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A presente edição segue a grafia do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa [email protected] www.marcador.pt facebook.com/marcadoreditora © 2016 Direitos reservados para Marcador Editora uma empresa Editorial Presença Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730-132 Barcarena © 2009 BASTEI LÜBBE AG Publicado por acordo com Ute Körner Literary Agent Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer forma sem permissão por escrito. Título original: Der Ruf des Kiwis Título: O Grito da Terra – Todos os regressos são inevitáveis Autora: Sarah Lark Tradução: Ana Mendes Lopes Revisão: Silvina de Sousa Paginação: Maria João Gomes Capa original: cedida por EDICIONES B, S.A. Arranjo de capa: Vera Braga/Marcador Editora Imagens de capa: © Thinkstock Impressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráficas, Lda. ISBN: 978-989-754-229-9 Depósito legal: 405806/16 1.ª edição: março de 2016

Queluz de Baixo Título: O Grito da Terra Autora: Sarah Lark Tradução: Ana Mendes Lopes Revisão: Silvina de … · de os sonhos da rapariga se poderem cumprir na Nova Zelândia,

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A presente edição segue a grafia do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

[email protected]/marcadoreditora

© 2016Direitos reservados para Marcador Editorauma empresa Editorial PresençaEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730-132 Barcarena

© 2009 BASTEI LÜBBE AGPublicado por acordo com Ute Körner Literary AgentTodos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizadaou reproduzida em qualquer forma sem permissão por escrito.

Título original: Der Ruf des KiwisTítulo: O Grito da Terra – Todos os regressos são inevitáveisAutora: Sarah LarkTradução: Ana Mendes LopesRevisão: Silvina de SousaPaginação: Maria João GomesCapa original: cedida por EDICIONES B, S.A.Arranjo de capa: Vera Braga/Marcador EditoraImagens de capa: © Thinkstock Impressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráficas, Lda.

ISBN: 978-989-754-229-9Depósito legal: 405806/16

1.ª edição: março de 2016

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NOVA ZELÂNDIA

ILHA do NORTE

ILHA do SUL

MAR DA TASMÂNIA

OCEANO PACÍF

ICO

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PLANÍC

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FORMAÇÃO

Planícies de Canterbury, GreymouthChristchurch, Cambridge

1907-1908-1909

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Vamos fazer uma corrida, Jack! Até ao Anel dos Guerreiros de Pedra!

Gloria colocou o pónei alazão em posição de saída ao lado do cavalo de Jack, sem sequer esperar que este respondesse. Quando ele assentiu, resignado, Gloria pressionou ligeiramente a égua com os joe-lhos e saiu disparada.

Jack McKenzie, um rapaz de cabelo encaracolado e acobreado, com olhos serenos de tom verde-pardo, também incitou o cavalo a ga-lopar e seguiu a rapariga pelo pasto quase infinito de Kiward Station. No seu cobwallach, que era mais forte mas mais lento, Jack não tinha a menor hipótese de alcançar Gloria. O próprio era demasiado alto para jóquei, mas acedia nas corridas para que a menina se divertisse. Gloria estava muito orgulhosa do pónei que viera de Inglaterra, mais veloz do que um raio e que mais parecia um puro-sangue em tama-nho pequeno. Tanto quanto Jack se conseguia lembrar, aquele era o primeiro presente de aniversário que os pais lhe ofereciam que a fazia verdadeiramente feliz. O conteúdo das caixas que de vez em quan-do chegavam da Europa para a menina não costumava surtir grande efeito: um vestido de folhos, com um leque e castanholas de Sevilha, uns sapatinhos dourados de Milão, uma minúscula bolsa de pele de avestruz de Paris… tudo coisas que numa grande fazenda da Nova Zelândia não tinham grande utilidade e que eram até demasiado espa-lhafatosas para usar nas esporádicas visitas a Christchurch.

Não obstante, os pais de Gloria nem se davam conta, muito pelo contrário. Era provável que William e Kura achassem divertido o

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facto de surpreenderem a sociedade pouco mundana das Planícies de Canterbury com um vislumbre do «Grande Mundo».

Jack pensava na mãe de Gloria enquanto corria pelos atalhos a uma velocidade perigosa, para a não perder de vista. Kura-maro-tini, filha do seu meio-irmão, Paul Warden, era dona de uma beleza exótica e dotada de uma voz extraordinária. O seu sentido musical era mais uma herança da mãe, Marama, cantora maori, do que dos familiares brancos. Desde muito nova, Kura albergava o desejo de conquistar o mundo da ópera na Europa e esforçara-se muito para educar a voz. Jack, que crescera com ela em Kiward Station, ainda se recordava com horror dos exercícios de canto e das aulas de piano de Kura, que pare-ciam eternos. Inicialmente julgava-se que não havia a menor hipótese de os sonhos da rapariga se poderem cumprir na Nova Zelândia, mas um dia encontrou William Martyn, o marido e um admirador que soube tirar partido do talento de Kura. Havia anos que andavam os dois em digressão pela Europa com uma companhia de cantores e bailarinos maoris. Kura era a estrela do grupo que adaptava a músi-ca tradicional maori em caprichosas interpretações acompanhadas de instrumentos ocidentais.

– Ganhei! – Gloria parou o brioso pónei com mestria no meio da formação rochosa conhecida como Anel dos Guerreiros de Pedra. – E as ovelhas estão ali atrás!

O pequeno rebanho de ovelhas parideiras era o verdadeiro motivo por trás da cavalgada de Jack e Gloria. Os animais haviam-se instalado de livre e espontânea vontade num dos pastos próximos do círculo de rochas que a tribo local de maoris considerava sagrado. Gwyneira McKenzie-Warden, que geria a fazenda, respeitava as crenças religio-sas dos indígenas, embora as terras pertencessem a Kiward Station. Havia pastos suficientes para as ovelhas e para as vacas, por isso os animais não precisavam de pisar os lugares sagrados para os maoris. Ao almoço, Gwyneira pedira a Jack que fosse buscar as ovelhas, o que suscitara um inflamado protesto da parte de Gloria.

– Também posso fazer isso, avó! A Nimue também precisa de aprender.Desde que Gloria treinara a sua cadelinha-pastora, gostava muito

de desempenhar tarefas cada vez mais importantes na quinta, o que dava grande satisfação a Gwyneira. Naquela ocasião, também sorriu à bisneta e deu-lhe o seu aval.

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– Muito bem, mas o Jack vai contigo – decidiu, se bem que nem para si mesma soubesse explicar por que motivo a menina não podia ir sozinha no seu cavalo. Na verdade, não havia razão para se preocu-par: Gloria conhecia a quinta como a palma das mãos e toda a gente em Kiward Station a conhecia e gostava dela.

Gwyneira nunca protegera os filhos daquela forma algo excessiva. Quando a filha mais velha, Fleurette, tinha oito anos, percorria sozinha os seis quilómetros que a separavam da pequena escola dirigida por Helen, a amiga de Gwyneira, numa quinta vizinha. Mas com Gloria era diferente. Todas as esperanças de Gwyneira estavam deposita-das na única herdeira reconhecida de Kiward Station. O sangue dos Warden, os verdadeiros fundadores da quinta, corria apenas nas veias de Kura-maro-tini e de Gloria. Além disso, Marama, a mãe de Kura, era oriunda de uma tribo maori local, e os indígenas também aceita-vam a menina como herdeira. Isso era importante, porque há muitos anos que existia uma grande rivalidade entre Tonga, o chefe tribal dos ngai tahu, e os Warden. Tonga esperava reforçar a sua influência sobre o território através do casamento de Gloria com um maori da sua tribo, estratégia que falhara com Kura, a mãe de Gloria. E até à data a menina não mostrava grande interesse pela vida e cultura das tribos. Claro que falava maori fluentemente e ouvia entusiasmada as sagas e lendas antiquíssimas do seu povo, contadas pela avó Marama; mas, ainda assim, Gloria sentia-se unida apenas a Gwyneira, ao segundo marido desta, James McKenzie, e sobretudo ao filho de ambos, Jack.

