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R. Fac. Dir. Univ. São Paulo v. 109 p. 623 - 639 jan./dez. 2014 QUEM HABITA A DIGNIDADE HUMANA? A FUNDAMENTAÇÃO KANTIANA WHO INHABITS HUMAN DIGNITY? THE KANTIAN GROUNDING Marcelo de Azevedo Granato * Resumo: O artigo examina o conceito kantiano de dignidade humana com base na Fundamentação da metafísica dos costumes (1785), em particular, o papel da autonomia da vontade na fundamentação da dignidade. O ponto de partida desse exame é a liberdade transcendental de que trata a Crítica da razão pura (edição de 1787), seguindo-se a análise de alguns elementos da teoria moral kantiana, notadamente o imperativo categórico, em duas de suas formulações, e o conceito de dignidade humana. A relação entre dignidade, racionalidade e autonomia (enquanto autolegislação, conforme à moral kantiana) constitui o objetivo do artigo, que se concluirá com breves comentários sobre algumas dificuldades que tal relação suscita. Palavras-chave: Imperativo categórico. Fim em si mesmo. Dignidade humana. Natureza racional. Autonomia da vontade. Abstract: This paper examines Kant’s concept of human dignity based on the Groundwork for the Metaphysics of Morals (1785), in particular, the role of the autonomy of the will in grounding dignity. The starting point of such examination is the transcendental freedom of the Critique of pure reason (1787 edition), followed by the analysis of some elements of Kant’s moral theory, especially the categorical imperative, in two of its formulations, and the concept of human dignity. The relationship between dignity, rationality and autonomy (as self-legislation, in accordance with Kantian morality) constitutes the purpose of the paper, to be concluded with brief comments on some difficulties arising from that relationship. Keywords: Categorical imperative. End in itself. Human dignity. Rational nature. Autonomy of the will. * Doutor em Direito pela Università degli Studi di Torino (Itália) e pela Universidade de São Paulo (Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito). Advogado e juiz-contribuinte do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo.

Quem Habita a Dignidade Humana a Fundamentação Kantiana

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Quem habita a dignidade humana? A fundamentação kantianadignidade humanaA fundamentação kantianaKant

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    QUEM HABITA A DIGNIDADE HUMANA? A fUNDAMENTAo kANTIANA

    WHO INHABITS HUMAN DIGNITY? THE KANTIAN GROUNDING

    Marcelo de Azevedo Granato*

    Resumo:O artigo examina o conceito kantiano de dignidade humana com base na Fundamentao da metafsica dos costumes (1785), em particular, o papel da autonomia da vontade na fundamentao da dignidade. O ponto de partida desse exame a liberdade transcendental de que trata a Crtica da razo pura (edio de 1787), seguindo-se a anlise de alguns elementos da teoria moral kantiana, notadamente o imperativo categrico, em duas de suas formulaes, e o conceito de dignidade humana. A relao entre dignidade, racionalidade e autonomia (enquanto autolegislao, conforme moral kantiana) constitui o objetivo do artigo, que se concluir com breves comentrios sobre algumas dificuldades que tal relao suscita.

    Palavras-chave: Imperativo categrico. Fim em si mesmo. Dignidade humana. Natureza racional. Autonomia da vontade.

    Abstract:This paper examines Kants concept of human dignity based on the Groundwork for the Metaphysics of Morals (1785), in particular, the role of the autonomy of the will in grounding dignity. The starting point of such examination is the transcendental freedom of the Critique of pure reason (1787 edition), followed by the analysis of some elements of Kants moral theory, especially the categorical imperative, in two of its formulations, and the concept of human dignity. The relationship between dignity, rationality and autonomy (as self-legislation, in accordance with Kantian morality) constitutes the purpose of the paper, to be concluded with brief comments on some difficulties arising from that relationship.

    Keywords: Categorical imperative. End in itself. Human dignity. Rational nature. Autonomy of the will.

    * Doutor em Direito pela Universit degli Studi di Torino (Itlia) e pela Universidade de So Paulo (Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito). Advogado e juiz-contribuinte do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de So Paulo.

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    1. Introduo1

    No constitui demasia acentuar, escreve o ministro Celso de Mello em seu voto no ARE 639337 AgR,2 que o princpio da dignidade da pessoa humana representa -- considerada a centralidade desse postulado essencial (CF, art. 1, III) -- significativo

    vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso Pas.

