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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Marcos Eduardo Melo dos Santos “Que a servidão pese sobre os homens!” Tradução e interpretação de Êxodo 5,1-6,1 MESTRADO EM TEOLOGIA SÃO PAULO 2015

“Que a servidão pese sobre os homens!” Eduardo... · AGRADECIMENTOS A Deus pelo dom da vida e pela graça inefável de amá-lo e conhecê-lo. À Maria, mãe de Deus e nossa

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  • PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    Marcos Eduardo Melo dos Santos

    Que a servido pese sobre os homens!

    Traduo e interpretao de xodo 5,1-6,1

    MESTRADO EM TEOLOGIA

    SO PAULO

    2015

  • Marcos Eduardo Melo dos Santos

    Que a servido pese sobre os homens!

    Traduo e interpretao de xodo 5,1-6,1

    MESTRADO EM TEOLOGIA

    Dissertao apresentada Banca

    Examminadora da Pontifcia Universidade

    Catlica de So Paulo, como exigncia

    parcial, para a obteno do ttulo de

    MESTRE em Teologia Bblica, sob a

    orientao do Prof. Dr. Matthias Grenzer.

    SO PAULO

    2015

  • Banca examinadora

    ________________________________

    ________________________________

    ________________________________

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus pelo dom da vida e pela graa inefvel de am-lo e conhec-lo.

    Maria, me de Deus e nossa.

    Aos meus pais, Emanuel e Luiza, e aos meus irmos, Emanuel, Luiz e Hugo.

    Arquidiocese de So Paulo, na pessoa do Arcebispo Dom Odilo Pedro

    Scherer, e Adveniat, os quais proporcionaram a bolsa de estudos a fim de que essa

    pesquisa fosse realizada.

    Ao meu orientador, Prof. Dr. Matthias Grenzer, que aceitou com simplicidade,

    competncia e dedicao acompanhar-me nessa pesquisa. Meu respeito e admirao a

    quem faz da Escritura sua alegria de viver.

    Ao corpo docente da Faculdade de Teologia da Pontifcia Universidade Catlica

    de So Paulo, que com muito esmero, excelncia e paternal solicitude me

    acompanharam nessa etapa de formao teolgica, especialmente ao Pe. Boris Agustn

    Nef Ulloa, Coordenador da Ps-Graduao, ao Pe. Gilvan Leite, ao Pe. Jos Bizon, ao

    Pe. Pedro Iwashita, ao Pe. Valeriano dos Santos Costa, Profa. Maria Freire da Silva e

    ao Prof. Alex Villas Boas.

    Ao Cn. Jos Adriano, meu inesquecvel formador, que muito me incentivou no

    empreendimento desta pesquisa.

    Ao Cn. Celso Pedro, exegeta e amigo, cujos conselhos sempre me

    acompanharo ao longo de minha vida.

    s colegas do grupo de pesquisa Traduo e Interpretao do Antigo

    Testamento (TIAT), Profa. Fabiana de Sousa e Profa. Susana Aparecida da Silva.

    Rita Myagui, secretria zelosa, que por sua dedicao e competncia no se

    pode deixar de demonstrar gratido.

    Dona Sarah, amiga e mestra incansvel, que me auxiliou na redao e na

    correo gramatical e ortogrfica.

    Aos filhos de Israel, cujo sofrimento ao longo da Histria comoveu o corao do

    Deus que os libertou.

    Ao povo pobre e oprimido de todos os tempos cujo clamor, como outro Antigo

    Israel, sobe aos cus e clama por libertao.

  • Na Sagrada Escritura [...] manifesta-se a admirvel

    condescendncia da eterna sabedoria, para

    conhecermos a inefvel benignidade de Deus [...].

    As palavras de Deus, com efeito, expressas por

    lnguas humanas, tornaram-se intimamente

    semelhantes linguagem humana, como outrora o

    Verbo do eterno Pai se assemelhou aos homens

    tomando a carne da fraqueza humana (CONCLIO

    VATICANO II. Constituio Dogmtica Dei Verbum

    sobre a Revelao divina. n. 13).

  • RESUMO

    A percope Ex 5,1,-6,1 contempla o primeiro encontro de Moiss e Aaro com o

    fara egpcio. Os irmos profetas so configurados como representantes de Deus e do

    povo hebreu e negociam com o tirano a liberdade. A narrativa insere-se na parte do livro

    do xodo que relata a situao opressiva pela qual passava o povo de Israel no Egito. A

    presente dissertao visa estabelecer uma anlise exegtica do texto com base nos

    elementos bibliogrficos que favoream a compreenso das particularidades

    lingusticas, estilsticas e histricas presentes na narrativa com o objetivo de obter

    concluses do ponto de vista teolgico e tico. A pesquisa apresenta-se como uma das

    produes acadmicas do grupo de pesquisa Traduo e Interpretao do Antigo

    Testamento (TIAT).

    Palavras-chave: Bblia, Moiss, fara, servido.

  • ABSTRACT

    The pericope Ex 5,1-6,1 contemplates the first meeting of Moses and Aaron with the

    Egyptian pharaoh. The brothers are configured as representants of God and the Jewish

    people to negotiate the freedom with the tyrant. The narrative is part of the book of

    Exodus which reports that the oppressive situation in which passed the people of Israel

    in Egypt. This work aims to establish an exegetical analysis of the text with basis of

    bibliographic elements that promote the understanding of linguistics, stylistic and

    historical particulars present in the narrative in order to obtain conclusions of the

    theological and ethical point of view. The research presents itself as one of the academic

    productions of the research group Traduo e Interpretao do Antigo Testamento

    (TIAT).

    Keywords: Bible, Moses, Pharaoh, Serfdom.

  • LISTA DE SIGLAS E ABREVIAES

    Ab Abdias

    Am Ams

    BHS Biblia Hebraica Stuttgartensia, ed. K. Elliger W. Rudolph,

    Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1997.

    1Cr Primeiro livro das Crnicas

    2Cr Segundo livro das Crnicas

    Ct Cntico dos Cnticos

    Dn Daniel

    Dt Deuteronmio ed. Editor(es)

    Esd Esdras

    Ex xodo

    Ez Ezequiel

    Gn Gnesis

    Hab Habacuc

    Is Isaas

    Jl Joel

    Jn Jonas

    J Livro de J

    Jr Jeremias

    Js Josu

    Jz Juzes

    Lm Lamentaes

    Lv Levtico

    LXX Septuaginta

    Ml Malaquias

    Mq Miquias

    Na Naum

    Ne Neemias

    Nm Nmeros

    Os Osias

    P Tradio sacerdotal

  • p. pgina(s)

    Pr Provrbio

    1Rs Primeiro livro dos Reis

    2Rs Segundo livro dos Reis

    Rt Rute

    Sf Sofonias

    Sl Salmo

    1Sm Primeiro livro de Samuel

    2Sm Segundo livro de Samuel

    v. / vv. Versculo / versculos

    vol. volume

    Zc Zacarias

  • SUMRIO

    INTRODUO ................................................................................................................ 1

    CAPTULO 1 ENCONTRO DE LIDERANAS (vv. 1-5) .......................................... 4

    1.1 Texto hebraico e traduo portuguesa ........................................................................ 4

    1.2 Crtica textual ............................................................................................................. 5

    1.3 Estrutura literria ........................................................................................................ 8

    1.3.1 Estrutura dialogal da narrativa ................................................................................. 8

    1.3.2 Delimitaes dos episdios ..................................................................................... 9

    1.3.3 Esquema concntrico ............................................................................................. 11

    1.3.4 Repeties e paralelismos em Ex 5,1-6,1 .............................................................. 12

    1.3.5 Repeties em Ex 5,1-5 ......................................................................................... 13

    1.3.6 Paralelismos sinonmicos e antitticos em Ex 5,1-5 ............................................. 15

    1.3.7 Anlise da caracterizao das personagens ........................................................... 16

    1.4 Observaes histrico-teolgicas ............................................................................. 18

    1.4.1 Moiss, representante de Deus e do povo ............................................................. 18

    1.4.2. Aaro .................................................................................................................... 20

    1.4.3 Fara, o vilo ......................................................................................................... 21

    1.4.4 Deus, a discreta personagem principal .................................................................. 23

    1.5. Consideraes conclusivas do captulo ................................................................... 27

    CAPTULO 2 O DECRETO DO FARA (vv. 6-9) ................................................... 28

    2.1 Texto hebraico e traduo portuguesa ...................................................................... 28

    2.2 Crtica textual ........................................................................................................... 29

    2.3 Estrutura literria ...................................................................................................... 32

    2.3.1 Delimitao temporal do episdio ......................................................................... 32

    2.3.2 Forma do discurso do fara ................................................................................... 32

    2.4 Observaes histrico-teolgicas ............................................................................. 35

  • 2.4.1 Naquele dia ............................................................................................................ 35

    2.4.2 Os capatazes no meio do povo e os seus inspetores .............................................. 36

    2.4.3 Os tijolos ................................................................................................................ 40

    2.4.4 A palha ................................................................................................................... 43

    2.4.5 O peso da servido ................................................................................................. 44

    2.4.6 As palavras falsas .................................................................................................. 46

    2.5 Consideraes conclusivas do captulo .................................................................... 49

    CAPTULO 3 O POVO SE DISPERSA (vv. 10-14) .................................................. 50

    3.1 Texto hebraico e traduo portuguesa ...................................................................... 50

    3.2 Crtica textual ........................................................................................................... 51

    3.3 Estrutura literria ...................................................................................................... 53

    3.4 Observaes histrico-teolgicas ............................................................................. 55

    3.4.1 A disperso ............................................................................................................ 55

    3.4.2 O povo ................................................................................................................... 56

    3.4.3 A terra do Egito ..................................................................................................... 58

    3.4.4 A quantia diria em seu dia ................................................................................... 60

    3.4.5 Como ontem e anteontem ...................................................................................... 62

    3.5 Consideraes conclusivas do captulo .................................................................... 64

    CAPTULO 4 OS INSPETORES APELAM AO FARA (vv. 15-19) ...................... 64

    4.1 Texto hebraico, segmentao e traduo portuguesa ............................................... 65

    4.2 Crtica textual ........................................................................................................... 65

    4.3. Estrutura literria ..................................................................................................... 68

    4.3.1 Delimitao do episdio ........................................................................................ 68

    4.3.2 Segmentao e repeties de palavras ................................................................... 69

    4.3.3 O contraste entre os sufixos possessivos meu povo e teus servos ......................... 69

    4.4 Observaes histrico-teolgicas ............................................................................. 72

    4.4.1 O grito do povo ...................................................................................................... 72

  • 4.4.2 O contraste entre os teus servos e meu povo ......................................................... 73

    4.4.3. Teus servos so feridos ......................................................................................... 75

    4.4.4 O pecado do povo .................................................................................................. 76

    4.4.5 Preguiosos! .......................................................................................................... 77

    4.4.6 O verbo andar ........................................................................................................ 78

    4.4.7 Sacrificar ao SENHOR ............................................................................................. 81

    4.5 Consideraes conclusivas do captulo .................................................................... 86

    CAPTULO 5 O MALOGRO DE MOISS E AARO (vv. 20-21) .......................... 88

    5.1 Texto hebraico, segmentao e traduo portuguesa ............................................... 88

    5.2. Crtica textual .......................................................................................................... 88

    5.3. Estrutura literria ..................................................................................................... 89

    5.3.1 Delimitao do episdio ........................................................................................ 89

    5.3.2 Repeties e paralelismos ...................................................................................... 90

    5.3.3 Estilo ...................................................................................................................... 91