A relação entre Jack e Gloria sempre fora especial. O rapaz era quinze anos mais velho do que a sobrinha-neta, por parte do meio--irmão, e quando ela era bebé, Jack protegera-a mais do que qual-quer outra pessoa das mudanças de humor e indiferença dos pais. Jack nunca gostara de Kura, nem da sua música, mas amou Gloria desde a primeira vez que a menina chorou, literalmente, como James dizia na brincadeira. A bebé costumava gritar a plenos pulmões assim que Kura premia uma tecla do piano. Jack entendia perfeitamente a pequena e levava-a com ele como se ela fosse um cachorrinho.

Entretanto, a cadelinha de Gloria, Nimue, também tinha chegado ao círculo de rochas, com Jack. A border collie abanava a cauda e olha-va para a dona quase com ar de reprovação. Não gostava que Gloria andasse naquele galope desenfreado. Vivia mais feliz antes da chegada

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daquele pónei inglês, tão veloz. Porém, acalmou-se e desatou a correr assim que Gloria, com um forte assobio, a incitou a reunir as ovelhas que se tinham espalhado por entre as rochas. Sob o olhar agradado de Jack e da sua orgulhosa dona, Nimue agrupou os animais e esperou por novas ordens. Gloria conduziu o rebanho a casa com toda a destreza.

– Estás a ver? Podia ter feito isto sozinha! – exclamou, resplande-cente e com um tom triunfal, dirigindo-se a Jack. – Vais contar à avó?

O rapaz acenou com a cabeça, mostrando um ar sério.– Claro, Glory. Ela vai ficar muito orgulhosa de ti. E da Nimue também! Há mais de cinquenta anos, Gwyneira introduzira os primeiros

border collies, originários do País de Gales, na Nova Zelândia, onde con-tinuara a fazer criação e a treiná-los. Ficava muito feliz quando via Gloria a lidar com os cães com tanta habilidade.

Andy McAran, o velho capataz da quinta, observava Jack e Gloria enquanto guardavam as ovelhas no redil onde ele se ocupava. Havia muito tempo que Andy deixara de trabalhar, mas gostava de estar na quinta e quase todos os dias aparelhava o cavalo para ir de Haldon a Kiward Station. A mulher não gostava nada que o fizesse, mas isso não o impedia; muito pelo contrário. Casara-se tarde e nunca se habi-tuara a ter quem lhe desse ordens.

– Parece quase que estou a ver a menina Gwyn. – O ancião sorriu com aprovação quando Gloria fechou a porta depois de as ovelhas passarem. – Só lhe falta o cabelo ruivo e…

Andy não completou a frase; afinal, não queria que Gloria se aborrecesse. Contudo, Jack já ouvira demasiadas vezes observações semelhantes para não saber o que Andy estava a pensar: o velhote lamentava que Gloria não tivesse herdado da bisavó o porte delica-do, quase próprio de um elfo; Gwyneira tinha legado a quase todas as mulheres da família os caracóis ruivos e a silhueta delgada. Gloria saía aos Warden: rosto anguloso, olhos um pouco juntos de mais e os lábios bem delineados. Os numerosos caracóis castanho-claros, mais do que emoldurar o rosto com graciosidade, pareciam sufocá--lo. Aquela indómita abundância de cabelo era uma maçada, por isso, havia pouco mais de seis meses, já farta, num impulso, Gloria decidira cortá-lo. Claro que todos troçaram dela, perguntando-lhe se queria transformar-se «num homem completo» (já conseguira umas calças de montar que a avó Marama normalmente costurava para os jovens

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maoris), mas, na opinião de Jack, o novo penteado de Gloria ficava--lhe muito bem e as calças largas de cavaleiro ficavam melhor no seu corpo robusto e um pouco rechonchudo do que os vestidos. Gloria parecia-se mais com os antepassados maoris no que dizia respeito ao porte atlético, por isso as roupas de corte ocidental não lhe assenta-vam tão bem.

– Na verdade, a miúda não foi buscar nada à mãe – disse naquele momento James McKenzie.

Tinha observado a chegada de Jack e Gloria da varanda do quarto de Gwyneira. Com o tempo, ganhara gosto em sentar-se ali: prefe-ria aquele miradouro ao ar livre do que as poltronas mais cómodas do salão. James completara oitenta anos havia pouco e ressentia-se da idade. As articulações doíam-lhe e isso limitava a sua liberdade de movimentos. No entanto, detestava socorrer-se de uma bengala. Recusava-se a admitir que a escada que dava acesso ao salão lhe pa-recia um obstáculo cada vez maior, preferindo convencer-se de que controlava melhor o que se passava na quinta a partir do seu observa-tório na varanda.

Gwyneira afirmava que James nunca se sentira verdadeiramente bem no acolhedor salão de Kiward Station. O seu mundo continuava a ser as instalações dos empregados. James só se resignara a viver na casa grande e criar ali o filho por amor a Gwyn. Teria preferido cons-truir uma casa de madeira para a família e sentar-se frente à lareira alimentada com lenha que ele próprio cortaria. Porém, à medida que envelhecia, esse sonho ia perdendo o encanto. Nesta altura da vida, achava agradável desfrutar simplesmente do fogo alimentado pelos empregados de Gwyneira.

Gwyneira pousou-lhe a mão no ombro e baixou também os olhos em direção ao filho e a Gloria.

– Ela é maravilhosa – disse. – Oxalá um dia encontre um homem adequado…

James levantou os olhos para o céu.– Não vamos começar com esta conversa! – queixou-se. – Graças

a Deus, ainda não se preocupa com rapazes. Quando penso em Kura e naquele rapaz maori que tantas dores de cabeça te deram… Que idade tinha ela? Treze anos?

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– Era uma menina precoce! – exclamou Gwyneira, a defender a neta. Sempre adorara Kura. – Sei que não tens por ela um carinho especial, mas no fundo o seu único problema era não gostar de viver aqui.

Gwyneira penteou o cabelo antes de o apanhar. Continuava a usá--lo comprido e ondulado, embora os cabelos brancos já ganhassem terreno aos ruivos. Não fossem eles, e mal se perceberia o peso dos anos. Quase a fazer setenta e três, Gwyneira McKenzie-Warden con-tinuava a ter a mesma figura esbelta da juventude. Ainda assim, com o tempo, o rosto descaíra um pouco e tinha algumas rugas pequenas, porque nunca fora mulher de se proteger das agruras do clima. A vida de uma dama da alta sociedade não a atraía de modo algum e, apesar de todas as peripécias da sua existência, achava que fora um golpe de sorte quando, aos dezassete anos, abandonara a nobre casa da família em Gales para empreender a arriscada aventura de se casar no Novo Mundo.

– O problema de Kura é que nunca ninguém lhe disse que não quando ainda estava em idade de aprender – troçou James. Tinha dis-cutido milhares de vezes sobre isso. Na verdade, a relação de ambos era o único ponto de conflito no seu casamento com Gwyneira.

Gwyn abanou a cabeça em sinal de despeito.– Estás a falar outra vez como se eu tivesse medo de Kura – res-

pondeu, com mau humor. Aquela acusação também não era nova, se bem que não surgira originalmente de James, mas sim da amiga de Gwyn, Helen O’Keefe. Só de pensar em Helen, que morrera no ano anterior, Gwyn sentiu uma pontada no peito.

James arqueou as sobrancelhas.– Medo de Kura? Nunca, jamais, em tempo algum! – respondeu,

troçando da mulher. – É por isso que estás há três horas a deslizar de um lado para o outro da mesa a carta que o velho Andy te trouxe. Abre-a de uma vez por todas, Gwyn! Kura está quase a vinte mil qui-lómetros daqui. Não te vai morder!

