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74 TEXTOS 74 Resumo: Este texto trabalha os destinos da pulsão em suas incidências clínicas. O quarto tempo do circuito pulsional surge como uma hipótese a partir da observação cotidiana e da clínica de crianças. O circuito pulsional apresenta o infantil de todos nós. Palavras-chave: circuito pulsional, castração, recalque, infantil. THE FOURTH TIME OF THE DRIVE CIRCUIT Abstract: This text discusses the targets of the drive in their clinical implications. The fourth time of the drive circuit arises as an hypothesis from the daily observation and clinic of children. The drive circuit presents the childish of us all. Keywords: drive circuit, castration, repression, infantile. O QUARTO TEMPO DO CIRCUITO PULSIONAL 1 Simone Mädke Brenner 2 1 Este texto só foi possível graças às valiosas contribuições de Fernanda da Silva Gonçalves, Marta Pedó, Silvia Eugênia Molina, Alfredo Jerusalinsky, Simone Moschen e Ana Maria da Costa, os quais me ajudaram a suportar os efeitos do quarto tempo em mim mesma, e assim me foi possível escrever. 2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); E-mail: [email protected] Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 74-88, jan./jun. 2011

QUARTO TEMPO CIRCUITO PULSIONALroponho-me neste texto articular melhor o que comecei a escrever no texto Bate-se numa crian ç a e circuito pulsional: declara çõ es de amor 3 , sobre

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TEXTOS

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Resumo: Este texto trabalha os destinos da pulsão em suas incidências clínicas.O quarto tempo do circuito pulsional surge como uma hipótese a partir daobservação cotidiana e da clínica de crianças. O circuito pulsional apresenta oinfantil de todos nós.Palavras-chave: circuito pulsional, castração, recalque, infantil.

THE FOURTH TIME OF THE DRIVE CIRCUIT

Abstract: This text discusses the targets of the drive in their clinical implications.The fourth time of the drive circuit arises as an hypothesis from the daily observationand clinic of children. The drive circuit presents the childish of us all.Keywords: drive circuit, castration, repression, infantile.

O QUARTO TEMPO DOCIRCUITO PULSIONAL1

Simone Mädke Brenner2

1 Este texto só foi possível graças às valiosas contribuições de Fernanda da Silva Gonçalves,Marta Pedó, Silvia Eugênia Molina, Alfredo Jerusalinsky, Simone Moschen e Ana Maria da Costa,os quais me ajudaram a suportar os efeitos do quarto tempo em mim mesma, e assim me foipossível escrever.2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); E-mail:[email protected]

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 74-88, jan./jun. 2011

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Não há nenhuma necessidade de ir muito longe numa análise de adulto,basta ser alguém que pratica com crianças para conhecer esse elemento

que constitui o peso clínico de cada um dos casos que temos quemanipular e que se chama pulsão.

Lacan

Proponho-me neste texto articular melhor o que comecei a escrever no textoBate-se numa criança e circuito pulsional: declarações de amor3 , sobre o

que denomino o quarto tempo do circuito pulsional (2011).Naquele texto apresentei o relato de uma paciente de sete anos de idade

que eu tinha em comum com uma neuropediatra que fez o encaminhamentodessa criança em função de lhe parecer que o quadro neurológico tinha tambémno seu bojo um pedido de escuta. Era uma criança com diagnóstico de epilepsiae, na história pregressa, de terror noturno. Posteriormente, mantinha transtornodo sono. Apresentava crises convulsivas generalizadas, primeiramente duranteo sono e, no momento da avaliação psíquica, também em vigília. Inicioumedicações anticonvulsivantes que, além de não controlarem as crises duranteo sono, aumentaram sua frequência. As medicações, mesmo associadas, nãomodificavam o padrão das crises durante o sono. Apresentava alteraçõeseletroencefalográficas nas regiões temporal e frontal. Mostrava-se absolutamentearredia e impermeável ao outro, sendo permanentemente desafiadora, deixandoclaro que precisava bastar-se a si mesma, sendo que, para ela, o outroinevitavelmente era ameaçador, estando impossibilitada de confiar em quemquer que fosse. Essa convergência de sintomas fez a neurologista se perguntarsobre o que as alterações no corpo dessa criança apontavam, “falavam”. No quese referia, em particular, à ineficácia das medicações para controlar suas crisese para ajudá-la a adormecer, parece que deixava claro que não podia adormecer,e isso precisava ser escutado.

A. chega contando sobre as coisas que vinham acontecendo, as quaisdenominava como “desrespeito” aos olhos dos outros. Ela conta suas afrontas,suas transgressões, porém demonstrando muito prazer quando isso podia lheresultar em surras e espancamentos, principalmente por parte do seu pai. Falaclaramente da sua intenção de “machucar” as pessoas à sua volta com palavraschulas. Quando dela indago sobre o que será que a faz ter que funcionar assim,

3 Texto publicado no Correio da APPOA, número 203, julho de 2011.

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ela diz: “Tu não sabe o que o marido dela diz e faz!” (referindo-se à mãe, que seencontrava dentro da mesma sala). Pergunto: “O marido dela é teu pai?”; e elaresponde: “É, parece... deveria ser....”.

Enquanto me contava isso, pede para desenhar com canetinhas e, logodepois, afirma: “Já sei que tu vai me xingar. Não pode pintar com canetinhas eeu pintei!” Respondo: “Podes, sim, pintar! “Se não pudesse eu não teriadeixado, teria te falado que não podias!” Ela parece admirada com minharesposta e depois me fala: “Quando alguém me diz não, faço uma caramuito feia!” (Faz uma cara ameaçadora). Afirmo que quando for preciso direios nãos necessários a ela. Ela logo olha para sua mãe e diz: “Preciso muitovir aqui, muitas vezes!”

Relata muitos pesadelos que eram recheados de cenas de invasões, deagressões de todos os lados e que, quando os narrava nas sessões, demonstravamuito prazer em relatá-los. Nesses momentos chegava a dizer que pensavamuito em que quando tiver um filho fará com ele o mesmo que nesses sonhosfazem com as pessoas, maltratá-lo.

Com frequência, quando se mostra irônica, debochada e gozando com asua tragédia, canta a seguinte música:

Eu nasci gay, a culpa é do meu pai, que contratou um tal de Wilsonpara ser capataz. Eu vi o Bofi tomar banho e o tamanho dessamala era demais... O desgranido do pai dela depois reclama dela.Ele contratou o capataz e depois reclama que ela é o que é. Onome dela é Maria do Carmo.

Aos poucos, esses mesmos pesadelos começam a lhe produzir angústia;aliás, é nesse momento que ela os nomeia de pesadelos. Antes, ela os chamavade sonhos. Começa então a assustar-se com o que vê, passando a ter medodeles.

Enquanto contava seus sonhos, precisava muito desenhar. Desenhavasuas interpretações acerca dos seus sonhos. Até que, num momento, diz:“Gostaria de poder desenhar um príncipe, mas não consigo. Esta princesa vaificar sozinha”. Acrescenta: “As flores da nossa casa todo mundo cuida, têmmuitas flores. As de cada um ninguém cuida!”

Nesse momento diz que depois de cantar a música começa a sentirânsia de vômito. A partir daí, conta que está conseguindo dormir, que vem tendosonhos bons, com flores, casas... Diz que, quando dorme assustada, precisacuspir várias vezes, não podendo mais “engolir”. Pergunto se ela teve que engoliralgo que não queria ou que não podia e ela diz que sim, “Isso me machucou

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muito. Nessas horas, preciso fazer muito, muito xixi. Vou lá fazer xixi.” Vai aobanheiro e quando volta comenta: “Meu pai sabe muito sobre o meu xixi!”

Na sua última sessão, sendo o tratamento interrompido pelo pai, ela canta:

Super água em ação, não quer saber de poluição. Quando está noar, ele vai salvar nossa cidade da destruição... Era uma vez umazul do céu, que pinta o papel. Que molha o mar. Era uma vez umamenininha que pinta e fascina e molha o mar. Ela mistura o céucom sonho e fantasia, ela imaginou que se transformaria emborboleta e asas ela ganhou, pra onde ela voou foi colorindo tudopor onde passou. Quero ser um peixe diferente do que me fizeram!Quero poder ser um peixe cor de rosa!

É importante relatar que, após o início do atendimento psíquico, suascrises foram diminuindo de frequência, até cessarem por completo. Oeletroencefalograma também melhorou, tornando-se praticamente normal.

Ao longo das poucas sessões que teve, e da grande melhora no seuquadro neurológico, vem então a pergunta: o que se operou no corpo dessacriança? Ou o que acontecia antes que fazia seu corpo literalmente “berrar”,claramente adoecendo?

A relação que fiz deste caso com o texto Bate-se numa criança, de Freud([1919]1953), é porque se trata de uma criança que oscila entre o gozo de serinvadida, batida, e o repúdio a tudo isso. Ela fala da fantasia que tem, de serespancada, humilhada e desprezada por todos ao seu redor, em particular pelopai, e, ao mesmo tempo, faz uma demanda muito clara e consistente de setratar e poder sair dessa posição de objeto.

A primeira parte daquele texto sobre a qual gostaria de pensar é quandoFreud nos fala de como temos que nos perguntar sobre a relação que podeexistir entre o sentido de tais fantasias (as fantasias sobre uma criança serbatida) e as reprimendas corporais recebidas realmente por essa criança emsua educação familiar. Refere nesse momento que, na maioria das vezes, sãocasos de sujeitos que não foram tratados e educados à força, com superioridadefísica por parte de seus educadores. Isto é, a fantasia de uma criança de serespancada não se relaciona diretamente com o fato de a criança em questãoser efetivamente espancada, mas com a possibilidade de ela ter sido vítima deum acontecimento infantil que tenha provocado uma fixação. Tal fixação prescindeda necessidade de haver “força traumática”; no entanto, fica a pergunta sobrepor que tal tendência sexual havia ficado fixada precisamente ali. Propõe entãoFreud que o sentido de tal fixação esteja no fato de ter havido, como causa

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desta, componentes sexuais “prematuros” à criança e que, por isso, teríamosque supor que o acontecimento traumatizante e produtor de tal fantasia seapresentaria, em algum ponto, como um fim provisional.

Ele diz:

las fantasias de flagelación tienen una historia evolutiva hartocomplicada, en cuya trayectoria varían más de una vez casi todossus elementos: su relación con el sujeto, su objeto, su contenido ysu significación (Freud, [1919]1953, p.189)4.

Na primeira fase das fantasias de flagelação, a criança espancada éindiferenciada, isto é, pode ser qualquer um; porém, nunca é a própria criançaque fantasia, é sempre outro. Nessa primeira fase existe o espancador, a criançaespancada e aquela que olha e que “admira” a cena. Aparece a hipótese de queo pai bate na criança odiada por aquela que olha, demonstrando assim seuamor por esta.

Na segunda fase das fantasias de flagelação, a pessoa que bate nacriança é a mesma, porém a criança espancada é a própria criança que fantasia.A criança fantasia ser batida pelo pai e, para Freud, essa é a fase mais importantede todas. Volta a afirmar que não tem sentido real e que também tem conteúdoque permanece fora da consciência, não pode ser recordado.

A terceira fase das fantasias de flagelação se assemelha à primeira;porém, não aparece mais o pai como aquele que bate, mas, sim, os agentesativos e passivos ficam indiferenciados e a posição do sujeito nesse momento éde tê-la como o sustentáculo de uma intensa excitação, inequivocamente sexual,e que provoca, como tal, a satisfação onanista.

Enquanto relia tal texto de Freud ([1919]1953), fiz uma relação com o queele fala das pulsões, pensando sobre a construção dos três tempos do circuitopulsional.

No primeiro tempo do circuito pulsional o bebê posiciona-se como ativo,quando vai em busca do objeto, que é externo ao Eu, e apodera-se dele.

4 As fantasias de flagelação possuem uma história evolutiva bastante complexa, em cuja trajetóriavariam mais de uma vez quase todos seus elementos: sua relação com o sujeito, seu objeto, seuconteúdo e sua significação (livre tradução).

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O segundo tempo do circuito pulsional é um tempo reflexivo, quando obebê toma parte de seu corpo no lugar do objeto, sugando aqui, não o objetoexterno, mas parte de seu próprio corpo, aparecendo assim o “chupar-se”.

No terceiro tempo do circuito pulsional, o sujeito retorna ao outro e se fazser objeto dele. Nasce aqui a possibilidade de sujeito, alguém que, tendopercorrido a primeira instância de se apoderar de algo fora de si e ter encontradonesse fora de si algo que lhe significou, busca uma forma de marcar em suacarne esse outro, a tal ponto que pode, nesse terceiro tempo, devolver ao outroo seu próprio tesouro. Este tesouro é, necessariamente, resultante dessecaminho de três tempos, fruto de um laço tecido do bebê já nascido, que,sofrendo as consequências de uma falta real, vai em busca do objeto capaz deilusoriamente restaurar aquilo que para sempre se perdeu. Busca refazer aquelemomento no qual o externo estava no lugar da indiferença, pois não tinhanenhum registro de que esse externo poderia ser algo que pudesse se tornarparte do Eu. Todo o trabalho dos três tempos do circuito pulsional refere-se aoárduo trabalho de um sujeito nascendo de fato. Em ato, o nascimento é o cortefundante para que o sujeito possa começar a inaugurar seu circuito pulsional.

Analiso aqui o nascimento de um sujeito que possa transcender omomento da alienação que representa esse terceiro tempo. É um quarto tempo,aquele em que o bebê se entrega ao outro, deixando claro seu estofo narcísico,já tendo condição de se retirar em parte dessa cena. Como quando entrega seupezinho, sua barriguinha, seu pescoço para ser deliciado pela sua mãe e aospoucos os tira; quando responde às demandas de fazer gracinhas, para serbem olhado por ela, e depois começa a dizer que não; quando come “bem ebonitinho”, para ver sua mãe muito satisfeita e aos poucos nega alguns alimentos,deixando claro que já pode fazer sua escolha de satisfação (o que e o quantoquer comer!); quando se presta a aceitar todas as roupas e adornos que suamãe lhe coloca e, aos poucos, os retira, um a um, impedindo que os mesmossejam repostos; quando se mostrava muito satisfeito em ver a satisfação desua mãe em trocar suas fraldas, para começar a não querer mais serincomodado enquanto faz seu cocô (escondendo-se em algum cantinho dacasa) e demonstrando que não é mais quando sua mãe quer que as fraldasserão trocadas, mas, sim, e também, quando ele achar que isso já temnecessidade. Portanto, é um quarto tempo do circuito pulsional que possibilitaque o sujeito, atravessado pela castração simbólica, nasça de fato. Isso, porque,para que esse quarto tempo se inaugure, é vital que a castração esteja operandonos dois campos: na mãe e na criança. Para isso é necessário que alguémfaça o circuito da pulsão de fato circular, se refazer e, portanto, tornar possívelos efeitos simbólicos da castração: apoderar-se do objeto ilusoriamente

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satisfatório, fazê-lo ser real e simbolicamente marcado no corpo, devolvê-lo aooutro como a clara declaração de uma dívida impagável para, depois, conseguirdizer que sim, por ser impagável ela precisa simbolicamente circular, seguirseu rumo não ficar fixada ali. Ficar fixada talvez seja o fruto de ficar presa noterceiro tempo do circuito pulsional: no tempo da alienação ao Outro.

Cabe também destacar que, quando há uma tendência particular-mente estreita da pulsão ao objeto, utilizamos o termo fixaçãopara designá-la. Essa fixação ocorre com frequência em períodosmuito iniciais do desenvolvimento da pulsão, opõe-se entãointensamente à separação entre pulsão e objeto e põe fim àmobilidade da pulsão” (Freud, [1915] 2004, p.149).

Aqui se instauram as condições para a resolução edípica: cena na qual obebê “pergunta” para sua mãe até que ponto ele não é tudo aquilo que ela desejae, ao mesmo tempo, está seguro do seu amor.

Quando falo do quarto tempo do circuito pulsional, penso naquilo queFrançoise Dolto(1984) nos apresenta sobre o conceito de castração simbolígena.

Pela castração simbolígena, ao contrário, a mãe, que desmamouo filho e constatou, através de seus gritos, o mal-estar que elesente em viver e em aceitar esta prova, esforça-se por consolá-lo.Tanto mais quanto, frequentemente, ela também sofre com estamudança de relação com seu próprio corpo e com seu bebê. Elainicia a criança de modo a sentir-se tão próxima dela e ainda maisagradavelmente do que antes da privação, em troca humana comela. A mãe a inicia de modo a encontrar na comunicação linguageiracom ela uma introdução à atenção do outro: o pai, os irmãos eirmãs, consoladores e interlocutores substitutos, aliados à mãe,que vêm revelar ao bebê um mundo social... É assim que,justamente, o desmame, esta castração oral, é simbolígena (Dolto,1984, p. 67).

Para Dolto, a castração que opera na criança necessariamente tambémprecisa operar no adulto. Portanto, o que ela chama de “troca humana” tem a vercom a linguagem ser o meio fundamental de consolá-la, não mais com o objetoque fora interditado e nem com outros que simplesmente os substituam. Ambosestão privados desse objeto: a mãe e o bebê, e o que sustenta essa operaçãode interdição não é só a privação do objeto, mas, sim, junto com esta, as palavras

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que bordejam aquilo que caiu. Para Dolto, é essa operação que torna possível otrabalho da sublimação, que é da ordem da cultura, da Lei.

No entanto, saber sobre o efeito simbólico da castração só é possível nomomento posterior, podendo-se saber então sobre os “frutos das castrações”,que para Dolto representam:

o destino dado às pulsões que não podem satisfazer-se diretamentena satisfação do corpo a corpo, ou na satisfação do corpo comobjetos eróticos incestuosos. Tais pulsões são mantidas comoproibidas – e há aí o fato de realidade promocional – pelo modeloque editou o dito da proibição, no respeito da humanização dacriança (Dolto, 1984, p.61).

Só sabemos sobre a consistência simbólica da castração pelo que a elase segue. Da mesma forma, a operação do circuito pulsional: só temos comosaber sobre a consistência do segundo tempo a partir de terceiro tempo, isto é,se quando o bebê se fizer ser objeto de si mesmo (por exemplo, chupar-se) elemostra ter sido marcado pelo Outro (por isso, ao chupar-se, ele se faz sustentadopor este) ou não. Isso, porque, se ele está se chupando e isso está atado aoque se constrói na relação com o outro, isso lhe possibilita buscar este e entregar-lhe seu “tesouro”. Isto é, o terceiro tempo testemunha a consistência do segundotempo. Nesse terceiro tempo ele declara que mesmo quando se vê tendo que sehaver com a solidão, consigo mesmo, o Outro está marcado já no seu corpo;por isso é um chupar-se por um tempo, até que o outro retorne. Ele não prefereo chupar-se ao encontro. Quando não há a passagem para o terceiro tempo,nos vem a pergunta sobre o que operou (ou não operou) nos tempos anteriores,isto é, que caminho desses tempos foi trilhado que, no terceiro, o sujeito nosmostra que o chupar-se não era mediado pelos efeitos do Outro no seu corpo e,sim, era uma tentativa de com isso fazer algo para que seu corpo nãodesaparecesse. Sim, a sensação que um sujeito tem de não ser marcado noreal do seu corpo pelos significantes que o significaram é o ter que fazer essereal ser de fato sentido, para que o corpo não desapareça.

Por isso, no terceiro tempo o sujeito faz uma declaração de amor, porém,no âmbito da alienação, com todos os benefícios e riscos que sabemos queisso tem.

A clínica nos aponta como, em muitos casos, ficar atado neste terceirotempo desfaz o circuito pulsional, por isso acho precioso o nome “circuito”. Éuma palavra que aponta a algo que precisa estar em movimento, em reorga-nização. Portanto, para que o circuito se dê, é necessário que os tempos não

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se fechem. Quando será que um tempo pulsional pode vir a se fechar e, comisso, pôr em risco o circuito?

Entendo que em qualquer um dos tempos o risco ocorre, quando o encontrocom o Outro por alguma razão fracassou. Às vezes fracassa, por exemplo, emmomentos quando o nascimento do bebê não coincide com o momento em queo sujeito-mãe possa psiquicamente encontrá-lo, como nas graves depressõesmaternas. Outras vezes, pelo fato de o pequeno sujeitinho nascente ter algoque, em sua origem, dificulta muito a sutileza desse encontro (por exemplo:crianças que nascem com patologias orgânicas que dificultam muito o encontro)ou ainda pelo fato de a mãe ter uma condição psíquica que não passa pelosefeitos da castração simbólica; portanto, não há de fato condição de encontrocom o Outro, mas, sim, o bebê é tomado como espelho da mãe. Neste último,é como se o outro reconhecesse na criança puramente a si mesmo, não havendocondição para a surpresa, para a dúvida, para a descoberta. Enfim, nesse tipode contato o sujeito-bebê não existe para a mãe, ele funciona como um reflexodo espelho, uma imagem que sustenta aquele que olha, nada mais. Esses sãoalguns dos momentos nos quais há o risco de o circuito se fechar, isto é, apulsão ilusoriamente atingiu o objeto e aí se fechou.