    Resultaria desse princpio,3 por exemplo, a noo de mnimo existencial, que, como aponta o ministro no mesmo voto, compreende um complexo de prerrogativas cuja concretizao revela-se capaz de garantir condies adequadas de existncia digna, assegurando-se o acesso das pessoas ao direito geral de liberdade e, tambm, a prestaes positivas originrias do Estado, viabilizadoras da plena fruio de direitos sociais bsicos.

    Tambm essa a orientao da Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Em seu prembulo, consta que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da famlia humana e de seus direitos iguais e inalienveis o fundamento da liberdade, da justia e da paz no mundo. Conforme seu art. 1, Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. So dotadas de razo e conscincia e devem agir em relao umas s outras com esprito de fraternidade.

    O art. 22 da Declarao, por sua vez, estabelece que Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito segurana social e realizao, pelo esforo nacional, pela cooperao internacional e de acordo com a organizao e recursos de cada Estado, dos direitos econmicos, sociais e culturais indispensveis sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade. No artigo seguinte, 23, afirma-se: Toda pessoa

    que trabalhe tem direito a uma remunerao justa e satisfatria, que lhe assegure, assim como sua famlia, uma existncia compatvel com a dignidade humana.

    Como se v, reverberando a ltima transcrio do voto do ministro Celso de Mello no ARE 639337 AgR, a Declarao Universal associa dignidade humana tanto a liberdade individual (de pessoas dotadas de razo e conscincia) quanto uma remunerao justa e satisfatria.

    1 Todas as citaes tm base na edio da Academia (Kants gesammelte Schriften: herausgegeben von der Deutschen Akademie der Wissenschaften, anteriormente Kniglich Preussischen Akademie der Wissenschaften, 29 vols. Berlin, Walter de Gruyter, 1902 ), disposta eletronicamente pelo Institut fr Kommunicationsforschung und Phonetik da Universidade de Bonn, organizada e disponibilizada no endereo eletrnico www.korpora.org/Kant/. Nas referncias edio da Academia, indicou-se obra, volume, pgina e linha(s) onde se encontra o trecho citado (inclusive no caso da Crtica da razo pura, edio de 1787). As tradues so de responsabilidade do autor, que tambm recorreu a tradues publicadas -- realizando eventuais modificaes --, referidas na bibliografia.

    2 Agravo Regimental no Recurso Extraordinrio com Agravo (So Paulo).3 Implicitamente, em conjunto com outras disposies constitucionais.

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    Essa associao no soaria elementar ao grande filsofo da dignidade

    (ministra Crmen Lcia, ADIN4 3.510-0/DF), Immanuel Kant. Enquanto a liberdade individual um conceito fundamental na obra kantiana -- inclusive no tratamento da dignidade humana --, a remunerao do trabalho um tema que no aparece.

    Nem por isso Kant deixa de figurar na doutrina e jurisprudncia nacionais

    quando o assunto a dignidade humana. Exemplo disso, ainda no STF, o voto do ministro Marco Aurlio no julgamento da ADPF5 54/DF, sobre a interrupo da gravidez de fetos anencfalos. Ali, o conceito kantiano de dignidade humana item relevante, e confirma a

    pertinncia do exame a ser empreendido aqui, especificamente voltado quele conceito.

    Esse exame ter por base a Fundamentao da metafsica dos costumes (Fundamentao), obra de 1785 em que Kant constri uma teoria moral de cunho normativo e apriorstico, marcada pelo clebre imperativo categrico Age apenas segundo a mxima pela qual possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal.6 Essa a formulao primeira do imperativo, conhecida entre os comentadores de Kant como a frmula da lei universal.7

    Outra frmula, a que mais interessa anlise que segue, Age de tal maneira que tomes a humanidade, tanto em tua pessoa quanto na pessoa de qualquer outro, sempre [e] ao mesmo tempo como fim, nunca meramente como meio.8

    Antes de aprofundar o exame dessa ltima frmula, conhecida como a frmula da humanidade,9 necessrio situar minimamente a empresa de Kant, i.e. sintetizar o percurso que redunda nessa frmula, partindo no de consideraes morais, mas do problema, e afirmao, da liberdade.

    Na Crtica da razo pura (edio de 1787), Kant examina a antinomia entre a causalidade natural -- causalidade que conhecemos, em que nada acontece sem uma causa suficientemente determinada a priori10 -- e uma causalidade outra,

    4 Ao direta de inconstitucionalidade.5 Arguio de descumprimento de preceito fundamental.6 GMS, AA 04: 421. 07-08.7 Cf. PATON, H. J. The categorical imperative: a study in Kants moral philosophy. 3. ed. Philadelphia:

    University of Pennsylvania Press, 1971; ONEILL, Onora. Universal laws and ends-in-themselves. In: Constructions of reason. - Explorations of Kants practical philosophy. 5. ed. New York: Cambridge University Press, 2000. p. 126-144.