Andy McAran e a mulher viviam em Haldon, a pequena povoa-ção vizinha em cuja estação dos Correios ficava depositada a corres-pondência para Kiward Station, e sempre que chegavam cartas do ultramar, Andy não se importava de fazer de carteiro. Pelo contrário, gostava sempre de ouvir – como todos os coscuvilheiros de Haldon,

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fossem homens ou mulheres – alguma história sobre a exótica vida artística da extraordinária herdeira dos Warden. Por sua vez, James e Jack nunca escondiam as novidades sobre a singular vida de Kura, e Gwyneira também não tomava quaisquer medidas para os impedir. Afinal, na maior parte das vezes, as notícias eram boas: Kura e William eram felizes, os bilhetes dos espetáculos esgotavam-se e as digressões seguiam-se umas às outras. Mas em Haldon, as pessoas bisbilhotavam. Continuaria William a ser fiel a Kura depois de quase dez anos de casamento? E se o casamento era assim tão perfeito, por que motivo não tinha sido abençoado com mais descendentes?

Para Gwyneira, que com dedos trémulos se preparava para abrir o envelope, desta feita selado em Londres, nada disso interessava. No fundo, só lhe importava o comportamento de Kura em relação a Gloria. Até ao momento tinha sido de profunda indiferença, e Gwyneira rezava para que assim continuasse.

Porém, a avaliar pelo modo como a mulher a lia, James suspeitou que desta vez a carta continha notícias mais inquietantes do que as di-vertidas histórias, sempre famosas, sobre como «O haka se cruza com o piano». James percebera quando não reconheceu a caligrafia bicuda de Kura no envelope, mas sim a letra fluida de William Martyn.

– Querem levar a Gloria para Inglaterra – anunciou Gwyneira, com a voz rouca, quando deixou cair a carta. – Aparentemente… – Gwyn procurou as palavras de William –, apreciam a formação que lhe demos, mas estão preocupados que o «lado criativo e artístico» de Gloria não seja suficientemente estimulado aqui. James, ela não tem nenhum lado criativo e artístico!

– Graças a Deus – disse James. – E como pensam esses dois des-pertar agora esta nova Gloria? Vão levá-la em digressão com eles? Para cantar, dançar? Para tocar flauta?

O virtuoso domínio da flauta putorino era um dos pontos altos do espetáculo de Kura e, naturalmente, Gloria também tinha um ins-trumento desses. A menina não conseguira tocar uma única vez sem errar uma das «vozes normais» da flauta, o que fora motivo de tristeza para a avó Marama; e de wairua, a voz dos espíritos, nem valia a pena falar.

– Não, querem metê-la num internato. Ouve: «Escolhemos uma pequena escola, situada num local idílico perto de Cambridge, que

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proporciona uma ampla formação feminina, principalmente no âm-bito intelectual e artístico…» – leu Gwyn em voz alta. – Formação feminina? O que quer isto dizer? – Matutou, aborrecida.

James riu-se.– Vai aprender a cozinhar, a amassar pão, a bordar? – sugeriu. – A

falar francês? A tocar piano?Podia dizer-se que para Gwyneira aquilo era uma tortura. Por ser

filha de um membro da nobreza rural, não se livrara de todas aquelas disciplinas, embora, por sorte, os Silkham nunca tivessem tido dinhei-ro para enviar as filhas para colégios internos. Foi assim que Gwyn conseguiu escapar das piores aberrações para se dedicar à aprendi-zagem de coisas úteis, como montar a cavalo e treinar cães-pastores.

James levantou-se com alguma dificuldade e abraçou-a. – Vá lá, Gwyn, não vai ser assim tão horrível. Desde que os bar-

cos a vapor entraram em circulação, as viagens para Inglaterra são mais fáceis de fazer. Há muita gente que manda os filhos para colé-gios internos. E também não há de fazer mal a Gloria ver um pouco do mundo. Dizem que as paisagens de Cambridge são maravilhosas, como as daqui. Gloria estará com meninas da sua idade e pode apren-der a jogar hóquei, ou lá o que é… Concordo que quando andar a cavalo, por exemplo, tem de se habituar a usar uma sela de amazona, mas também não a vai matar saber como comportar-se em sociedade, tendo em conta que por estas bandas os barões da lã são cada vez mais elegantes…

A maior parte das grandes quintas das Planícies de Canterbury, com mais de cinquenta anos, proporcionavam grandes lucros sem exi-gir dos proprietários um esforço excessivo. Por isso, alguns «barões da lã» de segunda ou terceira geração levavam uma vida de verdadeiros proprietários. Mesmo assim, ainda havia quem pusesse as quintas à venda para que servissem de retiro aos veteranos de guerra ingleses, merecedores das mais altas condecorações.

Gwyn respirou fundo.– Deve ser por causa disso – gemeu. – Não devia ter deixado que

lhe tirassem a fotografia em cima do cavalo. Mas ela insistiu tanto… Estava tão contente com o pónei!

James sabia ao que Gwyn se referia: uma vez por ano, fazia ques-tão de tirar fotografias a Gloria para enviar aos pais. Por norma, vestia

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a menina com a roupa de domingo mais sóbria e aborrecida que ela tivesse, mas, na última vez, Gloria insistira para que a fotografassem montada no pónei novo.

– Foi a mamã e o papá quem me ofereceu a Princess! – Fora este o argumento de Gloria. – De certeza que ficarão contentes de a ver também na fotografia.

Com nervosismo, Gwyneira começou a mexer no carrapito que acabara de fazer, até alguns cabelos se soltarem.

– Não devia ter prescindido da sela de amazona e do traje de montar.James pegou-lhe docemente na mão e deu-lhe um beijo. – Já sabes como são a Kura e o William. Talvez tenha sido o pónei,

mas mesmo que lhes tivesses enviado uma fotografia de Gloria com o fato domingueiro, provavelmente ter-te-iam escrito a dizer que lhe faltava aprender piano. Talvez tenha chegado o momento. Mais cedo ou mais tarde, haviam de se lembrar que têm uma filha.

– Podia ser mais tarde! – protestou Gwyn. – E porque não nos perguntam pelo menos o que achamos? Eles não conhecem a Gloria, de todo. E ainda por cima querem pô-la num internato! É demasiado jovem…

James abraçou a mulher, embora gostasse mais de a ver indignada, em vez de vacilante e desalentada, como sucedera momentos antes.

– Muitas crianças inglesas entram para os internatos quando têm apenas quatro anos – relembrou. – E Gloria já tem doze. Vai aguentar bem. E até é provável que venha a gostar.

– Vai estar sozinha… – sussurrou Gwyn. – Sentirá saudades.James deu-lhe razão. – Acho que no início isso deve acontecer a todas as meninas, mas

depois passa. Gwyneira continuou:– Claro que sim, quando a casa dos pais se encontra a trinta quiló-

metros, não quando está a milhares de quilómetros, como é o caso de Glory! Vamos mandá-la para o outro lado do mundo, com gente que não a conhece nem a ama!

O rosto de Gwyneira tinha uma expressão triste. Até então nunca admitira aquele facto, pelo contrário, sempre defendera Kura. Mas a verdade era só uma: Kura-maro-tini não se preocupava minimamente com a filha. E William Martyn também não.

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– Porque não nos limitamos a agir como se não tivéssemos recebi-do a carta? – perguntou, enroscando-se no corpo de James. Isto fê-lo lembrar-se da jovem Gwyneira, que se refugiava nos estábulos, procu-rando a companhia dos pastores sempre que não conseguia satisfazer todas as exigências da sua nova família neozelandesa. Porém, aquele assunto era mais sério do que a simples preparação de um irish stew…

– Gwyn, querida, eles vão enviar outra. Não se trata de uma ideia disparatada de Kura. Ela até podia lembrar-se disto num belo dia, mas acabaria por se esquecer um ou dois concertos depois. A carta é de William. Isto é um projeto dele. É provável que acalente a ideia de casar Gloria com um nobre britânico na primeira oportunidade que se lhe apresentar.

– Mas se antes odiava os ingleses – objetou Gwyneira. Durante um breve período do seu passado, William Martyn lutara por uma Irlanda livre.