    5.3.4 Questo diacrnica ................................................................................................ 92

    5.4. Observaes histrico-teolgicas ............................................................................ 92

    5.4.1 Avanaram sobre Moiss e Aaro ......................................................................... 92

    5.4.2 O verbo ver ............................................................................................................ 95

    5.4.3 O verbo julgar ....................................................................................................... 97

    5.4.4 A espada ................................................................................................................ 99

    5.6 Consideraes conclusivas do captulo .................................................................. 102

    CAPTULO 6 A ORAO DE MOISS E A RESPOSTA DO SENHOR (vv. 22-23;

    6,1) ................................................................................................................................ 103

    6.1 Texto hebraico, segmentao e traduo portuguesa ............................................. 103

    6.2 Crtica textual ......................................................................................................... 103

    6.3 Estrutura literria ................................................................................................. 105

    6.3.1 Delimitao do episdio ...................................................................................... 105

  • 6.3.2 Repeties e paralelismos .................................................................................... 106

    6.3.3 Consideraes estilstico-literrias ...................................................................... 106

    6.4 Observaes histrico-teolgicas ........................................................................... 107

    6.4.1 O povo maltratado ............................................................................................ 107

    6.4.2 A relao de enviar meu povo e enviar o profeta................................................ 110

    6.5.3 Falar em teu nome ............................................................................................... 112

    6.5.4 Por uma mo forte ............................................................................................... 113

    6.6 Consideraes conclusivas do captulo .................................................................. 114

    ATUALIZAES TEOLGICO-PASTORAIS ......................................................... 115

    Aspectos literrios ........................................................................................................ 115

    Aspectos histricos ....................................................................................................... 117

    Aspectos teolgicos ...................................................................................................... 117

    Aspectos tico-pastorais ............................................................................................... 118

    BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 120

    Fontes primrias ........................................................................................................... 120

    Concordncias, manuais e dicionrios ......................................................................... 120

    Bibliografia auxiliar ...................................................................................................... 121

    ANEXO ....................................................................................................................... 126

  • 1

    INTRODUO

    O trecho de Ex 5,1-6,1 contempla o primeiro encontro de Moiss e Aaro com o

    fara egpcio. Os irmos profetas so configurados como representantes de Deus e do

    povo hebreu e negociam com o tirano a liberdade, mas o fara responde com medidas

    que agravam o peso do servio sobre o povo. A narrativa insere-se na parte do livro do

    xodo que relata a situao opressiva pela qual passava o povo de Israel no Egito, a

    qual precede as trs grandes partes da biografia dramtica de Israel1: a sada do Egito

    (cf. Ex 13,17-15,22); a travessia no deserto (cf. Ex 15,23-Nm 21,20); e a entrada na

    terra prometida (cf. Nm 21,21-Js 12).2 A narrativa se alinha s diversas tentativas de

    resistncia por parte dos hebreus como o caso da narrativa das parteiras hebrias (cf. Ex

    1,15-2,10) e o relato do confronto entre Moiss e o egpcio (cf. Ex 2,11-15c).3

    objetivo do presente estudo, entitulado como Que a servido pese sobre os

    homens! Traduo e interpretao de xodo 5,1-6,1, afrontar o problema do modo

    tenaz com o qual Deus age para libertar seu povo da opresso sofrida nas mos de um

    tirano. A fora com a qual Deus luta contra o opressor a fim de proteger seu povo

    demonstra a potncia do seu amor para com os oprimidos. O presente estudo visa

    compreender e interpretar Ex 5,1-6,1 academicamente, a fim de perceber melhor o

    contedo da revelao divina.4 Juntamente com esse processo, revelou sua proposta

    tica tambm chamada de moral revelada.5 Derivam tambm do texto princpios

    reguladores da vida poltica encarregados de governar a vida religiosa, moral, jurdica

    e poltica da nao judaica.6

    Do ponto de vista metodolgico, a dissertao objetiva apresentar uma exegese

    do texto, que visa compreend-lo em si mesmo, ou seja, as ideias, as intenes, a

    forma literria do texto especfico e suas relaes formais com outros textos.7 Como

    procedimento inicial, ser apresentada a crtica textual dos manuscritos concernentes ao

    1 ZENGER, Erich. Introduo ao Antigo Testamento. Trad. Werner Fuchs. So Paulo: Edies Loyola.

    2003. p. 48. 2 Cf. FERNANDES, Leonardo Agostini; GRENZER, Matthias; xodo. 15,22-18,27. Comentrio Bblico

    Paulinas. 1 ed. So Paulo: Paulinas, 2011. 3 Cf. GRENZER, Matthias. O projeto do xodo. 2 ed. Ampliada. So Paulo: Paulinas, 2007.

    4 PONTIFCIA COMISSO BBLICA. A interpretao da Bblia na Igreja. So Paulo: Paulinas, 2000.

    5 PONTIFCIA COMISSO BBLICA. Bblia e Moral. Razes bblicas do agir cristo. So Paulo:

    Paulinas, 2000 (n. 20). 6 PONTIFCIA COMISSO BBLICA. O povo judeu e as suas Sagradas Escrituras na Bblia Crist.

    So Paulo: Paulinas, 2002. 7 SILVA, Cssio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bblica. 3 ed. So Paulo: Paulinas, 2009. p. 29.

  • 2

    texto a fim de estabelec-lo em sua forma provavelmente mais prxima do original.8

    Aps a traduo preliminar, ser feita uma delimitao do incio e do fim do texto de

    forma que se preserve a unidade da narrativa segundo alguns critrios positivos, tais

    como: determinao temporal, espacial, de aes, temas e personagens no-coerentes

    com os precedentes; e critrios negativos, ao averiguar se o relato no alcanou o

    repouso natural do enredo ou da tenso retrica.9 Como o texto consiste em uma

    narrativa, ser usada uma anlise lingustico-estilstica segundo o mtodo dito

    narratologia, o qual sublinha no texto os pontos interrogativos, as lacunas, as elipses

    que interrompem o fio da narrativa [...] como sinais dirigidos ao leitor,10

    a fim de

    extrair a riqueza teolgica implcita do texto. O presente estudo contm uma abordagem

    no exclusivamente sincrnica dos episdios contidos na narrativa,11

    pois a percope

    apresenta somente uma questo de diacronia: a meno ao nome de Aaro como

    possvel acrscimo da tradio sacerdotal.12

    A anlise do texto no poder abstrair do

    contexto histrico no qual foi elaborado. Para isso, sero consideradas as pesquisas dos

    egiptlogos que podem contribuir para o entendimento da vida cotidiana das

    personagens descritas na narrativa, especialmente do fara, dos escravos e dos

    funcionrios da administrao egpcia.

    A presente dissertao seguir o estilo comentrio, ao considerar cada uma das

    unidades literrias da percope segundo a sequncia do texto. Como uma leitura

    preliminar permite identificar seis episdios ou unidades literrias, cada episdio da

    narrativa contida em Ex 5,1-6,1 ser abordado em um dos seis captulos da presente

    dissertao. Cada captulo apresentar primeiramente o texto hebraico correspondente

    ao texto massortico estabelecido como verso provavelmente mais original na edio

    crtica do Antigo Testamento Biblia Hebraica Stuttgartensia (BHS, daqui em diante). A

    segmentao dos versculos se pautar nos diversos sinais de pausa para a leitura vocal

    apresentados pelos massoretas e transcritos na BHS. Em seguida, ser proposta uma

    traduo portuguesa. Essa traduo, assim como o estudo filolgico decorrente do texto

    8 EGGER, Wilhelm. Metodologia do Novo Testamento. Introduo aos mtodos lingsticos e histrico-

    crticos. Trad. Johan Konings e Ins Borges. So Paulo: Loyola, 2005. p. 43. 9 SIMIAN-YOFRE, Horcio. Diacronia: os mtodos histrico-crticos. In: Metodologia do Antigo

    Testamento. Trad. Rezende da Costa. So Paulo: Loyola, 2000. p. 80. 10

    SKA, Jean Louis. Sincronia: a anlise narrativa. In: Metodologia do Antigo Testamento. Trad. Rezende

    da Costa. So Paulo: Loyola, 2000. p. 123. 11

    Cf. ALTER, Robert. A arte da narrativa bblica. Trad. Vera Pereira. So Paulo: Companhia das Letras,

    2008. p. 19. 12

    Cf. UTZSCHNEIDER, Helmut; OSWALD, Wolfgang. Exodus 1-15. Internationaler Exgetischer

    Kommentar zum Alten Testament (IEKAT). Walter DIETRICH (Org.). BHS: W. Kohlhammer Druckerei

    GmbH. 2013.

  • 3

    hebraico, ser feito com o auxlio dos estudos sobre a gramtica e a sintaxe hebraica de

    Waltke e OConnor13

    , Joon e Muraoka14

    , Arnold e Choi.15

    Destacamos, desde j, que o

    tetragrama sagrado YHWH ser aqui traduzido para o portugus como SENHOR e

    grafado em VERSALETE. Cada captulo, no subttulo intitulado crtica textual, conter

    uma apresentao das variantes textuais apontadas pelo aparato crtico da BHS. Para a

    consulta dos textos gregos, latinos e siracos, as variantes textuais sero apresentadas

    atravs de tabelas a fim de que o ouvinte-leitor possa confrontar e comparar as

    tradues correspondentes s variantes encontradas nos manuscritos antigos. Em

    seguida, ser apresentada uma breve anlise da estrutura literria na qual se salientar a

    beleza literria da forma final do texto, assim como outras caractersticas, tais como as

    delimitaes episdicas, as estruturas concntricas, se houver, e ainda as ocorrncias de

    quiasmos e paralelismos, especialmente as repeties de razes e/ou vocbulos. Em

    seguida, no subttulo observaes histrico-teolgicas, sero apresentados os frutos das

    pesquisas de ndole histrica e teolgica com o objetivo de propor as concluses do

    captulo, na qual se salientam os aspectos teolgicos e ticos pertinentes ao texto. Essas

    reflexes sero fundamentadas nas concluses decorrentes da anlise literria e das

    informaes histrico-arqueolgica. Como ainda hoje quase inexistem artigos

    acadmicos especficos sobre Ex 5,1-6,1, sero considerados os comentrios de alguns

    pesquisadores que se debruaram especificamente sobre o texto, a fim de efetivarem um

    estudo atual e pormenorizado da percope.

    13 Cf. WALTKE, Bruce K., OCONNOR, M. Introduo Sintaxe do Hebraico Bblico. Traduo

    Fabiano Ferreira, Adelemir Garcia Esteves e Roberto Alves. So Paulo: Cultura Crist, 2006. 14

    Cf. JOON, Paul; MURAOKA, Takamitsu. A Grammar of Biblical Hebrew. Subsidia biblica. 14/II.

    Roma: Pontifcio Istituto Biblico, 1991. 15

    Cf. ARNOLD, Bill T; CHOI, John. A Guide to Biblical Hebrew Syntax. 8 ed. Cambridge: Cambridge

    University Press, 2008.