O quarto tempo de que falo, penso ser o tempo que confere o estatutosimbólico da castração nos dois lados: no lado do bebê, que se entrega aooutro, porém não todo (quando ele já pode decidir o quanto sua mãe pode se“deliciar” com seu corpo) e do lado da mãe, que primeiro torna possível esseendereçamento (tendo possibilitado que juntos construíssem os três temposanteriores), como também a retirada do corpo como objeto de deliciar-se, sendoaquela que suporta e confere um valor inegável nessa declaração feita pelo bebêde que ela é não toda para ele (e vice-versa). Enfim, ele também a castra.Existem mães que nesse momento sucumbem, isto é, não toleram essacastração que elas próprias deram condição para que o bebê ensaiasse. Aquipenso ser um daqueles momentos em que Dolto fala da castração nãosimbolígena na mãe, pois, para ter chegado ao quarto tempo, operou a castração,porém sem a condição simbólica necessária para que ela produza seus frutos.Os frutos da castração não sabemos quais são, essa é por excelência acastração simbólica. Quando ela opera, todos estão marcados por ela. Umamãe, ou alguém na posição de mestria, sucumbe por ter a ilusão de que acastração só é operada no outro, e não em si mesmo ao mesmo tempo. Tem ailusão de poder controlar a castração.

Falo de alguém na posição de mestria, pois abro aqui a minha tentativade entender, trabalhar e construir a ideia deste quarto tempo do circuito pulsionala partir do que Freud, Lacan e Dolto trazem sobre o tema, não se restringindo às

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questões de uma pequena criança. O circuito se faz e se refaz durante toda avida. Pensar sobre um bebê na sua relação com o Outro primordial é um recursoclínico importante para pensarmos a montagem desse circuito, mas isso nãosignifica que este se reduz à infância, mas, sim, que refere-se ao infantil decada um de nós.

Interessante que,no texto de Freud ([1915] 2004)sobre as pulsões edestinos das pulsões, o quarto destino das pulsões é a sublimação, isto é, umaforma de termos acesso à satisfação da pulsão,porém necessariamentebordejando-a, jamais satisfazendo-a.

As três fantasias de que Freud fala no texto Bate-se numa criança meparece que têm relação com esse circuito; porém, trata-se de um circuito quenão chega ao quarto tempo.

O que acontece é que, na fantasia de ser batido, o sujeito, mantendo-sede fora, consegue inserir o terceiro na cena (o sujeito olha, mas fora da cena),depois o sujeito volta a uma posição dual (ele e o outro), para, num terceirotempo, estar numa posição de ser capturado pela cena, isto é, o prazer quesente na fantasia o impede de deixá-la circular, de perdê-la. Freud fala que aíestá o risco da perversão, isto é, a fantasia funcionar como algo que burla osefeitos da castração, e não como o testemunho dos efeitos dela.

Talvez a pergunta sobre o que faz uma criança ficar fixada num objetopulsional, no olhar do outro, sem conseguir estar livre, seja que na infância elaprecisa que o adulto esteja ele próprio já submetido a isso mesmo a que elaprecisa se submeter: aos efeitos da castração, da Lei, da linguagem.

Por isso, é fundamental nos perguntarmos por onde deslizam os conteúdosimaginários de uma criança, isto é, a serviço de que a fantasia está operando?Acho importante poder pesquisar se, quando a criança fantasia ou brinca, deixaclaro que sua produção psíquica toma um rumo quando uma castração simbólicaoperou; por exemplo, quando se abre, a partir da interdição, uma criação que éclaramente marcada pela castração. São aqueles momentos em que elas chegamclaramente a nos dizer: “já que não posso dirigir de verdade, vou inventar o meucarrinho e aí sim vou poder dirigir de continha! Mas... quando eu for grande voupoder de verdade, né?!” Isto é, a criança, na sua produção no brincar, verdadei-ramente faz um ato de criação o qual a possibilita tanto ser permeável à castraçãoquanto mantém, a partir desta, um sonho. Ela constrói uma mediação que costuratempos diferentes (o passado, o presente e o futuro) e que a submete a uma leique lhe possibilita criar e não a impede de sonhar. Isso é por excelência umbrincar! Diferente de uma fantasia cuja trajetória é achar formas de burlar aquilo quefoi interditado. São situações em que as crianças passam muito tempo, um tempoque muitas vezes finda com a exaustão, insistindo em inventar artimanhas, histórias,

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na aposta de que o outro possa ser trapaceado, que sua insistência vai lhegarantir aquilo que lhe foi proibido. Aqui, o brincar (fica a pergunta se de fato éum brincar!), as invenções, mostram que a criança está fixada, presa, refém daineficácia de uma castração simbólica. Como muito bem nos fala a minhapaciente! Em outras palavras, a primeira tem o efeito de possibilitar que o sujeitodeslize, faça uma história (sua história!), enquanto na segunda o sujeito patina,fica capturado por uma instância que o impede de seguir seu rumo.

No caso da criança anteriormente relatado, o quarto tempo não estavainscrito no outro, isto é, na cena em que ela interdita que o outro goze no e comseu corpo, o outro lhe diz: não. O que ela fala com seus sintomas e com suaspalavras é do quanto ainda padece de uma cena na qual o outro toma seu corpocomo objeto, o corpo dessa criança não está numa posição casta, e, sim,altamente erotizada. O pedido por ser batida por todos mostra o quanto suaposição sadomasoquista chega ao ponto de alienação em que ela se colocaativamente a ser passivamente destruída. Ora, as crianças nos ensinam muitosobre essa lógica, a lógica de um adulto que, por não estar suficientementemarcado pelos efeitos da castração, na relação com ela, revela aquilo que nãopôde ser recalcado e que é fruto simplesmente de uma repressão. Portanto, háum não, um não à castração do interditor. Isso é o que impede que a criançaseja beneficiada pelos efeitos da lei simbólica.

Assim, para que o quarto tempo do circuito pulsional se inscreva, a criançaprecisa que a declaração de amor do outro parental já possa também ter sofridoo interdito do corpo. Sem essa inscrição simbólica no outro parental, a criançafica na posição de dúvida se pode insistir nesse quarto tempo sem correr o riscode se perder de seus pais.

Portanto, entendo que a mistura de pavor e de prazer nesta menina, quandosofre as agressões do pai, diz disto: é no corpo, na invasão que ela se senteamada, “mal amada”, mas amada. Ela só consegue suportar o risco de insistirno quarto tempo quando sua mãe consegue lhe oferecer outra forma de amor,um amor que passa pelas palavras, e não pelo corpo somente. Isso está dito napoesia em que ela fala na última sessão: são palavras amorosas e não palavrasatos de corpo.

É rico como essa criança nos mostra que inoperância dos efeitos dossignificantes como sustentáculo da castração faz o corpo dela entrar em colapso.Sua doença neurológica fala claramente disso: suas convulsões noturnas, suaimpermeabilidade às medicações, que a acalmariam e que diminuiriam suasconvulsões, seu funcionamento cerebral, que aponta importante alteração emáreas do cérebro que “falam” dos efeitos do recalque, do interdito no real docorpo, fazem com que seu cérebro funcione sem freio simbólico. Nada o acalma,

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o organiza; enfim, é um funcionamento cerebral que revela claramente os efeitosda inexistência da Lei operada pelos significantes no corpo. Esse caso nosaponta o quanto o que sustenta as sinapses, a organização do cérebro e seubom funcionamento, não é somente ele estar sadio, mas, sim, que ele precisa,como todos os órgãos de nós, humanos, daquilo que compreende a construçãodo que Dolto fala da imagem inconsciente do corpo. O fato de o cérebro não tersido marcado pelos efeitos “humanizantes” – que compreendem o trabalho desucessivamente recalcar o corpo através da construção e da estruturação dalinguagem – põe, sim, em risco o funcionamento cerebral.

Quero marcar aqui a relação da polaridade do ciclo pulsional comalgo que está sempre no centro. É um órgão, a se tomar no sentidode instrumento, da pulsão – num sentido diferente, portanto, daqueleque tinha há pouco, na esfera da indução do ich. Esse órgãoinapreensível, um objeto que não podemos mais que contornar e,numa palavra, esse falso órgão – aí está o que convém agorainterrogar.O órgão da pulsão se situa por relação ao verdadeiroórgão (Lacan, [1964]1979, p.185).

A forma como a criança vai melhorando em seus sintomas diz exatamentedisto: da capacidade que as palavras têm de organizar um corpo, um órgão.Palavras essas que são frutos de uma relação do sujeito com um outro para oqual as palavras têm o efeito simbólico. O trabalho com crianças nos ensinaesse lado muito impressionante do quanto as palavras marcam o corpo, nomais real que se pode pensar. “As palavras para tomarem sentido, devem,primeiro, tomarem corpo, serem, ao menos, metabolizadas em uma imagem docorpo relacional” (Dolto, 1984, p.34).

Essa menina confirma o que Dolto afirma, mostrando que o corpo, paratomar sentido e ser sentido precisa, primeiro, ter sentido nas palavras de umoutro .É com as palavras, com os efeitos dos significantes que um corpo podeadormecer,se organizar, se acalmar e poder, aos poucos, ser esquecido pelosefeitos da operação do recalque, e não da repressão. Digo do recalque, quandoum corpo é silenciado através das operações do recalcamento nas quais otrabalho psíquico é o de, gradativamente, ir traduzindo, suplantando algo queparte do órgão/corpo e que, através das construções das sucessivas “camadas”de linguagem, o corpo vai se “escondendo” e gradativamente se dando a verpelas produções simbólico-imaginárias que a partir dele são criadas, isto é, oórgão/corpo vai sendo “humanizado” (Dolto). Diferente de um corpo que, por nãoter sido beneficiado por esse trabalho, sente-se pulsando demais, sendo sentido

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Simone Mädke Brenner

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demais, a ponto de impossibilitar que o sujeito possa minimamente esquecê-lo.Ele então, para ser suportável, é muitas vezes “apagado”, seja pelo “deletar” desuas sensações, seja pelo apagamento químico.

Essa menina também nos mostra o quanto ela clama pelos efeitos dossignificantes que possam humanizá-la. Prova disso é a forma clara e precisacom que ela demanda ser escutada. Outro detalhe precioso é que, apesar deela ter um quadro neurológico importante, nas sessões ela nunca mencionouesses episódios. Eu sabia das suas convulsões pelo relato dos pais e daneurologista. Isso era algo com que eu me questionava muito: por que será queisso não a faz sofrer, não a assusta, como para a maioria das crianças quesofrem desses sintomas? Ela vai me ajudando a entender isso exatamente pelavia dos efeitos que tinha para ela o falar de si e ser escutada. Obviamente,nesse movimento de falar do corpo bordejando-o, isto é, sem falar das convulsõesnoturnas, ela fala do que a fazia enlouquecer à noite, o que a fazia ter um corpoque se mexia sem controle, desesperadamente, até a exaustão. Portanto, elafala sem falar do que sabe sem saber que sabe. Essa operação foi acionadapelo efeito da fala da neurologista, pois é ela que aponta para a criança que seucorpo pedia por vários cuidados: cuidados médicos referentes a ele estarclaramente em risco, como também cuidados que se referiam à imageminconsciente do corpo.

Bem, venho tentando “costurar” alguns conceitos que, para mim, sãofundamentais na clínica – pulsão, recalque, castração, circuito pulsional –, parabuscar com eles pensar sobre uma pergunta que esse caso o tempo todo mefazia: há um abuso? O que é, afinal, o abuso?

Essa é uma questão importante no que tange ao trabalho do recalcamento:fazer o corpo pulsionar no âmbito simbólico é aquilo que a criança nos ensinaquando passa do momento de olhar, mexer e se meter em tudo para o falar,perguntar, se tornar curiosa com as palavras, e não mais com o ato. Isso envolveum longo e árduo trabalho, que Dolto denomina de pulsão epistemológica, aquelaque nasce a partir do interdito do corpo (no mais amplo sentido que possamospensar!) e que é fruto das sucessivas castrações com que um sujeito ébeneficiado. Falo no amplo sentido de interdição do corpo, pois isso se mostranas pequenas crianças de forma aparentemente muito simples e cotidiana, muitasvezes camuflada por cenas muito “amorosas”, exemplos de uma grande“dedicação” materna. Refiro-me àquelas situações comuns no trabalho clínicocom crianças quando estas nos mostram seus sofrimentos por ficarem atadasao momento de ruptura necessária ao outro e que “patinam” exatamente porqueencontram no adulto dificuldades para sustentarem os efeitos da castração.São situações em que o adulto força a criança a comer aquilo e o quanto ele

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O quarto tempo do circuito funcional

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quer que ela coma, que a criança faça cocô e xixi no momento em que o adultoquer (isso se inclui, na definição por parte deste, de quando as fraldas serãoretiradas), na insistência em manter uma higiene rigorosíssima, a qual impedeque a criança comece a poder cuidar sozinha de seu corpo...

Enfim, são alguns dos inúmeros exemplos de situações nas quais ascrianças nos ajudam a pensar que o abuso é algo muito mais sutil e complexodo que muitas vezes podemos pensar. Abuso porque, para uma pequena criançaviver esses momentos que parecem tão simples, mas que são de fundamentalimportância (são os momentos em que ela inaugura seu nascimento como sujeitode fato, e que são as situações que possibilitam ou não o circuito pulsional), énecessário que o outro tenha no seu inconsciente a marca desta castração.Para o adulto ter a sutileza de interpretar o quanto uma criança precisa e desejacomer, o quanto suas fezes e sua urina representam muito mais do que umsimples controle esfincteriano, e, sim, representam a saída daquilo que entrou(e como entrou?!), de que suas roupas, que até agora sua mãe escolhia e vestia,passam a ser quase sua própria pele (por isso brigam tanto para elas própriasse vestirem e se despirem!), é necessário que esse adulto tenha diante do corpodo seu filho a construção do interdito, o qual o possibilita saber até onde penetrar.

Talvez esses sejam os abusos mais difíceis de serem trabalhados: osque são revestidos de “muito amor e muita dedicação”, aqueles que fazem nãosó a criança, mas também a qualquer sujeito, ficar atado. Atado, porque nooutro está o imperativo de não transpor o terceiro tempo do circuito pulsional,isto é, o não ousar interditar o Outro. Nessa lógica, a castração opera num ladosó: é como se a mãe dissesse para a criança que esta precisa comer para queassim a mamãe se sinta feliz (aliás essa é uma frase comum de se escutar!),pouco importando o que isso representa para a criança. E se, mesmo assim, acriança brigar, lutar para não se submeter ao abuso, a mamãe a chantageia, apune, a faz comer à força, muitas vezes até vomitar. Isso é um abuso! Sabemosque isso pode, sim, acabar com o circuito pulsional, fazer a criança se perder desi mesma e ficar fixada ao outro. Ficar fixada, seja pelo direito, rendendo-secomo belo cordeiro que come pela sua mãe e toma assim um volume de corpoque não é o seu (como alguns casos de obesidade), seja pelo avesso, numanegativa que se torna um imperativo (como alguns casos de anorexia). De qualquermaneira, nesses cenários o jogo de ir e vir, de se entregar e de poder receber, depoder se desarmar sem ter medo de ser engolido pelo outro não está armado.Arma-se um cenário de guerra, de quem domina quem, quem invade mais, quemse submete mais, enfim, é um cenário que muitas vezes nos apavora quandovemos uma pequena criança de dois anos enlouquecendo seus pais. Enlouquece-os porque eles a enlouqueceram, deixando-a perdida com suas pulsões.

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Ora, essa loucura primordial, uma desconfiança primordial, abala aspossibilidades de qualquer sujeito, tenha a idade que tiver, de amar. A cena queuma pequena criança nos ensina sobre esse momento de saída do terceirotempo do circuito pulsional e de poder ser sustentada no quarto tempo é, aolongo da vida, o que a possibilita amar. Amar numa posição de entrega quenunca é total, a que sempre sobra e falta algo, e que exatamente por isso faz odesejo circular, “Circuitar” com as pulsões.

REFERÊNCIASDOLTO, F. A imagem inconsciente do corpo (1984). São Paulo: Editora Perspectiva,1992.FREUD, S. Pegan a um nino [1919]. In: ______. Obras completas. Buenos Aires:Santiago Rueda, 1953.______. Pulsões e destinos da pulsão [1915]. In: ______ Obras completas. Rio deJaneiro: Imago, 2004.LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais dapsicanálise[1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.

Recebido em 15/12/2011Aceito em 20/03/2012

Revisado por Maria Ângela Bulhões

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TEXTOS

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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 89-98, jan./jun. 2011

Resumo: O artigo propõe discutir os possíveis efeitos, sobre o brincar, da extensãodo ensino fundamental para nove anos, com ingresso obrigatório aos seis anosde idade. Seu horizonte é sustentar a importância do brincar como exercíciocapaz de franquear às crianças o passaporte para o simbólico e para aspossibilidades de invenção que o caracterizam.Palavras-chave: infância, brincar, ensino de nove anos.

THE CHILDHOOD AS THE TIME OF INITIATIONTO THE ART OF PRODUCING NONOBJECTS

Abstract: The article proposes to discuss the possible effects of the extensionof elementary school to nine years on the child´s play, with compulsory admissionat the age of six years. Its horizon is to sustain the importance of play as anexercise able to give children the passport to the symbolic and to the possibilitiesfor invention which characterize play.Keywords: children, play, elementary school of nine years.

A INFÂNCIA COMO TEMPODE INICIAÇÃO À ARTE DEPRODUZIR DESOBJETOS1

Simone Moschen2

1 Este texto foi produzido para apresentação na Mesa Redonda intitulada A infância e as novaspolíticas para a educação. O tom oral da intervenção foi, neste artigo, mantido em grande parte.2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Professora doPós-Graduação em Educação e em Psicologia Social e Institucional/UFRGS; Pesquisadora doCNPq. E-mail: [email protected]

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Este artigo resulta do debate desdobrado em uma mesa de discussão intituladaA infância e as novas políticas para a educação. Na ocasião, discutiam-se

os possíveis efeitos da implementação de uma política de educação que indicavao acréscimo de um ano ao ensino fundamental; sendo esse ano incorporado aoinício da escolarização. Essa nova normatização, que implicou o ingressoobrigatório das crianças aos seis anos na escola, tinha como horizonte, dentreoutros objetivos, o de ampliar o período da escolarização, que é de responsa-bilidade do estado brasileiro. Este texto quer refletir sobre o impacto que mudançasoperadas pelos adultos no modo de conceber e propor a infância produzemsobre a experiência que as crianças fazem do mundo e de si.

Se, por um lado, os modos de viver a infância, como idade da vida, sãoabsolutamente determinados historicamente e produzidos territorialmente, poroutro lado, podemos situar na criança, especialmente na criança pequena, umatravessamento que transversaliza diferentes tempos e diversos territórios, asaber, a condição de extrema dependência dos pequeninos. É sobre asconsequências disso que poderíamos situar como uma constante, em meio àsinúmeras variáveis sócio-históricas, que me proponho a pensar neste texto.Paradoxalmente, uma constante que faz parte da natureza do pequeno homeme que, por sua presença, lança-o num movimento de “denaturação” sem fim.Recorramos aos poetas para inquietar nosso percurso:

Entrevi, como uma estrada por entre as árvores,O que talvez seja o Grande SegredoAquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam.Vi que não há Natureza,Que Natureza não existe,Que há montes, vales, planícies,Que há árvores, flores, ervas,Que há rios e pedras,Mas que não há um todo a que isso pertença,Que um conjunto real e verdadeiroÉ uma doença de nossas ideiasA Natureza é partes sem um todo.Isso é talvez o tal mistério de que falam.Foi isto o que sem pensar nem parar,Acertei que devia ser a verdadeQue todos andam a achar e que não acham,E que só eu, porque a não fui achar, achei.

Alberto Caeiro

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A infância como tempo de iniciação...

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Quase nada do que chamamos de humano pode ser sustentado numargumento que busque na Natureza suas bases. Qualquer raciocínio que sedesdobre reivindicando sua legitimidade numa suposta Natureza dos homensserá facilmente derrubado por uma simples reflexão histórica capaz de nos mostrarque os homens se produzem como homens quando são assujeitados àscondições de uma ancestralidade que configura um campo de possibilidades ede limitações para a sua realização. Os homens, cujo estatuto ao nascer poderiacaricaturalmente se resumir a três quilos de carne cabeluda – como refere Lacanno seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise –, sópassam a ser chamados de humanos quando são nomeados como tais poroutros seres humanos; estes, por sua vez, encontram-se imersos num universode linguagem e símbolos historicamente constituídos e territorialmenteenraízados. A humanização do organismo vai se dar no entre-lugares de umassujeitamento às condições históricas transmitidas pelos adultos próximos àscrianças e da tomada de posição do pequeno frente a esses determinantes quelhe chegam, vindos de uma ancestralidade que ele não domina.