James fez um gesto de resignação.– O William é um vira-casacas.– Se pelo menos a Gloria não tivesse de ficar tão sozinha… –

queixou-se Gwyn. – A travessia de barco é tão longa, e com toda aquela gente desconhecida…

James deu-lhe razão. Apesar das palavras apaziguadoras, entendia o que Gwyn pensava. Gloria gostava das tarefas da quinta, mas não tinha o amor pela aventura que caracterizava Gwyn e a filha, Fleurette. Quanto a isso, a menina não só diferia de Gwyn, mas também do seu antecessor, Gerald Warden, que jamais temera o risco, e de Kura e William Martyn. Era este o legado maori. Marama, a avó da menina, era doce e sentia muito o apego pela terra. Claro que migrava com o resto da tribo, mas abandonar sozinha as terras dos ngai tahu era coisa para lhe provocar uma grande insegurança.

– E se enviarmos outra menina com ela? – sugeriu James. – Ela não tem nenhuma amiga maori?

Gwyneira abanou a cabeça. – Achas mesmo que Tonga ia concordar em mandar uma rapariga

da sua tribo para Inglaterra? – respondeu. – Já para não dizer que não me ocorre nenhuma que seja amiga de Gloria. De qualquer forma, seria… – O rosto de Gwyn iluminou-se. – Sim, pode ser uma possi-bilidade!

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James esperou pacientemente que ela desenvolvesse a ideia que acabara de lhe ocorrer.

– Claro que também ainda é muito nova…– Quem? – perguntou. – A Lilian – respondeu Gwyn. – No último ano em que Elaine

esteve aqui, a Gloria entendeu-se muito bem com a Lilian. Na verda-de, é a única menina com quem a vi brincar. E o Tim andou numa escola inglesa. Talvez goste da ideia.

Quando ouviu o nome de Lilian, um sorriso inundou o rosto de James. Outra bisneta, mas, desta feita, sangue do seu sangue. Elaine, a filha de Fleurette, casara-se em Greymouth; Lilian era a mais velha dos quatro filhos. A única menina e uma nova réplica de Gwyneira, Fleurette e Elaine: ruiva, impulsiva e sempre bem-disposta. Um ano antes, Gloria mostrara inicialmente uma certa timidez quando Lilian fora com a avó visitar a quinta. Não obstante, a prima depressa que-brara o gelo. Falara sem parar da escola, das amigas, dos cavalos e dos cães da casa, fizera corridas com Gloria e pedira-lhe que lhe ensinasse maori e tinham visitado a tribo de Kiward Station. Gwyneira ouvira pela primeira vez a bisneta a rir-se com outra menina e a trocar segre-dinhos. Juntas, haviam tentado espiar Rongo Rongo, a parteira e tohunga dos maoris, quando esta fazia um encantamento, e Lilian guardara o pedaço de jade que a mulher lhe dera como se fosse um verdadeiro tesouro. A menina nunca se cansava de inventar histórias.

– Vou pedir ao meu pai para engastar a pedra – anunciou com gravidade. – Depois ponho-a numa corrente e posso andar com ela. E quando conhecer o homem com quem me vou casar, ele… ele… – Lilian estava indecisa entre «vai arder como as brasas» e «vai vibrar com o coração descompassado».

Gloria era incapaz de partilhar desses sentimentos. Para ela, um pedaço de jade era um pedaço de jade, não um instrumento para en-feitiçar quem quer que fosse. Mesmo assim, gostava de ouvir as fan-tasias de Lilian.

– Lilian ainda é mais nova do que Gloria – salientou James. – Não imagino a Elaine a separar-se dela. Não importa o que o Tim tenha a dizer sobre o assunto…

– Perguntar não ofende – disse Gwyn, determinada. – Vou escrever--lhes agora mesmo. O que achas, devemos contar alguma coisa a Gloria?

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James suspirou e passou a mão pelos cabelos, outrora castanhos, agora grisalhos e ainda emaranhados. Era um gesto típico dele que Gwyneira continuava a achar muito atraente.

– Para já, não – respondeu finalmente. – Mas se bem entendi as palavras de William, o novo ano escolar começa depois da Páscoa. Nessa altura já teria de estar em Cambridge. Atrasar-se não lhe faria bem nenhum. Além de que, se for a única aluna nova da turma, ainda vai ter mais dificuldades.

Gwyn acenou com a cabeça, cansada.– Mas vamos ter de informar a menina Bleachum – salientou, pe-

sarosa. – Afinal, vai ter de procurar um novo emprego. Caramba, ago-ra que temos uma precetora eficiente, acontece isto!

Sarah Bleachum ensinava Gloria desde o início da sua formação escolar e a menina gostava muito dela.

– Bem, pelo menos Glory não tem um nível inferior ao das meni-nas inglesas – disse Gwyn, em jeito de consolo.

A menina Bleachum estudara na Academia de Pedagogia de Wellington, onde concluíra os estudos com notas excelentes. A sua disciplina favorita era ciências da natureza e despertara o interesse de Gloria pela matéria. Entregavam-se apaixonadamente à leitura de livros sobre a fauna e a flora da Nova Zelândia e a professora não conseguiu conter a admiração quando Gwyneira lhe mostrou os de-senhos do primeiro marido, Lucas Warden, que estudara e catalogara a povoação de insetos do país. A menina Bleachum observou, mara-vilhada, os desenhos minuciosos dos vários tipos de weta. Gwyneira tinha sentimentos contraditórios por essas criaturas. Nunca achara os insetos gigantes especialmente simpáticos.

– Era o meu bisavô, não é verdade? – perguntou Gloria, com orgulho.

Gwyneira disse-lhe que sim. Na verdade, Lucas seria mais um tio afastado da menina, mas não valia a pena explicar-lhe isso. Ele ficaria feliz por ter uma bisneta tão inteligente com quem poderia partilhar as suas paixões.

Na escola feminina inglesa, saberiam também valorizar o entusias-mo de Gloria pelos insetos e outros bichos?

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Deixa estar, consigo descer sozinho!Timothy Lambert recusou a ajuda do criado Roly quase com

brusquidão. Naquele dia sentia que era especialmente difícil levantar a perna do assento da caleche, chegar ao estribo, prendê-la e manter-se de pé com a ajuda das muletas. Estava a ter um dia mau. Sentia-se ten-so e irritado, como quase sempre acontecia quando a data do acidente que o deixara incapacitado se aproximava. Era o décimo primeiro ani-versário do desabamento da Mina Lambert e, como acontecia todos os anos, a direção assinalava a ocasião com pequenas exéquias. Os fa-miliares das vítimas apreciavam o gesto, assim como os trabalhadores atuais da mina, da mesma forma que apreciavam os dispositivos de segurança modernos que agora existiam nos seus postos de trabalho. No entanto, nestas ocasiões, Tim voltava a ser o centro de todos os olhares, e Roly O’Brien explicava pela enésima vez como o filho do dono da mina lhe salvara a vida. Tim detestava tal olhar, que oscilava entre a veneração ao herói e o horror.

Naquele momento, Roly recuou, quase ofendido, mas ficou a obser-var a uma distância prudente como o patrão descia da carruagem. Se Tim caísse, ele estaria ali, como sempre acontecera nos últimos doze anos. A ajuda de Roly O’Brien era inestimável, mas às vezes o rapaz esgotava a paciência de Tim, principalmente em dias como aquele, em que a sua tolerância já não era muita.

Roly guardou o cavalo no estábulo enquanto Tim coxeava até casa. Como era habitual, a visão do edifício de um só piso, feito de ma-deira branca, deixou-o mais animado. Mandara construir aquela casa

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simples depois do casamento com Elaine, não obstante os protestos dos pais, que lhe aconselharam uma casa mais vistosa. A vila onde eles moravam, a cerca de três quilómetros na direção da cidade, era mais adequada à imagem habitual que as pessoas tinham do proprietário de uma mina. No entanto, Elaine recusara-se a partilhar a Casa Lambert e a luxuosa mansão de dois andares com a escadaria e os quartos no andar de cima também não se adequava às necessidades de Timothy. Por outro lado, ele também não era o proprietário da mina, já que a maior parte das ações há muito que pertenciam ao investidor George Greenwood. Os pais de Tim ainda tinham algumas ações, enquanto ele desempenhava a função de gerente.