  • 4

    CAPTULO 1 ENCONTRO DE LIDERANAS (vv. 1-5)

    O primeiro episdio compreendido os vv. 1-5 narra que Moiss e Aaro

    vieram (v. 1a) apresentar o pedido dirigido ao fara a fim de que o povo pudesse fazer

    uma peregrinao religiosa no deserto (vv. 1e e 3c). Os irmos profetas transmitem a

    ordem divina sobre a qual pesa uma punio caso no for obedecida (v. 3de). O fara

    responde ao pedido de forma negativa e incisiva (vv. 2.4-5), mesmo aps a insistncia

    de Moiss e Aaro (v. 3). O Rei do Egito alega que os dois irmos esto dispersando o

    povo dos trabalhos (v. 4c). O episdio faz com que o ouvinte-leitor se faa algumas

    perguntas acerca da teologia bblica do profetismo, da relao revelao-histria, do

    confronto entre os deveres religiosos e polticos e da prpria dimenso poltica da

    religio do Antigo Israel.16

    1.1 Texto hebraico e traduo portuguesa

    Depois, Moiss e Aaro vieram v. 1a

    e disseram ao fara: v. 1b

    Assim disse o SENHOR, Deus de Israel: v. 1c

    Envia meu povo, v. 1d

    para que, no deserto, celebrem a mim! v. 1e

    O fara disse: v. 2a

    Quem o SENHOR, para que escute sua voz, v. 2b

    a fim de enviar Israel? v. 2c

    No conheo o SENHOR v. 2d

    e tambm no enviarei Israel! v. 2e

    Contudo, disseram: v. 3a

    16 Embora alguns autores distingam povo hebreu e Israel, atribuindo primeira denominao parte

    dos relatos anteriores ao xodo e segunda expresso, aps o xodo. Ex 5,1-6,1 trata do povo de Israel

    com as seguintes denominaes: povo (vv. 1d, 4c, 6b, 10a, 10b, 12a, 16d, 22c, 23c e 23d), Israel (vv. 1c,

    2c e 2d), hebreus (v. 3b) e filhos de Israel (vv. 14a, 15a e 19b). Nesta dissertao, Israel vem a significar o

    povo que, segundo as narrativas bblicas, descende do patriarca Israel e no ao atual Estado de Israel,

    embora este assim se autodenomine. Grenzer oberva que o povo de Israel era conhecido pelos

    estrangeiros como hebreus (v. 3) embora se nomeassem como filhos de Israel (vv. 14a, 15a e 19b), ou

    simplesmente, Israel (vv. 1c, 2c e 2e). Trataremos, portanto, como sinnimos as expresses hebreus,

    israelistas, filhos de Israel, Israel e Antigo Israel, pois trata-se do povo herdeiro de uma tradio religiosa

    comum que perdura at os nossos dias e que se afirma como descendente dos antigos patriarcas hebreus

    (cf. GRENZER, Matthias. O fracasso da poltica de opresso violenta (xodo 1,8-14); cf. GRENZER,

    Matthias. Revista Horizonte. Belo Horizonte, v. 12, n. 33, jan./mar. 2014. p.140-163. Do cl de Jac ao

    povo de Israel (Ex 1,1-7). Revista de Cultura Teolgica. v. 81. 2013. p. 92.

  • 5

    O Deus dos hebreus se encontrou conosco. v. 3b

    Queremos, por favor, andar no deserto por um caminho

    de trs dias e queremos sacrificar ao SENHOR, nosso

    Deus,

    v. 3c

    a fim de que no avance sobre ns v. 3d

    com a peste ou com uma espada. v. 3e

    Ento o rei do Egito lhes disse: v. 4a

    Por que, Moiss e Aaro, v. 4b

    dispersareis o povo de seus trabalhos? Segui com vossas

    cargas.

    v. 4c

    O fara ainda disse: v. 5a

    Eis que so muitos agora! O povo da terra! v. 5b

    E os fazeis descansar de suas cargas! v. 5c

    1.2 Crtica textual

    Ao longo do sculo XX, estudiosos da BHS trabalharam em uma das mais

    conceituadas edies crticas do texto bblico, a qual ficou conhecida como Biblia

    Hebraica Stuttgartensia (BHS). O objetivo dessa edio crtica foi identificar, atravs de

    um mtodo pr-determinado, a verso mais prxima do original do texto bblico ao

    reconstitu-lo atravs da anlise de suas variantes presentes nos manuscritos antigos.17

    Conforme o aparato crtico da BHS h cinco variantes textuais relevantes para

    Ex 5,1-5. A primeira, no v. 2b, refere-se supresso na edio crtica de Gottigen18

    da

    palavra grega correspondente ao tetragrama () e ao acrscimo de palavras junto ao

    tetragrama em outros cdices gregos: o cdice Alexandrino acrescenta a palavra ,

    enquanto que no Cdice Ambrosiano e em alguns manunscritos l-se .

    17 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bblia Hebraica. 3 ed. So Paulo: Vida Nova, 2005. P.

    15. 18

    Cf. VERSIO LXX INTERPRETATUM GRAECA. Secundum Septuaginta. Vetus Testamentum

    Graecum auctoritate Societatis Litterarum Gottingensis editum 1931; WONNEBERGER, Reinhard.

    Understanding BHS A Manual for the Users of Biblia Hebraica Stuttgartensia. 2 ed. Subsidia Biblica 8.

    Roma: Pontificium Institutum Biblicum, 1990.

  • 6

    Tab. 1.

    v. 2b

    Texto hebraico

    (BHS)

    Edio Crtica da

    Septuaginta

    (Gotinga)

    Cdice Ambrosiano

    e alguns cdices

    Cdice

    Alexandrino

    Quem o

    SENHOR? Quem ? Quem o SENHOR? Quem Deus?

    No v. 3b, segundo a verso siraca da Peshita19

    ocorre a alterao da palavra

    modificada pelo substantivo construto (Deus). Em vez de hebreus, l-se

    judeus:

    Tab. 2

    v. 3b

    Texto Hebraico (BHS) Transliterao do siraco para

    o alfabeto hebraico

    Texto da Peshita com o

    alfabeto Siraco20

    O Deus dos hebreus se

    encontrou conosco

    O Deus dos judeus se revelou para ns (Traduo

    Traduo J. Etheridge)21

    O nome Peshitta deriva do siraco ( ), literalmente traduzida como

    verso simples. Foi nomeada dessa forma por Moiss bar Kepha (813-903 d. C.), mas

    esta traduo direta do hebreu seria datada provavelmente do sculo II d. C.. O Antigo

    Testamento da Peshitta a mais antiga obra da literatura siraca at hoje conservada.22

    No v. 3d, em alguns cdices da Septuaginta, qualificado pelo aparato crtico da

    BHS como textus graecus originalis, omite-se o tetragrama (SENHOR).

    Tab. 3. Texto hebraico (BHS) Septuaginta

    19 Cf. CODEX AMBROSIANUS. Translatio syra pescitto Veteris Testamenti: ex codice Ambrosiano sec.

    fere VI, photolithographice edita, curante et adnotante. Milan: Edio Antonio Maria Ceriani, 1876. 20

    Cf. VERSIO SIRIACA SECUNDUM POLYGLOTTAM LONDINENSE. Vol. I.II.III. London: Edio

    Brian Walton, 1654. 21

    Cf. THE TARGUM OF ONKELOS ON THE BOOK OF SHEMOTH, OR EXODUS. Trad. J. W.

    Etheridge with Minor Updates by Aran Ya'aqub Younan-Levine. 22

    Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bblia Hebraica. 3 ed. So Paulo: Vida Nova, 2005.

  • 7

    v. 3c

    e queremos sacrificar ao SENHOR, nosso

    Deus, e sacrifiquemos ao nosso Deus,

    Apesar da sacralidade do nome de Deus de Israel, a supresso do tetragrama

    sagrado () na verso grega pode ter ocorrido por um lapso do copista ou alternativa

    deliberada dos tradutores gregos. Desse modo, em Ex 5,1-5, o tetragrama (), que

    traduzimos pela palavra SENHOR, ocorre quatro vezes (vv. 1c, 2b, 2d e 3c), enquanto na

    verso grega, ocorre duas vezes (vv. 1c e 2d) e outras trs vezes (vv. 1c, 3b

    e 3c).

    Tab. 4 - A traduo de e em Ex 5,1-6,1

    Septuaginta Septuaginta

    v. 1c v. 1c

    v. 2b

    Edio crtica de Gotinga Suprimido

    v. 3b Codex Alexandrino

    Codex Ambrosiano e alguns manuscritos

    v. 2d

    v. 3c

    A Septuaginta no distingue entre o tetragrama (vv. 1c, 2b, 2d e 3b) e (vv.

    1c e 3b), de modo que traduz , ora como (vv. 1c e 2d), ora como (v.

    3c), embora nesse trecho sempre traduza por (vv. 1c e 3b).

    Com consequncias mais acentuadas sobre o significado do texto, tem-se no v.

    4c, uma variante para o verbo no hiphil imperfeito (dispersareis), cuja raiz

    pode significar no hiphil enviar, descabelar ou desprender, pois compartilha o

    significado com o substantivo correspondente ao portugus cabeleira. Lisowsky em sua

    Konkordanz sugere a traduo como desordenar ou agitar.23

    Essa forma verbal no

    hiphil ocorre com o mesmo significado uma nica vez na BHS: O SENHOR humilhava

    Jud por causa de Acaz, rei de Israel, que tinha soltado os freios em Jud e cometido

    graves delitos contra o SENHOR (2Cr 28,19). Entretanto, o texto do Pentateuco

    Samaritano24

    apresenta a palavra , cuja raiz verbal no hiphil significa separar,

    23 Cf. LISOWSKY, Gerhard. Konkordanz zum Hebrishcen Alten Testament. 3 ed. Stuttgart: Deutsche

    Bibelgesellschaft, 1993. Voz . p. 1187. 24

    Cf. DER HEBRISCHE PENTATEUCH DER SAMARITANER. Edio August von Gall. Berlin:

    Tpelmann, 1918.

  • 8

    dividir ou dispersar, tal como em outras ocorrncias na literatura bblica (cf. Gn 30,40;

    Dt 32,8; 2Rs 2,11; Pr 16,28; 17,9; 18,18; Rt 1,17).

    Tab. 5

    v. 4c

    Texto hebraico (BHS) Pentateuco Samaritano

    dispersareis o povo de seus trabalhos? separareis o povo de seus trabalhos?

    No v. 5b, em vez de (povo), ocorre a variao no texto do Pentateuco-

    Samaritano: (do povo, mais que o povo ou entre o povo).

    Tab. 6

    v. 5b

    Texto hebraico (BHS) Pentateuco Samaritano Septuaginta

    Eis que so muitos agora!

    O povo da terra!

    Eis que so muitos agora

    entre o povo da terra!

    Eis que o povo agora se

    torna numeroso!

    Em conformidade com o princpio fundamental da crtica textual, segundo o

    qual a verso mais difcil de ser lida seria a forma mais prxima do original, os editores

    da BHS apresentaram as duas variaes do texto samaritano no aparato, mas no as

    adotaram no texto principal, pois, parece ser uma verso aprimorada a fim de facilitar a

    leitura. O texto gramaticamente mais simples e, por vezes, de leitura mais difcil possui

    primazia na crtica textual.

    1.3 Estrutura literria

    1.3.1 Estrutura dialogal da narrativa

    Alter, no clssico A arte da narrativa bblica, destaca a funo retrica

    significativa do dilogo na potica e na prosa hebraica.25

    Em Ex 5,1-6,1, o princpio

    apontado pelo exegeta judeu nova-iorquino se confirma. Como as demais narrativas da

    BHS as falas ou discursos dos personagens ocupam um papel primordial. A voz do

    narrador se limita ao mnimo indispensvel para a compreenso da histria com a

    determinao das vozes das personagens e o mnimo de uma sequncia cronolgica. A

    raiz verbal (dizer), geralmente introdutria fala das personagens, a palavra mais

    25 Cf. ALTER, Robert. A arte da narrativa bblica. Trad. Vera Pereira. So Paulo: Companhia das Letras,

    2008. p. 102-103.