A condição de dependência que o pequeno ser tem em relação ao outro,adulto, é característica do organismo humano e tem como consequência abrirespaço para uma transmissão ímpar. Isso, porque, se pensarmos que o modocomo um adulto dará voz àquilo que supõe ouvir de uma criança que ainda nãofala, está absolutamente determinado pela língua que esse adulto habita, pelaspossibilidades do dizer que essa língua encerra, pelos saberes que a culturadesse adulto acumulou ao longo de diversas gerações, bem como pelos mitosque, na ancestralidade familiar, foram se desdobrando de forma a firmarem-secomo verdades que sustentam decisões e julgamentos. Se pensarmos que essatradução, que o adulto faz dos grunhidos do bebê, ele a faz banhado nesse marde sentidos em que ele mesmo aconteceu como sujeito, podemos dizer, então,que a dependência do pequeno é o adubo que fertiliza o campo da transmissãodas formações simbólicas de cada linhagem, de cada cultura.

A dependência do filhote humano, determinada pelas condições de seuorganismo, abre espaço para que as manifestações do próprio organismo nuncasejam lidas sem as interferências da cultura, da qual o adulto, leitor, se fazintérprete. Paradoxalmente, são as condições do organismo humano que fazemcom que o próprio organismo, sua suposta natureza, nunca seja registrado senãode forma “deturpada”, ou, dito de modo menos coloquial, de maneira mediadapor uma interpretação simbólica. São as características de dependência doorganismo da pequena criança que a inclinam à busca do olhar do adulto, desua voz, de seu toque, das condições de leitura do mundo que este pode lhedoar. A pequena criança, de forma bastante radical, se vê no espelho que o

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adulto lhe oferece. Esse espelho, porém, reflete os sentidos que o ser criançatem naquela cultura, naquela formação familiar, nas fantasias daquele adultoque, travestido de superfície refletora, devolve ao pequeno a significação de suaimagem.

A condição de absoluta dependência do pequeno organismo humanodetermina que tudo que seja humano, desde o início, passe por uma interpretaçãosimbólica, uma interpretação linguageira, que, por sua vez, é determinadaculturalmente. O modo como os pequenos ingressam no mundo faz com quesuas manifestações sejam necessariamente capturadas na ordem das palavrasdos outros que os recebem e lhes apresentam a vida, capturadas pelos sentidosatualizados por esses outros, fazendo com que a dita Natureza humana nuncase atualize de forma direta. Isso faz com que a Natureza seja uma referênciamítica a um organismo que, ao ser tatuado pelas palavras, se transformou emum corpo desnaturado.

A necessidade que temos de nos ver através dos olhos, da voz, dainterpretação do outro, essa necessidade, radical na primeira infância, nosacompanha pelo resto de nossa existência. A especificidade da criança está nofato de que, quanto menor ela é, menos dispõe de instrumentos psíquicos ecognitivos para falar em nome próprio. Quanto menor é a criança, maior é suacolagem a esse outro/Outro3 – outro/Outro entendido tanto como semelhante,quanto como tesouro dos significantes. Quanto menor a criança, maior é suadependência, para acontecer como sujeito, de encontrar alguém – seria melhordizer “alguéns” – disposto(s) a suportar sua condição inicial de profundadependência.

Uma boa forma de visualizarmos essa dificuldade de falar em nome próprioé nos recordarmos do modo como a criança se refere a si mesma, quando estáiniciando seus primeiros ensaios pela fala. O pequeno, com frequência, se referiráa si em terceira pessoa, dizendo: a Simone quer, a Simone gosta. A criança falade si colada à posição discursiva do outro. Fala de si deslocando-se para o lugardesde onde o outro fala dela. Diríamos, em termos linguageiros, que, embora oenunciado “a Simone gosta” seja próprio, o lugar da enunciação é ainda o dooutro. Só num segundo momento se abrirá uma fenda nessa colagem, e a criança

3 “Lugar onde a psicanálise situa, além do parceiro imaginário, aquilo que anterior e exterior aosujeito, não obstante o determina [...]. O que se tenta indicar com essa convenção escrita é que,além das representações do eu e também além das identificações imaginárias, especulares, osujeito é tomado por uma ordem radicalmente anterior e exterior a ele, da qual depende, mesmoque pretenda dominá-la” (Chemama, 1995, p.157).

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poderá tomar a palavra em nome próprio, para, então, dizer eu. O jogo entre o eue o tu retira sua complexidade do fato de que a fala não diz simplesmente douso de um instrumento de comunicação, mas nos informa do lugar desde o qualestamos nos situando para falar.

Essa posição da criança, de colagem discursiva ao outro/Outro coloca-nos, aos que trabalhamos com os pequenos, na extrema responsabilidade denos perguntarmos sempre sobre o que estamos antecipando como possibilidades,como demandas e como sentidos para os filhotes humanos. Pois, se as criançasmais facilmente se colam ao outro/Outro, o que este lhes disponibiliza tem umimpacto que não é de se negligenciar.

Assim, quando falamos de políticas públicas voltadas para a infância,estamos falando sobre a construção de um terreno que antecipa discursos,sentidos e práticas que podem tomar os pequenos sem muita mediação.Particularmente neste momento, penso que se faz absolutamente necessárioque pensemos sobre o que estamos demandando das crianças, quandoelaboramos uma lei que amplia o ensino fundamental para nove anos e requer amatrícula nesse ensino aos seis anos. Que experiência de infância estamosconstruindo quando elaboramos esse texto legal – ou outros? Pois não se tratasomente de letras no papel. Trata-se de letras que constituirão práticas, queproduzirão sentidos, que dirão aos pequenos que chegam o que é ser criançaem nosso mundo. Os pequenos, por sua vez, ávidos de sentido, se identificarãoa essas proposições e assumirão, com maior ou menor facilidade, aquilo quelhes transmitimos.

Façamos um pequeno parêntese para retomar algumas das proposiçõesde Philippe Ariés (1981), no trabalho intitulado História social da criança e dafamília. Esse trabalho pode nos interessar na medida em que ele nos faz vercomo mudanças no mundo dos adultos introduzem novos sentidos e potencia-lizam novas experiências para as crianças. Nessa pesquisa, o autor desdobra atese de que o sentimento de infância, tal como se desenha em nossa cultura,teve seu nascimento por volta do século XVII. Estavam presentes na sala departo da infância ilustres convidados que apadrinharam tanto essa experiêncianascente como patrocinaram, se não o surgimento, o adensamento desse tempoque chamamos de Modernidade. A infância, como tempo de preparo para a vidaadulta, como espaço de ensaio tutelado das responsabilidades e possibilidadesque o mundo público requer, faz parte do projeto civilizador que caracterizou aModernidade. Projeto que talvez estejamos questionando, em nosso tempopresente, por conta da experiência de seus engodos e de seus limites.

A passagem de uma organização calcada de forma privilegiada no coletivoa uma organização social que produziu a privatização dos conflitos, em que o

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argumento passou a ser buscado na intimidade do ser e, mais do que isso, emque essa busca foi acompanhada da tentativa constante de estabelecer oapagamento das determinações simbólicas do sujeito; essa passagem abriuespaço para a possibilidade e para a necessidade de se estabelecer um tempoda vida no qual os pequenos seriam chamados a se ensaiar nas atribuições domundo dos grandes, seriam paulatinamente nelas introduzidos, de forma aconstruírem os instrumentos “internos” necessários para realizar a ascensão –seja ela de que ordem for – esperada pelos adultos.

É no momento em que a posição que cada um ocupará no mundo nãoestá antecipada por uma trama social estável que a infância tem lugar comoincubadora de perspectivas de realizações futuras – perspectivas e apostas,pois os adultos passarão a ver nos pequenos a possibilidade de transposição desuas frustrações, de realização de seus desejos fracassados. Como homensmodernos, não tivemos nosso destino traçado na origem – ou, pelo menos,queremos crer que não –, mas fomos chamados a construí-lo individualmente –vale sublinhar: individualmente –, ensaiando-nos nessa construção no tempodenominado de infância. Como homens modernos, guardamos a ilusão de sermosfundadores de nós mesmos; ilusão que talvez consista em um dos grandesengodos que nos constitui e nos aproxima. Supomos e buscamos a autonomiado ser, a realização de si, sem qualquer dependência do outro, a espontaneidademáxima, a independência e a liberdade totais. Contudo, esquecemos de lembrarque apostar nessa via nos deixa cada vez mais sós, cada vez mais desamparados,cada vez com menos possibilidades de criar o mundo e a nós mesmos – não àtoa vivemos uma verdadeira epidemia de tristeza e desamparo que a indústriafarmacêutica espertamente nomeou de depressão.

Acho muito intrigante que o alargamento do ensino fundamental se dê nadireção da primeira infância, e não da juventude. Está bem que possamos pensarque a medida pode intencionar garantir, para um número maior de criançasmenores, o ingresso na escola. Mas, por que não trabalhar no sentido de tornara educação infantil uma realidade cada vez mais abrangente? Por que não noscolocarmos justamente a questão pelo seu avesso, ou seja, de que os jovenschegam muito jovens diante da necessidade de optar – quando têm opção – porum projeto profissional? Que infância estamos propondo, ao alargar o ensinofundamental no sentido do início da vida? Não estaríamos completamenteconsonantes com um movimento de achatamento da experiência da infância ede alargamento do que chamamos de adolescência?

Valem mais algumas palavras sobre a aceleração do tempo. Como pensá-la em relação a algo que se desdobra na infância: o brincar? Quando nos referimosà infância, certamente nos vemos acompanhados pela ideia do brincar. Infância,

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em nossos tempos, é composta por gente que brinca. Desde que o sentimentode infância, como um tempo de ensaios para a vida na pólis, passou a fazerparte de nosso ideário compartilhado, o brincar como característica desse tempotambém passou a ocupar um plano privilegiado – talvez tão privilegiado que nãoreconhecemos na adultez a necessidade de brincar.

Freud ([1920]1974), na década de 20, escreve um dos poucos textos emque aborda diretamente o brincar. A essa atividade ele atribui três características:a repetição, a passagem operada pela criança através da brincadeira da posiçãopassiva à posição ativa frente ao outro, e o vir-a-ser desdobrado pelo brincar.Gostaria de dedicar algumas palavras a essa passagem da posição passiva àposição ativa que está em curso sempre que uma criança se põe a brincar.Lembremos por onde iniciamos: pela ideia de que a criança nasce nas palavrasdos adultos que lhes são próximos. É por esses adultos que ela é significada,acontecendo como ser humano a partir dos sentidos que lhe são atribuídos.Trocando em miúdos, a criança nasce como sujeito, assujeitada às nomeaçõesque lhe vêm do Outro. Nasce como sujeito numa posição passiva frente a esseOutro. O passaporte que ela vai cunhar para a posição ativa, para o lugar desujeito de uma ação, para a condição de falar em nome próprio, é elaboradocom o material que lhe chega do brincar. É o brincar que vai armar a ponte dolugar de assujeitamento ao lugar de sujeito. Por isso, o brincar é coisa tão sériapara a criança. Por isso, também é tão preocupante quando uma criança nãobrinca, pois é como se ela tivesse aberto mão, ou não estivesse podendo dispordos instrumentos pelos quais ela vai armar uma posição ao mesmo tempoenlaçada e diferenciada frente aos outros que a apresentaram ao mundo.

O brincar é a construção de uma versão própria sobre o mundo ao qual acriança foi apresentada pelo adulto. Assim, quando observamos um achatamentoda infância operado pelo incremento das tarefas e pela diminuição do tempo livre– o tempo do brincar – poderíamos nos perguntar o quanto não estamosconstruindo como horizonte uma adultez em que os sujeitos vão se encontrarcada vez mais reduzidos a uma posição de passividade frente ao Outro. Claro!As coisas não são tão lineares assim; mas vale pensar sobre as consequênciasde um mundo no qual o brincar fica cada vez mais rarefeito. Isso porque, tomandoa tese freudiana como pertinente, crianças que não brincam têm estreitadas assuas possibilidades de construir uma posição ativa, de tomar a vida nas própriasmãos e, nessa medida, essas crianças prenunciam uma adultez maisdependente e vulnerável ao Outro.

Tomemos agora a outra perspectiva que Freud ([1920]1974) nos lança, ade que a criança que brinca vai conformando as condições para assumir a posiçãoadulta. Brincar é brincar de ser grande, numa conjugação absolutamente

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interessante da experiência do tempo: – Agora eu era... Situada no presente,“agora”, a criança se lança para o futuro, identificando-se ao lugar que o adultoalmeja que ela venha a ocupar e, desde o futuro, ela olha para trás, para ondeainda está e nos diz: – Eu era. Vale lembrar que essas viagens no tempo sãopossíveis graças aos atributos da linguagem. Por estar fazendo a passagem dapassividade à atividade, da fusão ao Outro para a relação ao Outro, a criançafala de seu agora desde o futuro que o mundo adulto desenha para ela comohorizonte identificatório. No brincar, a criança se ensaia no amanhã sem ter queresponder, em toda a sua extensão, pelos efeitos desse ensaio. Afinal, é só faz-de-conta! O pequeno achata o tempo em seu brincar, contraindo a linha que vaido passado ao futuro e, com isso, ele cria, a partir dos traços que recolhe, dasvozes e olhares do adulto, algo que vai paulatinamente situando como próprio.

Nesse tempo mágico, em que a linearidade está suspensa, florescem ascondições de criação. Manoel de Barros (2003) no belíssimo livro Memóriasinventadas – quais não são – nos fala desse tempo e de sua relação com obrincar. O início do livro é absolutamente intrigante: “tudo que não invento éfalso” inicia o poeta.

Em um dos capítulos, o poeta canta as peculiaridades da experiência dotempo do brincar. O capítulo se chama Desobjeto e é lindo para pensar a atividadeimaginativa presente nesse tempo-espaço “zipado” da infância. Esse tempo emque aprendemos a nos relacionar com os desobjetos que fazem parte do mundo,que aprendemos a construir desobjetos, que aprendemos a olhar o mundo e anos autorizarmos a ver possibilidades não antecipadas nos saberes e nomeaçõesconstruídos e consolidados. Um tempo em que nos ensaiamos no espaço dacriação que a linguagem de que somos feitos franqueia. Um tempo mágico, masde uma magia que faz parte deste mundo, e não de outros, e que, fazendo partedeste mundo, de nosso mundo de linguagem, torna possível construir outrosmundos.

Diz Manoel de Barros

O menino que era esquerdo viu no meio do quintal um pente. Opente estava próximo de não ser mais um pente. Estaria maisperto de ser uma folha dentada. Dentada um tanto que já haviaincluído no chão que nem uma pedra um caramujo um sapo. Eraalguma coisa nova o pente. O chão teria comido logo um pouco deseus dentes. Camadas de areia e formigas roeram seu organismo.Se é que um pente tem organismo. [...] Acho que os bichos dolugar mijavam muito naquele desobjeto. O fato é que o pente perderaa sua personalidade. Estava encostado às raízes de uma árvore e

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não servia mais nem para pentear macaco. O menino que eraesquerdo e tinha cacoete para poeta, justamente ele enxergara opente naquele estado terminal. E o menino deu para imaginar queo pente, naquele estado, já estaria incorporado à natureza comoum rio, um osso, um lagarto (Barros, 2003).

No quintal onde os dentes do chão comem os dentes do pente, ondebichos mijam em desobjetos, onde um pente tem organismo, floresce acapacidade de se relacionar com o mundo sem a necessária sustentação dosobjetos que se propõe a não ser nada além daquilo que usamos dizer que são.No quintal de uma infância em que o menino esquerdo vê o mundo pelo avessoe tem cacoete de poeta, desponta a possibilidade, tão avessa a nossos tempos,de criar a partir dos restos, de apanhar desperdícios e alçá-los à dignidade dascoisas mais preciosas. No território onde os restos são convites para uma criação,o mercado dos objetos perde parte de sua necessidade, e nisso talvez resida apotência subversiva do brincar.

“As crianças, em sua tentativa de descobrir e conhecer o mundo, atuamsobre os objetos e os libertam de sua obrigação de ser úteis” (Krammer, 2006,p. 16). O tempo do brincar é o tempo do investimento desejante nos objetos quetorna a pedra do quintal a maior pedra do mundo. É o tempo de dignificar osrestos arruinados, tomando-os como parte indispensável de uma engenhocaque, apostamos, mudará o mundo. Aprendemos a necessidade do inútilbrincando. Sobre a utilidade do inútil nos fala Hanna Arendt:

Entre as coisas que emprestam ao artifício humano a estabilidadesem a qual ele jamais poderia ser um lugar seguro para os homens,há uma quantidade de objetos estritamente sem utilidade [...]. Écomo se a estabilidade humana transparecesse na permanênciada arte, de sorte que certo pressentimento da imortalidade – não aimortalidade da alma ou da vida, mas de algo imortal feito por mãosmortais – adquire presença tangível para fulgurar e ser visto, soar eser escutado, escrever e ser lido. (Arendt, 2001, p.180; grifo nosso)

Estranhamente, o que confere consistência e estabilidade ao artifíciohumano, ao mundo e a nós mesmos, é uma série de desobjetos (nas palavrasde Manoel de Barros) produzidos por obra de um investimento amoroso quecaptura a coisa, desloca-a de sua suposta Natureza e a faz viver no mundo dossímbolos, no mundo da linguagem. Ao brincar, somos iniciados na arte daconstrução dos desobjetos que nos humanizam.

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Nessa perspectiva, penso que há algo que pode se movimentar de formainteressante a partir da proposta de lei nº 11.114/2005, que estabelece o ensinofundamental de nove anos, a saber, os efeitos do ingresso do brincar pela portada frente do ensino fundamental. Sim, por que, ao receber crianças de seis anosem seu território, o ensino fundamental se verá desafiado a dar legitimidade aobrincar – se não quiser transformar o ingresso desses pequenos em violência.

A necessidade do ensino fundamental de pensar a educação das criançasde seis anos implicará, certamente, a necessidade de um diálogo extenso entrea chamada educação infantil e o ensino fundamental. Mudanças poderão terlugar se não for somente o ensino fundamental aquele a se tomar do lugar depautar o diálogo, dizendo o que espera da educação infantil, quais são ashabilidades que quer ver desenvolvidas pelas crianças que ali irão ingressar aosseis anos. A escola infantil tem muito a ensinar ao ensino fundamental. Muito aensinar sobre a arte de criar a partir dos restos, sobre a utilidade do inútil, sobrea necessidade dos desobjetos, sobre o brincar como nascedouro da capacidadede invenção, sobre as possibilidades que se abrem quando abandonamos opragmatismo dos objetos e somos capazes de olhar a vida pelo avesso. Sóquem brinca pode revirar o mundo para nele inserir novos sentidos. E aí nãoestamos falando somente de crianças.

REFERÊNCIASARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.BARROS, Manoel de. Memórias inventadas – a infância. São Paulo: Planeta, 2003.CHEMAMA, Roland. Dicionário de psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.FREUD, S. Além do princípio do prazer [1920]. In: ______. Ed. standart brasileira dasobras completas de Sigmund Freud. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1974.KRAMER, Sonia. A infância e sua singularidade. In: BRASIL. Ministério da Educação.Ensino fundamental de nove anos: orientações para a inclusão da criança de seisanos de idade. Brasília: FNDE – Estação Gráfica, 2006.

Recebido em 10/11/2011Aceito em 20/12/2011

Revisado por Gláucia Escalier Braga

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Resumo: O artigo aborda a função do educador no processo de subjetivaçãodas crianças que frequentam creches e escolas infantis, a partir do que conceituasob o nome de Educação Estruturante.Palavras-chave: educador, educação estruturante, educação infantil, brincar.

STRUCTURING EDUCATION ON PRESCHOOL EDUCATION

Abstract: This article discusses the teacher’s role in the subjectivation processof children attending kindergartens and nursery schools, to propose theconceptualization of Structuring Education.Keywords: teacher, education, structuring education, preschool education, play.

A EDUCAÇÃOESTRUTURANTE NAEDUCAÇÃO INFANTIL

Dorisnei Jornada da Rosa1

1 Psicóloga; Psicanalista da Clínica Palavra Viva; Membro da Associação Psicanalítica de PortoAlegre(APPOA); Terapeuta em estimulação precoce; Pedagoga Especial para Deficientes Mentais;Trabalha em Educação Precoce na Escola Municipal Lygia Morrone Averbuck, com bebês de 0a 3 anos com problemas de desenvolvimento; Assessora de Educação Precoce e PsicopedagogiaInicial nas escolas infantis da Prefeitura de Porto Alegre. E-mail:[email protected]

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 99-108, jan./jun. 2011

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Cuidar das crianças pequenas ou pedagogizá-las? Fazer suplência aospais ou educar? Essas são questões que atravessam todos aqueles que seocupam da educação infantil atualmente. Nas creches ou nas escolas infantis,a frequência em turno integral tende a se tornar o padrão; com os educadores,as crianças brincam, se alimentam, escovam os dentes, dormem, dão seusprimeiros passos, tiram as fraldas, dizem suas primeiras palavras. O que separaa função parental da função do educador? O limite é ainda mais difícil deestabelecer quando se trata de crianças que apresentam transtornos dedesenvolvimento; isso, sem falar do contingente de crianças expostas àvulnerabilidade social e à fragilização dos laços familiares. O que fazer? Paralisar-se frente aos aspectos estruturais2, instrumentais3 e sociais de que padecemseus aluninhos, ou intervir nesses campos?