– Papá! – Lilian, a filha de Tim e Elaine, abrira a porta antes que Tim tivesse tempo de se apoiar numa só muleta e libertar a mão direita para girar a maçaneta. Por trás da menina apareceu Rube, o filho mais velho, com um aspeto desolado, porque a irmã voltara a ganhar-lhe na corrida diária que consistia em chegar primeiro para abrir a porta ao pai.

– Papá, tens de ouvir o exercício que fiz hoje! – Lilian gostava muito de tocar piano e de cantar, embora nem sempre o fizesse bem. – Annabel Lee. Conheces? É uma canção muito triste. Mas é tão boni-ta, e o príncipe ama muito a menina, mas depois…

– Coisas de miúdas! – resmungou Rube. Tinha sete anos, mas sa-bia bem o que achava tonto ou não. – Mais vale veres a minha pista de comboios, papá. Montei a locomotiva e agora só falta…

– Não é verdade! A mamã ajudou-te! – denunciou Lilian.Tim fez uma careta de impotência.– Oh céus, tenho muita pena, mas hoje não consigo ouvir a pa-

lavra «comboio» nem mais uma vez – anunciou, remexendo com carinho no cabelo acobreado do filho. Eram os quatro ruivos, uma herança de Elaine. Ainda assim, os rapazes eram mais parecidos com Tim e não havia dia em que a mãe não admirasse, satisfeita, a expres-são alegremente audaz dos seus rostos e dos amáveis olhos castanho--esverdeados.

O semblante de Tim alegrou-se ao ver a mulher a entrar no cor-redor, onde os filhos o tinham recebido, vinda da sala de estar. Estava linda, com os olhos de um verde-brilhante, a pele tão luminosa que era quase transparente e com os indomáveis caracóis ruivos. Callie, a cadela já muito velhinha, vinha atrás dela.

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Elaine deu um beijo doce no rosto de Tim.– O que fez ela desta vez? – perguntou, em jeito de saudação. Tim franziu o sobrolho. – Então agora também me lês o pensamento? – inquiriu, descon-

certado.Elaine riu-se.– De maneira alguma, mas só tens essa expressão no rosto quando

estás a pensar em algum novo método especialmente interessante para assassinar Florence Biller. E uma vez que em termos gerais não tens nada contra os caminhos de ferro, tem que ver com esta história da nova via.

Tim acenou com a cabeça.– Acertaste em cheio. Mas primeiro deixa-me entrar. Como se

portaram os meninos?Elaine abraçou o marido, oferecendo-lhe assim discretamente a

oportunidade de se apoiar nela. Ajudou-o a chegar à sala de estar, mobilada de forma acolhedora com móveis de madeira de matai, o pinheiro-negro característico da Nova Zelândia, e ajudou-o a despir o casaco antes que ele se deixasse cair na poltrona frente à lareira.

– O Jeremy pintou uma ovelha e em baixo escreveu «orelha», por isso não sabemos se se enganou a desenhar ou a escrever… – Jeremy tinha seis anos e estava a aprender a ler. – E o Bobby conseguiu dar quatro passos seguidos.

Como se o quisesse mostrar, o menino caminhou na direção do pai, que o amparou e sentou ao colo enquanto fazia caretas. O abor-recimento com Florence Biller parecia ter desaparecido de repente.

– Mais sete passos e já se pode casar! – exclamou Tim a rir e a pis-car o olho a Elaine. Depois do acidente, quando voltara a andar, o seu primeiro objetivo era dar onze passos: da entrada da igreja até ao altar. Elaine e Tim tinham ficado noivos após a tragédia da mina.

– E tu não estejas aqui à escuta, Lily! – disse Elaine à filha, que estava prestes a fazer uma pergunta. Lilian sonhava com príncipes encantados e a sua brincadeira favorita era «brincar aos casamentos». – Mais vale ires para o piano e tocar a Annabel Lee como um anjo. Assim, o papá tem oportunidade de me explicar por que motivo dei-xou de gostar dos caminhos de ferro sem mais nem menos…

Lilian encaminhou-se para o piano, enquanto os meninos volta-vam para junto do comboio de brincar que tinham montado no chão.

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Elaine serviu um uísque a Tim e sentou-se ao lado dele. Não era homem de beber demasiado e muito menos antes das refeições, embora fosse apenas para não perder o controlo dos movimentos. Porém, naquele dia, estava tão enfastiado e exausto que um pequeno gole ia saber-lhe bem.

– Na verdade, nem sequer vale a pena falar disso – respondeu Tim. – Só que a Florence voltou a negociar com a empresa ferro-viária sem consultar os restantes proprietários das minas. Soube por acaso, por intermédio de George Greenwood, que também está me-tido no negócio das vias. Juntos, podíamos conseguir melhores con-dições; mas não, a Florence parece que está à espera de que ninguém preste muita atenção aos novos carris de Greymouth para que só os Biller beneficiem do transporte bem mais rápido do carvão. Mesmo assim, eu e o Matt pedimos também uma ligação ferroviária para Lambert. Amanhã, os representantes da empresa vêm cá a fim de conversarmos sobre a distribuição dos custos. Claro que, como os carris passam pelo terreno dos Biller, Florence terá a sua estação de mercadorias no máximo dentro de seis semanas – Tim bebeu um gole de uísque.

– Ela é uma boa mulher de negócios – disse Elaine com resignação.– É um monstro! – exclamou Tim, referindo-se provavelmente a

ela de modo mais agradável do que a maior parte dos proprietários das minas e fornecedores da região.

Florence Biller era uma empresária dura que tirava partido de qualquer ponto fraco dos concorrentes. Dirigia a mina do marido com mão de ferro e os capatazes e funcionários estremeciam na sua presença, se bem que ultimamente circulavam rumores a respeito dos favores com que presenteava o jovem chefe do escritório. Por vezes, durante breves períodos, um dos colaboradores desempenhava o pa-pel de favorito. Para sermos mais exatos, até ao momento isto sucede-ra em três ocasiões. Tim e Elaine Lambert, que também estavam a par de outro segredo acerca do casamento de Caleb e Florence, tinham tirado as próprias conclusões: a senhora Biller tinha três filhos…

– Não entendo como Caleb a aguenta – disse Tim, mais descon-traído, enquanto pousava o copo na mesa. Sabia-lhe sempre bem falar com Elaine e o som de fundo do piano de Lilian, mais emocionado do que inspirado, contribuía para acalmar os ânimos.

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– Acho que às vezes o Caleb tem vergonha das intrigas dela – res-pondeu Elaine. – Mas por outro lado não se importa. Eles deixam-se mutuamente em paz: também era esse o trato.

Caleb Biller interessava-se pela gestão da mina. Era um estudio-so e uma verdadeira eminência no âmbito da arte e música maoris. Antes do casamento com Florence, acalentara a ideia de abandonar o negócio familiar e dedicar-se à música (tanto que naquela altura era ele quem se encarregava dos arranjos musicais de Kura-maro-tini Martyn). Porém, Caleb sofria de pânico do palco, e o terror que sentia frente ao público superava o que sentia pela temível Florence Weber. Formalmente, Caleb era o diretor da mina Biller, mas a chefe de ver-dade era Florence.

– Só gostava que não dirigisse os negócios como se de uma guerra se tratasse – gemeu Tim. – Compreendo o seu desejo de ser levada a sério, mas… Deus do céu, as outras pessoas também têm os seus problemas.

