecei a be-ber cerveja com 40 anos, foi inevitável. A bebida é um terror, mata todo mundo. Mata feio demais e com uma velocidade grande. Eu bebia cerveja e cheirava cocaína. A leveza da cerveja atrai a gente. A bebida é um veneno – afirma um dos membros do A.A.

Exemplares de Os doze passos e As doze tradições, encontrados nas salas de reunião, são princípios a serem seguidos que tornam o convívio e a recu-peração do alcoólico um pouco mais fácil. São in-dicados também, como literatura para quem está em recuperação, os livros Viver sóbrio e Alcoólicos anônimos.

“Foram 36 anos de sofrimento. Tudo o que eu fazia tinha

álcool no meio”

A abstinência é um dos principais fatores que leva a recaídas. Sintomas como ansiedade, in-quietação, irritabilidade, insônia, tremor, aumen-to da pressão arterial, aumento da transpiração

corporal e da temperatura, desestimulam a recu-peração.

– Minhas mãos viviam tremendo. Não conse-guia escrever, tinha que ir no boteco tomar uma dose para poder trabalhar. Foram 36 anos de so-frimento, tudo que eu fazia tinha que ter álcool no meio. Eu ficava 90 dias sem beber, mas sempre na esperança de um dia beber socialmente. Fiz várias coisas conhecidas para beber e não ficar bêbado, mas nada resolvia. Para dormir, eu tinha que me anestesiar. Eu não cheguei querendo pa-rar de beber, cheguei querendo aprender a beber. Agora estou há quatro anos, seis meses e seis dias sem beber – revela Raimundo, durante reunião do A.A.

Para prestar serviço em uma das unidades, é preciso estar “limpo” por pelo menos 90 dias, pe-ríodo no qual o organismo está totalmente livre do álcool. Os organizadores sugerem que os ini-ciantes assistam, durante esses 90 dias, 90 reuni-ões, mas nada é obrigatório. A cada período sem beber, o membro ganha uma ficha para simboli-zar o feito.

– Estou há 33 anos evitando dar o primeiro gole

Participantes do A.A. se abraçam: confraternização é essencial para recuperar dependentes

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“Quando estava sendo carregada, me senti um lixo”

de 24 em 24 horas. O primeiro gole é que desen-cadeia o processo de dependência e modifica o ra-ciocínio e o pensamento do alcoólatra. O primeiro gole é que embebeda, tem uma dimensão e exten-são incalculáveis. O A.A é uma faculdade de vida, porque o alcoólatra vive com bastante intensida-de. O álcool coloca o alcoólatra no chão e no topo do Everest e isso ainda é pouco para ele. Dizemos “por mais 24 horas”, mas é para sempre – conta outro alcoólico que preferiu não se identificar.

Outro ponto importante e muito difundido no A.A para a recuperação de dependentes é o apa-drinhamento. Ele funciona da seguinte forma: depois de um tempo assistindo a reuniões, caso ocorra a identificação com o depoimento ou his-tória de outro membro, é possível pedir para que ele seja seu padrinho ou madrinha. Esse tipo de ação é extremamente importante em casos de recaída, quando a vontade de tomar o primeiro gole se torna incontrolável.

Alessandra Kuan é estudante de desenho industrial da PUC-Rio, completou 18 anos recentemente e, antes disso, não se aventurava muito com bebidas, diferentemente da maioria de seus amigos. Num sábado à noite, Alessandra foi a um bar e, tímida, resolveu experimentar tequila – que possui teor alcóolico de cerca de 40%. Ela terminou tomando soro no hospital. Entenda o que a falta de limite acarretou à jovem universitária.“Quando cheguei ao bar com meus amigos, não estava à vontade, pois encontrei algumas pessoas que não queria ver. Bebi para tentar

me sentir mais confortável. Nunca havia bebido uma tequila e logo pensei que seria legal, porque vivia ouvindo histórias sobre o ritual com sal e limão. Na primeira, entornei metade do copinho. A pedido de um amigo meu, tomei outro copo. Tomei três tequilas. Fiquei tonta, mas não achei que estivesse mal. Tomei ainda duas cervejas. Não lembro o que aconteceu, só de alguns flashs. Levantei da cadeira e tropecei. Estava tudo girando. Pensei: ‘Estou mal, mas não tão mal’. Fiquei enjoada e acabei vomitando no banheiro. Lembro que quando estava sendo carregada para o táxi pelos

meus amigos, me senti um lixo. Apaguei no hospital e vi a enfermeira colocando soro no meu braço. Depois dormi e acordei com o braço dolorido. Minha amiga mandou uma mensagem para minha mãe e fiquei com medo, desesperada com o que poderia acontecer se meu pai soubesse. Quando fui liberada pelo médico, falei que não ia mais beber. Mas, agora, de cabeça fria, acho legal beber porque insere as pessoas, elas se soltam. Eu consigo puxar mais assunto. Mas a tequila me traumatizou. Vou ficar só na cerveja a partir de agora e parar quando sentir que cheguei ao meu limite”.

Curiosidades

– No Brasil, 11% dos homens e 2% das mulheres consomem álcool diariamente.– A TPM deixa as mulheres ainda mais vulneráveis à bebida que os homens.– O corpo feminino tem menos água que o masculino. São 51% contra 65% dos homens. Por isso, as mulheres, mesmo bebendo quantidades equivalentes, ficarão com maior concentração alcoólica e desenvolverão mais a embriaguez.