    8 GMS, AA 04: 429. 10-12.9 Cf. WOOD, Allen W. Kantian Ethics. New York: Cambridge University Press, 2008; SENSEN, Oliver.

    Dignity and the formula of humanity. In: TIMMERMANN, Jens (Org.). Kants Groundwork of the Metaphysics of Morals. A Critical Guide. New York: Cambridge University Press, 2009. p. 102-119. PATON e ONEILL falam em frmula do fim em si, de todo modo, isso irrelevante para os fins deste artigo.

    10 KrV, AA 03: 308. 22-23.

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    incondicionada, que demarcaria ela prpria o incio de uma srie de eventos no mundo natural: uma espcie de causalidade dos seres vivos, enquanto racionais.11

    A (aqui, abreviada) resoluo dessa antinomia encaminhar a anlise seguinte, sobre alguns elementos da teoria moral kantiana, como exposta na Fundamentao. Da, a abordagem do imperativo categrico e do conceito de dignidade humana.

    A abordagem desse conceito marca o principal objetivo do texto, que destacar a relao (ocasionalmente negligenciada em sua fora) entre a dignidade humana e a aptido do ser humano ao agir autnomo, moral. Ento, e a encerrar o texto, seguiro breves comentrios sobre algumas dificuldades que essa mesma relao suscita.

    2. O percurso moralidade: a liberdade

    2.1. Causalidade pela natureza X causalidade pela liberdade

    Um tratamento adequado desse tema nos levaria alm daquilo que lhe cumpre (preparar) aqui. Assim, nessa exposio sumria, o que primeiro emerge a observao de Kant, na Crtica da razo pura, de que nossa experincia cognitiva somente possvel mediante a representao de uma conexo necessria das nossas percepes.12 Essa conexo necessria se daria segundo uma lei, a lei da causalidade: Todas as mudanas acontecem segundo a lei da conexo de causa e efeito.13

    Desse modo, a sucesso, no tempo, de todos os eventos (ou fenmenos, na terminologia kantiana) obedeceria a lei da causalidade, no que tambm nossas aes no mundo emprico se concatenariam segundo essa lei: s enquanto subordinamos a sucesso dos fenmenos e portanto toda a mudana lei da causalidade, possvel a experincia, isto , o conhecimento emprico dos fenmenos.14

    Entretanto, se todos os eventos se encadeiam conforme a causalidade natural, como falar em liberdade? Se toda ao antecedida por um estado anterior, que guarda com essa ao uma relao causal, como falar numa causa primeira, independente, que instaure por si uma srie de eventos no mundo?

    Assim se delineia a referida antinomia da razo de que fala Kant na Crtica da razo pura.15 Em sua busca pelo incondicionado, a razo representa a causalidade de dois modos: como uma condio primeira, incondicionada, ou como o todo da srie

    11 GMS, AA 04: 446. 07-08.12 KrV, AA 03: 158. 15-17.13 KrV, AA 03: 166. 32-33.14 KrV, AA 03: 168. 03-06.15 Trata-se do Terceiro Conflito das Idias Transcendentais da Antinomia da Razo Pura.

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    infinita de condies.16 Da, a tese A causalidade segundo leis da natureza no a nica da qual podem ser derivados os fenmenos do mundo em conjunto. Para explic-los, necessrio admitir ainda uma causalidade mediante liberdade17 e a anttese No h liberdade alguma, mas tudo no mundo acontece meramente segundo leis da natureza.18

    Tanto a tese quanto a anttese assumem a validade, no campo da experincia, da causalidade natural. O problema reside na eventual necessidade de recorrer-se a uma outra espcie de causalidade, que, diversa da causalidade natural, possa ser entendida como espontaneidade absoluta, dando incio a uma srie de fenmenos que sucedem segundo leis da natureza.