Tim sabia-o por experiência própria. No início da sua atividade como gerente, alguns fornecedores ou clientes tentaram aproveitar-se da incapacidade física de que padecia para lhe entregarem artigos de qualidade inferior ou apresentar reclamações injustificadas. Não obstante, Tim também tinha olhos e ouvidos fora do escritório. O seu en-carregado, Matt Gawain, era perspicaz e observador, e Roly O’Brien mantinha contactos excelentes com os mineiros. Quando Tim não precisava dele, Roly trabalhava com os mineiros e, à tarde, chegava tão coberto de pó de pedra como os companheiros. Roly não se impor-tava com a sujidade, mas depois de ter passado dois dias soterrado na mina com Tim, decidiu que nunca mais voltaria a descer a uma galeria.

Com o decorrer do tempo, Tim Lambert ganhara o respeito de todos enquanto gerente da mina e já ninguém tentava enganá-lo. Não havia dúvida de que com Florence Biller acontecia o mesmo. A mu-lher fizera as pazes com todos os concorrentes varões, mas continua-va a lutar ferozmente. Não pretendia apenas que a mina Biller fosse a mais importante de Greymouth, mas também dominar, se isso fosse possível, toda a costa oeste, senão mesmo toda a indústria mineira do país.

– Há alguma coisa para comer? – perguntou Tim à mulher. Estava a ficar com fome.

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Elaine acenou com a cabeça. – Está no forno. Ainda vai demorar um bocadinho. E antes de

comermos… quero falar contigo sobre um assunto.Tim reparou que Elaine olhou para Lilian. O assunto parecia dizer

respeito à menina. Elaine foi ter com a filha, que naquele instante fechava o piano. – Tocaste muito bem, Lily. O destino de Annabel comoveu-nos.

Agora não posso pôr a mesa, não te importas de o fazer? O Rube ajuda-te.

– Ele ainda parte algum prato! – resmungou Lilian, mas dirigiu-se, obediente, para a sala de jantar.

Logo a seguir, ouviu-se a loiça a tilintar. Elaine levantou os olhos para o céu e Tim, mais paciente, riu-se.

– Ela não é especialmente dotada para as lides domésticas – salien-tou. – O melhor é deixar-lhe a direção da mina.

Elaine sorriu.– Ou que nos ocupemos em dar-lhe uma «formação feminina

artística e criativa». – Dar-lhe o quê? – perguntou Tim, desconcertado. Elaine tirou uma carta das pregas do vestido que usava.– Lê, chegou hoje. É da avó Gwyn, que está muito confusa. O William

e a Kura querem levar a Gloria.– Assim, de supetão? – perguntou Tim, com um interesse sincero.

– Até agora só se preocuparam com a carreira de Kura. E de repente querem transformar-se numa família?

– Pois também não é isso – respondeu Elaine. – Estão a pensar num colégio interno. Acham que a avó Gwyn não se empenha o sufi-ciente para potenciar a faceta «artística e criativa» da menina.

Tim desatou-se a rir. O mau humor por causa do trabalho passara--lhe e Elaine alegrou-se ao ver o rosto do marido, ainda com a sua expressão travessa e com os vincos provocados pelos sorrisos.

– E não deixam de ter razão. Não tenho nada contra Kiward Station, nem contra os teus avós, mas a quinta não é exatamente um baluarte de arte e cultura.

Elaine encolheu os ombros. – Não sabia que Gloria sentia falta dessas coisas. A menina parece-

-me muito feliz, embora um pouco tímida. Até precisou de algum

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tempo para ganhar confiança com a Lily. E quanto a isso consigo entender a avó Gwyn. Está preocupada que ela faça a viagem sozinha.

– E? – perguntou Tim. – Há qualquer coisa a preocupar-te, Lainie. Sobre o que queres falar comigo?

Elaine estendeu-lhe a carta de Gwyneira.– A avó pergunta se não queremos enviar Lilian com Gloria. Trata-

-se de um internato muito conceituado. E ajudaria Gloria a ultrapassar esta provação.

Tim leu a carta com atenção.– Cambridge é sempre uma boa referência – observou. – Mas

não será um pouco nova de mais? Já para não falar que estes colégios internos custam uma fortuna.

– Os McKenzie encarregam-se das despesas – explicou Elaine. – Se não estivessem tão longe… – Emudeceu quando Lilian entrou na sala.

A menina pusera um avental demasiado grande e a cada dois pas-sos tropeçava nele. Como era frequente, fez com que os pais se rissem. O rosto sardento de Lilian tinha uma ligeira expressão de picardia, embora o seu olhar fosse sonhador. O cabelo era fino e ruivo, como o da mãe e o da avó, mas não tão encaracolado, e usava-o apanhado em tranças grossas, o que, juntamente com o enorme avental, a fazia parecer um duende encarregado da lida da casa.

– A mesa está pronta, mamã. E acho que a tarte também.Na verdade, na sala de estar pairava um aroma delicioso a tarte de

carne que chegava da cozinha.– E quantos copos partiste? – perguntou Elaine com severidade

fingida. – Não vale a pena negares, que o barulho ouviu-se aqui.Lilian corou.– Nenhum. Só… só parti a caneca do Jeremy…– Mamã! Ela partiu-me a caneca! – berrou o menino. Adorava a

caneca de porcelana, que já se partira uma vez, mas que entretanto fora colada. – Volta a pô-la inteira, mamã! Ou papá! O papá é enge-nheiro, sabe arranjar tudo.

– Mas não uma caneca, tontinho! – interveio Rube.Um instante depois, já os miúdos se guerreavam aos gritos. Jeremy

continuava a chorar.– Mais logo continuamos a conversa – disse Tim enquanto Elaine

o ajudava a levantar-se da poltrona. Em público insistia em revelar

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uma autonomia total e só deixava Roly levar-lhe a pasta em caso de necessidade. Mas com Elaine sentia-se à vontade para mostrar todas as vulnerabilidades. – Agora temos de alimentar a quadrilha.

Elaine acenou com a cabeça e impôs a ordem com poucas palavras. – Rube, o teu irmão não é tontinho, pede-lhe desculpa. Jeremy,

com um bocadinho de sorte, o papá consegue colar a caneca outra vez e depois podes pôr os lápis de cor lá dentro. Além disso, já és um menino crescido e podes beber pelo copo, como todos nós. E tu, Lily, guarda as partituras antes de comermos. Rube, o mesmo para ti, arruma o comboio e as linhas.

Elaine pegou no mais pequeno ao colo e sentou-o numa cadeira alta, na sala de jantar. Tim cuidaria dele enquanto ela servia a comida. Na verdade, era a criada, Mary Flaherty, quem se devia ocupar disso, mas folgava à sexta-feira à tarde. Isso explicava também por que mo-tivo Roly ainda não dera sinais de vida desde que Tim o dispensara do trabalho. Regra geral, não se separava de bom grado do patrão e costumava perguntar se podia fazer mais alguma coisa por ele. Isso dava-lhe oportunidade de trocar algumas palavras mais próximas com Mary.

Elaine presumia que naquela tarde quente do princípio do verão, os dois deviam andar a passear e a trocar mais beijos do que palavras.

Não obstante, Mary preparara a tarte de carne e Elaine só preci-sara de a meter no forno. O aroma afastou Rube da tarefa de arrumar o comboio e Lilian também já estava à porta quando Elaine se prepa-rava para a chamar.

A menina estava com uma expressão resplandecente no rosto, enquanto agitava a carta de Gwyneira McKenzie na mão. Tim deixara--a inadvertidamente em cima da mesa de apoio, junto à poltrona.

– É verdade? – perguntou, sufocada. – A avó Gwyn vai mandar--me para Inglaterra? Onde vivem as princesas? Para um desses intra… inter… umas dessas escolas onde se pregam partidas aos professores e se fazem festas de noite e tudo isso?

Tim Lambert sempre contara aos filhos como fora o período escolar dele em Inglaterra, e, a acreditar nos relatos, o tempo passa-do no internato tinha sido uma sucessão de escaramuças e aventuras. Não era de admirar que Lily se mostrasse impaciente em seguir os passos do pai e que estivesse tão emocionada.