Há 21 anos, mais exatamente em 1991, foi criado o trabalho de Assessoriade Educação Especial à Educação Infantil da Prefeitura de Porto Alegre. Nosprimeiros anos, um grupo de professores de escolas especiais da SecretariaMunicipal de Educação de Porto Alegre (SMED)4 criou os atendimentos deEducação Precoce (EP)5 e Psicopedagogia Inicial (PI)6. Importa situar que integroe coordeno a equipe de EP e PI da Escola Municipal Lygia Morrone Averbuck;somos quatro profissionais, as quais temos, cada uma, dois turnos semanaispara assessorar e atender as creches e escolas infantis da Zona Leste, Partenone parte da Zona Norte de Porto Alegre.

Naquela ocasião precisávamos nos empenhar muito na busca de vagasem creches e escolas infantis para as crianças com transtornos de desenvol-vimento atendidas em EP e em PI, pois os educadores alegavam não possuir

2 Estruturais: nomenclatura utilizada pelo Centro Lydia Coriat de Porto Alegre e de Buenos Airespara referir os aspectos orgânicos, cognitivos e psíquicos que abatem os sujeitos.3 Instrumentais: nomenclatura utilizada pelo Centro Lydia Coriat de Porto Alegre e de BuenosAires para referir os aspectos de linguagem, atividade de vida diária, sociais, desenvolvimentomotor, aprendizagem, etc.4 SMED (Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre): formada por 96 escolas com cercade 4.000 professores e 1.200 funcionários. Essa estrutura atende a 55.000 alunos da EducaçãoInfantil, do Ensino Fundamental, do Ensino Médio, Educação Profissional de Nível Técnico, e daEducação de Jovens e Adultos (EJA).5 Educação Precoce: atendimento a bebês com problemas de desenvolvimento de 0 a 3 anos,conjuntamente com os adultos que desempenham as funções maternas e paternas para acriança. Doravante referida neste artigo por EP.6 Psicopedagogia Inicial: atendimento instrumental de crianças com problemas de desenvolvimentode 3 a 6 anos. Doravante referida neste artigo por PI.

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formação teórica e prática para acolher esse tipo de clientela na escola infantil.Em contrapartida, comprometíamo-nos a prestar capacitação aos educadores esuas equipes, o que incluía: formações teóricas, acompanhamento e observaçõesna sala de aula mensais nas creches, além de reuniões sistemáticas com oseducadores que acolheriam essas crianças. Isso inaugurou o trabalho deassessoria em EP e PI na escola infantil.

De início, quando as equipes de EP e PI chegavam às escolas infantis,os educadores demandavam-lhes orientações e fórmulas mágicas para o “Mielo”(criança com mielomeningocele), o “P.C.” (criança com paralisia cerebral), o“Hiperativo”, o “Cadeirante”, a “Surdinha”, o “Ceguinho” e assim por diante. Haviamuito ainda o que avançar: várias crianças com deficiência já frequentavam oensino infantil; contudo, os educadores ainda não se referiam a elas pelo nomepróprio, mas as identificavam por seus quadros clínicos.

Começamos então, enquanto equipes de EP/PI, criadas nas quatro escolasespeciais do Município de Porto Alegre, a propor espaços de formação e escutados cuidadores-educadores. O intuito era desmistificar os diagnósticos dascrianças, falando, então, da Maria, do João e dos outros alunos pelo nomepróprio, e também de suas histórias. Com isso, os quadros passaram a ocuparuma posição secundária, possibilitando que os educadores pensassem nasquestões individuais das crianças e incluíssem atividades subjetivantes noplanejamento escolar.

É preciso ressaltar, no que diz respeito às crianças pequenas, que nãoas tomamos de forma segmentada, a partir de seu sintoma: contamos com umarede interdisciplinar de profissionais na SMED, a qual é articulada e desarticuladaconforme cada caso. Identificamos a criança que esteja apresentando umtranstorno psíquico e ou atraso instrumental na escola infantil, encaminhamo-laaos serviços de saúde (psicologia, fonoaudiologia, neurologia, etc.), e propomosos atendimentos terapêuticos em EP ou PI. Além disso, realizamos interconsultascom profissionais de saúde, escutamos os pais dos alunos e construímosintervenções e estratégias com as equipes dos berçários7, maternais8 e jardins9

que atendem essas crianças na escola infantil.

7 Berçário: B1 (de 0 a 1ano e 5 meses) e B2 (de 1ano e 6 meses a 2 anos e 4 meses) com 15crianças.8 Maternal: M1 (de 2 anos e 5meses a 2 anos e 11meses) e M2 (de 3 anos a 3 anos e 11 meses)com 20 crianças9 Jardim: JA (de 4 anos a 4 anos e 11 meses) e JB (de 5 anos a 5 anos e 11 meses) com 25crianças.

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Tal rede foi criada pela SMED porque também nós, os profissionais deEP/PI, precisávamos de formações, assessorias e interconsultas com váriasespecialidades. Ao chegarmos às creches e escolas para observar as rotinas eas crianças, víamo-nos tomados pelas demandas dos educadores e pelaurgência em responder e intervir em diversos campos. Nesse contexto,identificávamos algumas posições mais frequentemente assumidas peloseducadores:

1. Impotência e paralisação

Muitos eram os educadores que se paralisavam ante os sintomas sociaise à violência das comunidades; falavam de sua impotência para ajudar a criançafrente a miséria, AIDS, abandono, drogas e agressividade; o mesmo aconteciafrente aos “donos do tráfico” e seus filhos. Em certa ocasião, houve inclusive um“zum-zum” fantasioso sobre a creche ter sido construída como “fachada” e paralavagem de dinheiro do tráfico, mas ninguém falava explicitamente sobre isso,só sintomatizavam.

2. Rivalização com os pais e suplência parental

Uma situação muito comum nas escolas infantis era a culpabilizaçãodos pais pelos sintomas das crianças. Bater ou chorar constantemente, porexemplo, era interpretado por seus educadores como efeito de “estar acontecendoalgo de ruim em casa” (sic). Consequentemente, acabavam por orientar os paiscom intervenções pedagógicas e encaminhá-los à psicologia.

No imaginário dos educadores, ante o suposto fracasso da função parental,caberia à escola e a seus educadores a encarnação do “pai ideal”. Instaurava-seassim uma disputa de saber entre educadores e pais: quem sabe mais sobre oque é melhor para a criança? Alguns educadores chegavam a tomar as criançascomo seus filhos; numa oportunidade, encontrei numa creche um bebê quechamava a monitora de “mamã”, e estava até muito parecido com ela. O fato éque muitas vezes os discursos pedagógicos dos professores e as funçõesparentais confundiam-se, dificultando mais ainda o exercício de ambos.

Em algumas escolas, os pais chegavam a ficar literalmente de “fora”, sósendo chamados a comparecer em reuniões e no período inicial denominado deadaptação escolar. De outra parte, muitos deles pareciam resignar-se a essasituação e renunciar ao saber parental, em nome do saber “especializado” doeducador. O interessante é que isso reproduzia algo que também acontecia nointerior da escola: geralmente a entrevista inicial com os pais era realizada com

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a coordenadora ou o dirigente, ficando o educador sem saber da história dacriança e seus laços familiares; seu contato com os pais se dava na porta dasala de aula, por recados na agenda, ou em reuniões pedagógicas ouadministrativas das quais participavam com a comunidade escolar. É como se obebê ou a criança fosse uma tábula rasa em que se dariam novas inscrições,negando sua filiação e matriz parental. Qual a posição que os educadoresocupavam? A de suplência parental?

3. Demanda de escuta e intervenção continuada

Muitos educadores pediam a presença do assessor de EP/PI para seremescutados em suas angústias e serem acompanhados em seus trabalhos eintervenções; requeriam um terceiro para testemunho, val idação eencaminhamentos que ajudassem a criança. Por exemplo, ao chegar a umaEscola Municipal de Educação Infantil (EMEI), uma professora relatou-me queMaria tinha problemas, estava desatenta, batia em todos e não a ouvia. Contaque sua tia frequentava a mesma sala, que seus pais eram usuários de crack eabandonaram os filhos para a avó materna cuidar. Dona Maria, a avó, convidadaa comparecer à escola para falar comigo e a professora, veio a contragosto emuito desconfiada “acerca do que queríamos com ela”. Apresentei-me, expliquei-lhe que era uma conversa com o objetivo de auxiliar sua neta; deixando claroque nada lhe seria exigido. Conta-nos, então, toda a história, seu sofrimento,sua luta e os tantos netos sob sua responsabilidade; trabalhava muito e batianeles. Não deixa de relatar também sua história e de como apanhava quandocriança. Ao escutarmos sua narrativa, apontei o quanto ela e Maria sofriam doabandono parental, e perguntei-lhe se já havia contado à neta sobre isso. Aospoucos Dona Maria foi “amolecendo”, pensando e colocando-se no lugar daneta. Falamos da importância de ambas terem uma escuta e encaminhamos asduas para atendimento psicológico.

Ante tais situações encontradas nas escolas – e, principalmente, frenteàs interrogações dos educadores de como intervir com crianças com atraso dedesenvolvimento, agressividade, agitações psicomotoras, fragilidades psíquicas,“surtos e pits”, “brincar solto”, negligências parentais, etc. –, começamos aincentivá-los a também participarem do processo de subjetivação das criançaspequenas (zero a seis anos). Assim foi se configurando um espaço transferencialda assessoria EP/PI com os educadores: entramos e saímos da escola,escutamos, intervimos, reconhecemos, validamos; às vezes sugerimos atividadesde âmbito coletivo, outras, individual, bem como propusemos intervenções combase no que passamos a denominar de Educação Estruturante.

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Conceituamos este trabalho como Educação Estruturante visando aconstruir intervenções que possibilitassem às crianças deslocarem seussintomas e angústias para o brincar, bem como a construir junto aos educadorese pais suas funções e diferenciações no campo educativo, familiar e escolar. Éimportante ressaltar que não se trata de tornar a educação uma terapêutica,mas de propor que a educação não se fundamente em uma concepçãodesenvolvimentista e pedagógica da infância; e que os cuidados tenham funçõesestruturantes, o que nós chamaríamos de “cuidados simbólicos”, os quaisencontram suporte nas inscrições significantes parentais. Isso significa que aordem de inscrição do educador não é a mesma dos pais; importa tomá-la comoalgo da posição transferencial que ocupa na vida da criança. Por isso a importânciada interdisciplinaridade, independentemente da existência de problemas dedesenvolvimento.

O nome Educação Estruturante é inspirado em um texto de AlfredoJerusalinsky (1999), no qual propõe três brinquedos estruturantes quepromoveriam as articulações necessárias à constituição do sujeito. Atravésdesses brinquedos, os educadores deixariam se dar livremente a funçãoeducativa:

Uma função “educativa” no sentido mais amplo e mais clássico dotermo. Em que nada de escolar nela se registra, nada de um padrãode saber, mas a colocação em ato de uma inscrição (Jerusalinsky,1999, p. 159).

O que é Educação Estruturante? É a que propõe ao educador ter seuolhar dirigido aos aspectos diacrônicos da criança – os de desenvolvimentocomo um todo –, bem como considerar o tempo sincrônico da criança –, suaestruturação psíquica e orgânica e a articulação com o desejo. Isso quer dizerque se deve considerar também seu tempo de aprender, suas condiçõesorgânicas e sociais. No planejamento de atividades e intervenções, deve-se pensartambém no aluno com transtorno de desenvolvimento e nas questões individuaisde cada criança, a fim de serem englobadas no plano de trabalho com o grupo evice-versa.

Ao detectar sinais de angústia ou de inibição no brincar e no aprender,por exemplo, o educador pode intervir, promovendo o deslocamento da angústiapara o brincar com jogos estruturantes ou para o criar, para, num segundo tempo,produzir efeito em sua aprendizagem e desenvolvimento. Claro que não podemosesquecer de que não se trata de interpretar a angústia da criança, relacionando-a a sua vida e personagens reais; isso seria iatrogênico e assustador. A Educação

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Estruturante consiste em colocar em jogo algo que está impedindo a criança dese desenvolver. O educador olha, escuta, compreende, intervém, planeja e lançaao grupo, mantendo a mira na criança. Enfim, o papel do educador é articularbrinquedos, jogos e produções, seja na primeira ou na segunda infância.Importante lembrar a interdisciplinaridade, através da assessoria de EP/PI paraa construção conjunta dessas intervenções.

Retomemos os brinquedos estruturantes propostos por Jerusalinsky(1999), para discernir melhor do que se trata de pôr em jogo na EducaçãoEstruturante. O primeiro deles é o brincar de “está, não está”, e tem comomodelo uma brincadeira que ficou conhecida, entre os leitores de Freud ([1920]1973), como o jogo do Fort-da. Observando seu neto de um ano e meio envolvidonuma atividade enigmática e repetitiva, o autor assim a descreve: a brincadeiraconsistia em fazer desaparecer seus brinquedos, atirando-os para algum lugarlonge de sua vista, pronunciando o som “Ooo”, interpretado por Freud como “embora”.Certo dia, o objeto da brincadeira era um carretel preso à ponta de um barbante; omesmo ato e o mesmo som se repetiam ao fazê-lo desaparecer. Porém, dessavez, o menino inseriu um segundo ato: puxar o cordão para fazer o carretel reaparecer,pronunciando “Da” (“aqui”). No jogo, a criança colocava em cena a aparição/desaparecimento da mãe, recobrindo com a palavra sua ausência. O brincar auxiliaa fazer a operação de separação, simbolizando uma experiência vivida.

Nas palavras de Jerusalinsky, é a captura, pela criança, da imagem de simesma vista ou não vista pela mãe que desempenha um papel preponderantenessa brincadeira. Afinal, segundo ele, “esse movimento permite à criançainscrever o olhar do Outro Primordial no âmbito da linguagem” (Jerusalinsky,1999, p. 157), possibilitando-lhe não desaparecer na ausência desse olharunificador, já que é quem recorta sua silhueta da realidade do mundo e dosobjetos que a cercam; caso contrário, a representação de seu corpo sedispersaria.

Nessa mesma série de ausência-presença, Jerusalinky inclui os jogosde imitação nas gracinhas oferecidas aos adultos (“fazer bichinho”, por exemplo);os jogos de ocultamento (esconde-esconde); as negativas (virar a cara para amãe quando está ofendido); e mais adiante o brincar de esconder.

O início do ano escolar, ocasião em que bebês e crianças pequenas seseparam de suas mães, é um período em que a ausência materna poderia sersimbolizada no brincar de esconde-esconde, no ir e vir da bola, no aparecer edesaparecer do educador, no atirar e buscar dos objetos, propiciando assimcerto alívio para os pequeninos.

As brincadeiras em frente ao espelho também podem ser momentos deevocação da ausência do olhar materno. As educadoras brincam com os

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pequeninos, lhes dizem coisas sobre a mamãe não estar ali, mas elas estão ali,brincam então com as suas imagens e as das crianças. Elas simbolizam aausência das mamães dos bebês em enunciados: “Tua mamãe virá ao final dodia te buscar” ou “A mamãe está trabalhando para dar coisas ao nenê (sic)”.

O segundo jogo estruturante é o brincar de “cai, não cai”. Na série dosjogos de borda (ou de queda), Jerusalinsky inclui: jogar brinquedos fora do berço,empurrar objetos lentamente em direção à beira da mesa até sua precipitação,espiar pelas frestas, mexer nos buracos e pequenas aberturas, andar pelasbeiradas e por todo lugar que ofereça risco de queda, brincar de cair, saltar,tocar o que não pode, entrar onde não se entra, etc. O que essas brincadeirastêm em comum é a construção do espaço e do outro, que fazem limite ao corpoda criança, instituindo as bordas entre o eu e o não eu. Também entra em causaaqui uma relação dialética com o olhar materno: ele unifica o corpo da criança,a ponto de permitir-lhe apropriar-se de seu domínio motor, ao mesmo tempo emque o aprisiona a uma existência imaginária. “O ‘andar pela borda’ remete àindagação constante sobre a extensão e a aplicabilidade da ruptura que a palavraintroduz na motricidade e no olhar” (Jerusalinsky, 1999, p. 158); afinal, osespecialistas em brincar com as bordas sabem muito bem carregar consigo oolhar do Outro em suas aventuras.

O terceiro tipo de brinquedo estruturante é o brincar de “este é o outro”,compondo o que Jerusalnsky chama de jogos transicionais. A condição detransicional, particularizada por Winnicott (1975), alude à substituição do objetode desejo: ao invés do seio materno, a criança carrega o bico e/ou o cheirinho,etc. Na escola infantil, na fase de adaptação da criança, é importante acolher osobjetos transicionais, a fim de que ela encontre amparo para fazer a passagemdo âmbito materno para o âmbito social que a escola representa. Por essarazão, também é importante manter o “dia do brinquedo” – dia de trazer umbrinquedo de casa – ou o “dia de criar” – levar o trabalho para casa.

Não raramente, a presença desses objetos transicionais provoca certoímpeto interditor nas educadoras, pois o que se destaca deles é seu traço deapego à figura materna ou sua face de objeto de gozo. Porém, é importantelembrar a sua face de separação: eles também são o significante da falta materna,e, como tal, um elemento mediador entre a mãe e seu filho. Graças a eles setorna possível suportar a ausência materna sem correr o risco de desaparecer.

Não podemos esquecer a importância da intermediação e da palavra doeducador, pois esses brinquedos estruturantes não são uma atividade oubrincadeira pedagógica. Eles só terão efeito estruturante se for algo registrado,falado e intermediado pelos educadores. Mariotto (2009) ressalta que a creche éum elemento de subjetivação para as crianças pequenas, dependendo do laço

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transferencial e do lugar que o educador ocupa para os bebês e as criançaspequenas. Não se trata de “ser o pai e a mãe”, nem tampouco de uma suplênciaparental, mas de um desdobramento das funções parentais aliado ao “desejo doeducador” e suas funções educativas:

[...] educar e cuidar são faces moebianas do ofício da Creche, eque se assim desempenhadas, permitem ao sujeito ser suportadopor essa banda, situando aí o caráter preventivo dessa função.Garantido que as condições mínimas de subjetividade estejampresentes [...] (Mariotto, 2009, p. 131).

A educação, seja sistemática ou assistemática, produz efeitos de inscriçãosignificante nas crianças pequenas, pois educar e cuidar se perpassam e sãofunções que estão diariamente no discurso dos educadores das creches e escolainfantis. Nesse sentido, os educadores, nos seus laços com as crianças, podempropor um ordenamento simbólico, pois encarnam as insígnias da escola ou crecheem que trabalham, ao mesmo tempo em que precisam ser autorizados pelos paisou seus substitutos para exercerem essas funções junto aos pequeninos.

Na perspectiva da Educação Estruturante, o que está em jogo na escolainfantil é a possibilidade de intervenção no processo de subjetividade. Não setrata de o educador buscar um lugar de saber absoluto, pois, como diz Mariotto(2009), isso seria então uma alienação absoluta do outro (criança) que se pretendeeducar. Trata-se aí da castração dos mestres e de posições que contemplemum furo no saber, pois é nesse vazio que o ato educativo constituído se dará, dizela. Dessa forma, os educadores são e serão convocados a falar mais sobre oque deixam a desejar, bem como de seus próprios desejos de participarem ounão do processo de subjetivação e melhor instrumentalização dos pequenos.

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O trabalho das assessorias em EP/PI é promover que os educadoresinfantis pratiquem um olhar singular para cada aluno, incluindo os aspectosdiacrônicos, sincrônicos e sociais pertinentes a cada criança, de modo a inventarintervenções diárias que possibilitem o brincar e o aprender na forma de umaEducação Estruturante. O pedagógico e o educativo se estendem e se expandemaqui no sentido de que educar, cuidar e subjetivar podem ser também ofícios daeducação infantil.

REFERÊNCIASFREUD, S. Mais além do princípio do prazer [1920]. In: ______. Obras completas. 3.ed. Rio de Janeiro: Imago,1973. v. III.______. O mal-estar na civilização [1930]. In: ______. ______.v. XXI.JERUSALINSKY, Alfredo. Psicanálise e desenvolvimento infantil. 2. ed. Porto Alegre:Artes e Ofícios, 1999.LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise[1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.MARIOTTO, Rosa Maria Marini. Cuidar, educar e prevenir: as funções da creche nasubjetivação dos bebês. São Paulo: Escuta, 2009.WINNICOTT, D. W. O Brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

Recebido em 09/11/2011 Aceito em 23/04/2012

Revisado por Maria Ângela Bulhões

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Resumo: O presente texto traz uma leitura psicanalítica do trabalho em oficinasterapêuticas com adolescentes num Centro de Atenção Psicossocial, propondoque as mesmas se constituem como um dispositivo clínico quando orientadaspela escuta do sujeito. Aponta os efeitos do laço coletivo sustentado emtransferência, a partir de um fazer com o outro, constituindo um endereçamentoao Outro do discurso. Através de fragmentos clínicos, expõe e analisa os efeitosestruturantes desse trabalho em oficina.Palavras-chave: oficinas, escuta do sujeito, transferência, Outro, adolescentes.