  • 9

    frequente da percope somando vinte e uma ocorrncias (vv. 1b, 1c, 2a, 3a, 4a, 5a, 6c,

    8f, 10b2x

    , 10c, 13a, 14c, 15b, 16b, 17a, 17b, 19a, 21a, 22b e 6,1a). Das 335 palavras

    contidas em Ex 5,1-6,1, somente 91 so do narrador (27,1% do texto), ou seja, 244

    palavras, isto 71% do texto, compem as falas das personagens. O fara a

    personagem mais eloquente com 41,8% da percope e 30,4% de participao relativa

    nos dilogos. A tabela 7 facilita a visualizao da contagem absoluta de palavras usadas

    por cada personagem e sua respectiva participao percentual no total da percope:

    Tab. 7 Palavras em Exodo 5,1-6,1 Palavras dos dilogos presentes em Ex 5,1-6,1

    Discursos Total

    absoluto

    Total

    relativo Personagens

    Total

    absoluto

    Relativo aos

    dilogos

    Relativo

    ao total

    Narrador 91 27,1% fara 102 41,8% 30,4%

    Personagens 244 66,8% Moiss 51 22,7% 15,2%

    Total 335 100%

    Deus 13 5,3% 3,8%

    Capatazes e inspetores 78 31,9% 23,2%

    Total 244 100% 66,8%

    A narrativa seria assim quase como um script de teatro, no qual o narrador

    apresenta o mnimo indispensvel para a compreenso dos discursos. Estes, por sua vez,

    contm dados suficientes para a delimitao de seis atos ou episdios no interior da

    narrativa contida entre os versculos 5,1-6,1.26

    1.3.2 Delimitaes dos episdios

    Os dilogos esto subdivididos em seis cenas distintas atravs de indicaes

    temporais ou sequenciais (vv. 1a e 6a), sada e entrada de personagens ativos nos

    dilogos (vv. 6a, 10a, 15a e 22a) ou, por fim, pelo uso de verbos de movimento (vv.

    10a, 15a, 20a e 22a).27

    Tab. 8 Delimitao dos episdios

    Episdios I II III IV V VI

    Percopes (5,1-5) (5,6-9) (5,10-14) (5,15-19) (5,20-21) (5,22-6,1)

    Personagens

    que falam

    Moiss

    Aaro fara

    capatazes

    inspetores

    inspetores

    dos filhos de

    inspetores

    dos filhos

    Moiss

    Deus

    26 Cf. HOUTMAN, Cornelis. Exodus. Historical Commentary on the Old Testament. Trad. Johan Rebel e

    Sierd Woudstra. Vol. 1.Kampen: Kok Publishing House, 1993. p. 459. 27

    Cf. BERGANT, Dianne; KARRIS, Robert J. (Org). Introduo, Pentateuco e Profetas anteriores.

    Comentrio Bblico. Trad. Barbara Theoto Lambert. So Paulo: Loyola. 1999. p. 97.

  • 10

    fara Israel

    fara

    de Israel

    (sujeito

    oculto)

    Personagens

    que apenas

    escutam

    - capatazes

    inspetores povo -

    Moiss

    Aaro -

    Personagens

    sobre as

    quais se fala

    Deus

    povo

    povo

    povo

    capatazes

    dos filhos de

    Israel

    povo

    Deus

    inspetores

    dos filhos de

    Israel

    fara

    povo (seus

    servos)

    fara

    povo

    Por

    expresso

    que indica

    tempo ou

    sequencia

    depois

    (v. 1a)

    naquele dia

    (v. 6a) - - - -

    Pelo uso de

    verbos de

    movimento

    - - saram

    (v. 10a)

    vieram

    (v. 15a)

    avanaram

    (v. 20a)

    se voltou

    (v. 22a)

    Assim a primeira cena (vv. 1-5) narra que Moiss e Aaro foram apresentar a

    ordem de Deus dirigida ao fara a fim de que o povo pudesse fazer uma peregrinao

    religiosa no deserto. A segunda cena (vv. 6-9) mostra o fara transmitindo uma medida

    opressiva aos chefes de corveia e aos inspetores do povo. Na terceira cena (vv. 10-14), o

    povo obrigado a procurar palha, enquanto os inspetores so espancados, porque o

    povo no produz a quantidade de tijolos pr-estabelecida. A quarta cena (vv. 15-19)

    mostra o corajoso protesto dos fiscais hebreus diante do fara. A quinta cena (vv. 20-21)

    concentra-se no dilogo entre os inspetores e os irmos profetas. Na sexta cena (vv. 22-

    6,1), Moiss apela ao SENHOR que responde com a promessa de libertao.28

    Ex 5,1 inicia-se com a locuo adverbial (v. 1a), traduzida como e depois

    ou em seguida,29

    a qual significa um pequeno intervalo de tempo,30

    e procura inserir a

    28 Cf. BERGANT, Dianne; KARRIS, Robert J. (Org). Introduo, Pentateuco e Profetas anteriores.

    Comentrio Bblico. Trad. Barbara Theoto Lambert. So Paulo: Loyola. 1999. p. 97. 29

    Cf. SARNA, Nahum M. Exodus Commentary. . The Jewish Publications Society Torah

    Commentary. Philadelphia/New York/ Jerusalem: The Jewish Publications Society, 1991. p. 27.

  • 11

    narrativa em uma determinada sequncia cronolgica da histria do xodo. O termo

    repetido, com a mesma construo, em cinco ocasies no livro do xodo. Contudo, esse

    advrbio caracteriza tanto uma nova unidade episdica quanto o contedo do captulo

    como uma narrativa.

    1.3.3 Esquema concntrico

    Os dilogos em Ex 5,1-6,1 seguem um esquema concntrico, o que denota mais

    um tpico recurso da potica hebraica nos seis episdios narrados. Comea com a fala

    de Deus atravs do anncio dos irmos profetas (vv. 1.3), seguida das primeiras repostas

    (vv. 2.4-5) e do monlogo do fara (vv. 6-9). Em seguida entram em cena os capatazes

    do povo (v. 6) e sua locuo (vv. 10-13) e os inspetores dos filhos de Israel (vv. 6, 10-

    13, 15-16, 19-21), se bem que sua locuo seja interrompida pela volta cena do fara

    com mais uma locuo (vv. 17-18). A percope se conclui com o dilogo entre Deus e

    Moiss (5,22-6,1).31

    Tab. 9 Estrutura concntrica de Ex 5,1-6,1

    A vv. 1-5

    Discursos diretos entre Deus e o fara com a mediao de Moiss e

    Aaro

    B vv. 6-9 Discurso direto do fara aos capatazes e inspetores do povo

    C vv. 10-14 Discurso direto do fara com a mediao dos inspetores para o povo.

    C vv. 15-19 Discursos diretos entre os inspetores do povo e o fara

    B vv. 20-21 Discurso direto dos inspetores do povo para Moiss e Aaro

    A vv. 22-6,1 Discursos diretos entre Deus e Moiss

    Nota-se um detalhe aparentemente paradoxal talvez inserido propositalmente

    pelos redatores hebreus. O centro da narrativa ocorre justamente com a expresso o

    povo se dispersou ( O povo o centro da narrativa, tanto na temtica quanto na .(

    ordem das palavras.

    Quanto ao primeiro episdio (vv. 1-5), o esquema narrativo compreende duas

    locues de Moiss e Aaro (vv. 1 e 3), sendo que, na segunda, ocorre em forma de

    sujeito oculto (v. 3a). O fara possui, porm, trs locues, sendo que na segunda (v.

    4a), o sujeito da frase denominado como (rei do Egito). As duas ltimas

    30 Cf. KAISER JR, Walter C. Comments on Exodus. The Expositors Bible Commentary with the New

    International version. Frank Gaebelein (Org.). Michigan: Zondervan, 1990. p. 336. 31

    Cf. FISCHER, Georg; MARKL, Dominik. Das Buch Exodus. BHS: Verlag Katolisches Bibelwerk,

    2009. p. 80-81.

  • 12

    locues do monarca egpcio no so respondidas pelos profetas ou por qualquer outro

    personagem.

    Tab. 10 Esquema das locues em Ex 5,1-5

    v. 1 Moiss e Aaro

    v. 2 fara

    v. 3 Sujeito oculto na terceira pessoa do plural (disseram)

    v. 4 Rei do Egito

    v. 5 fara

    1.3.4 Repeties e paralelismos em Ex 5,1-6,1

    Como anlise estilstica, Alonso Schkel destaca o papel das repeties ou

    outros elementos estilsticos, caractersticos da poesia e da prosa bblica, salientes em

    Ex 5,1-6,1.32

    As repeties dos substantivos tambm so significativas tanto pelo

    significado das palavras, quanto pelo nmero de ocorrncias.33

    Esses vocbulos formam

    paralelismos que denotam recursos poticos hebraicos usados na prosa, ou seja, o

    esquema numrico mencionado por Alonso Schkel (Vide Anexo 1).

    Embora a numerologia seja, por vezes, um argumento subjetivado em nossa

    cultura ocidental, nos textos bblicos sempre sugerem hipteses plausveis. Assim, pode

    ser significativo o fato de que os redatores finais repetiram o tetragrama sagrado por

    oito vezes (vv. 1c, 2b, 2d, 3c, 17c, 21b, 22a e 6,1a) e o termo Elohim quatro vezes (vv.

    1c, 3b, 3c e 8g), somando doze ocorrncias, sem contar, porm, a expresso (Meu

    SENHOR) em v. 22c. Por outro lado, evitar que o fara seja nomeado por doze vezes (vv.

    1b, 2a, 5a, 6a, 10c, 14c. 15b, 20c, 21e, 23a e 6,1c), atravs do uso do sinnimo rei do

    Egito (v. 4a), pode ser intencional por parte dos redatores finais do texto, que bem

    32 Cf. ALONSO SCHKEL, Luis. Comentrios in: Bblia do Peregrino. Livro do xodo. So Paulo:

    Paulus, 2002. p. 115. 33

    Cf. HOUTMAN, Cornelis. Exodus. Historical Commentary on the Old Testament. Trad. Johan Rebel e

    Sierd Woudstra. Vol. 1.Kampen: Kok Publishing House, 1993. p. 457.

  • 13

    conheciam o simbolismo da dzia e se mostravam seletivos do seu uso para pessoas ou

    coisas que representavam o bem ou a virtude. Destaca-se o uso da palavra recorrente do

    vocbulo povo (vv. 1d, 4c, 6b, 10a, 10b, 12a, 16d, 22c, 23c e 23d) e da expresso Israel

    (vv. 1c, 2c e 2e) ou filhos de Israel (vv. 14a, 15a e 19b), sinnimos de povo hebreu no

    contexto do captulo. Disso pode-se concluir a hiptese do cuidado intencional no

    nmero das repeties dos vocbulos na forma final de xodo 5. Nota-se ainda que o

    nmero quase idntico de citaes das palavras povo (vv. 1d, 4c, 6b, 10a, 10b, 12a, 16d,

    22c, 23c e 23d) e fara (vv. 1b, 2a, 5a, 6a, 10c, 14c. 15b, 20c, 21e, 23a e 6,1c) pode

    acentuar os papeis antagnicos de ambas personagens na narrativa: o fara oprime o

    povo; e o povo procura libertar-se do julgo do fara.