    A tese, para negar a anttese, sustenta que, se houvesse apenas a causalidade natural, com seu regresso ao infinito na srie das condies, haveria uma contradio em

    sede dessa mesma causalidade, afinal, a lei da natureza consiste precisamente em que

    nada acontece sem uma causa suficientemente determinada a priori. Logo, a proposio

    segundo a qual toda a causalidade possvel somente conforme a lei da natureza contradiz a si mesma em sua ilimitada universalidade.19

    Do lado da anttese, afirma-se a impossibilidade de uma ao que no seja

    antecedida por um estado anterior, que guarde com ela uma relao causal. Entendida como um incio absoluto, sem antecedentes, a ao a que se remete a tese contrariaria leis da experincia possvel, pois a partir da unidade da experincia, manifestada na relao causal entre os fenmenos no tempo, que possvel um conhecimento objetivo. Um incio absoluto, ao conflitar com as condies da unidade da experincia, seria impossvel.

    Para Kant, tese e anttese so compatveis. O fato de um incio primeiro, incondicionado, conflitar com as condies da experincia no tornaria um tal incio

    impensvel ou contraditrio. possvel pensar, na srie das causas e efeitos, uma causa inteligvel ( o termo de Kant), uma causa que no integre essa srie de causas e efeitos, de modo que a condio est fora da srie dos fenmenos (no inteligvel), no estando, portanto, submetida a nenhuma condio sensvel e a nenhuma determinao temporal por causas precedentes. No obstante, numa outra relao, exatamente a mesma causa tambm pertence srie dos fenmenos.20

    16 tal incondicionado pode ser pensado [de dois modos]: ou consiste simplesmente na srie total, na qual, pois, todos os elementos sem exceo seriam condicionados e somente o todo dela seria absolutamente incondicionado, e ento o regresso chama-se infinito; ou o absolutamente incondicionado somente uma parte da srie, qual os elementos restantes so subordinados e que no est submetida a nenhuma outra condio. No primeiro caso, a srie [...] infinita [...]. No segundo caso, h um termo primeiro da srie, que [...] se denomina, [...] com respeito s causas, auto-atividade absoluta (liberdade). KrV, AA 03: 288. 15-28.

    17 KrV, AA 03: 308. 04-07.18 KrV, AA 03: 309. 04-05.19 KrV, AA 03: 308. 21-29.20 KrV, AA 03: 374. 11-16.

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    Ou seja, essa causa incondicionada se encontraria fora da causalidade natural, mas na natureza que seus efeitos teriam curso. Assim que, resolvendo a antinomia, Kant estabelece um espao conceitual para a liberdade,21 mediante a qual a razo pensa iniciar absolutamente a srie das condies no fenmeno atravs daquilo que no condicionado pelos sentidos [...] Mostrar que esta antinomia repousa sobre uma simples aparncia e que a natureza pelo menos no conflita com a causalidade a

    partir da liberdade era a nica coisa que podamos fazer e tambm aquela que nica e exclusivamente nos interessava.22

    Essa liberdade conceitualmente defensvel abre caminho moral kantiana, e assim ingressamos na Fundamentao, obra que orientar a presente anlise sobre o conceito de dignidade humana.

    3. A moral kantiana

    3.1. A vontade e a boa vontade

    Na Fundamentao, a liberdade tratada como um pressuposto necessrio, sem o qual indagaes de cunho moral perderiam sentido, j que a nica causalidade a se manifestar no mundo seria a causalidade natural -- tornando os seres humanos refns de seus impulsos, sob leis em relao s quais no poderiam intervir; estariam, assim, desprovidos de uma autntica vontade, entendida como uma espcie de causalidade dos seres vivos, enquanto racionais ou a faculdade de agir segundo a representao das leis, isto , segundo princpios.23

    Por dispor de uma vontade, o ser humano no imediatamente guiado por suas necessidades, inclinaes, desejos naturais. Ele no age segundo leis da natureza. Ele age segundo a sua representao das leis (da natureza e daquelas que ele projeta para si em suas aes). essa representao que instruir sua conduta.

    Isso no quer dizer que a vontade deva sempre ser refratria ao chamado das inclinaes naturais. O problema surge, precisamente, quando esse chamado o do nosso interesse egosta. Ento que nos distanciamos da boa vontade de que fala Kant no incio da Fundamentao: No h nada no mundo, e at mesmo fora dele, que possa ser considerado irrestritamente bom a no ser, apenas, uma boa vontade. Entendimento, engenho, capacidade de julgar [...] so, sem dvida, bons e desejveis sob vrios aspectos,

    21 Liberdade que ele denomina transcendental, enquanto totalmente independente da causalidade presente na natureza.

    22 KrV, AA 03: 377. 23-31.23 GMS, AA 04: 412. 26-28.

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    mas podem tambm tornar-se extremamente maus e nocivos se no for boa a vontade que deve fazer uso desses dons da natureza.24