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– Deixam-me ir, não deixam? Mamã? Papá? Quando partimos?

– Já não me querem convosco? – O olhar ferido de Gloria passava de um adulto para o outro e as lágrimas brilhavam nos seus grandes olhos de um azul-porcelana.

Para Gwyneira, a situação era insuportável. Também ela se sentiu à beira das lágrimas quando segurou a menina nos braços.

– Gloria, nem penses uma coisa dessas – consolou-a por sua vez James McKenzie, enquanto se servia de um uísque. Gwyneira esco-lhera o momento que normalmente passavam juntos depois do jantar para comunicar a Gloria a decisão dos pais, com a intenção evidente de que os «seus homens» a ajudassem. No entanto, James não se sentia confortável no papel de titular da educação de um descendente Warden. Por outro lado, Jack deixara bem evidente desde o início o que pensava das instruções de Kura e William.

– Toda a gente vai para a escola – disse o rapaz, de forma não mui-to convincente. – Eu também passei um par de anos em Christchurch.

– Mas voltavas para casa todos os fins de semana – protestou Gloria, a soluçar. – Por favor, por favor, não me mandem para tão longe! Não quero ir para Inglaterra! Jack…

A menina olhou para aquele que fora o seu protetor durante tan-tos anos em busca de ajuda. Jack contorceu-se na cadeira e esperou que os pais o apoiassem. A culpa não era dele. Pelo contrário: Jack declarara que se opunha a que enviassem Gloria para o estrangeiro.

– Espera um pouco – pedira à mãe. – Às vezes as cartas extraviam--se. E se voltarem a escrever, diz-lhes sem rodeios que Glory ainda é demasiado jovem para fazer uma viagem tão longa. Se mesmo assim a Kura insistir, pois que venha buscá-la.

– As coisas não são assim tão fáceis – respondeu Gwyneira. – Ela tem as suas obrigações enquanto artista.

– Precisamente – concordou Jack. – Não vai renunciar à admiração do público a meio do ano só para obrigar Gloria a ir para a escola. E mesmo que o fizesse, é preciso alguma preparação. Pelo menos um ano. Primeiro, a troca de correspondência, depois a viagem… Gloria ganhava dois anos. Quando fosse para Inglaterra, já ia com quase quinze anos.

Gwyneira ainda ponderara a sugestão com seriedade, mas não era tão fácil para ela como era para o filho tomar aquela decisão. Jack

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não tinha qualquer medo no que dizia respeito a Kura-maro-tini, mas Gwyn sabia que meios de coação podiam ser exercidos do outro lado do oceano. Embora Gloria fosse indiscutivelmente a herdeira, até àquele momento, Kiward Station pertencia a Kura Martyn. Se Gwyneira se opusesse aos seus desejos, bastava uma assinatura na parte inferior de um contrato de venda, e Gloria, assim como toda a família McKenzie, seria obrigada a abandonar a quinta.

– Kura não pensa tanto assim! – salientou Jack, mas James McKenzie compreendia o medo da mulher. Era provável que Kura não tivesse em conta a propriedade da quinta, mas William Martyn seria capaz de tomar tal iniciativa. James ter-se-ia deixado pressionar um pouco mais pelo filho, porque para ele Kiward Station nunca tinha sido especialmente importante. Mas para Gwyneira, pelo contrário, a quinta representava a sua vida inteira.

– Não tarda muito estás de volta – disse para a neta desesperada. – A travessia é rápida e dentro de poucas semanas estarás aqui outra vez.

– Nas férias? – perguntou Gloria, esperançosa.Gwyneira abanou a cabeça. Não tinha coragem de mentir à pequena.– Não, as férias são demasiado curtas. Pensa bem: mesmo que a

travessia demore apenas seis semanas, nos três meses que duram as férias de verão só tinhas tempo de vir para dizer bom dia e na manhã seguinte tinhas de te ir embora outra vez.

Gloria gemeu.– Bem, posso pelo menos levar a Nimue? E a Princess?Gwyneira teve a sensação de que viajava até ao passado. Quando

o pai a informara de que ia casar-se na Nova Zelândia, também ela perguntara se podia levar a cadela e a égua. Contudo, a jovem Gwyn não chorou e o seu futuro sogro, Gerald Warden, tranquilizou-a de imediato.

Claro que Cleo, a cadela, e Igraine, a égua, puderam viajar com eles para o novo país. Só que Gloria não ia para uma quinta de criação de ovelhas, mas sim para uma escola de jovens meninas.

Gwyneira ficou de coração partido, mas teve de lhe dizer nova-mente que não.

– Não, querida. Não é permitido ter cães na escola. E cavalos… não sei, mas muitas escolas que se situam no campo têm cavalos, não é verdade, James? – Olhou para o marido à procura de ajuda, como

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se o velho pastor fosse especialista em internatos ingleses dedicados à formação feminina.

James encolheu os ombros. – O que acha, menina Bleachum? – perguntou. Sarah Bleachum, a professora particular de Gloria, estivera em si-

lêncio até ao momento. Era uma mulher discreta, ainda jovem, que usava o abundante cabelo negro apanhado num rolo no alto da cabe-ça, como se fosse uma velhota, e que mantinha os olhos azul-claros, realmente bonitos, sempre baixos. A menina Bleachum só florescia quando estava com as crianças. Era uma boa professora e se um dia se fosse embora, Gloria e os meninos maoris sentiriam a sua falta.

– Acho que sim, senhor James – respondeu, comedida. A família de Sarah Bleachum emigrara quando ela era bebé, por isso a sua expe-riência não lhe permitia responder à pergunta. – Mas as regras mudam de uma escola para outra. E Oaks Garden está mais orientada para a formação artística. O meu primo escreveu-me e disse-me que ali as meninas não praticam muito desporto. – Ao dizer a última frase, a menina Bleachum ficou vermelha como um tomate.

– O seu primo? – perguntou James de imediato, em tom brinca-lhão. – Escapou-nos aqui qualquer coisa?

Como era impossível corar mais, a menina Bleachum começou a ficar muito pálida mas com manchas vermelhas.

– Eu… bom… o meu primo Christopher acabou de se instalar no seu primeiro cargo enquanto pároco perto de Cambridge. Oaks Garden pertence à sua paróquia…

– Ele é simpático? – perguntou Gloria. Naquele momento estava disposta a agarrar-se até a um prego em brasa. Se pelo menos houves-se por lá um parente da menina Bleachum…

– É muito simpático! – assegurou a professora. James e Jack observaram fascinados como ela voltou a corar com aquelas palavras.

– Mas de qualquer maneira não vais estar sozinha de todo – in-terveio Gwyneira, que se preparava para tirar uma carta que guardava na manga. No dia anterior, Tim e Elaine Lambert tinham confirmado que Lilian também iria para Inglaterra. – A tua prima Lily vai contigo. É bom, não é, Glory? Vão divertir-se muito as duas juntas!

Gloria pareceu um pouco mais animada, embora tivesse dificulda-de em imaginar que se fosse divertir.

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– Como acham que vão fazer a viagem, realmente? – perguntou Jack. Sabia que não devia exprimir-se de forma crítica em frente de Gloria, mas todo o assunto lhe parecia um erro tão grande que não se conteve. – As meninas vão sozinhas no barco? Com um cartaz ao pescoço? «Entreguem-nos em Oaks Garden, Cambridge»?

Gwyneira olhou furiosa para o filho, como se ele a tivesse apanha-do em falso. Na verdade, ainda não traçara nenhum plano de viagem.

– Claro que não. Kura e William vão buscá-las…– Ai sim?! – questionou Jack. – Porque, segundo o calendário da

digressão, em março estarão em São Petersburgo – frisou, enquanto remexia num folheto que se encontrava sobre a mesa junto à lareira. Kura e William comunicavam sempre à família os projetos das viagens e Gwyneira colava os diversos cartazes de Kura na parede do quarto de Gloria.