    Alm das expresses repetidas, o trecho apresenta expresses estereotipadas em

    paralelo com outras partes do xodo ou da Escritura com significados poticos,

    culturais e teolgicos bem determinados e que mereceriam estudos pormenorizados por

    parte do pesquisador. Expresses, como, ontem e anteontem, mo forte, meu povo, teus

    servos, despedir Israel, peste e espada, so repetidas duas ou at trs vezes na percope

    5,1-6,1. Outras, porm, embora ocorram somente uma vez, possuem significativos

    paralelos no corpo do livro do xodo (Vide tabela 12).

    Destaca-se a meno celebrao ou festa (hag) no deserto e a triplex repetio,

    como um bordo, da expresso Andemos, sacrifiquemos ao nosso Deus! (vv. 3c, 8g e

    17c). Ao que parece, a expresso, juntamente com Ex 3,18, constitui uma das primeiras

    menes necessidade de um sacrifcio ritual institudo pelo Deus Libertador no livro

    do xodo.

    1.3.5 Repeties em Ex 5,1-5

    Dentro do primeiro episdio destaca-se o verbo Piel no infinitivo construto

    (enviar, despedir, deixar partir ou enviar), cuja raiz repetida cinco vezes, em Ex 5,1-

    6,1. A expresso ocorre em Piel quarenta e quatro vezes no livro do xodo, sempre no

    sentido de enviar, libertar, despedir. Traduz-se em Ex 5,1 como deixar partir. A raiz

    verbal ocorrer em Qal ainda uma vez, mais precisamente na fala Moiss a Deus (cf. v.

    22). No futuro Piel, ocorrer no primeiro colquio entre Moiss e o fara (vv. 1d, 2c,

    2e) e na resposta de Deus a Moiss (v. 6,1). A expresso usada no primeiro e no

  • 14

    ltimo versculo da percope selecionada (cf. Ex 5,1-6,1). Essa expresso ser recorrente

    nas tradies do xodo com diversas menes, especialmente, no relato das pragas.34

    No v. 1d usa-se outra expresso de rico significado teolgico: meu povo.

    ocorre apenas uma vez na percope estudada. Mas a palavra povo ocorre dez vezes (vv.

    1d, 4c, 6b, 10a, 10b, 12a, 16d, 22c, 23c e 23d), algumas das quais sufixadas por

    pronomes possessivos: (meu povo) vv. 1d; e .teu povo) no vv. 16d e 23d)

    O v. 1e contm o verbo no Qal imperfeito na terceira pessoa do masculino plural

    .ocorre quatro vezes no livro do xodo (cf para que celebrem). A raiz verbal)

    5,1e; 12.142x

    ; 23,14). Na BHS ocorre 17 vezes.

    Deve-se ainda ressaltar que na locuo de Moiss em Ex 5,3, o profeta usa

    palavras idnticas quelas recomendadas por Deus em Ex 3,18.35

    Tab. 11 Comparao entre Ex 3,18 e Ex 5,3

    Ex 3,18 Ex 5,3

    O SENHOR, o Deus dos hebreus, se encontrou

    conosco. Deixa-nos, pois, ir por um caminho

    de trs dias, no deserto, para oferecer

    sacrifcios ao SENHOR, nosso Deus.

    O Deus dos hebreus se encontrou conosco.

    Queremos, por favor, andar no deserto por um

    caminho de trs dias e sacrificar ao SENHOR,

    nosso Deus, a fim de que ele no avance sobre

    ns com a peste ou com uma espada.

    Dentro dessa locuo, tem-se a expressso (sacrificar), cuja raiz est

    conjugada em Qal imperfeito na primeira pessoa do plural. Essa raiz verbal ocorre trs

    vezes em idntica conjugao na percope em estudo (vv. 3c, 8g e 17c). Essa raiz

    verbal, ocorre em Qal dezoito vezes no livro do xodo (cf. 3,18; 5,3.8.17; 8,4.21.222x

    .

    23.24.25; 13,15; 20,24; 22,19; 23,18; 24,5; 32,8; 34,15). Em Ex 3,18, o uso do verbo

    recomendado por Deus na fala de Moiss diante do fara como foi literalmente repetido

    em Ex 5,3.

    34 UTZSCHNEIDER, Helmut; OSWALD, Wolfgang. Exodus 1-15. Internationaler Exgetischer

    Kommentar zum Alten Testament (IEKAT). Walter DIETRICH (Org.). BHS: W. Kohlhammer Druckerei

    GmbH. 2013. p. 152. 35

    Cf. BARTINA, Sebastin. xodo. Traduccin y comentarios. In: La Sagrada Escritura. Antiguo

    Testamento. Pentateuco. Profesores de la Compaa de Jess. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos

    (267), 1967. p. 349.

  • 15

    Deve-se mencionar a raiz que ocorre em diversos paralelismos em Ex 5,1-6,1

    com significados diversos. Tem-se em v. 3e ,peste e uma espada), v. 9)

    ,palavras falsas) v. 11) ,diminuis coisa alguma) e v. 23) (falar

    em teu nome). Por fim, deve-se ressaltar o paralelismo semntico entre as razes verbais

    .descansar) que ocorrem respectivamente nos vv) sacrificar) e) ,(celebrar)

    1e, 3d e 5c. Elas denotam trs caractersticas importantes do culto na religio do Antigo

    Israel: a celebrao, o sacrifcio e o repouso sabatino.

    1.3.6 Paralelismos sinonmicos e antitticos em Ex 5,1-5

    Logo na primeira locuo de Moiss (v. 1c), usa-se a expresso estereotipada

    dos orculos ou discursos profticos: assim disse o SENHOR ( ). Forma tpica

    da literatura proftica, a expresso ocorre dez vezes no Pentateuco, todas no livro do

    xodo (cf. Ex 4,22; 5,1; 7,17.26; 8,16; 9,1.13; 10,3; 11,4; 32,27) sempre na boca de

    Moiss.36

    A expresso contrasta com (assim disse o fara) que ocorre na fala

    dos capatazes e inspetores no v. 10c e a expresso (disse o fara)

    constantemente repetida ao longo de xodo 5 (vv. 2a, 4a, 5a e 6a) o que pode ser

    considerado um paralelismo antittico. Alm da inteno de reforar a autoridade

    proftica de Moiss seja diante do fara, seja diante dos ouvintes-leitores hebreus, o

    recurso serve para acentuar o antagonismo entre os dois adversrios, o Deus dos hebreus

    e o deus dos egpcios personificado na pessoa do fara.37

    A expresso (conheo) que aparece no v. 2d, cuja raiz verbal seria

    (conhecer), ocorre 41 vezes no livro do xodo. Em Qal, ocorre 36 vezes, uma das quais

    na percope selecionada, e tem o ignificado de conhecer, entender ou perceber. No

    contexto de Ex 5,1-6,1, trata-se da repetio em forma de negativa da pergunta Quem

    o SENHOR? (2e). Ambas denotam a mesma ideia: a ignorncia para com o Deus hebreu.

    Ao deixar patente a ignorncia do SENHOR, tal como os padres da Igreja e alguns

    exegetas comentaram, acentua-se a empfia do fara em relao ao Deus dos hebreus.38

    William Propp acredita que a ideia subjacente nessas duas referncias (2b e 2e) insere o

    Leitmotif presente nos relatos das pragas, dos quais, como dissemos, xodo 5 se

    apresenta como uma introduo. Trata-se do problema teolgico acerca do

    36 Cf. CHOURAQUI, Andr. Nomes (xodo). Traduo e comentrios. Trad. Ivan Esperana Rocha e

    Paulo Neves. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 77. 37

    Cf. FISCHER, Georg; MARKL, Dominik. Das Buch Exodus. BHS: Verlag Katolisches Bibelwerk,

    2009. p. 85. 38

    Cf. SARNA, Nahum M. Exodus Commentary. . The Jewish Publications Society Torah

    Commentary. Philadelphia/New York/ Jerusalem: The Jewish Publications Society, 1991. p. 27.

  • 16

    conhecimento e da ignorncia em relao ao SENHOR. Do ponto de vista estilstico,

    parecem formar um paralelismo sinonmico.39

    Quanto s locues do fara presentes nos vv. 2,4 e 5, destaca-se o estilo

    grandioloquente e impregnado de elementos retricos e poticos caractersticos do

    hebraico bblico. Nota-se o qudruplo paralelismo nos versculos em 4c e 5c. O

    imperativo (Segui com vossas cargas) no v. 4c est em paralelismo

    antinttico com a interrogao dispersareis o povo de seus)

    trabalhos?) no v. 5c. Os termos so duplicados, sendo que o primeiro e

    vocbulo se localiza ao final da orao denotando o uso da figura de linguagem do eco.

    Outro elemento que sugere paralelismo a dupla referncia (fara), sendo que

    uma vez como rei do Egito). H ainda o paralelismo antittico ao nvel)

    semntico entre o imperativo (Segui) e o futuro quereis dispensar). Essas)

    repeties, a primeira vista suprfluas, contribuem para a hiptese do qudruplo

    paralelismo na locuo do fara entre os vv. 4 e 5.

    1.3.7 Anlise da caracterizao das personagens

    O sujeito em ambas razes verbais ocorrentes no v.1a, e (vir e dizer) so

    exatamente as personagens principais, ou seja, o protoganista Moiss e o coadjuvante

    Aaro, que transmitem a mensagem divina. O objeto indireto, no caso, o fara (v. 1b),

    engloba o papel do vilo, imprescindvel para a constituio de uma narrativa dramtica.

    O gnero dramtico da narrativa acentuado tambm pela estrutura dialogal com seis

    ocorrncias do verbo dizer (vv. 1b, 1c, 2a, 3a, 4a, 5a), ocorrente em cada versculo, ou

    seja, o episdio se resume a cinco locues entre as personagens. Destarte, j no

    primeiro versculo, de modo suscinto e completo, o narrador apresenta os dados bsicos

    e imprescindveis para a compreenso da narrativa. O drama tambm est caracterizado

    pela meno dos dois oponentes, o heri e o vilo; a situao dolorosa dos filhos de

    Israel; e por fim, a discusso sugerida aos ouvintes-leitores acerca do valor moral da

    liberdade.40

    39 Cf. PROPP, William H. C. Exodus 1-18. A New Translation with Introduction and Commentary. The

    Ancor Bible. V. 2. New Haven-London: Yale University Press. 1999. p. 252. 40

    Cf. MEYERS, Carol L. Exodus. New Cambridgre Bible Commentary. Includes bibliographical

    references and index. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. p. 67.

  • 17

    A estrutura dialogal dos cinco primeiros versculos preponderante como no

    restante de xodo 5 e nos demais trechos narrativos da BHS.41

    Elas caracterizam um

    drama, no qual se descreve a opresso tirnica imposta pelo fara sobre os filhos de

    Israel. O dilogo entre Moiss e o fara, lderes do povo hebreu, descreve a oposio

    entre a vontade libertadora de Deus e a tirania faranica. Como ressalta Alter, o uso de

    locues para os personagens no lugar da voz do narrador enriquece a narrativa,

    permitindo ao ouvinte-leitor compor com o seu conhecimento de mundo e sua

    imaginao o estado de nimo e as caractersticas psicolgicas das personagens. Dessa

    forma, a faculdade interpretativa do ouvinte-leitor enriquece o contedo do dilogo e os

    aspectos dramticos da narrativa. A forma dialogal do drama tambm torna o texto

    sinttico, pois o discurso direto costuma exprimir mais elementos psicolgicos que o

    discurso indireto, geralmente de tonalidade impessoal. Assim, o discurso direto sintetiza

    e insinua elementos de descrio que a voz narrativa exigiria mais palavras.42

    Nos vv. 1-5, apesar da sobriedade do narrador, possvel distinguir que se trata

    de uma cena-padro, na qual o profeta Moiss, juntamente com Aaro, se apresenta ao

    monarca, a fim de transmitir o orculo divino que postulava, ao menos formalmente,

    uma autorizao para andar no caminho do deserto por um tempo de trs dias para

    celebrar uma festa cultual, conforme a ordem divina em 4,22-23.43

    Essa forma se

    caracteriza pela expresso utilizada logo na primeira locuo de Moiss (v. 1c),

    caracterstica dos orculos ou discursos profticos: (assim disse o SENHOR).