WAYS OF WORKSHOPS IN THE ENCOUNTER OF THE OTHER

Abstract: The present text brings a psychoanalytic view of the work in therapeuticworkshops with adolescents in a Center of Psychosocial Attention, proposingthat the workshop constitute itself as a clinic device when oriented by the listeningof the subject. Points the effects of the collective bond sustained in transference,by doing with the other, constituting an addressing to the Other of the language.By using clinic fragments, exposes and analyses the structuring effects of thisworkshops.Keywords: workshops, listening of the subject, transference, Other, adolescents.

CAMINHOS DE OFICINA NOENCONTRO COM O OUTRO1

Ieda Prates da Silva2

1 Trabalho apresentado na II Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais,realizada em Porto Alegre, 30 de setembro e 01 de outubro de 2011.2 Psicanalista; Membro da APPOA; Coordenadora de Ensino e Pesquisa do CAPSi de NovoHamburgo. E-mail: [email protected]

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 109-118, jan./jun. 2011

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A presença de outros que veemo que vemos e ouvem o que ouvimos

garante-nos a realidade do mundoe de nós mesmos.

Hanna Arendt

As questões aqui formuladas surgem a partir de meu trabalho no CAPS Infantil3de Novo Hamburgo, cidade do Vale dos Sinos, próxima de Porto Alegre.

Focalizarei o texto na experiência do trabalho em oficinas com adolescentes,sustentado pela psicanálise, o que nos ajuda a fundamentar e a tecer ferramentaspara esse trabalho, e a pensar sobre os efeitos subjetivantes que essa experiênciaclínica pode produzir.

Parto de uma primeira premissa: as oficinas terapêuticas constituem-secomo dispositivo clínico, quando orientadas pela escuta do sujeito e pelo trabalhoem transferência, num contexto coletivo, atravessadas por acontecimentos detoda ordem, e através de diversas formas do fazer em oficina. As oficinas, tambémchamadas de ateliês, organizam-se ao redor de um fazer, que pressupõe umfazer com, se desdobrando em um fazer-se. Se pensarmos que o Eu só sesingulariza no laço com o outro, o coletivo – sustentado em transferência – vemoferecer ao sujeito uma possibilidade de singularizar-se, na medida em que háuma escuta e um endereçamento. Esse endereçamento ao Outro do discursositua o Outro nos bastidores, para usar uma expressão de Lacan, retomada porErik Porge (1998), ao tratar do lugar da transferência na análise de crianças.

É essa escuta singular no coletivo, ou seja, cada sujeito ali tomado noum-a-um, considerado na sua singularidade e na sua história, que permitirá queo fazer em oficina se constitua num encontro com o outro, portanto, num encontroconsigo mesmo. Estou me referindo não só à escuta das palavras, mas à acolhidade seus corpos, de seus movimentos, de suas produções. Sujeitos que semanifestam ou se escondem, se oferecem ou se furtam ao encontro com ooutro, num modo de se fazer ex-sistente, como uma nota de rodapé.4

3 Centro de Atenção Psicossocial Infantil é um serviço de saúde aberto e comunitário do SistemaÚnico de Saúde (SUS) para atendimento diário a crianças e adolescentes com transtornosmentais.4 Na interessante expressão de S. Zabalza (2011), que propõe as oficinas como “notas derodapé”, no sentido que Lacan lhes outorga: um fora que não é um não-dentro. Dispositivo quepermite ao sujeito expressar, com o seu corpo, e o seu fazer algo que não aparece diretamentena fala, mas vem como lateral, uma abertura ou uma escansão que retira a linearidade, interrompea continuidade e traz o novo que já estava ali, mas que não se dava a ver. Acrescenta algo e fazfuro, ao mesmo tempo.

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Utilizo a palavra fazer, aproximando-a do sentido que Hannah Arendt (1997)dá ao termo reificação, ao falar da arte:

Naturalmente, a reificação que ocorre quando se escreve algo,quando se pinta uma imagem ou se modela uma figura, tem a vercom o pensamento que a precede; mas o que realmente transformao pensamento em realidade e fabrica as coisas do pensamento é omesmo artesanato que, com a ajuda do instrumento primordial – amão do homem – constrói as coisas duráveis do artifício humano(p.182).

Agora, as oficinas terapêuticas nos mostram ainda outra via: que essaexperiência no coletivo, de fazer com o outro, de fazer para o Outro – que é oOutro do social, o Outro do discurso –, de reconhecer algo de si nesse produtoque sai de suas mãos e que é reconhecido pelo semelhante, essa experiênciaela é produtora de pensamento e de subjetividade.

A Oficina de Escrita com adolescentes, que realizo no CAPSi em parceriacom uma colega da equipe, é composta por adolescentes com questõespsíquicas graves e significativas restrições no processo de escolarização, nacirculação e nos laços sociais. A entrada nessa Oficina (que eles intitularamDando Letra) se faz por um desejo expresso do adolescente, ou por percebermosnele interesse pela escrita, ou, ainda, por indicação da equipe, naqueles casosem que se aposta que a escrita possa vir a se constituir como uma via deacesso a significantes que possam alçá-los a um lugar de enunciação e a umaposição no social não tão restritiva. Refiro-me àqueles adolescentes para osquais a entrada na linguagem não se deu sem percalços, e a utilização daescrita pode “transmitir uma história de exílio em relação à comunicação”, naspalavras de Leda Bernardino (2011)5:

Poderíamos então dizer que a escrita aí permite des-colar doSimbó lico para servir-se dele, introduz a possibilidade deaproximação com o “ser libidinal”, por este acesso à comunicaçãoque leva à afetação do outro, permitindo fundar um laço social.Utilizar um código para comunicar-se é estabelecer laço social, éentrar no discurso. [...] A escrita, então, nestes casos, permite

5 Gentilmente cedido pela autora.

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passar da relação colada ao significante ou do gozo corporal paraum outro tipo de encontro com a linguagem, com esta ordenaçãoque é a linguagem escrita (p.11).

Alguns momentos se constituem como privilegiados para se testemunhara produção de sujeito que está em curso ali. Tomo o exemplo de um menino,que vou chamar de Ivo, na época com 16 anos, o qual mais desenhava do queescrevia durante a Oficina. Percebe-se em seus desenhos a repetição de certostraços, que parecem constituir uma escritura6. Ivo desenhava sua escola, suacasa, ele próprio, as meninas, a igreja que ele frequentava com a mãe. Sempreesteve só com sua mãe, sendo que, até os oito anos de idade, vivia preso dentrode casa, não tinha linguagem, não brincava nem frequentava a escola. Poisbem, a cena a que me remeto se deu quando ele iniciava a escrever diretamente,passando do desenho ao texto. Sua escrita era até então contínua, sem cortes,sem sinais de pontuação. Nesse dia, ele escreve e depois vai ler para os colegasseu texto. Ao iniciar a leitura, está falando de sua escola, das notas que recebeuno boletim, etc. Começa a ler e, ao terminar a primeira frase, se dá conta,levanta a cabeça do papel, olha para o colega a sua frente e pede: “Me dá olápis!” Pega o lápis, põe um ponto na frase, dizendo: “Ponto!” Segue lendo,colocando – com o lápis que lhe alcançou o colega – ponto nas frases,introduzindo intervalos, conferindo sentido ao texto. Esse sentido, que é dado apartir de um código compartilhado com o outro, ele o constrói nesse momentoda leitura, do encontro com o olhar e a escuta de seus semelhantes, querendose fazer entender por eles. O leitor, endereçamento necessário de uma escrita,se constitui em ato, nesse momento em que olha o colega e diz: “Me dá o lápis!”(como se dissesse: “o teu lápis, com o qual tu escreves letras, que são asmesmas que eu utilizo, mas para dizer as minhas palavras, o meu texto”).

Seguindo adiante na leitura, Ivo inicia outra frase e, dando-se conta deque agora se trata de outro assunto, levanta os olhos novamente para os colegas,para, e diz: “Outra coisa”; e recomeça a frase, anunciando assim que vai falar deum novo assunto. Ou seja, ele faz aqui a alteridade. O Outro (do social) se fazpresente para ele no momento em que lê seu texto na presença desses outros,seus pares, numa relação sustentada em transferência, que permite que os

6 Como aponta Chemama: “O desenho não seria sempre marca, tendo que fazer função de traço,inscrição de um sujeito que precisa fazer, ao mesmo tempo, separação em relação ao Outro?”(Chemama, 1991, p.23).

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colegas de oficina possam operar como interlocutores, como testemunhas,avalizando sua produção textual, emprestando suas ferramentas (ele tinha oseu próprio lápis, mas vai pedir o do colega para pontuar seu texto) para que eletorne seu escrito compreensível para esse outro, pois já há um terceiro que fazmarca ali. O movimento de pegar o lápis, acompanhado da demanda endereçadaao outro, não é mera ação motora, mas se constitui como um Ato, na direçãoque Lacan ([1967-1968] s/d) aponta: como produtor de um novo sentido, a partirdo deslocamento ou da produção de um significante que situa o sujeito em outraposição. Considero que a palavra “ponto”, quando Ivo a exclama repetidamente,já não se trata apenas do ponto gramatical, mas de um verdadeiro ponto decapitonné, isto é, ponto de enodamento dos três registros: simbólico, real eimaginário. Não se trata de simples aquisição cognitiva, mas de produção desujeito, no coletivo. Dá-se por efeito da operação de diferenciação/identificaçãoaos pares, numa relação em transferência que possibilita inscrever o terceiro.

Ana Costa (2007), trabalhando o tema da transferência, nos diz:

A transferência não constitui somente a confiança em alguém quesaberia sobre as condições dos padecimentos sintomáticos daqueleque se queixa de um padecimento qualquer. Muito mais que isso,ela constitui a hipótese de um sujeito a um saber que se estabelecea partir do funcionamento da pulsão. Ou seja, sem a constituiçãode um sujeito a este saber, ele funciona “sozinho”. Este saberresulta de uma certa equivalência entre a máquina das pulsões e amáquina da linguagem. Num princípio, tanto a linguagem quanto apulsão são inscrições que nos vêm do Outro, precisando de umpercurso para que um sujeito ali se constitua. Ou seja, a priori éum saber sem sujeito, sendo este o sentido da alienação a essamáquina. A atribuição de um sujeito a este saber – que Lacandenominou sujeito suposto ao saber – condensa toda a importânciado trabalho na transferência (p. 148).

Um pouco anterior à cena relatada acima, Ivo havia introduzido na suaescrita o vocábulo “eu”, onde antes sempre aparecia seu nome em terceirapessoa.

A seguir, alguns extratos de seus escritos:1) O Ieda eu vou morar a casa da B. (menina pela qual está apaixonado)

porque a B. é legal. O Ieda a minha mãe não deixa pra mim ir no BIG. O S.(nome da mãe da menina que ele gosta) eu to prometendo pra mim morar a (tua)casa. Sabe que achei ideia eu vou pidi serviço a mãe da B. prá mim arrumar a

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minha vaga do serviço. O Ieda eu gostei a casa da B. O Ieda eu não quero morarmais a minha casa, mais nunca mais porque a minha mãe não deixa sair algumlugar. A minha mãe não deixa fazer amigo. Eu to combinado eu vou morar acasa da B. É sério eu vou embora. Eu to falando muito sério. Eu to falandoverdade. Eu to falando ideia. (E termina, colocando seu nome completo e adata.)

2) Eu fiquei triste, minha mãe não deixou ir no passeio. Não sei qualmotivo? Tem que ajuntar papelão? (Sua mãe é catadora.)

3 ) O J. (colega da oficina) tu pode fazer pergunta para mim.A) Você tem namorada (Sim) ou (Não)B) Você já beijou a boca das guria (Sim) ou (Não)C) Você foi a cama a tua namorada (Sim) ou (Não)D) Você gosta das guria mais bonita (Sim) ou (Não)E) Você quer ir no cinema (Sim) ou (Não)F) Você quer namorar as guria (Sim) ou (Não)4) Eu sonhei a B. Eu tava com medo eu tremi tremi eu sonhei eu queria

morar a casa da B. Eu sonhei a mãe da B. me dando carona eu mixei nas cuecaeu acordei mixo das cueca. Eu sonhei eu tava andando mão dada das guria.

Outro ponto que quero destacar é a particular relação com o tempo quese dá nas oficinas. Trata-se de outro tempo, que não o cronológico, embora, éclaro, não estejamos totalmente alheios à marcação do relógio. Nesse sentido,vamos na contramão daquilo que Foucault (1987) denuncia como tempodisciplinar:

[...] um tempo integralmente útil, com a anulação de tudo o quepossa perturbar e distrair. [...] O que significa que se deve procurarintensificar o uso do mínimo instante, como se o tempo, em seupróprio fracionamento, fosse inesgotável; ou como se, pelo menos,por uma organização interna cada vez mais detalhada, se pudessetender para um ponto ideal em que o máximo de rapidez encontrao máximo de eficiência (p.130-31).

Esse imperativo, a que estamos – nós, os neuróticos – facilmentesubmetidos na modernidade, é subvertido na Oficina que denominamos Fora daCasinha, que é uma oficina que consiste em andar pela cidade. O tempo queleva para que se reúnam, discutam aonde querem ir, argumentem para convencero colega, ou aceitem a sugestão do outro, até chegarem ao consenso, podeocupar a maior parte da oficina, correndo-se o risco de nem conseguirmos sairdo CAPSi.

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Ali, o tempo se expande, se alarga: nas risadas, nos assuntos que seatravessam e se atropelam, na fala delirante e ininterrupta de um dosadolescentes, na dificuldade para considerarem a opinião do outro. Assim, porexemplo, esse menino, que fala sem nenhum intervalo, repetindo programas detelevisão, se agitava com a demora e a dificuldade para entrarem num acordo, eme dizia, um tanto brabo: “Vamo, Ieda, vamo nós, deixa eles!”, pegando-me pelamão e propondo uma saída (no duplo sentido) que desconsiderava o coletivo, olugar terceiro, representado ali na oficina por um acordo mínimo entre eles.

A circulação pela cidade, entre pares, para esses adolescentes tratadoscomo criancinhas, que são trazidos pela mãe, que não andam sozinhos, produzencontros e desencontros surpreendentes. Estranhamento e acolhida seintercalam, nos encontros com os transeuntes, com os lojistas, com o guardada esquina, com os clientes da livraria. Falam muito alto ou emudecem, sentamna soleira da porta, pegam as revistas e querem levá-las embora; enfim, umasérie de situações inusitadas, que exigia inicialmente constante mediação daparte dos terapeutas que os acompanham, mas que, com o exercício da saídaà rua e do encontro com o diferente, mediado por uma palavra em transferência,têm produzido movimentos que nos surpreendem, e nos levam a reconhecê-losem outra posição subjetiva, diversa daquela em que, sem nos darmos conta, osestávamos colocando.

Trago um exemplo deste efeito de surpresa, que alguns acontecimentosem oficina produzem em nós, os terapeutas: uma das adolescentes, quechamarei de Ana, a qual apresentava dificuldade para aceitar que não poderiapegar e levar as revistas que quisesse, sem pagar, em um determinado dia em quevamos novamente ao sebo, mostra-me algumas moedas que tem na mão, dizendoque vai comprar revistas. Ocupo-me de mostrar-lhe as revistas que “cabem dentrode seu orçamento”, mas ela não se decide por nenhuma. Distraio-me,acompanhando o movimento e a curiosidade de outros adolescentes da oficina,e, quando vejo, Ana traz nas mãos, muito contente, uma revista, dizendo que vailevá-la. Noto que custa um pouco mais do que o valor que ela possuía, e lhedigo: “Esta aí, não dá!”. Ela me responde que “dá, sim!”, mas eu insisto. Nessemomento, a dona da loja, que está no caixa, me informa: “É dela, ela já pagou arevista. Eu lhe dei um desconto.” Ana me surpreende, em outra posição diferentedaquela em que eu a supunha. E me pego a repetir a posição da mãe, que relutaou se recusa a reconhecer o filho em outro lugar, que não mais o de sua criancinha.

Nesse episódio, Ana me relembra também que é na ausência que o sujeitodesponta: é no momento em que me ausentei, que saí de cena, que se abriu oespaço para que ela escolhesse e fosse à luta para levar sua revista, para afirmaro seu desejo.

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Sua posição de sujeito não passa despercebida – e é reforçada, inclusive– pela dona da loja, que, a partir desse dia, muda o endereçamento de sua fala.Antes, quando entrávamos na livraria, ela costumava dizer: “As revistas que elagosta estão na prateleira tal.” Agora, quando chegamos lá e Ana começa aprocurar, a dona do sebo diz, olhando para ela: “As revistas que tu gostas estãona prateleira tal”.

Há uma descoberta do mundo, uma observação do semelhante e umaapropriação do corpo – enquanto corpo adolescente (portanto, não mais entregueà mãe) – que testemunhamos ir se constituindo nessas andanças pela cidade.Assim, percorremos praças, museus, livrarias, cafés, shopping; ou jogamos bolanuma praça ou parque, assistimos a um v ídeo turístico sobre a cidade; ganhamosmapas, que passam a fazer parte do acervo e do instrumental da oficina.

Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisasinterposto entre os que nele habitam em comum, como uma mesase interpõe entre os que se assentam ao seu redor; pois, comotodo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabeleceuma relação entre os homens (Arendt, 1997, p. 62).

Numa saída ao centro, Beto quis levar o mapa de Novo Hamburgo comele. Neste, estão localizados os principais pontos turísticos do município.Havíamos trabalhado com o mapa, localizando a rua do CAPSi e o endereço decada um deles ou, pelo menos, o bairro em que moram. Nesse dia, Beto quislevar o mapa e foi abrindo-o e identificando, ao passar por elas, as coisas quelocalizara no mapa. Mas se mostrava surpreso quando encontrava, na realidadeda cidade, o que estava representado no papel. Frente a uma grande escadariado centro, olhava-a, e ria, apontando ora para o desenho no papel, ora para aconcretude da escada: “Olha a escadaria, olha!, Tá aqui a escadaria!” (no mapa);“Tá ali a escadaria!” (apontava para ela), surpreso de encontrá-la sob duas formasdiferentes (a escada no real e sua representação gráfica).

Esse mesmo adolescente, numa ida à praça para jogarem futebol, serecusou a jogar, de início, dando voltas e voltas ao redor do campo em que sedivertiam meninos da oficina e outros que estavam pela praça. Até que eleconseguiu se aproximar e entrar no jogo (pacientemente estimulado peloResidente e Professor de Educação Física, que acompanhou um tempo essaoficina). É um adolescente que apresenta uma estrutura paranoica. No caminhode volta, se posicionou ao meu lado, e começou a falar:

B – “Tá louco... aqueles caras... tá louco!....”I – “Tu jogaste com eles”.

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B – “Eu não conheço eles, tá louco!....”I – “Mas tu podes conhecer, podes te apresentar, dizer teu nome...”B – “Eu não, não conheço eles. Eu não me misturo. Eu não conheço

essa gente”.I – “Mas, se pode conhecer gente nova, não?”B – “Aí a casa cai! Não! A casa cai! Eu não me misturo.... (pequena

pausa) Tu acha que eu devia, Ieda?”Sua dúvida, que antes era a certeza que enunciava sua estrutura psíquica,

abre uma brecha na posição paranoica, a qual, aliás, predomina nas relaçõessociais vigentes: nós também não nos misturamos. O outro (mesmo que seja ovizinho) é mais facilmente sentido como estranho do que como semelhante, e,do “estranho” para o “perigoso” é meio passo. A radicalidade com que a rivalidadefraterna se estende para os laços sociais não permite que possamos convivercom as diferenças, aceitando, assim, que há diversos modos do viver. Mas adúvida que a experiência em oficina, sustentada em transferência, permite aBeto formular, desponta uma fresta nessa percepção do mundo como hostil eameaçador: pequenina, mas preciosa fresta!

As oficinas, das quais pude aqui trazer apenas alguns fragmentos,propõem outra lógica, que se sustenta por uma ética, uma clínica e uma políticaque são indissociáveis. Em tempos em que retornam e nos rondam os fantasmasdas políticas higienistas, urge se afirmar, no cotidiano, a dimensão profundamentehumana da escuta do sujeito na clínica das instituições de saúde mental.

Concluo, me servindo das palavras de Analice Palombini (2005):

Se a clínica que a gente opera [...] aposta numa dimensão nãotransparente da subjetividade, que resiste à captura, que se afirmacomo resistência; se nossa clínica abandona a pretensão detransparência, mantendo aberto o campo da conflitualidade próprioa essa subjetividade definida como resistência, então, nossapolítica, conforme a essa aposta, tomará distância da perspectivade governo das almas, de disciplinarização dos corpos, de que oestado moderno incumbe seus profissionais. Nossa políticacaminhará na direção nômade que segue os caminhos desviantesda invenção [...], e nos ensina a fazer valer mais em nossas vidasa mesma aposta que fazemos na vida daqueles a quem se dirigemos nossos serviços: os loucos, os tortos, os torpes, os feios, ospobres, os pardos, todos esses desviantes que habitam tambémem nós e que podem nos conduzir por caminhos que ainda nãoousamos explorar (p. 5).