– Estão?... – Gwyneira sentia-se capaz de dar um par de estalos na própria cara. Aquilo não devia ser discutido diante de Gloria. – Temos de encontrar alguém que acompanhe as meninas.

A menina Bleachum parecia debater-se consigo mesma. – Se eu… bem… eu… não quero ser inoportuna, mas… quero

dizer, posso… – O sangue voltou a aflorar-lhe às maçãs do rosto.– Como mudam os tempos – disse James. – Há cinquenta anos, as

pessoas viajavam na direção oposta para se casarem. A menina Bleachum parecia à beira do desmaio.– Como?... Como sabe?...James sorriu amigavelmente. – Menina Bleachum, sou velho mas não sou cego. Se deseja ser

discreta, tem de deixar de corar de cada vez que menciona o nome de um certo reverendo.

A menina Bleachum empalideceu.– Por favor, peço-lhe que não ache que…Gwyneira estava desconcertada.– Terei entendido bem? A menina Bleachum estaria disposta a

acompanhar as meninas a Inglaterra? Sabe que a viagem dura pelo menos três meses?

A professora não sabia para onde olhar e Jack teve pena dela. – Mãe, a menina Bleachum está a tentar comunicar-nos, da for-

ma mais discreta possível, que pondera ocupar o lugar de mulher do

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pároco – disse, sorrindo com satisfação. – Desde que, depois de mui-tos anos de intercâmbio epistolar com o primo Christopher, residente em Cambridge, a afinidade que ambos sentem se confirme. Expressei--me corretamente, menina Bleachum?

A jovem acenou com a cabeça, aliviada. – Quer casar-se, menina Bleachum? – perguntou Gloria.

– Está apaixonada? – indagou Lilian. Elaine e a filha chegaram a Kiward Station uma semana antes

da partida para Inglaterra e, mais uma vez, decorreram dois dias até Gloria superar a timidez em relação às familiares. Elaine consolou Gwyneira. Tendo em conta a reserva de Gloria para com os meninos da sua idade, achava que talvez não fosse assim tão má ideia ela passar um par de anos numa escola interna.

– Se Kura tivesse ido para uma dessas escolas quando era pequena, também não lhe teria feito mal nenhum! – exclamou. A relação de Elaine com a prima melhorara antes de esta viajar para a Europa. – No caso dela, até era mais do que necessário. Mas, no fundo, o problema é o mesmo: as meninas não se dão bem com esta educação de princesas, com precetoras e aulas particulares. Kura ficou com a cabeça cheia de tolices e Gloria está a ficar cada vez mais campestre. É possível que goste de estar no meio dos rebanhos, dos cavalos e das ovelhas, mas é uma menina, avó Gwyn. E chegou a altura em que deve tomar consciência disso, nem que seja apenas em prol da continuidade da sucessão em Kiward Station.

Até ao momento, a iniciativa não parecia ser prejudicial para Gloria. Depois de dois dias de convívio com Lilian, Gloria abando-nou a sua reserva e as meninas pareciam dar-se maravilhosamente. Durante o dia, passeavam pela quinta e faziam corridas de cavalos; à tarde, enroscavam-se na cama de Gloria e trocavam segredos, que no dia seguinte Lilian pregava aos quatro ventos.

A menina Bleachum não sabia para onde olhar nem a que velo-cidade mudar do rubor para a palidez quando a menina se punha a comentar a sua vida sentimental.

Lilian, pelo contrário, não tinha a menor vergonha. – É tão emocionante atravessar um oceano inteiro porque se apai-

xonou por um homem que nunca viu! – tagarelava. – Como na música

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SARAH LARK

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John Riley. Conhece-a, menina Bleachum? John Riley parte para o mar durante sete anos e a sua amada fica à espera dele. Ama-o tanto que até lhe assegura que se ele perdesse a vida, ela também morria… e depois, quando ele voltou finalmente, ela não o reconheceu! Tem uma fotografia do seu amad… ai, do seu primo, menina Bleachum?

– A filha da pianista de um bar! – exclamou James, divertindo--se com a ofendida neta Elaine, que também corou. Lilian escolhera a altura do jantar, quando estavam todos reunidos, para interrogar a menina Bleachum. – Certamente foste tu quem lhe ensinou a canção!

Antes de se casar com Tim, Elaine trabalhara como pianista no Lucky Horse, um hotel e taberna. Não restavam dúvidas de que tinha o sentido musical mais apurado do que a filha, mas Lilian possuía um gosto especial pelas histórias por trás das baladas e músicas populares com que Elaine costumava entreter os mineiros. A menina adorava contá-las, acrescentando-lhes detalhes da sua autoria.

Elaine repreendeu a filha.– Lily, essas perguntas não se fazem! São assuntos privados sobre

os quais a menina Bleachum não tem de te dar qualquer explicação. Desculpe, menina Bleachum.

A jovem precetora sorriu, embora continuasse um pouco inquieta. – A Lilian tem razão e na verdade não se trata de nenhum segre-

do. Eu e o meu primo Christopher mantemos uma correspondência assídua desde pequenos. Nos últimos anos, isto fez com que… bem, com que nos aproximássemos. Tenho uma fotografia dele, sim, Lilian. Mostro-ta no barco.

– Assim podemos reconhecê-lo as três juntas! – acrescentou Gloria. Durante as aulas, a menina Bleachum usava óculos de lentes grossas, que normalmente tirava quando se encontrava em algum convívio social. Foi aí que Gloria foi buscar a ideia de que a professora podia passar junto do amor da sua vida sem o ver.

Gwyneira dava graças a Deus pelo talento pedagógico da menina Bleachum. Desde há algum tempo, sempre que Gloria perguntava ou pedia alguma coisa, a precetora adiava a resposta até à viagem para Inglaterra. Dizia que uma vez no barco contaria esta ou aquela histó-ria, leriam este ou aquele livro e até que lhe mostraria a fotografia do amado. Tudo isto com o objetivo de que Gloria se entusiasmasse com a partida. Já no caso de Lilian, andava há semanas a sonhar com o mar,

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O GRITO DA TERRA

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com os golfinhos que iam ver e com as águas que iam sulcar. Além disso, também falava de piratas e naufrágios: aparentemente, a graça daquela viagem consistia no facto de existir algum perigo.

Não havia nada que Gwyneira desejasse mais do que um encontro feliz entre Sarah e Christopher Bleachum. Se a jovem se casasse com o reverendo da localidade a que pertencia a escola de Gloria, a menina contaria sempre com um adulto de confiança por perto. Talvez as coi-sas não corressem tão mal como aparentavam de início.

Quando as meninas subiram para a carruagem que Jack conduziria até ao barco, Gwyneira esboçou um sorriso forçado. Elaine também ia com elas e regressaria depois a Greymouth a partir de Christchurch.

– Vamos atravessar o Trilho Bridle! – exclamou Lilian, emocio-nada; a seguir pôs-se a contar dez histórias terríveis sobre o famoso caminho de montanha que unia Christchurch ao porto de Lyttelton.

O caminho fora percorrido por legiões de novos colonos, can-sados da interminável travessia e demasiado pobres para poderem permitir-se ao aluguer de mulas que os transportassem. A própria Gwyneira falara às meninas sobre a paisagem maravilhosa que se via do cimo da montanha: as Planícies de Canterbury banhadas pelo sol e, ao fundo, a arrebatadora vista dos Alpes Neozelandeses.

Os olhos da anciã senhora ainda resplandeciam quando o descre-via, porque no preciso instante em que aquela imagem se apresentou à sua frente, Gwyneira ficou irremediavelmente apaixonada pelo país que se transformou no seu lar.

Contudo, as meninas partiam agora no sentido inverso e Gwyneira não lhes contou que a sua amiga Helen comparara aquela paisagem montanhosa, inóspita e estéril que inicialmente aparecera aos seus olhos, com uma «montanha do inferno» própria de uma canção romântica.