    3.2. A frmula da lei universal e sua aplicao

    Como desvencilhar-se, ento, do interesse egosta que repele a boa vontade inscrita na moral kantiana? Interesse a que frequentemente aderimos, nas vrias formas em que ele se apresenta, e que faz da nossa ao veculo de sua satisfao, i.e. boa meramente para outra coisa, enquanto meio.25 J uma ao representada como boa em si26 objeto de um tipo particular de imperativo, que espelha uma ao objetivamente necessria por si s, sem referncia a qualquer inteno [...] sem qualquer outro fim.27

    Trata-se, no primeiro caso, dos imperativos hipotticos, que representam a necessidade prtica de uma possvel ao como meio para alcanar uma outra coisa que se quer,28 no segundo caso, o imperativo categrico, na medida em que no concerne matria da ao e ao que deve resultar dela, mas forma e ao princpio do qual ela prpria se segue, e o que h de essencialmente bom na mesma consiste na atitude,29 seja qual for o resultado. Este imperativo pode chamar-se o imperativo da moralidade.30

    Mas que lei pode ser esta, cuja representao, mesmo sem levar em considerao o efeito que dela se espera, tem de determinar a vontade para que esta possa chamar-se absoluta e irrestritamente boa? Uma vez que despojei a vontade de todos os estmulos que lhe poderiam advir da observncia de uma lei qualquer, nada mais resta seno a legalidade universal das aes, que sirva sozinha de princpio vontade, isto , nunca devo proceder de outra maneira seno de tal sorte que eu possa tambm querer que a minha mxima se torne uma lei universal.31

    O trecho acima introduz a primeira frmula do imperativo categrico kantiano: Age apenas segundo a mxima pela qual possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal. A mxima de que fala o imperativo corresponde, em linhas gerais, ao princpio de ao do indivduo, regra (geral) que ele, nem sempre refletidamente, erige como norte de sua conduta em diferentes situaes de vida, e.g.

    24 GMS, AA 04: 393. 05-13.25 GMS, AA 04: 414. 22-23.26 GMS, AA 04: 414. 23-24.27 GMS, AA 04: 415. 02-04.28 GMS, AA 04: 414. 13-15.29 Ou disposio (Gesinnung).30 GMS, AA 04: 416. 10-14.31 GMS, AA 04: 402. 01-09.

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    mentir ou-no diante de uma situao julgada difcil, ser ou no solidrio em relao a terceiros.32

    O ponto de partida do imperativo categrico no a ao, mas o princpio que a informa, sobressaindo, ainda, a objetividade desse imperativo, que independe da matria da ao, de seu particular resultado,33 e obrigatrio para a vontade. Ele veicula, assim, a exigncia de que o agente tenha suas paixes sob controle da razo -- i.e. que elas eventualmente acompanhem, mas no determinem a ao --, de forma que suas mximas possam ser queridas como leis universais, vlidas para todo ser racional.34

    Tambm importante registrar, num parntese, que a moral kantiana vai alm da aprovao da mxima da ao no teste do imperativo categrico. A ao, para ser moral, ainda precisa ser realizada por respeito lei moral, em reconhecimento do dever que essa lei veicula: Pode-se dizer de cada ao conforme lei, que, contudo, no ocorreu por causa da lei, que ela seja moralmente boa apenas segundo a letra, mas no segundo o esprito (segundo a disposio).35

    A moralidade pode at coincidir com nossa inclinao, mas o mbil da ao no pode ser e.g. o medo, o contentamento, a aprovao de terceiros ou a conscincia pesada. Deve, sim, ser o respeito pela lei moral (o qual significa meramente a conscincia