    Essa forma tpica da literatura proftica, a expresso ocorre dez vezes no Pentateuco,

    todas no livro do xodo, sempre na boca de Moiss (cf. Ex 4,22; 5,1; 7,17.26; 8,16;

    9,1.13; 10,3; 11,4; 32,27). O cenrio que o episdio padro inspira pode ser o prprio

    palcio do fara,44

    ou uma sala de audincias, tal como sugerem a leitura de outros

    trechos correlatos que descrevem cenas semelhantes no tempo dos reis de Israel. Os

    profetas tambm costumavam apresentar-se diante dos monarcas, como nos diversos

    relatos contidos nos livros dos reis. Episdios de figuras como Samuel (cf. 1Sm 15,1ss),

    41 Cf. UTZSCHNEIDER, Helmut; OSWALD, Wolfgang. Exodus 1-15. Internationaler Exgetischer

    Kommentar zum Alten Testament (IEKAT). Walter DIETRICH (Org.). BHS: W. Kohlhammer Druckerei

    GmbH. 2013. p. 154. 42

    Cf. CHOURAQUI, Andr. Nomes (xodo). Traduo e comentrios. Trad. Ivan Esperana Rocha e

    Paulo Neves. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 77. 43

    Tu lhe dirs: assim fala o SENHOR: Israel meu filho primognito. Eu te digo: deixa ir o meu filho,

    para que ele me preste um culto (Ex 4,22-23). 44

    Cf. UTZSCHNEIDER, Helmut; OSWALD, Wolfgang. Exodus 1-15. Internationaler Exgetischer

    Kommentar zum Alten Testament (IEKAT). Walter DIETRICH (Org.). BHS: W. Kohlhammer Druckerei

    GmbH. 2013. p. 154.

  • 18

    Nat (cf. 1Rs 1,23ss), Elias (cf. 2Rs 1,7ss), entre outros, assemelham-se cena-padro

    contemplada no presente estudo. Moiss e Aaro, sero ao mesmo tempo profetas de

    Deus e embaixadores do povo diante do fara. Exercem simultaneamente uma atividade

    proftica e poltica.45

    Por outro lado, verifica-se no livro do Gnesis, uma profuso de

    narrativas que envolvem patriarcas em colquino, audincia ou mera presena passiva

    diante dos monarcas do Crescente Frtil. Abrao apresenta-se ao fara e dialoga com

    reis de Cana como Abimelec (cf. Gn 20; 21,25-34). Isaac tambm se apresentou diante

    do rei de Gerara (cf. Gn 26,1-17). Jos reaparece nesse papel, primeiramente enquanto

    escravo-intrprete dos sonhos do fara (cf. Gn 41), e depois recebe sua famlia enquanto

    ministro do monarca egpcio (cf. Gn 43-46). Em xodo 5, nota-se o que seria a primeira

    apresentao de um legado do povo diante de um monarca estrangeiro, pois o papel

    representado pelos patriarcas era de abrangncia familiar, enquanto que, j nos

    primeiros captulos do livro do xodo, Israel tratado como uma nao. No livro dos

    Nmeros, o povo de Israel tambm se apresenta em conjunto diante do Rei de Edom,

    que no permite que os israelitas atravessem o seu territrio (cf. Nm 20,14-21). E em

    Nm 21,21-35, h outra narrativa na qual Israel tenta negociar com um monarca

    estrangeiro. Israel havia enviado mensageiros a Seon, rei dos amorreus, para que lhes

    permitisse passar pela sua terra nas mesmas condies feitas ao rei de Edom (vv. 21-

    22).

    1.4 Observaes histrico-teolgicas

    1.4.1 Moiss, representante de Deus e do povo

    Sobre as personagens convm destacar desde logo a figura de Moiss, um dos

    protagonistas da narrativa. Em Ex 5,1-6,1, seu nome ocorre quatro vezes (vv. 1a, 4b,

    20a e 6,1a). Os captulos precedentes (cf. Ex 1-4) preparam a simpatia dos ouvintes-

    leitores para com o beb sujeito tirania cega que procurou elimin-lo junto com os

    recm-nascidos hebreus (cf. Ex 1,7-22), ou ainda, pela criana abandonada ao fragor das

    correntes do Nilo como nica e ltima esperana de uma me desolada (cf. Ex 2,1-8).

    Protegido miraculosamente por Deus desde os primrdios de sua vida, descendente da

    estirpe levtica (cf. Ex 2,1) e levado casa da princesa egpcia (cf. Ex 2,10), Moiss

    caracterizado nos quatro captulos precedentes, respectivamente como: amado de Deus,

    45 Cf. FISCHER, Georg; MARKL, Dominik. Das Buch Exodus. BHS: Verlag Katolisches Bibelwerk,

    2009. p. 82.

  • 19

    nobre de Israel, prncipe do Egito, em suma, o heri arquetpico da narrativa.

    Representa o bem e o desgnio de um Deus que age na Histria humana atravs da

    intercesso de um homem, em vista da libertao social e religiosa.46

    Alis, Deus fala

    com Moiss (Ex 3,1- 4,22), predispondo o ouvinte-leitor ao beneplcito para com as

    atitudes e locues. Moiss ser o maior profeta de Deus (cf. Dt 34,10-12), que usar

    em xodo 5 a terminologia estereotipada do orculo, caracterstica da literatura

    proftica, para transmitir a vontade divina: Assim disse o SENHOR)

    Deus de Israel; v. 1c). A prpria hesitao de Moiss, movida por uma humildade quase

    invencvel, atrai a simpatia para com a sua pessoa desprendida. Seu carter honesto, por

    vezes violento em favor da justia como no episdio em que fere mortalmente o

    egpcio ou em que defende as filhas de Jetro (cf. Ex 2,16-17) caracteriza-o como o

    homem bom, justo e amante do direito, que inclusive tem uma vida amorosa frtil (cf.

    Ex 2,21-22). Impressiona como todos os elementos retricos valorizantes de uma

    personagem esto desenvolvidos nos quatro primeiros captulos do xodo.47

    Essa caracterizao do protagonista prepara o ouvinte-leitor para o embate

    central do drama que se inicia com o primeiro encontro de Moiss com o monarca

    egpcio. Em xodo 5, essas caractersticas possuem uma continuidade com as demais

    narrativas da vida de Moiss. O profeta se faz impetuoso ao insistir diante do fara pela

    permisso de sacrificar no deserto, inclusive aps a primeira negativa do fara (v. 1a).

    acusado de sublevar o povo e de defender o descanso das cargas impostas pelo fara no

    discurso do prprio monarca (v.4d). Faz-se tmido em seus silncios diante dos

    inspetores que avanam contra si aps o seu malogro diplomtico (v. 20a). Faz-se

    perseverante, forte contra Deus, como outro de Israel, ao inquirir ao SENHOR acerca do

    fracasso da embaixada diante do fara e o conseguinte agravamento da opresso sobre o

    povo (v. 22a). Essas razes fazem com que no seja exagerado dizer que a

    caracterizao de Moiss presente nas tradies do xodo harmnica com o episdio

    narrado na percope contemplada.

    46 Cf. SKA, Jean Louis. Introduo leitura do Pentateuco. Chaves para a interpretao dos primeiros

    cinco livros da Bblia. Trad. Aldo Vannucchi. Bblica Loyola (37). So Paulo: Loyola, 2003. p. 49. 47

    Jean Louis Ska resume a preeminncia de Moiss sobre os demais personagens da BHS em trs pontos

    primordias: 1. O maior dos profetas. A lei de Moiss, contida na Tor, foi recomendada e defendida

    pelos demais escritores da literatura histrica, proftica e sapiencial. 2. A superioridade de Moiss

    tambm deriva de seu especial relacionamento para com Deus a quem fala face a face (Ex 22, Nm 12,6-

    8; Jo 1,18; 3,11). 3. A preeminncia do xodo enquanto episdio fundante da religio e da nao de Israel

    (cf. SKA, Jean Louis. Introduo leitura do Pentateuco. Chaves para a interpretao dos primeiros

    cinco livros da Bblia. Trad. Aldo Vannucchi. Bblica Loyola (37). So Paulo: Loyola, 2003. p. 24).

  • 20

    1.4.2. Aaro

    Em Ex 5,1-6,1, o nome de Aaro, irmo de Moiss, ocorre trs vezes

    explicitamente (vv. 1a, 4b e 20a). Nas tradies do xodo, aparece por primeira vez no

    captulo quarto. Basicamente, chamado por Deus para ser o profeta, enquanto Moiss,

    seria um Deus aos olhos do fara (cf. Ex 7,1). Aaro at esse momento da narrativa no

    passa de um auxiliar e companheiro de Moiss. Como nos demais episdios do relato

    das pragas (cf. Ex 7,17.19), nas trs ocorrncias do captulo quinto do livro do xodo,

    permanece sombra do protagonista como mero coadjuvante. Ademais, no v. 20a,

    Aaro hostilizado, juntamente com Moiss na revolta dos filhos de Israel, devido ao

    fracasso diplomtico dos irmos profetas. Seu papel de transmissor da mensagem

    recebida por Moiss descrito nos captulo anterior no parece claro uma vez que o verbo

    e disseram) est no plural da terceira pessoa, indicando que Moiss e Aaro)

    falaram ao fara. No parece verossmil que os dois tenham falado ao mesmo tempo.

    Aaro, ao menos em Ex 5,1-6,1, e no em todo o Pentateuco, permanece sombra de

    Moiss, vinculado, calado, sem ao individual.

    Mas qual seria a inteno dos redatores com essa presena passiva do irmo de

    Moiss? justamente a perspectiva diacrnica que pode revelar uma hiptese plausvel

    para esse particular. A proximidade de Aaro com as origens do povo e da religio

    judaica eleva consigo toda a classe sacerdotal, diretamente envolvida na redao e na

    difuso dos relatos do xodo. De fato, dados biogrficos preliminares da vida de Aaro,

    tambm presentes nas tradies do xodo fazem de sua figura uma representao do

    sacerdcio de Israel, pois a ele que cabe a presidncia dos cultos e o ttulo de patriarca

    da ordem ou casa sacerdotal evocada nos salmos litrgicos (cf. Sl 98,6; 104,26;

    113,18.20; 117,3; 132,2; 134,19). Ele descendente de Levi, a tribo sacerdotal, o

    irmo mais velho de Moiss, o filho primognito, segundo a tradio sacerdotal (cf.

    Ex), muito embora, na tradio javista, Moiss mencionado antes do que Aaro.

    Segundo a hiptese de Utzschneider e Oswald,48

    seu nome teria sido acrescentado

    posteriormente ao relato original contido em xodo 5, a fim de prestigiar a classe

    detentora dos conhecimentos escritursticos, como os escribas e os sacerdotes. O

    acrscimo de Aaro teria sido ento realizado pela fonte sacerdotal (P) como seria

    perceptvel nos ltimos versculos da percope. Moiss, sozinho, recorre a Deus

    48 Cf. UTZSCHNEIDER, Helmut; OSWALD, Wolfgang. Exodus 1-15. Internationaler Exgetischer

    Kommentar zum Alten Testament (IEKAT). Walter DIETRICH (Org.). BHS: W. Kohlhammer Druckerei

    GmbH. 2013. p. 154.