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REFERÊNCIASARENDT, H. A condição humana. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.BERNARDINO, L. Pulsão, letra, significante e gozo na clínica do autismo. Trabalhoapresentado no Congresso Internacional sobre Autismo, da Associação Psicanalíticade Curitiba. Curitiba, de 24 a 27 de agosto de 2011. (não publicado)CHEMAMA, R. O ato de desenhar. In: TEIXEIRA, A. B. do R. (Org.) O mundo, a gentetraça: considerações psicanalíticas acerca do desenho infantil. Coleção Psicanáliseda Criança. Salvador: Ágalma, 1991, p.11-26.COSTA, A. Uma clínica aberta. In: APPOA. Psicose: Aberturas da Clínica. Comissãode Aperiódicos da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (org.). Porto Alegre: APPOA/Libretos, 2007, p.147-54.FOUCAULT, M. Vigiar e punir. 25. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.LACAN, J. O Seminário: o ato psicanalítico [1967-1968]. Publicação da Escola deEstudos Psicanalíticos, para circulação interna. São Leopoldo: Ed. Oikos, s. d.PALOMBINI, A. Acompanhamento terapêutico: dispositivo clínico-político. Trabalhoapresentado no Fórum sobre Acompanhamento Terapêutico, UFRGS. Porto Alegre,17 de novembro de 2005.PORGE, E. A transferência para os bastidores. In: Littoral: A criança e o psicanalista.Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998.ZABALZA, S. Nota ao pie: una perspectiva topológica del Hospital de Día. RevistaImago Agenda, nº 156, dezembro de 2011. Dispon ível em: http//www.imagoagenda.com/articulo.asp. Acesso em 26.02.2012.

Recebido em 08/12/2011Aceito em 07/01/2012

Revisado por Deborah Nagel Pinho

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TEXTOS

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Resumo: Através da noção de construção da fantasia, o texto indaga sobre obullying e suas relações com a puberdade e a adolescência. A retomada departe da história da escola – e dos discursos que a circunscrevem – contribuipara interpretar a implicância entre os pares e suas implicações.Palavras-chave: bullying, adolescência, fantasia.

PEEVE OR BULLYING

Abstract: Through the notion of fantasy construccion, the text questions aboutthe act of bullying and its relation with puberty and adolescence. The remake ofpart of the school history – and the discourse that circumscribes it – contributesto interpret the teasing between the subjects and their implications.Keywords: bullying, adolescence, fantasy.

IMPLICÂNCIA OU BULLYING?1

Lúcia Alves Mees2

1 Este texto é a versão modificada do publicado pela Revista da Associação Psicanalítica deCuritiba, nº 24: Abusos na infância, em 2012.2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). E-mail:[email protected]

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 119-132, jan./jun. 2011

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Uma jovem analisante fala sobre uma cena, entre ela e o irmão, que faz corocom a indagação do título. O irmão coloca o pé sobre o colo dela. A analisante

reclama do odor dos pés. Ele insiste. Ela se levanta e faz menção de fotografá-lo para expor no Facebook. Ele diz que não, ela persiste. Ele joga as meiassujas sobre ela e as esfrega no rosto da analisante, machucando-a. Ela chora,vai para o quarto e eles ficam sem se falar por um tempo.

Preocupada com o futuro da relação entre ela e o irmão, a analisante sepergunta se essas brincadeiras entre irmãos ajudam a construir uma relação deparceria e se, consequentemente, contribuiriam para eles seguirem sendo amigospela vida afora, ou se elas significam ruptura e prenunciam o afastamento entre eles.

Na cena específica, é claro que a violência que incide sobre o corpo,infligindo dor, põe fim ao jogo fraterno. Por ora, apenas sublinharemos o corpo ea dor como balizas para o dentro e fora da relação fraterna.

A chamada implicância entre irmãos se apresenta na cena em suascaracterísticas principais, sobretudo naquilo que indaga a implicação de cadaum. O verbo implicar contempla três empregos: o de “ter implicância com” (“odiretor implica com aquele funcionário”), o de comprometer ou envolver (“o agenteimplicou o chefe no escândalo) e produzir como consequência (“autonomia implicaresponsabilidade”). Pois a polissemia do verbo implicar nos leva a imbricar ozoar, com o envolvimento e a produção de uma responsabilidade. São essestrês aspectos que as cenas de implicância trazem consigo.

A reciprocidade da implicância permite que ambos dirijam um ao outro apergunta sobre a implicação de cada irmão na existência do outro. A possibilidadede jogar/brincar com a rivalidade pode ser elaborativa, assim como impeditiva,do laço. Quando um dos envolvidos deixa de ocupar o lugar de implicante/implicado, introduzindo a ruptura que interrompe o “entre dois”, a implicânciatalvez não mereça mais esse nome. Algo se excluiu da cena. A possibilidade deimplicação se esvazia.

Seja diante dos pais ou não, a cena da implicância se dirige ao desejoparental, implica-o, indagando o amor ou o reconhecimento. A pergunta sobrequem tem razão parece perpassar os jogos dos irmãos ou, ainda, “quem é oescolhido?” Ou mais ainda: “como situas teu desejo diante disso?” O terceiropara o qual a cena se endereça é decisivo no desfecho dela. Pois a intervençãodo terceiro (Freud e Lacan demonstraram sobre o pai e seu Nome) requer ocorte com o imaginário da escolha binária, assinalando o lugar singular de cadaum a partir do desejo que o caracteriza. A rivalidade que supõe um “ou eu ouele(a)” pode se elaborar quando a resposta não atende ao registro imaginário daescolha que exclui o outro, mas aponta para o registro simbólico que supõe olugar no qual cada um precisará se ocupar, ou seja, implicar-se.

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Implicância ou bullying?

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A implicância entre colegas da escola frequentemente encena o mesmo:quem detém o lugar privilegiado diante do amor e do reconhecimento do Outro?Qual o desejo do Outro que se lê em sua reação? Mas há também a rupturacom a pergunta, anunciando o bullying, suas batidas e humilhações, e o que elesignifica enquanto violência e, consequentemente, de fratura do simbólico.

Esse enlaçamento entre corpo, dor, humilhação, marcas e batida foiassinalado por Freud, no célebre texto Uma criança é espancada – umacontribuição ao estudo da origem das perversões sexuais ([1919]/1976). Lacan([1957-58]/1999)3 retoma esse escrito para ponderar que ele precisaria ser maistrabalhado, de modo a não ser associado exclusivamente com a encenaçãodistorcida da cena edípica. Será a partir do Édipo e seu mais além, ou aquém,que pretendemos abordar a temática da implicância e do bullying.

Freud divide a fantasia de espancamento em três tempos. O primeiro,nem sádico nem masoquista, acompanha a tenra infância e está associado aocomplexo de intrusão, ou seja, ao ódio da criança pelo irmão, ou irmã menor,que atrai os pais. A frase que caracteriza esse tempo é: “meu pai bate na criançaque eu odeio”. A fantasia é pautada pela demanda de amor do pai e ser batidosignifica a ausência desse amor. Se o irmão é o batido, a criança que fantasiase afirma como amada.

Na segunda fase, o prazer que até ali não se manifestara se fará presente.A criança que apanha é a mesma que fantasia, e o texto é: “sou espancada pelopai”. A fantasia é masoquista, acompanha a masturbação, é inconsciente e sóse mostra na construção de uma análise. O sentimento de culpa seriaresponsável pela reversão da fantasia, transformando-a em masoquista. O amorao pai do primeiro tempo suscita a culpa da criança e a regressão à fase anal-sádica, transformando o aspecto sexual do coito em apanhar nas nádegas comoseu correlato.

A terceira fase, como a primeira, é consciente, aquele que fantasia nãofaz parte da cena, pois ela é indeterminada: quem bate pode ser um professorou qualquer autoridade, e as crianças batidas não referem alguém específico.Para Freud, esse tempo é sádico na forma, mas a satisfação que produz émasoquista.

Lacan, no seminário sobre as relações de objeto ([1957-1958] 1999),retoma a fantasia descrita por Freud, destacando que na primeira fase se tratade

3 Sobre o texto e seu contexto histórico e conceitual veja também Mees (2011).

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uma comunicação de amor, [...] que se declara para aquele que éo sujeito central e na coisa que ele recebe [...] que é a expressãode seu voto, de seu desejo, de ser preferido, de ser amado (Lacan,[1956-1957] 2008, p. 64).

A rivalidade entre os irmãos governa a cena, o chamado por Freud de“complexo de intrusão”. Lacan inclui a associação desse tempo e dos demaiscom a inscrição do simbólico.

A relação com o irmão ou irmã menor, com um rival qualquer, nãoassume seu valor decisivo no plano da realidade, mas, por seinscrever num desenvolvimento totalmente diferente, numdesenvolvimento da simbolização, ela o complica e exige umasolução totalmente diversa, uma solução fantasística [...]. A criançadescobre a chamada fantasia masoquista de fustigação, queconstitui, nesse nível, uma solução bem-sucedida do problema(Lacan, [1957-1958] 1999, p. 250).

A primeira dialética da simbolização da criança, a da primeira faseda fantasia de espancamento, reitera Lacan, se dá na relação coma mãe, para além das satisfações ou frustrações, mas a partir dadescoberta do que é objeto do desejo dela. Tanto para um sexoquanto para o outro, o tema do outro como desejante está ligado àposse do falo: “Freud instaura ali um significante-pivô, em torno doqual girava toda dialética do que o sujeito tem de conquistar por simesmo, por seu próprio ser” (idem, p. 248).

O falo entra no jogo a partir do momento em que o pequeno sujeito abordao desejo da mãe e, mais ainda, ele entra no sistema significante tão logo osujeito tenha de simbolizar, em oposição ao significante, o significado como tal,isto é, a significação. A presença do falo conduz à tentativa de saber o que elesignifica, conhecer o desejo que ele refere.

O desejo da mãe não é simplesmente, nesse momento, o objetode uma busca enigmática que deva conduzir o sujeito, no decorrerde seu desenvolvimento, a rastrear esse sinal, o falo, para queentão este entre na dança do simbólico, seja o objeto preciso dacastração e, por fim, seja entregue a ele sob outra forma, para queele faça e seja o que se trata de fazer e ser. Ele o é, ele o faz, mas

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aqui, estamos absolutamente na origem, no momento em que osujeito se confronta com o lugar imaginário onde se situa o desejoda mãe, e esse lugar está ocupado (idem, p. 249).

A fantasia de espancamento, em seu primeiro momento, fornece a versãosobre o desejo da mãe pelo falo, conferindo ao irmão o lugar de representante doobjeto desse desejo, bem como a encenação da retirada dele dessa posição aoser batido.

O segundo tempo da fantasia está ligado ao Édipo e dá conta da relaçãoprivilegiada da menina com o pai. Ela é espancada como signo do amor do paipor ela. A menina recorre à figuração da etapa anterior para exprimir tal fantasia,que nunca vem à luz, exceto em análise.

A fustigação não atinge a integridade real e física do sujeito. É jus-tamente seu caráter simbólico que é erotizado como tal, e o é desdea origem [...]. O caráter fundamental da fantasia masoquista [...] éa existência do chicote. É isso que, em si mesmo, merece ser pornós acentuado. Estamos lidando com um significante que mereceter um lugar privilegiado na série de nossos hieróglifos, antes demais nada por uma simples razão, a de que o hieróglifo correspondeàquele que segura o chicote designa desde sempre o diretor, ogovernador, o mestre/senhor (Lacan, [1957-1958] 1999, p.251).

Apesar das alterações da primeira para a segunda fase da fantasia, relativasao objeto das batidas, e sua significação no que tange ao amor, o chicote éconservado. Ele é mantido como material do significante, o objeto chicote,indicador do lugar do Outro que o empunha (a autoridade) e persiste para assinalara relação do sujeito com o desejo do Outro.

O terceiro tempo do espancamento será decisivo no desfecho daconstrução da fantasia e, consequentemente, na simbolização, efeito da inscriçãodo significante, e da constituição do objeto de desejo, efeito da relação ao desejodo Outro. Nessa fase, pode-se colher a construção da fantasia, quanto anunciara fantasia perversa.

Num terceiro tempo, e depois da saída do Édipo, não resta outracoisa da fantasia senão um esquema geral. Introduz-se uma novatransformação, que é dupla. A figura do pai é ultrapassada,transposta, remetida à forma geral de um personagem na posiçãode bater, onipotente e despótico, enquanto o próprio sujeito é

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apresentado sob a forma das crianças multiplicadas, que já nemsequer são de um sexo preciso, mas formam uma espécie desérie neutra (Lacan, [1957-1958] 1999, p. 247).

O que se destaca da cena na fantasia posterior à dissolução edípica éum objeto, no caso, representado pelo olhar terceiro daquele que observa oindeterminado do bater e do apanhar.

E isso mostra bem o caráter de dessubjetivação essencial que seproduz na relação primordial, e resta essa objetivação, estadessubjetivação em todo caso radical, de toda estrutura em cujonível o sujeito não mais se encontra a não ser enquanto umaespécie de espectador reduzido ao estado espectador ousimplesmente de olho, quer dizer, o que sempre caracteriza nolimite e ao ponto da última redução toda a espécie de objeto, Épreciso menos, nem sempre um sujeito, mas um olho para vê-lo,um olho, uma tela sobre a qual o sujeito é instituído (Lacan, [1956-57] 2008, p.65).

De outro lado, possui diferente significação a indeterminação dospersonagens na fantasia perversa, pois “Freud marca com precisão nesta ocasiãoque é através dos avatares e da aventura do Édipo, que devemos considerar aquestão, o problema da constituição de toda perversão” (idem, p. 66). Pois nofantasma perverso se trata de um congelamento do chicote, de modo que ele seconstitua como fetiche e não como significante. Paralisação no objeto fetiche,fixando a crença no falo materno que a faria gozar.

O fantasma perverso tem uma propriedade que agora podemosdestacar. Que é esta espécie de resíduo, de redução simbólicaque progressivamente eliminou toda a estrutura subjetiva dasituação, para só deixar emergir aí alguma coisa inteiramenteobjetivada e, afinal de contas, enigmática [...]. Encontramo-nos aíno nível do fantasma perverso, de alguma coisa que tem, ao mesmotempo, todos os elementos, mas que perdeu toda a significação,ou seja, a relação intersubjetiva, é de alguma forma a manutençãoem estado puro do que se pode chamar de significantes em estadopuro, sem a relação intersubjetiva, os significantes esvaziados deseu sujeito, um tipo de objetivação dos significantes da situaçãoenquanto tal (idem, p.65).

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As fases da fantasia de espancamento, assim, descrevem a constituiçãodo sujeito ou, mais exatamente, outorgam à fantasia o estatuto de fundadora deum sujeito. A fantasia, construída a partir do desejo do Outro (no exemplo freudiano“Quem e por que bate?”), constitui a matriz para as relações do sujeito com osoutros e o mundo. Mediadora entre o irrepresentável, a fantasia compõe umaversão para o real, através de um objeto que dirige o desejo.

Dito isso, retomamos a indagação do título, somando aqui a perguntasobre o que o bullying pode dar a escutar sobre a fantasia de espancamento e,por sua ocorrência se dar no interior da escola, se esta na atualidade possuialguma peculiaridade que relacione sua associação com tal violência.

O século XX foi marcante no que tange às mudanças relativas à autoridade(Mees, 2001). Se os princípios militares e religiosos guiaram a disciplina nasescolas no passado, hoje os fundamentos ditos não falocêntricos marcam asrelações hierárquicas, inclusive as de professor e aluno. O Estado ou o divinonão são mais balizas para a pedagogia. O mestre/professor, que guiava porestágios que pretendiam quase a perfeição, atualmente está mais para parceiroamigável do que figura de autoridade diante de seus alunos. Combina-se aí umvasto ganho de liberdade, com o esmaecimento da alteridade demarcadora dadiferença de lugares.

A escola atual, em vários aspectos, está longe daquela do final do séculoXVIII descrita por Foucault:

[A organização linear na escola] é sem dúvida de origem religiosa.[...] A ideia de um ‘programa’ escolar que acompanharia a criançaaté o termo de sua educação e que implicaria de ano em ano, demês em mês, em exercício de complexidade crescente traz o temada perfeição, em direção à qual o mestre exemplar conduz, torna-se entre eles o de um aperfeiçoamento autoritário dos alunos peloprofessor (Foucault, 1997, p. 155).

De outro lado, algumas similaridades com a atualidade se afirmam, comoa do controle sobre o tempo, através da compartimentação do saber, visandoorganizar durações rentáveis.

Esse é o tempo disciplinar que se impõe pouco a pouco à práticapedagógica – especializando o tempo de formação [...]. Recolhe-se adispersão temporal para lucrar com isso e conserva-se o domínio de umaduração que escapa. O poder se articula diretamente sobre o tempo:realiza o controle dele e garante sua utilização (Foucault, 1997, p. 154).

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A escola, assim, segundo o autor, é um exemplo do fenômeno da aplicaçãodas técnicas de apropriação do tempo das existências singulares, de controledesse tempo, de tentativa de reger os corpos e as forças, a fim de realizar umaacumulação da duração que busca o lucro ou a utilidade. Tal processo temorigens e localizações diversas, ao mesmo tempo em que se apoiam uns nosoutros, esboçando pouco a pouco um método geral.

Walter Benjamin (2009), em uma de suas primeiras produções dirigidas àeducação, em 1915, considera que a produção passou a substituir a criação,atendendo à demanda do mundo do trabalho.

A falsificação do espírito criador em espírito profissional, que vemosem ação por toda parte, apossou-se por inteiro da universidade e aisolou da vida intelectual criativa e não enquadrada no funcionalismopúblico. O desprezo, típico de casta, por grupo de artistas e eruditoslivres, estranhos ou até hostis ao Estado, é um sintoma claro edoloroso dessa situação (idem, p. 39).

Lyotard (2008), mais tarde, junta-se a essa tese, enfatizando o aspectomercantilista da escola. Trata-se aí de subjugar a escola ao mercado e aosditames do capital. Para ele, o estatuto do saber se alterou depois dos anos 50e 60. A partir daí, não se tratava mais da formação no sentido amplo, visando àcondição de cidadão de cada aluno e, sim, do saber que passa a ser vendido econsumido de acordo com as regras de produção: “O princípio do desempenho[...] tem por consequência global a subordinação das instituições do ensinosuperior4 aos poderes constituídos” (idem, p. 91).

Silviano Santiago (2008), no posfácio do livro de Lyotard, chama atençãopara outra consequência da mudança na relação com o saber: a diferença narelação entre aluno e professor. Pondera o autor que o saber cada vez maisprolifera nas bibliotecas, laboratórios de pesquisa, em museus, em arquivospúblicos, além da informatização desses dados, levando aluno e professor anão possuírem um desnível entre si no acesso à informação.

4 Observe-se que o autor se refere às instituições de ensino superior, entretanto, parece-nosque sua tese principal pode ser transposta para a educação de modo geral. O texto de Lyotardfoi encomendado pelo Conselho das Universidades do Quebec, portanto, por isso a ênfase noterceiro grau.

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[No passado] o indivíduo tinha de se entregar, desde a mais tenrai d a d e , a u m l e n t o e g r a d a t i v o p r o c e s s o d e interiorização do saber,tanto de um saber universal e multidisciplinar básico, quanto desaber disciplinar e superior. A escola e os professores, donos deuma informação completa do saber, eram os principais responsáveispor esse trabalho junto aos alunos que, por definição, tinhaminformações incompletas. O desnível justificava a autoridade doprofessor e a obediência do discípulo (idem, p.128).

Essas breves considerações sobre a educação servem aqui para assinalara progressiva alteração das relações de autoridade na escola, assim como acrescente incidência do mercado (seja ele de trabalho ou de capitais) nadeterminação dos rumos da pedagogia. Percebe-se a educação acompanhandoos grandes eixos organizadores da cultura: das promessas religiosas, passandopelo apogeu da ciência no século XIX, até o alargamento do discurso capitalista,principal guia atual na determinação das relações.

O espaço do saber contemporâneo, o espaço da técnica, ou melhor,das tecnociências, pois estas se inscrevem mais facilmente nodiscurso capitalista do que no discurso universitário, está em rupturacom o espaço, o universo infinito das ciências que se inscreviamno lugar do discurso do mestre, em substituição ao discursoreligioso. A especificidade maior desse discurso capitalista é que[...] este não produz nenhuma promessa do supereu coletivo, anão ser essas ‘promessas de nada’, evocadas por Lacan no fim daúltima guerra mundial (Rassial, 1997, p.99).