    32 Sobre o conceito kantiano de mxima, confira-se ALBRECHT, M. Kants Justification of the Role of Maxims in Ethics. In: AMERIKS, Karl; HFFE, Otfried (Ed.). Kants Moral and Legal Philosophy. New York: Cambridge University Press, 2009. p. 134-155; ALLISON, Henry E. Kants theory of freedom. 5. ed. New York: Cambridge University Press, 2003; BECK, Lewis White. A commentary on Kants Critique of Practical Reason. 3. ed. Chicago & London: The University of Chicago Press, 1984; BITTNER, Rdiger. Mximas. Trad. de Mauro Luiz Engelmann e Rogrio Passos Severo. Studia kantiana: Revista da Sociedade Kant Brasileira, So Paulo, v. 1, n. 5, p. 7-24, nov. 2003; BUBNER, Rdiger. Another look at maxims. In: Kants legacy: essays in honor of Lewis White Beck. Rochester: University of Rochester Press, 2000. p. 245-259; HFFE, Otfried. Immanuel Kant. Trad. de Christian Viktor Hamm e Valrio Rohden. So Paulo: Martins Fontes, 2005; LONGUENESSE, Batrice. Moral judgment as a judgment of reason. In: Kant on the human standpoint. Cambridge University Press. New York: 2005. p. 236-264; ONEILL, Onora. Universal laws and ends-in-themselves. In: Constructions of reason. Explorations of Kants practical philosophy. 5. ed. New York: Cambridge University Press, 2000. p. 126-144. O autor empreende uma discusso sobre o conceito kantiano de mxima em A interao latente. Moral e poltica em Kant. In: BOVERO, Michelangelo (Org.). Teoria politica. Madrid/Barcelona/Buenos Aires: Marcial Pons, 2012. p. 307-321.

    33 O que no quer dizer que o agente deve ignorar os resultados da sua ao (eles no podem fund-la).34 O que no quer dizer que a possibilidade de se querer a mxima da ao como lei universal imponha,

    irremediavelmente, essa ao: Moralidade , portanto, a relao das aes com a autonomia da vontade, isto , com a legislao universal possvel por meio das suas mximas. A ao que possa concordar com a autonomia da vontade permitida; a que com ela no concorde proibida (GMS, AA 04: 439. 24-28).

    35 KpV, AA 05: 072n. Ainda: o conceito de dever exige na ao, objetivamente, concordncia com a lei, mas na sua mxima, subjetivamente, respeito pela lei, como o nico modo de determinao da vontade pela lei. E disso depende a diferena entre a conscincia de ter agido conformemente ao dever e a de ter agido por dever, isto , por respeito lei, cuja primeira forma de conscincia (a legalidade) possvel mesmo que apenas as inclinaes tivessem sido os fundamentos determinantes da vontade, enquanto a segunda forma (a moralidade), o valor moral, tem que ser posta unicamente em que a ao ocorra por dever, isto , simplesmente por causa da lei (KpV, AA 05: 81. 10-19).

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    da subordinao de minha vontade a uma lei, sem mediao de outras influncias sobre

    meu sentido36), como materializada no teste do imperativo.37

    Na Fundamentao, Kant traz alguns exemplos de aplicao do imperativo categrico. Ele pergunta se possvel querer, como lei universal, uma mxima segundo a qual o agente, diante de um apuro, faz uma promessa que sabe de antemo que no conseguir cumprir. Sua resposta negativa: se todos fizessem promessas falsas diante de

    um apuro, no haveria mais promessa alguma, pois seria intil afirmar minha vontade

    relativamente s minhas aes futuras a pessoas que no acreditariam nessa afirmao

    ou, se precipitadamente o fizessem, pagariam-me na mesma moeda, portanto, a minha

    mxima, uma vez erigida a lei universal, destruir-se-ia a si mesma.38 39

    Em dois outros exemplos da aplicao do imperativo categrico, Kant trata (i) da mxima do cultivo, ou do desleixo, dos prprios talentos e (ii) da mxima da solidariedade (ou do egosmo).

    No primeiro caso, Kant observa ser possvel pensar um mundo em que vigesse, como lei universal, o desleixo com os prprios talentos (uma natureza segundo tal lei universal poderia sempre subsistir, mesmo que o homem [...] deixasse enferrujar o seu talento e s cuidasse de empregar a sua vida na ociosidade, no regozijo, na procriao40). Mas no seria possvel querer esse mundo, j que, segundo Kant, o ser racional quer necessariamente que todas as faculdades sejam desenvolvidas nele, porque lhe so teis e esto dadas para toda espcie de fins possveis.41

    Quanto mxima do egosmo, Kant nota que, apesar de racionalmente concebvel como lei universal, uma vontade que assim decidisse estaria em conflito

    consigo mesma, na medida em que podem suceder muitos casos em que ela [a pessoa que adota a mxima do egosmo] precise do amor e da compaixo dos outros e nos quais

    36 GMS, AA 04: 401n.37 Apesar de que, como reconhece Kant, no se pode observar as mximas, nem mesmo, sempre, na prpria

    pessoa; portanto, o julgamento de que um agente um homem mau no pode se basear, com segurana, na experincia. RGV, AA 06: 20. 27-29.