  • 21

    alegando que foi mandado, mais uma vez sozinho, sem a meno a Aaro, para falar em

    nome do SENHOR. Ademais, a figura de Aaro no faria falta para a compreenso do

    relato.49

    Dessa forma, pode-se conjecturar que na poca da redao, a meno a Aaro,

    seria tambm conveniente aos que iriam explicar o texto. Os detentores do

    conhecimento da tradio do xodo, sucessores no ofcio sacerdotal aaronita, poderiam

    t-lo inserido a fim de acentuar a prpria autoridade como intrpretes dos textos

    sagrados de Israel. Esse pormenor ainda pode ser comprovado pela tentativa de

    aproximao realizada pelos inspetores hebreus para com o fara, sem a ajuda do

    malogrado Moiss, como ser considerado no captulo quinto desse trabalho. Os

    inspetores tambm defendem os interesses do povo, tal como Moiss. E compartilham,

    ao menos intencionalmente, seu carter herico.

    1.4.3 Fara, o vilo

    O substantivo fara ocorre oitenta e quatro vezes no livro do xodo e onze vezes

    em Ex 5,1-6,1 (vv. 1b, 2a, 5a, 6a, 10c, 14c. 15b, 20c, 21e, 23a e 6,1c). Seria demasiado

    amplo estabelecer uma sntese dessas numerosas ocorrncias, por isso, no presente

    estudo, se estabelece o foco nas onze ocorrncias da percope. O fara o vilo da

    narrativa, porm no mencionado o seu nome prprio com nas demais narrativas do

    Pentateuco. Parece ser o segundo fara presente nos relatos do xodo. H, no entanto,

    aproximaes com as dinastias egpcias que procuram distinguir sua identidade, ou ao

    menos, a que dinastia pertenceriam o fara ou os faras annimos do Pentateuco. Essas

    tentativas de paralelismo entre a exegese e a egiptologia no lograram uma certeza

    absoluta. Entretanto, Ballarini afirma, como hiptese mais plausvel, que os faras

    descritos no livro do xodo pertenceriam s XIX e XX dinastias, que governaram o

    Egito nos sculos XII e XIII a. C.50

    Para Freedman, a meno cidade de Ramss em

    Ex 1,11 e os grandes projetos arquitetnicos inferidos das narrativas da opresso dos

    hebreus no Egito fizeram crer que as narrativas do xodo se referem a essa poca.51

    Dada a informao como plausvel, a sociedade egpcia, na poca que a narrativa do

    49 Cf. UTZSCHNEIDER, Helmut; OSWALD, Wolfgang. Exodus 1-15. Internationaler Exgetischer

    Kommentar zum Alten Testament (IEKAT). Walter DIETRICH (Org.). BHS: W. Kohlhammer Druckerei

    GmbH. 2013. p. 159-160. 50

    Cf. BALLARINI, Teodorico. Introduo Bblia com antologia exegtica. Pentateuco. II/1. .

    Petrpolis: Vozes, 1975. p. 257. 51

    Cf. FREEDMAN, David Noel (Org.). The Anchor Yale Bible Dictionary. Vol. 2. D-G. New

    Haven/London: Yale University Press, 1992. p. 351. VOZ, EGYPT, History of (Dyn 18-20).

  • 22

    xodo procura retratar, corresponde ao Reino Novo (1610-1085 a. C.). Segundo

    McKenzie,

    trata-se do perodo mais florescente do antigo Egito. [...] deram incio a

    expedies de conquista para garantir sua fronteira oriental. O maior

    dos conquistadores foi Utmsis III (1502-1448 a. C.) que guiou os seus

    exrcitos atravs da Palestina e da Sria at o Eufrates, estendendo o

    domnio egpcio na sia.52

    Na poca a Palestina, a clebre terra prometida, sobretudo na parte costeira,

    tambm era dominada pelas tropas do fara. Essa informao pode inclusive negar o

    xodo como evento histrico, uma vez que a fuga narrada do xodo seria para um

    territrio dominado pelo Egito.53

    Seria mais ou menos como se algum que quisesse

    fugir do Brasil tivesse se retirado para o Rio Grande do Sul... fuga no mnimo paradoxal

    uma vez que ainda se permaneceria nas fronteiras do mesmo pas. Contudo, conforme

    os prprios Finkelstein e Silberman, devido influncia quase insignificante dos

    assentamentos egpcios na formao das vilas da regio montranhosa da Palestina

    durante a Idade do Ferro,54

    esse argumento no pode ser absolutizado. No se pode

    afirm-lo seno como hiptese verossmil.55

    Atendo-se, por essa razo, na anlise da narrativa bblica, os estudiosos tambm

    estabelecem uma comparao entre o fara dos quatro primeiros captulos do xodo e o

    fara do quinto captulo. Em contraste com o primeiro fara do xodo, que procurava

    no controle de natalidade uma proteo contra as possveis insurreies israelitas (cf. Ex

    1,11.19.22), o fara que recebe pela primeira vez o enviado de Deus (cf. Ex 5,1-6,1),

    apresenta uma viso positiva acerca do crescimento do povo (v. 5b). Mo-de-obra

    sinal de riqueza. Nisso o segundo fara do xodo no quer a eliminao massiva dos

    hebreus e no v com bons olhos o afastamento do povo dos campos de trabalho (v. 5c).

    O ritmo de construo das cidades era ditado pela fabricao de tijolos; e este, pela

    disponibilidade de mo-de-obra.56

    Percebe-se tambm que o fara representa o papel do vilo e encarnar

    o mal na percope estudada. A opresso imposta pelas suas atitudes

    52 MCKENZIE, John L. Dicionrio Bblico. Trad. lvaro Cunha. 8 ed. So Paulo: Paulus, 2003. p. 259.

    Voz. EGITO. 53

    FINKELSTEIN, Israel; SILBERMAN, Neil Asher. A Bblia no tinha razo. So Paulo: A Girafa,

    2003. p. 74-106. 54

    FINKELSTEIN, Israel; SILBERMAN, Neil Asher. A Bblia no tinha razo. So Paulo: A Girafa,

    2003. p. 74-106. 55

    SANTOS, Marcos Eduardo Melo. Caracterizao da personagem Moiss atravs da anlise dos

    dilogos da narrativa de xodo 5,1-6,1. Teocomunicao. Porto Alegre. v. 44. n. 3. Set.-dez. 2014. p. 335. 56

    BERGANT, Dianne; KARRIS, Robert J. (Org). Introduo, Pentateuco e Profetas anteriores.

    Comentrio Bblico. Trad. Barbara Theoto Lambert. So Paulo: Loyola. 1999. p. 97.

  • 23

    ainda ser agravada pelo tom arrogante e irnico do seu discurso como

    denota os estudo das locues a ele atribudas. Usar uma linguagem

    potica e grandiloquente para decretar uma medida opressiva sublima a

    maldade da personagem. Alm de retirar a palha, que facilitava a

    confeco dos tijolos, o fara ser apresentado como mpio, ou seja, no

    sentido de um homem que no conhece o SENHOR (v.2) e no permite a

    liberdade do culto religioso postulado pelo povo (v.3).57

    Em nossa poca de secularismo dominante, essa informao poderia no pr-

    indispor o ouvinte contra o vilo, mas na sociedade hebraica, ou mesmo nas sociedades

    antigas, o atesmo e a insensibilidade para com a vontade dos deuses caracterizava a

    impiedade no sentido estrito do termo e j indispunha o ouvinte-leitor para com o vilo,

    agravando a maldade inerente s suas atitudes. O fara completamente insensvel s

    postulaes do povo.58

    Na percope em estudo, o fara nomeado uma nica vez como rei do)

    Egito; v. 4a). No livro do xodo, a expresso utilizada como substantivo treze vezes

    (cf. 1,8.15.17.18; 2,23; 3,18.19; 5,4; 6,11.13.27.29; 14,5.8) e uma vez como verbo:

    reinar sobre o Egito (cf. 15,18). Pode-se dizer que o fato dos redatores denominarem o

    monarca opressor com o ttulo de rei do Egito pode caracterizar a inteno de que no

    se repita a palavra fara por uma dcima segunda vez em xodo 5,1-6,1. No atribuir o

    simbolismo da dzia ao vocbulo fara seria significativo para o esquema numrico

    amplamente utilizado pelos redatores em sua forma final. Agostinho, contudo, prope

    uma interpretao alegrica semelhante de Orgenes infra mencionada, a qual

    estabelece o sentido simblico do Egito, enquanto terra de trevas, que se harmoniza, de

    um lado, com ideia de que fara no conhee o SENHOR; e de outro, com a ideia de sair

    do Egito, para o Deserto (cf. Agostinho. Sermo 5003. Tertio de Josepho). O Bispo de

    Hipona salienta a motivao de sair do Egito pelo vis sacerdotal. O sacrifcio ao Deus

    de Israel no se coaduna com a ignorncia da infidelidade e do pecado. O sacrifcio no

    pode ser celebrado numa terra maculada. Subjaz, segundo Agostinho, a ideia de uma

    terra santa, imaculada e cognoscente do SENHOR.

    1.4.4 Deus, a discreta personagem principal

    Em xodo 5,1-6,1, o tetragrama sagrado (SENHOR) ocorre oito vezes nos

    principais manuscritos e no texto adotado pela BHS (vv. 1c, 2b, 2d, 3c, 17c, 21b, 22a e

    57 SANTOS, Marcos Eduardo Melo. Caracterizao da personagem Moiss atravs da anlise dos

    dilogos da narrativa de xodo 5,1-6,1. Teocomunicao. Porto Alegre. v. 44. n. 3. Set.-dez. 2014. p. 335. 58

    Cf. HOUTMAN, Cornelis. Exodus. Historical Commentary on the Old Testament. Trad. Johan Rebel e

    Sierd Woudstra. Vol. 1.Kampen: Kok Publishing House, 1993. p. 457.

  • 24

    6,1a). Ademais, usam-se ainda mais duas expresses para referir-se ao Deus de Israel:

    Deus () nos vv. 1c, 3b, 3c e 8g e Meu SENHOR () no v. 22c.59

    Logo na primeira

    locuo de Moiss (v. 1c), usa-se a expresso estereotipada dos orculos ou discursos

    profticos: (Assim disse o SENHOR). Forma tpica da literatura proftica, a

    expresso ocorre dez vezes no livro do xodo, quase sempre na boca de Moiss.60

    A

    expresso contrasta com o Assim diz o fara (v. 10b) e o fara (rei do Egito) disse

    repetida cinco vezes ao longo de xodo 5,1-6,1 (vv. 2.4.5.6.17). Alm da inteno de

    reforar a autoridade proftica de Moiss seja diante do fara, seja diante dos ouvintes-

    leitores hebreus, o recurso serve para acentuar o antagonismo entre os dois adversrios,

    o Deus dos hebreus e o deus dos egpcios personificado na pessoa do fara.