Tal ausência de promessa-guia tem o efeito de desorientação, sobretudopara os adolescentes, na medida em que

[...] as tecnociências, capitalistas e pós-modernas, consagram oadolescente a uma errância sem objetivo e sem esperança, a nãoser aquele – melancólico, para qualificar o gozo – de ‘perder-se’em redes não orientadas (idem, p. 99).

Isso porque,

[...] para permanecermos em nosso lugar, não basta que um lugarseja designado, é preciso que ele tenha validade garantida por um

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saber atribuído a um sujeito e que ele esteja associado a umapromessa de gozo ou de possibilidade de gozo (idem, p.98).

Qual promessa orientaria o jovem na direção de um mais além? Quemencarnaria o lugar do saber, interditor e proporcionador de um horizonte de gozo?Pois, se aquilo que justifica a escola se torna exterior a ela (a produção, osucesso), como seria reconhecida uma autoridade intrínseca àquele querepresenta a instituição, ou seja, o professor? Se o saber está diluído em váriasfontes de conhecimento, como a escola guardaria seu lugar de transmissoradesse saber e, portanto, de reconhecimento?

São essas relações de prestígio, sucesso e valor que o bullying parecedenunciar. O popular, o nerd, o loser, a pati, designam aqueles que ganhamlugar de fracasso ou o avesso dele, sobretudo no ambiente escolar. O bully, ovalentão, é outra figura na galeria de personagens que as crianças e jovensvivenciam hoje no colégio.

O termo bullying compreende todas as formas de atitudes agressivas,intencionais e repetidas, que ocorrem sem motivação evidente, adotadas porum ou mais estudantes contra outros, causando dor e angústia, e executadasdentro de uma relação desigual de poder. Portanto, os atos repetidos entreiguais (estudantes) e o desequilíbrio de poder são as características essenciais,que tornam possível a intimidação da vítima. Por não existir uma palavra nalíngua portuguesa capaz de expressar todas as situações do bullying possíveis,o quadro a seguir relaciona algumas ações que podem estar presentes: colocarapelidos, ofender, zoar, gozar, encarnar, sacanear, humilhar, discriminar, excluir,isolar, ignorar, intimidar, perseguir, assediar, aterrorizar, amedrontar, agredir, bater,chutar, empurrar, ferir, roubar, quebrar pertences. O bullying é um problemamundial, sendo encontrado em toda e qualquer escola, não estando restrito anenhum tipo específico de instituição: primária ou secundária, pública ou privada,rural ou urbana. Pode-se afirmar que as escolas que não admitem a ocorrênciado bullying entre seus alunos, ou desconhecem o problema, ou se negam aenfrentá-lo5.

Em recente pesquisa sobre o bullying em Porto Alegre (Rolim, 2010),dentre os muitos aspectos levantados, dois se destacam para análise aqui: afaixa etária de maior incidência do fenômeno, entre 11 e 13 anos (idade média

5 Disponível em: www. bullying.com.br/BConceituacao21.htm#inicio. Ultimo acesso em 15/02/2012.

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dos que sofreram bullying é de 12,81); e as consideradas piores ofensas presentesna chacota: “veado” para os meninos6, “vagabunda” para as meninas7.

O período da vida de presença mais intensa do bullying nos remete àpuberdade e seu lugar desencadeador da adolescência enquanto processopsíquico, ou “momento simbolígeno”, como afirma Rassial (1997). As mudançasno corpo dão início ao que se coloca como reapropriação deste pelo eu. Pois apuberdade não mudou apenas a aparência, mas o estatuto e o valor do corpo,exigindo a reconfiguração da imagem corporal. O Outro também fica em suspensoem sua consistência imaginária e simbólica. Até então, o sujeito estavaresguardado do apelo de responder por seus atos, visto sua infância ser guiadapelos pais. Seu ser criança era afetado por aquilo que seus pais lhe indicavamcomo realização. Uma nova pergunta sobre o desejo do Outro se impõecontundentemente na adolescência. O âmbito restrito da família, que perfaziaquase toda a lei e a identidade a ser seguida, dá lugar a uma indagação que sedirigirá ao laço fraterno e ao outro sexo. Propomos que a puberdade e aadolescência reposicionam o sujeito também em relação à fantasia, reencenandosua construção, tal como a fantasia de espancamento o faz. De novo, nessetempo da constituição do sujeito, tratar-se-á de compor suas implicações. Maisuma vez estará em causa a implicação com o rival, enquanto aquele que indagasobre o lugar de cada um, sobre o desejo do Outro e seu objeto de satisfação.Ainda, de novo, a implicação com a sexuação e o lugar diante do pai que “bate”,marca e submete, assim como o destaque de um objeto que anime o desejo. Ocorpo, da mesma forma, volta à cena, implicando uma nova imagem e a indagaçãosobre sua sexuação.

O fenômeno do bullying parece responder a tal encenação da fantasia defustigação, revelando as dificuldades na construção fantasmática e as doadolescer. A fantasia é, porém, encenada no cotidiano escolar: a rivalidade entre

6 “[...]aqueles que possuem dificuldades de relacionamento com as garotas, que são tímidosdemais, ou desajeitados; os que já tentaram, mas foram rechaçados por não serem ‘desejáveis’,estes todos são chamados de ‘veados’, bichinhas’, ‘baitolas’. Não é necessário, para isso, quepossuam trejeitos, hábitos ou um estilo especial; basta que não ‘fiquem’ com as meninas [...]”(Rolim, 2010, p.103).7 “uma das ofensas mais graves praticadas entre as alunas consiste em qualificar uma delas de‘vagabunda’ [...] a que ‘dá para qualquer um’, que é uma ‘puta’. O impressionante, no caso, é queaquelas que empregam termos do tipo, em sua grande maioria, ainda não se iniciaram sexualmente”(idem, p.106).

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os irmãos/colegas passa facilmente da implicância/implicação para rechaço,luta fratricida pelo suposto risco da própria expulsão. A autoridade que “bate”está difusa, de modo que o lugar é ocupado por qualquer um, mas a ilegitimidadeem fazê-lo transforma a função inerente ao lugar em violência. Na impressão deque todos estão potencialmente sob ameaça de ficarem de fora dos laços, algunsparecem tomar a posição ativa de expurgar, como se garantisse a possibilidadede permanecer. Ingresso imposto à força, com o preço de estar preso à violênciae condenado à resposta insuficiente que essa produz. “Ser violento” não é omesmo que “tornar-se homem”, e ter um lugar não se satisfaz com a expulsãodos pares. Da mesma forma, difamar o colega não responde sobre quais traçossão os próprios a cada um. Estar submetido à violência também não produz ainscrição no corpo de um novo estatuto para ele, não produz a submissão quediria de assunção da castração e que conferiria um lugar. Ou seja, o bullying8

pode encenar as grandes questões da puberdade e da adolescência, mas nãopermite sua conclusão. Condena à repetição, impedindo a elaboração acercada implicação do corpo e do nome de cada um.

Freud já apontara que a homossexualidade e a promiscuidade são asformas de pôr o pai em xeque nas duas heranças que a função paterna traz: ada escolha sexual e a do acato à lei. A atenção dos jovens na escola a essesdois aspectos faz coro com as questões que importam na adolescência: comose tornar homem, apropriando-se de um corpo, agora autorizado a levar a termoa relação sexual, e provando – através de atos – uma posição ativa frente àlinguagem? Para as meninas, a implicação é a de se tornar mulher, sexuada,desejada, mas sem deixar de guardar algo do pai e da lei. O recato traduziria oacesso à sexualidade sob algumas balizas: não todos os homens. A “vagabunda”pode bem representar aquela que acede a todos, desviando-se do ditame dedeixar ao menos um sob interdição.

Mas o que fracassa a ponto de que a passagem adolescente se sintomatizena violência? Qual a responsabilidade de pais e professores nesse processo?Qual o lugar da escola diante disso?

A adolescência atual se vê às voltas com a sobreposição do questiona-mento do Outro, próprio da juventude, com a tendência crescente dos adultosde não ocuparem um lugar na cena. Os adolescentes não demandam aos paise professores suas respostas sobre si, como implicação lógica da juventude.

8 Sobre o bullying veja também Pinho (2011) e Ribeiro (2011).

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Soma-se a isso, em alguns casos, a demissão de pais e professores do própriolugar de alteridade diante do jovem.

A função do Nome-do-Pai é histórica, e se é essencialmenteintrapsíquica, ela só funciona através da intersubjetividade, umaintersubjetividade socialmente determinada. É assim que o declínioda função paterna, do qual Freud falou, no laço social e no laçofamiliar, não é só imaginário, mas afeta a própria inscrição simbólicado sujeito (Rassial, 1997, p. 51).

A escola da atualidade, como dissemos antes, está frequentementesubmetida ao discurso capitalista. Tal discurso busca produzir objetos de gozo,anulando a falta própria do desejo. Lacan (1971-1972) fala em verwerfung dacastração, rejeição da castração nos campos do simbólico. Tal rejeição leva aoapagamento da divisão estrutural do sujeito, desligando-o do “não saber doinconsciente” e levando-o a desconhecer “as coisas do amor”. A verwerfungainda modifica a relação do sujeito com o objeto, transformando-o em consumidorque pode alcançar o que procura.

Junta-se a isso a presença das ciências. O saber é transmutado emobjeto, com estatuto de bem de consumo, regido pela lógica utilitária. Osignificante-mestre capital passa a comandar o saber científico: é ele que financiaas pesquisas, patrocina os pesquisadores, induz a elaboração do saber, obrigandoa aderir às “política dos resultados”. Pois o saber científico, praticamentesubsumido pela tecnologia, tem que produzir objetos úteis e consumíveis. Asinstituições de ensino, assim, ficam pressionadas a uma política de resultadose direcionadas para o mercado.

O discurso do capitalista falha enquanto regulador do laço social, poistende a ser promotor de segregação. A via de tratar as diferenças na culturacientífica capitalista é a segregação determinada pelo mercado: os que têm ounão acesso aos produtos consumíveis. Trata-se, portanto, de um discurso quenão forma propriamente laço social, pautando-se sobretudo pela exclusão.

A escola, mais e mais submetida ao discurso da produção, do capital,vem sendo palco do não elaborado na posição adolescente diante da castração.O risco da segregação problematiza o laço entre os pares, que são agoradestinatários da indagação sobre o lugar de sujeito e o objeto. O tempo, encurtadopela proximidade com o objeto de consumo, cobra do púbere que desde cedosaiba responder sobre seu ser e seu sexo (“És gay?” “És puta?”). E pode fazerreagir violentamente às demonstrações inevitáveis de que a adolescência requerum trabalho psíquico até que possa responder sobre isso.

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Estariam os púberes e adolescentes condenados a se bater e se debaterindefinidamente na busca de uma marca do Outro que possibilite a construçãoda fantasia, indispensável à conclusão do adolescer? Ou ainda, na dificuldadede destacar o objeto de desejo, guia do porvir, os jovens se arriscariam a compora impessoalidade perversa como saída ou como sintoma da permanência noslaços utilitários/segregadores da cultura atual?

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Recebido em 13/04/2012Aceito em 11/05/2012

Revisado por Beatriz Kauri dos Reis

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TEXTOS

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Resumo: A adolescência muito recentemente se recorta da infância e torna-seum momento diferenciado. Antes ambas eram vistas como integrando o mesmoprocesso contínuo que levava o sujeito a atingir a idade madura. Na clínicapsicanalítica constatamos que, para pensar a adolescência, faz-se necessáriopassar pelo infantil, pois muitos processos se reeditam, e o adolescente precisarefazê-los e reintegrá-los. Neste artigo, propusemos pensar nos avatares datransformação do brincar na infância, em estudo e trabalho na adolescência,que não se opera sem recorrer aos processos sublimatórios.Palavras-chave: infância, adolescência, brincar, trabalhar.

FROM PLAY TO WORK:the avatars in the passage from childhood to adolescence

Abstract: Very recently adolescence distinguishes itself from childhood andbecomes a different time in life. Before, both were seen as part of an ongoingprocess that lead the subject to reach adulthood. In the psychoanalytic clinic, toconsider adolescence, it is necessary to go through the infantile, due to thefacet that many processes are reissued and the teenager needs to remake andre-integrate them. In this article, we purpose to consider the avatars of thetransformation from playing in childhood to study and work in adolescence, whichdoes not operate without resorting to sublimatory processes.Keywords: childhood, adolescence, play, work.

DO BRINQUEDOAO TRABALHO:os avatares na passagemda infância à adolescência

Carmen Backes1

1 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Psicóloga doInstituto de Psicologia (UFRGS); Doutora em Educação (UFRGS). Autora do livro: O que é serbrasileiro? (Escuta, 2000) e organizadora do livro: A clínica psicanalítica na contemporaneidade(Editora da UFRGS, 2008). E-mail: [email protected].

Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 133-145, jan./jun. 2011

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Ainfância e a adolescência apenas recentemente destacaram-se uma daoutra como categorias próprias e diferenciadas. Muito já foi escrito sobre a

história da infância, da família e do casamento; contudo, não há uma obra dereferência sobre a história da adolescência. Talvez, justamente, por serconsiderada como invenção recente, datada da segunda metade do século XX.É no Pós-Segunda Guerra que a adolescência distingue-se das outras “etapasda vida”, vindo a se constituir como aquele período que empurrou “a infância paratrás e a maturidade para frente”, e ganha, talvez pela primeira vez na história, umlugar social. Os anos 90 assistiram aos jovens francamente instalados comocategoria, ganhando estatuto próprio e transformados em paradigma do sujeitocontemporâneo. É nesse contexto que vemos surgir o adolescente, após ainfância, impulsionado pelos efeitos corporais da puberdade e pelas exigênciassociais, mas, que, todavia, ainda não é um adulto.

Aquilo que se opera na infância carrega seu registro pela adolescência,permitindo os processos de sublimação, que vão pautar, por sua vez, toda a vidado sujeito adulto. Deve-se à psicanálise o reconhecimento da sexualidade jápresente na infância e o alerta de que a sua repressão ocasionaria o sofrimentoe a doença neurótica. Contudo, Freud atribui lugar especial ao processo deeducação das pulsões para a vida em sociedade. Por outro lado, o autor alertaimediatamente para o fato de ser esse o fator preponderante na constituição eno desenvolvimento dos processos neuróticos. Esse é o preço a ser pago poruma vida comunitária e a razão do mal-estar constituinte de todo sujeito humano.O pai da psicanálise atribui papel central ao mecanismo psíquico da sublimação,como um dos destinos das moções sexuais, favorável ao desenvolvimento deatividades artísticas e de investigação intelectual. De que forma a educaçãopoderia promover a integração das crianças na ordem social vigente auxiliando-as a tomar os rumos da própria sexualidade sem, no entanto, causar excessivafrustração?

A psicanálise denomina de latência o período da segunda infância, quese caracteriza por uma renúncia temporária da satisfação das pulsões sexuais.A latência situa-se entre dois tempos de forte efervescência pulsional: o edipianoe o pubertário. Essa época de “adormecimento” das pulsões é decisiva para aaquisição de capacidades sublimatórias, na medida em que Freud ([1915] 1981)considera que a sublimação é um dos destinos pulsionais que proporciona umamodalidade de satisfação efetiva diferente da descarga direta.

Consideramos que os destinos pulsionais de tipo sublimatório constituídosna infância são de extrema relevância na adolescência, pois é o momento emque o sujeito precisa derivar libido para o campo das decisões intelectuais eprofissionais. Do mesmo modo, trata-se de um mecanismo importante para

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auxiliar o sujeito a desvencilhar-se dos objetos infantis. A infância, aindaconsiderada, na cultura atual, como um momento feliz puro e belo, é cercada deobjetos que, por sua pregnância, são de difícil desistência, pois altamenteidealizados dentro desse contexto.

Nos Três ensaios para uma teoria sexual, Freud ([1905] 1981) inclui umelemento que vai nos interessar sobremaneira para pensar na reativação dosprocessos infantis na adolescência e na vida adulta, qual seja, que a sublimaçãocaracteriza-se por uma mudança que não se faz por meio do retorno do recalcadosob a forma de sintoma. A libido vai encontrar sua satisfação diretamente ematividades socialmente valorizadas, às quais o grupo dá sua aprovação, uma vezque são de “utilidade pública”. Nesse texto o autor aponta primordialmente ocampo da arte, ciência, cultura e literatura como aqueles indicados a propiciarsublimação.

Para falar sobre a sublimação, Freud convoca a experiência do artistacomo aquele indivíduo que não renunciou aos seus anseios por satisfações detoda ordem, mesmo que estas lhe tenham sido negadas pela realidade de variadasformas. Se essas satisfações são negadas na relação com o “mundo exterior”,ele é levado a retirar libido dos objetos externos e a introjetá-la. Tal como noneurótico, essa libido será agora investida em suas construções mentaisimpregnadas de desejo, em suas fantasias. No entanto, a semelhança com aneurose termina aí, pois, a sublimação implica que essa libido investida nafantasia não será submetida aos processos de condensação e deslocamentoque o recalcamento opera.

Na neurose, esses processos deformam o material fantasístico, criandoas condições necessárias para que se suspendam as barreiras do recalque e oconteúdo retorne à consciência, sob a forma de sintoma (retorno do recalcado),fonte de sofrimento para o sujeito. No caso do artista, essa libido investida nafantasia será sublimada, o que implica que seu destino não é o recalque e oretorno como uma formação do inconsciente. Em seu artigo As pulsões e suasvicissitudes, Freud ([1915] 1981), de fato, estabelecia a sublimação e o recalquecomo destinos distintos que a pulsão pode adotar.

Há, portanto, identidade entre o processo de sublimação e o dorecalcamento que vai até o nível da introjeção da libido e seu investimento nafantasia; daí para diante se distinguem. A sublimação implica um percurso dalibido que não exclui a passagem pelo recalcado originário. O recalque originárioé o significante que originalmente ficou encarregado de representar psiquicamentea pulsão e jamais teve acesso à consciência. Quando a libido retorna do mundoexterno, devido às frustrações sofridas, ela vai alimentar estruturas articuladasem torno do recalcado originário. Portanto, quando Freud ([1915] 1981) diz que,

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na sublimação, o destino da libido não passa pelo recalcamento, devemos terem mente que se trata do recalcamento secundário, e não do primário.

Se, na sublimação, a fantasia vem à tona por uma via que não a distorce,ela traz consigo não o recalcado originário enquanto tal, mas a si mesma comouma construção intimamente ligada e próxima a ele, moldada a sua semelhança.Nesse sentido, as obras de arte, imagem fiel da fantasia, são manifestações dorecalcado originário, manifestações da pulsão que originalmente foi dirigida aoobjeto materno, primeiro objeto de amor e também de frustração.

As moções pulsionais mais arcaicas da criança são, ao mesmo tempo,um ponto de partida e um núcleo nunca inteiramente resolvido sob o primado dagenitalidade. Lacan, por sua vez, sugere falar de “um ponto de limite, um pontoirredutível” (Lacan, [1959-1960] 1988, p. 119). Mas se há, por um lado, a insatis-fação intrínseca, por outro lado, Freud ([1915] 1981) aponta para a abertura queparece, à primeira vista, quase sem limite, das substituições que podem serfeitas no nível do alvo. A sublimação é o processo psíquico inconsciente, quepermite substituir um objeto sexual por um objeto não sexual, socialmente“indicado”.

A puberdade, por ser o momento específico em que “a carne insiste”,coloca o adolescente momentaneamente desancorado frente ao descontrole daexplosão pulsional pubertária. É o real do corpo que urge pela Coisa e necessitanovamente ser capturado pelas vias significantes.

* * *

Por seu nascimento prematuro, o bebê humano, através da relação deamamentação, coloca-se numa posição de total dependência do Outro e, comisso, instala-se a representação mais primordial da imago materna. Delineiam-se aí os “sentimentos mais arcaicos e mais estáveis que unem o sujeito àfamília” (Lacan, [1938] 2003, p.36), sendo o complexo do desmame inteiramentedominado por fatores culturais e, portanto, diferente dos instintos. No homem,“é uma regulação cultural que condiciona o desmame”2 (id., ibid., p.36).

Assim, o desmame deixa no psiquismo humano uma marca permanente,pois interrompe aquilo que Lacan nomeia de uma “relação biológica” com a mãee que moldará as experiências psíquicas posteriores. Ele pode, portanto, ser

2 Colocaríamos a palavra cultural entre aspas, pois o desmame, ou a passagem de uma fase dalibido a outra está na relação direta a um reviramento na demanda do Outro originário.

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aceito ou recusado e, na falta de um eu que afirme ou negue, pois que ainda emestado rudimentar, a aceitação ou recusa não pode ser considerada uma escolha.

Dessa forma, os complexos familiares dão a ver que é por crises dialéticasque o indivíduo cria a si mesmo e aos seus objetos. Aquilo que faz laço entre oshumanos apoia-se no traço do recalque das relações primárias com o Outrooriginário. Através do complexo do desmame, definido por Lacan ([1938] 2003),com sua fixação da imago materna e posterior abandono, sabemos que essaimago instala-se precocemente e de forma extrema, tendo em vista a prematuri-dade do bebê humano ao nascer, que o joga numa total dependência do Outro.O “corte” realizado pelo desmame opera ambivalência na relação ao objetoprimário e, por ser de ordem vital para o bebê, a imago imprime-se profundamenteno psiquismo, provocando uma nostalgia da mãe, de difícil sublimação, o quefaz supor que a relação a esse objeto primeiro possa se refazer incansavelmente.