    38 GMS, AA 04: 403. 12-17.39 Denn wenn sie als allgemeines Gesetz einer probeweise versuchten Naturvorstellung gedacht wrde, die

    ich durch mein Handeln nach dieser Maxime zu realisieren htte, dann wrde sich folgendes ergeben: keiner knnte in dieser Natur einem Versprechen glauben und Geld ausleihen. Die zum Gesetz erklrte Maxime wrde sich daher selbst unmglich machen: die durch sie hergestellte Natur wre unzweckmssig. KAULBACH, Friedrich. Immanuel Kant. Berlin/New York: de Gruyter, 1982. p. 228. Para HFFE, sendo a promessa uma auto-obrigao, uma mxima que preveja uma promessa conscientemente falsa -- i.e. uma auto-obrigao a que no se obriga o autor -- incorre em contradio. Assim, no pode ser pensada como lei universal (HFFE, Otfried. Immanuel Kant p. 213).

    40 GMS, AA 04: 423. 07-11.41 GMS, AA 04: 423. 13-16. Em seu ensaio sobre o Iluminismo, ao tratar de um hipottico contrato pelo qual se

    impediria a humanidade, para sempre, de progredir na ilustrao, Kant o qualifica como absolutamente nulo e sem validade, constituindo um crime contra a natureza humana, cuja determinao original consiste justamente nesse progresso (WA, AA 08: 039. 09-11).

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    ela, por meio de uma tal lei da natureza originada de sua prpria vontade, roubaria de si mesma toda esperana de auxlio que deseja para si.42

    Assim, no seria contraditrio projetarmos todos como egostas e desleixados em relao aos prprios dons naturais, mas no poderamos querer que essas duas mximas vigessem como leis universais.

    Relativamente diversa foi a concluso do primeiro exemplo acima, em que a mxima da falsa promessa destruiria a si mesma j em sua concepo. A distino de Kant: Algumas aes so constitudas de modo tal que sua mxima sequer pode ser pensada, sem contradio, como lei universal da natureza, muito menos se poderia querer que devesse ser tal. Em outras, no se encontra aquela impossibilidade interna, contudo, impossvel querer que sua mxima seja erguida universalidade de uma lei da natureza, pois uma tal vontade se contradiria a si mesma.43

    4. A frmula da humanidade

    4.1. O ser humano como um fim em si mesmo

    Dessa apresentao sumria da primeira frmula do imperativo, passa-se quela que nos interessa especialmente, a frmula da humanidade: Age de tal maneira que tomes a humanidade, tanto em tua pessoa quanto na pessoa de qualquer outro, sempre [e] ao mesmo tempo como fim, nunca meramente como meio.

    importante reportar o comentrio que antecede a enunciao dessa frmula:

    Os fins que um ser racional se prope, sua discrio, como efeitos de sua ao (fins materiais) so, na sua totalidade, apenas relativos [...] todos esses fins relativos so to-somente o fundamento de imperativos hipotticos.

    Supondo, porm, que haja algo cuja existncia tenha em si mesma um valor absoluto, que, enquanto fim em si mesmo, possa ser fundamento de leis determinadas, ento encontrar-se-ia nele e to-somente nele o fundamento de um possvel imperativo categrico [...] o homem e, de modo geral, todo ser racional, existe como fim em si mesmo, no meramente como meio para o uso discricionrio dessa ou daquela vontade, mas sim, tem de ser considerado em todas as suas

    42 GMS, AA 04: 423. 31-35.43 GMS, AA 04: 424. 03-10.

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    aes, tanto as dirigidas a si mesmo quanto a outros seres racionais, sempre [e] ao mesmo tempo como fim.44

    Encontramos, nesse trecho da Fundamentao, a concepo do ser humano (ser racional) como um fim objetivo, de valor incondicionado, que baseia um imperativo

    igualmente incondicionado (categrico).No se trata de um fim a ser produzido atravs da ao, mas j existente, e

    independente da situao e demais circunstncias dos agentes; um fim que j pode e deve

    ser levado em conta por eles em suas aes, enquanto um limite objetivo, que subordina os variados fins previstos nas suas mximas. No exemplo da falsa promessa -- adaptado

    presente frmula do imperativo --, Kant afirma que

    aquele que tem a inteno de fazer a outrem uma promessa mentirosa reconhecer, de pronto, que quer servir-se de um outro homem simplesmente como meio [...] Pois impossvel que aquele que eu quero usar para as minhas intenes mediante uma tal promessa [falsa] concorde com minha maneira de proceder com ele e, assim, contenha em si mesmo o fim dessa ao.45