    Nota-se na narrativa que esse Deus se identifica com Moiss e com o povo de

    Israel. Em relao ao profeta, representado por Moiss enquanto seu orculo. Na boca

    de Moiss, Deus ordena do fara para que o povo sacrifique e celebre para si no deserto

    (v. 1e). Diante das afrontas do fara que afirma no conhecer a Deus (v. 2d) e que, por

    conseguinte, no obedece vontade divina (v 2e). Deus no reage, nem mesmo atravs

    do profeta. Permanece impassvel diante das ofensas sarcsticas do fara (vv. 4.6-9) e,

    em um primeiro momento, aparentemente insensvel para com o sofrimento do povo. O

    monarca egpcio aumenta a carga horria de trabalho (v. 18bc), o povo se revolta contra

    Moiss (v. 20a) e Deus no toma parte ativa nos dilogos. Pelo contrrio, no texto, as

    referncias ao Deus de Israel s ocorrem na boca do fara como objeto de sarcasmo (vv.

    17-18). Contudo, somente no v. 6,1, aps a imprecao de Moiss, Deus promete

    libertar o povo com mo forte. Deus reage e toma as dores do povo como que esperando

    a intercesso de Moiss.

    Diante dessa interpretao da narrativa, pode-se dizer que Deus tambm faz seu

    papel na narrativa. um Deus que se comove com as dores e ouve o clamor do povo

    59 Nota-se ainda no v. 1c a ocorrncia da expresso Elohim. Esta seria o nome universal da divindade nas

    culturas do Crescente Frtil. Designa, ao mesmo tempo, o Deus de Israel e os das etnias circunvizinhas.

    Seria bem traduzido simplesmente por Deus. Andr Chouraqui explica que a forma gramatical um

    plural e serve, s vezes, para designar vrios deuses (Ex 18,11). Para Israel, Elohm um; da, a ausncia

    do artigo (Gn 2,5) (CHOURAQUI, Andr. Nomes (xodo). Traduo e comentrios. Trad. Ivan

    Esperana Rocha e Paulo Neves. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 77). Enquanto que no v. 1c, os irmos

    profetas nomeiam a Deus conforme o uso habitual na linguagem do Pentateuco como (SENHOR) e

    (Deus de Israel), no v. 3b, consta a expresso Deus dos Hebreus). Essa mudana)

    no lxico demonstra certa adaptao do discurso do profeta no tocante ao modo de nomear Deus. De fato,

    o nome do patriarca Israel seria desconhecido pelo fara, mas os hebreus seriam identificveis uma vez

    que so os operrios das manufaturas de tijolos. Se por um lado, Moiss esfora-se por ser compreendido

    pelo fara, tambm inculte temor em relao ao Deus dos hebreus. 60

    Cf. CHOURAQUI, Andr. Nomes (xodo). Traduo e comentrios. Trad. Ivan Esperana Rocha e

    Paulo Neves. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 77.

  • 25

    desde os primeiros captulos do xodo, mas que espera pacientemente Moiss ter

    coragem de cumprir sua misso. O Deus que espera a orao do seu profeta em favor do

    povo (vv. 22) em uma aparente indiferena, o mesmo Deus que move o corao de

    Moiss (v. 22) e que lhe d coragem de enfrentar o monarca (vv. 1-5). O Deus que quer

    a libertao do povo, no aconselha Moiss a pedi-la diretamente, mas, alm de ordenar

    atravs de um profeta, levanta como argumento o problema da necessidade cultual do

    povo de Israel (vv. 1e e 3bc). Deus, ao mesmo tempo to zeloso em realao ao bem-

    estar do povo, embora ordene com um imperativo a libertao do povo (v. 1d), respeita

    a autoridade constituda do fara, ao fazer com que seu profeta explique a necessidade

    do povo ir ao deserto (v. 3), mas diante da rotunda negativa do fara (vv. 2.4.5), que

    responde com sarcasmos a Deus e aumento da opresso diante do povo (vv. 6-9), a

    promessa de libertao renovada e o relato introdutrio das dez pragas que assolaro o

    Egito nos captulos subsequentes est conformado em uma espcie de clmax de

    opresso. As pragas so o cumprimento da ameada feita por Moiss em sua segunda

    fala: a fim de que no avance sobre ns com a peste ou com uma espada (v. 3de).

    Esse Deus espera as horas nas quais todos os meios humanos se esgotaram, seja a ordem

    proftica, seja, inclusive, o dilogo com o opressor (vv. 1.3.), seja a negociao

    subserviente atravs das autoridades judaicas constitudas pelo prprio opressor (vv.

    15c-16c), ainda que no seja factvel, e mesmo com o fracasso previsto (cf. Ex 3,19),

    para agir e tomar diretamente as dores e a causa da libertao de um modo prtico e

    efetivo.

    Deus, enquanto personagem na narrativa de Ex 5,1-6,1 seria uma divindade que

    valoriza a liberdade fsica e cultual; que se mostra reverente para com as autoridades

    constitudas, mas que exerce sua prpria autoridade, ciente de sua autosuficincia; que

    usa da mediao do profeta como seu comunicador; que ouve e se compadece dos

    sofrimentos do povo ou do paradoxal e j anunciado malogro da embaixada de Moiss;

    que promete ser forte e pertinente ao agir em favor da libertao do povo (cf. Ex 3,19;

    6,1). Essas caractersticas conformam um arqutipo que dever ser admirado, e

    portanto, imitado pelos ouvintes-leitores da narrativa e conforma uma viso do bem,

    nada ingnua, que valoriza a justia de um Deus que se reserva todos os direitos e age

    com prudncia e respeito, seja atravs de uma ordem transmitida por um orculo, seja

    atravs do dilogo explicado e argumentado.

    Israel ocorre seis vezes em xodo 5,1-6,1. Entretanto, em trs destas ocorrncias

    no se refere ao personagem histrico, mas somente ao povo de Israel (vv. 1c, 2c e 2e).

  • 26

    Em outras trs ocorrncias (vv. 14a, 15a e 19b), os filhos de Israel) pode ser)

    entendido como filhos do povo de Israel ou do patriarca Israel. A expresso sugere, de

    certo modo, a interrogao acerca da poca de redao da narrativa. A partir de que

    momento da histria dos hebreus, o povo passou a se autodenominar como Israel?

    Chouraqui da opinio que Israel, mais provavelmente, designou o povo hebreu aps o

    episdio do xodo, quando os descendentes de Abrao teriam comeado a passar a ser

    conhecidos como povo numeroso (cf. v. 5b), sobretudo, durante o agrupamento de tribos

    no deserto a caminho de Cana.61

    Nesse perodo, Deus era conhecido pelo nome de um

    de seus mais ilustres adoradores e ancestrais da tribo: Israel, tal como se faz uso em Ex

    5,1.62

    Distinguia-se a divindade invocada pelos seus antepassados: o Deus de nossos

    pais dos deuses estrangeiros. Esse Deus no tem um nome como as demais divindades

    cultuadas pelos povos do Crescente Frtil. Mas faz-se conhecer, primeiramente, como

    um Deus de um cl determinado, de uma famlia, o Deus de Abrao, o Deus de Isaac e

    o Deus de Jac.63

    Uma leitura do Pentateuco faz supr que a proteo desse Deus torna

    essa famlia em uma tribo, posteriormente em um povo, e o Deus dos antepassados ser

    por fim denominado como o Deus do povo dos filhos de Israel. Mais tarde, a expresso

    se simplificaria para (Deus de Israel), da nao de Israel. Essa evoluo por

    assim dizer lingustica vem acompanhada de um desenvolvimento social. O cl passa a

    ser nao. E o Deus participativo na histria pessoal e familiar, torna-se o Deus da tribo,

    a divindade nacional. Esse uso literrio prope uma teologia. A proposta do Pentateuco

    se alarga e o Deus de Israel, atuante na vida de cada homem simbolizada na vida dos

    patriarcas, passa tambm a ser do povo eleito.

    61 Cf. CHOURAQUI, Andr. Nomes (xodo). Traduo e comentrios. Trad. Ivan Esperana Rocha e

    Paulo Neves. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 78. 62

    Cf. SARNA, Nahum M. Exodus Commentary. . The Jewish Publications Society Torah

    Commentary. Philadelphia/New York/ Jerusalem: The Jewish Publications Society, 1991. p. 27. 63

    Albrecht Alt (1883-1956), Gerhad Von Rad (1901-1971) e Martin Noth (1902-1968) sero os

    exponenciais na defesa de uma exegese do Pentateuco que valorizava os dados arqueolgicos recm

    descobertos para defender o perodo dos Juzes eo prprio perodo anterior, quando Israel vagava pelas

    zonas semidesrticas em torno da terra prometida. Jean Louis Ska define as duas teses fundamentais de

    Albrecht Alt sobre o Deus de Israel: Para ele, o Deus dos pais pertence religio dos nmades, porque

    a divindade no est circunscrita a um lugar, mas a uma pessoa. No tem nome prprio. Indentifica-se

    pelo antepassado a quem se revelou. [...] os patriarcas figuram, assim, como fundadores de culto. Desse

    modo, a religio patriarcal afasta-se da Canania, ligada aos santurios (SKA, Jean Louis. Introduo

    leitura do Pentateuco. Chaves para a interpretao dos primeiros cinco livros da Bblia. Trad. Aldo

    Vannucchi. Bblica Loyola (37). So Paulo: Loyola, 2003. p. 131).

  • 27

    1.5. Consideraes conclusivas do captulo

    Os vv. 1-5 apresentam ao ouvinte-leitor as caractersticas elementares dos

    principais personagens envolvidos na narrativa. Moiss e Aaro mostram-se como

    transmissores da palavra divina e negociadores da liberdade do povo. O fara se mostra

    como o tirano que desconhece o Deus cuja mensagem havia sido anunciada pelos

    irmos profetas e como resistente vontade desse Deus que visava ser adorado no

    deserto. O fara preocupa-se com a fabricao dos tijolos e responde a Moiss com a

    acusao de que estavam usando o argumento religioso para folgar. O povo deve ir, isto

    sim, para seu trabalho. Que aproveitem o fato de ser numerosos para melhor produzir e

    que no sejam agitados pelas mensagens subversivas em forama de orculo transmitidas

    por Moiss e Aaro.

  • 28

    CAPTULO 2 O DECRETO DO FARA (vv. 6-9)

    O presente captulo abordar o episdio subsequente embaixada de Moiss e

    Aaro junto ao fara. O trecho contm o discurso opressivo do fara. O monarca ordena

    aos capatazes no meio do povo e aos seus inspetores (v. 6) que no entreguem mais a

    palha aos filhos de Israel a fim de que faam tijolos (v. 7b). A restrio de fornecimento

    desta matria-prima, quase imprescindvel para a obteno da meta estipulada (v. 7b),

    tem como consequncia o aumento da carga de trabalho, uma vez que eles mesmos

    deveriam ir atrs da palha (v. 7c). O motivo religioso para a absteno temporria dos

    trabalhos alegado por Moiss (vv. 1 e 3) no episdio anterior (vv. 1-5) ridicularizado

    pelo monarca (v. 8) que acusa os israelitas de preguiosos (v. 8d) e, indiretamente, os

    irmos profetas de falsos transmissores das palavras atribudas a Deus (v. 9c). Com esta

    locuo do monarca egpcio decretado o clmax de opresso sobre os filhos de Israel.

    2.1 Texto hebraico e traduo portuguesa

    Naquele dia, o fara ordenou v. 6a

    aos capatazes no meio do povo v. 6b

    e aos seus inspetores [dizendo]: v. 6c

    No continuareis a dar palha ao povo v. 7a

    para formar os tijolos, como ontem e anteontem! v. 7b

    Que eles andem e ajuntem a palha para si! v. 7c

    E a quantia de tijolos que eles estavam fazendo

    ontem e anteontem

    v. 8a