A respeito do complexo de intrusão e sua reiteração da perda objetal,destacamos a relação com um objeto outro – o rival, com o qual pode se desen-volver uma montagem imaginária, que inclui desde a sedução até o despotismo,através de uma identificação mental com o outro, pois não depende necessaria-mente da sua participação direta. Caracteriza-se por ser uma relação ambígua(amor e ódio), de domínio e subjugação. A insistência na relação imaginária como objeto do complexo de intrusão pode fazer insistir também a reiteração daperda do objeto, com seus sucessivos e infindáveis substitutos.

Por fim, o último dos complexos é relativo ao conflito edipiano, que instauraa relação objetal a três, dominada por moções pulsionais sexuais, agressivas etemor de retaliação. O ultrapassamento desse conflito, através do recalcamentoe da sublimação do objeto primeiro e da constituição de ideais, retiraria o terceiroda condição de rival a ser vencido, deslocando-o para uma posição de referencial.Nesse sentido, o terceiro não é aquele frente ao qual se insiste em tomar olugar, em substituí-lo como objeto, mas, sim, aquele que lança o sujeito adiante,na via do desejo.

Se situamos que na adolescência se dá a reedição do complexo de Édipo,e que é necessária, nesse momento, a ratificação do recalcamento, poderíamosperguntar: por que o objeto primário insiste na adolescência? Um esclarecimento,porém: tomamos aqui as relações de objeto de um grande número deadolescentes, como tendo a particular característica de serem repetidamenterenovadas, como no caso de Gustavo, que descrevo a seguir.

Gustavo é um adolescente tardio, de 26 anos, que está cursando afaculdade de Design, depois de ter transitado por duas outras, sem concluirnenhuma, preocupado com o fato de, a essa idade, ainda não ter se formado edepender financeiramente dos pais, sem perspectiva imediata de mudar tal

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situação. Aparenta não ter dificuldade de relacionamento com as mulheres,pois já teve muitas namoradas: assim como termina com uma, logo inicia comoutra, sem transcurso de tempo entre uma e outra. Esse modo de funcionamentonão lhe traz interrogação, mas, sim, o fato de, nos últimos tempos, insistir paraele a imagem de uma mulher mais velha, Fernanda, com quem se relacionou,mas que não seguiu adiante por julgá-la inadequada, pois se trata de uma mulhermais velha, madura, independente, de opiniões firmes, com a vida profissionaldecidida, “uma mulher masculina.... como minha mãe”. Para melhor defini-la,c i t a u m t r e c h o d a m ú s i c a “Garota Nacional” da Banda Mineira Skank: “Eu detestoo jeito dela mas, pensando bem, ela fecha com meus sonhos como ninguém...”.Depois de findo o namoro, logo se apaixona por outra garota, mas são ospensamentos em torno da namorada anterior que insistem, algo que, para ele, énovo, pois facilmente se desprende de um relacionamento e vincula-se a outro,da mesma forma apaixonada de sempre.

Irritado com pensamentos que não consegue controlar, vai a uma festa e“toma um porre”. No dia seguinte, da amnésia alcoólica lhe restam um cupomfiscal no bolso e uma lembrança da infância: picolé Chicabom (chocolate e leite)que desfrutava nas madrugadas, depois das festas com Fernanda, o mesmoque lembra ter conhecido com a mãe, em idade bastante precoce. Por associaçãoe não com toda a certeza, julga ter saído da tal festa e ido ao mesmo posto degasolina, comprado novamente o picolé, porém desta vez sem a companhia deFernanda.

Esse recorte clínico sugere pensar nos paradoxos (amor e ódio) associa-dos ao objeto, apontando para a dificuldade de substituição, pois, se nenhum ésuficientemente adequado, poderíamos perguntar sobre aquele insituável, queteria dado origem à série. Nesse sentido, o fragmento clínico coloca em relevo ainsistência da imago do objeto primeiro e permite lançar a hipótese de certarecusa em ceder o objeto, operando uma substituição que seja efetiva e duradoura– se é que a substituição efetiva seria possível. Ao mesmo tempo, Gustavodenota a ambivalência primordial, dando a ver os índices da imago materna erevelando o papel psíquico que representa a imagem da mulher forte, que ele“detesta”, mas que o acompanha em seus sonhos diurnos. Renovandoincansavelmente a exclusão, é sempre ele que põe um final nas relações, poisnão suportaria “levar um pé na bunda”. Triunfa agora, colocando-se ativo nareedição do abandono, ativando a agressividade que os restos infantis doscomplexos familiares colocam em ação.

Rassial (1997), em seu livro A passagem adolescente, afirma que o sujeitonecessita, a posteriori, realizar novamente uma série de operações fundadoras.Primeiramente, se na fase do espelho eram o olhar e a voz maternos que lhe

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asseguravam consistência e existência, na adolescência o jovem deverá – senão se apropriar desses objetos parciais – ao menos deslocá-los para os pares.

Em segundo lugar, se, na fase fálica, na circulação pelo complexo de Édipo,tudo girava em torno da mãe, é o reconhecimento da função paterna que, nainfância, provocará a “desistência” do objeto materno e, na adolescência, a validaçãodo Nome-do-Pai permitirá o acesso a uma relação genitalizada ao outro do Outrosexo. A adolescência comporta, portanto, a confirmação do reconhecimento dadiferença sexual, como também o reconhecimento do próprio sexo.

Por último, na infância, o sujeito se constitui enquanto alguma coisa parao desejo dos pais, principalmente da mãe; na adolescência ele deverá reorientara pergunta sobre o desejo: se antes tudo se articulava em torno de como satisfazermelhor ao Outro originário, agora ele deverá operar o giro de tomar-se daresponsabilidade sobre seu desejo.

Como vimos, o infantil faz retorno na adolescência de forma massiva,tendo em vista a necessidade da ratificação ou não, a posteriori, das operaçõesfundadoras realizadas na infância. Esse é o norte que orienta as colocaçõesaqui desenvolvidas.

O trabalho da adolescência é, principalmente, operar os lutos que apuberdade impõe, colocando algo no lugar daquilo que falta. Porém, adiantamosque o luto – luto pelo corpo infantil, pelos pais da infância, pelos objetos –, quea adolescência implica, traz em si a radicalidade de uma falta que não inclui apossibilidade de substituição.

Talvez um segundo desmame – guardando as devidas proporções comrelação à infância – precisasse ocorrer, para que o adolescente pudesse desejaralgo mais do que o aconchego quentinho do lar materno e paterno, “ato necessário,no caminho da autonomia possível, que a passagem adolescente requer”(Cabistani, 2009, p. 91).

Metamorfoses do objeto: do brinquedo ao trabalho

A origem da relação do sujeito com o objeto está para sempre perdida e,embora fundante, é inacessível ao sujeito. A relação ao objeto no brincar, alémde dar suporte à fantasia, é também prática significante que implica uma produçãorelativa à constituição libidinal do próprio corpo. O outro originário “empresta”significantes para que a criança possa ir recobrindo seu próprio corpo, retirando-o, desta forma, do lugar de puro objeto. Esse procedimento contribuirá para aposterior operação de separação eu/Outro.

Por outro lado, a dificuldade, ou mesmo a impossibilidade da criança dedesprender-se do corpo materno ou de seus substitutos interfere em suas

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possibilidades lúdicas. Assim, o brincar nos traz notícias preciosas sobre oestado de desenvolvimento simbólico da criança a partir das condições de operaresse desprendimento. Essa dificuldade intervém em sua capacidade de brincare nas condições de aceitar situações de separação.

Freud ([1920] 1981) em Mais além do princípio do prazer, descreve o jogodo fort/da, na experiência de seu neto brincando com o aparecimento edesaparecimento de um objeto, ensinando assim que a palavra é o que pode darsuporte à ausência. Nessa brincadeira, a criança joga um carretel amarradocom um barbante para fora da borda do berço, fazendo-o desaparecer e puxando-o de volta até que reapareça. Durante o processo, ele dá, ao ato de jogar ocarretel e puxá-lo, um suporte fônico, dizendo – “ooo” (fort, em alemão = emboraou fora) e “aaa” (da , em alemão = aqui). Na brincadeira completa então (embora/aqui), o menino encena, recria a presença/ausência da mãe.

Dessa forma, o fort/da nada mais é do que a possibilidade de recobrircom palavra a ausência do outro materno. Essa brincadeira, então, caracteriza-se, principalmente, como a simbolização da ausência da mãe, ao mesmo tempoem que introduz uma distância entre a criança e o Outro. O jogo auxilia a fazera operação de separação: insere significantes numa experiência vivida,transformando-a em brincar. Brincar, assim, permite fazer novas experiências eprescindir da presença do outro. Nesse sentido, brincar é um novo significanteincluído no universo simbólico da criança.

No decorrer da constituição subjetiva ocorre a metamorfose (transforma-ção) do brincar em outra coisa: estudar na latência; estudar e trabalhar naadolescência. Que não se confunda, porém, a transformação do brincar emestudar e trabalhar, com a oposição entre lúdico/sério, ou prazer/desprazer,confusão essa que acarretaria um empobrecimento, além de retirar do estudo edo trabalho importante fonte de satisfação. Não haveria razão, sugere Rodulfo(1990), para operar disjunção entre brincar e trabalhar.

Transformações na função do brincar ocorrem em diferentes momentosda estruturação subjetiva. Interessa-nos aqui dar alguma visibilidade a essastransformações no decorrer da passagem adolescente. “Onde era o brincar, otrabalho deverá advir”, é uma paráfrase utilizada por Rodulfo (1990, p. 158) paradesignar que, se o trabalho do brincar não foi realizado na infância, compromete-se, na adolescência, tudo o que for da ordem da sublimação, mormente asublimação necessária para a inserção em um trabalho profissional, porque

[...] em maior ou menor grau, as formações de desejo, longamentedesdobradas e desenvolvidas no campo do brincar infantil eadolescente, passam, cedem grande parte de sua força e de seu

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poder intrínseco para o trabalho, como atividade central da existênciaadulta, outorgando-lhe assim uma base pulsional decisiva [...]. Semesta base, o trabalho ou não pode se constituir, ou se pseudo-constitui, como uma fachada talvez socialmente muito produtiva,mas subjetivamente vazia de significação (Rodulfo, 1990, p. 158).

Segue o autor referindo que, em contrapartida, podem ocorrer inúmerasdificuldades em operar a metamorfose do brincar em trabalhar na adolescência,que poderiam sugerir algo de uma insistência do objeto primeiro.

Algumas atividades dos adolescentes, embora socialmente reconhecidas,ocupam o lugar do trabalho profissional e remunerado que eles não conseguemconstituir. Rodrigo, outro exemplo clínico, mantinha-se “atarefado”, numa“brincadeira” agradável e prazerosa com meninos3, economizando-se da angústiade construir um projeto que lhe proporcionasse independência financeira dafamília. O trabalho toma um caráter somente lúdico, e não propriamenteprofissional.

Gustavo, de quem já falamos acima, ocupava-se com estágios acadêmicosque tomavam caráter de profissão. Frequentemente, contudo, encontravadificuldade de relacionamento com superiores hierárquicos, pois considerava-seum “excelente profissional”, conforme suas próprias palavras, o que o levava afazer reivindicações “salariais” diferentes daquelas de um estagiário.

Rodulfo (1990) também afirma que o devaneio constitui-se, para muitosadultos, como a única forma do brincar remanescente da infância que não cedeulugar ao trabalho profícuo. Nisso, encontramos também outros elementos queremetem ao caso de Rodrigo, quando cria um logotipo para roupas de surf4 esonha para si um futuro muito promissor com o projeto da marca guardado nagaveta da escrivaninha.

“Brincar de trabalhar” é a expressão que melhor definiria a ocupação deRodrigo. Ao mesmo tempo, essa foi a única atividade que conquistou por esforçopróprio, pois, diante da impossibilidade de ser o ideal, como o irmão mais velho,acabava sempre sendo sua versão negativa e, para não sê-lo, fantasia uma vidaprofissional que mistura brincar e trabalhar: ser o estagiário-fisioterapeuta dosmeninos que jogam bola num time famoso, ou enriquecer surfando.

3 Era o estagiário (não remunerado) de fisioterapia nas categorias de base de um time de futebol.4 Inspirado no criador da marca Mormaii, cuja história o fascina, pois trata-se de um médico queabandona a profissão, lança a marca, consegue fazer fortuna e manter-se morando à beira domar, tendo como atividade principal a administração da marca e a prática do surf.

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Os mesmos elementos de análise encontram-se no caso de Gustavo,que escolheu seu primeiro curso superior – analista de sistemas – porque semprefora “muito fera” com o computador. A segunda faculdade foi de designer gráfico,que se constituía como uma continuação da primeira. Alcança muito prazer esatisfação trabalhando no computador, criando e projetando objetos, porém,tem muita dificuldade em transformar uma ou outra em atividade profissional. Ocaso oferece elementos para situar um ponto de fracasso dessa metamorfosedo brincar em trabalhar, que impede o investimento no campo profissional, poisa atividade lúdica acaba prevalecendo e impedindo o deslocamento de umquantum libidinal de um campo a outro.

“Há coisas que devem cair no brincar infantil para que o trabalho advenhacomo possibilidade” (Rodulfo, 1990, p.170). A respeito dessa afirmação do autor,uma outra característica chama a atenção no caso de Gustavo: não conseguiapermanecer por muito tempo num mesmo local de estágio, sempre eradispensado precocemente. Alegava que os trabalhos que lhe eram destinadospara executar eram muito primários (“Sei fazer muito mais e melhor do queaquilo”) e, de fato, suas produções eram de potencial elevado, tendo sido premiadovárias vezes com objetos por ele criados. Também adotava um jeito próprio deexecutar os projetos, o que acabava sempre por desagradar seus empregadores.Nesse sentido, não conseguia adaptar-se às regras dos locais de trabalho; emcasa, executava os projetos do seu jeito e no seu tempo, isto é, com as regras“inventadas” por ele próprio.

O brincar infantil coletivo implica obedecer regras estabelecidas conjun-tamente. Chama a atenção que Gustavo pareceria ter dificuldade em aderir àsnormas impostas pelo outro e “fazer passar suas qualidades por um certo códigoe aceitar entrar em contato com procedimentos e saberes já instituídos” (Rodulfo,1990, p. 170). Parecia instalar-se numa onipotência infantil, que dificultava o gironecessário para transformar o brincar em trabalhar e, portanto, poder aderir àsregras que o Outro institui.

Por outro lado, brincar tem um código privado, que não necessariamenteé compartilhado com uma comunidade, pois a criança pode fazê-lo sozinha.Nesse sentido, o brincar guarda semelhança com o sonho e, por isso, precisaser “decifrado”. Portanto, para que o brinquedo entre no circuito do trabalho, elenecessita entrar num âmbito mais amplo, compartilhado e com outras regras.Essa é a primeira e essencial transformação do brinquedo em trabalho. “Brincarcom outra coleção de significantes” (Rodulfo, 1990, p.172) é a expressão que oautor utiliza para melhor definir a passagem do brincar ao trabalhar.

Por que trago aqui as funções do brincar na infância? Porque o brincar éo suporte da fantasia e porque tanto esta como aquelas se redimensionam na

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adolescência, se reestruturam. A primeira importante função do brincar na infânciadiz respeito à possibilidade da construção de uma superfície corporal relacionadaà fase do espelho, responsável pela constituição eu/Outro. Na adolescênciaocorre a reconstituição da fase do espelho diante da necessidade de reapropriaçãoda imagem corporal que a puberdade fez vacilar. O brincar toma aí umaimportância fundamental. Veja-se, a exemplo disso, o quanto a prática de esporteslúdicos é bem-vinda para o adolescente, como uma forma de operar a contençãodesse corpo que transborda.

Conforme vimos acima com o fort/da, outra função do jogo na infância, éa de auxiliar a operar a simbolização da presença/ausência da mãe; naadolescência, esse jogo se reconstitui com o objetivo de operar a separaçãofamiliar/social. As viagens “experimentais” dos adolescentes, desacompanhadosda família, frequentemente para fora do país, sob a forma de intercâmbiosestudantis, cumprem a função de exercitá-los nessa passagem do estranho(estrangeiro) ao familiar.

Ainda outra função do brincar é auxiliar no acesso ao corpo do Outro,através dos jogos sexuais, para daí extrair material para a constituição de suaprópria imago corporal. Se, na infância, essa operação dava-se a partir do“esburacamento” do corpo materno, na adolescência passa a se operar com o“manuseio” do corpo do outro, que inclui o reconhecimento da existência doOutro sexo e a correlativa iniciação na atividade sexual.

Renunciar ao prazer do jogo e do brinquedo não é tarefa fácil. Na realidade,diz Freud ([1908] 1981), não conseguimos renunciar a nada, o que fazemos defato é trocar, substituir umas coisas por outras. Os pais frequentemente precisamauxiliar os filhos a se desvencilharem dos objetos infantis, utilizando-se paraisso de diversas “manobras”.

Nesse sentido, pareceria que um “direcionamento” sublimatório, por partedas autoridades parentais, funcionaria melhor do que a recriminação superegoica.Queremos com isso salientar a diferença entre o superego repressivo parental eaquilo que pode ser transmitido como um “saber gozar pulsional”,5 que oadolescente percebe como sendo acessível a ele, além de apreciado erecomendado pela autoridade parental. Portanto, “dar exemplo” ao adolescente,através de um saber-fazer com a realidade, funcionaria melhor, em termoseducativos, do que a repressão superegoica.

5 Expressão utilizada por Penot (2005).

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Na continuidade entre as gerações opera-se um jogo entre repetição ediferença. Os jovens inscrevem, com mais ou menos sofrimento, alguma diferençano mundo dos mais velhos, ao mesmo tempo em que fazem outras tantasrepetições. Faz efeito aí a maneira pela qual o outro parental terá sabido se“desfazer”, ceder de seus objetos, como também se prestar à operação desimbolização de seu rebento. Nesse caso, o investimento pulsional parentalsobre seu objeto (filho) precisa ter suficiente qualidade sublimatória, para quenão se produza uma modalidade de recusa parental.

Quais as soluções pulsionais o sujeito será capaz de colocar em operaçãodiante do drama existencial que a adolescência implica? Certamente entraráem jogo a capacidade dos jovens de se entregarem a atividades sublimatórias àsua disposição, e a tarefa dos adultos será de abrir e incentivar o acesso asatisfações pulsionais, em lugar de pura descarga excitatória, quase aditiva. Apossibilidade do adolescente de se enganchar num projeto, seja ele profissional,amoroso ou intelectual, será diferente se nisso estiver incluído o reconhecimentopelo adulto parental, e não somente pelo social. De qualquer modo, nunca édemasiado lembrar que, para o pulsional, não haverá satisfação integral.

A possibilidade de orientação e aquisição de consistência, a partir dassignificações e dos referenciais oferecidos pelo Outro familiar, é a “rede deproteção” de que o adolescente necessita. O jovem, por estar exatamenteatravessando o processo de constituição fantasmática, frequentemente encontradificuldade dupla na consecução desse projeto: naquilo que ele necessitasistematicamente apoiar-se para fortalecer essa construção, sistematicamenteinsiste em não se oferecer à simbolização, por certa recusa de significação e devalor, por parte de seus referentes.

Em contraste com a inibição da pulsão, poderiam se abrir novas margensde “negociação”, permitindo ao jovem maior liberdade e novos destinos, quepermitirão também um ganho subjetivo. Nesse sentido, é necessário o cuidadode não incentivar as inibições, nem sufocar os “desvios” pulsionais, mas anteslançar interrogações e buscar arejar com análises desapaixonadas.

REFERÊNCIASCABISTANI, Roséli. A economia da angústia na adolescência. Revista da AssociaçãoPsicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 36, p. 85-92, jan./jun. 2009.FREUD, Sigmund. Tres ensayos para una teoria sexual [1905]. In: ______. Obrascompletas. 4. ed. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. v. 2.______. El poeta y los suenõs diurnos. [1908] In: ______.______. v. 2.______. Los instintos y sus destinos. [1915] In: ______.______. v. 2.______. La represion. [1915] In: ______.______. v. 2.______. Mas allá del principio del placer. [1920] In: ______.______. v. 3.

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Do brinquedo ao trabalho...

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LACAN, Jacques. Os complexos familiares na formação do indivíduo [1938].In:______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 29-90.______. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise [1959-1960]. Rio de Janeiro: J.Zahar Ed., 1988.PENOT, Bernard. A paixão do sujeito freudiano. Rio de Janeiro: Companhia de Freud,2005.RASSIAL, Jean-Jacques. A passagem adolescente. Porto Alegre: Artes e Ofícios,1997.RODULFO, Ricardo. O brincar e o significante. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

Recebido em 17/10/2011Aceito em 06/01/2012

Revisado por Deborah Nagel Pinho

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