    No caso da mxima do cultivo (ou do desleixo) dos prprios talentos, o argumento de Kant que h, na humanidade, predisposies a uma maior perfeio que pertencem ao fim da natureza com respeito humanidade em nosso sujeito; negligenci-

    las poderia muito bem subsistir com a conservao da humanidade, enquanto fim em si

    mesmo, mas no com a promoo desse fim.46

    44 GMS, AA 04: 427f. 32-11. Esse e outros trechos correlatos da Fundamentao (por exemplo, a prxima transcrio) vinculam-se, em seu sentido e defesa, a passagens posteriores da obra, particularmente sua terceira seo. Porm, considerando-se os fins deste artigo, tais passagens no sero examinadas aqui.

    45 GMS, AA 04: 429f. 29-01. Esse conflito com o princpio de outros homens [da humanidade, segundo algumas tradues] salta mais nitidamente aos olhos quando aduzimos exemplos de ataques liberdade e propriedade de outros. Pois ento fica muito claro que o transgressor dos direitos dos homens est disposto a servir-se da pessoa dos outros como mero meio, sem levar em considerao que eles, como seres racionais, devem sempre ser estimados, ao mesmo tempo, como fins, isto , unicamente como seres tais que tm de poder conter tambm em si o fim dessa mesma ao (GMS, AA 04: 430. 02-09).

    46 GMS, AA 04: 430. 13-17. Como destaca Guido Antnio de Almeida em nota sua traduo do pargrafo parcialmente transcrito acima, a inteno de Kant, nessa passagem, mostrar que a exigncia de agir com base em mximas que permitam tratar a si mesmo e os demais como fins em si mesmos inclui a exigncia de agir com base em mximas que contribuam positivamente para os fins da humanidade na pessoa de cada um (KANT, Immanuel. Fundamentao da Metafsica dos Costumes. Trad. de Guido Antnio de Almeida. So Paulo: Discurso Editorial: Barcarolla, 2009. p. 331). Vale registrar que o objetivo, aqui, reportar o entendimento de Kant no tema, e no discutir (apoiando ou desapoiando) suas concluses.

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    4.2. A dignidade humana

    Esse valor absoluto que Kant atribui ao ser humano constitui sua dignidade. Como um fim em si mesmo, ele no pode ser comparado, substitudo, compensado por

    outra coisa. No pode ser mensurado, precificado, trocado: O que tem preo, em seu

    lugar tambm se pode pr outra coisa, enquanto equivalente; mas o que se eleva acima de todo preo, no permitindo, portanto, qualquer equivalente, tem uma dignidade.47

    O ser humano no tem um valor relativo, mas ntimo; assim, no tem preo, mas dignidade; pessoa, no coisa:

    Os seres cuja existncia no se baseia [...] em nossa vontade, mas na natureza, tm [...], se eles so seres desprovidos de razo, apenas um valor relativo, enquanto meios, e por isso chamam-se coisas; ao contrrio, os seres racionais denominam-se pessoas, porque sua natureza j os assinala como fins em si mesmos, isto , como algo que no pode ser usado meramente como meio, portanto [como algo que] restringe [...] todo arbtrio.48

    A passagem acima indica a propriedade do ser humano que o distingue e marca o status peculiar que Kant lhe atribui; a natureza racional existe como fim em si,49 diz Kant pouco antes de apresentar a frmula da humanidade.

    Humanidade e natureza racional, portanto, so termos equivalentes, no que a primeira denota, tanto quanto uma srie de indivduos, uma srie de capacidades. Capacidades racionais: de estabelecer fins, escolher entre eles e implement-los. essa

    aptido do ser humano que o distingue dos demais seres e funda sua dignidade.Uma aptido que, na tica kantiana, ainda requer esclarecimento.

    5. Autonomia e dignidade

    Comecemos por recordar parte de nosso percurso no tema do imperativo categrico, o imperativo da moralidade. Primeiramente, ele vincula a ao a um elemento de natureza objetiva, i.e. forma da universalidade (deve-se poder querer que a mxima da ao se torne uma lei universal); subjetivamente, porm, a ao vinculada a um fim, e o sujeito de todos os fins [...] todo ser racional, enquanto fim em si mesmo

    (deve-se tomar a humanidade sempre e ao mesmo tempo como fim, nunca meramente

    como meio).50

    47 GMS, AA 04: 434. 32-34.48 GMS, AA 04: 428. 18-25.49 GMS, AA 04: 429. 02-03.50 GMS, AA 04: 431. 09-14.

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    Daqui, e esse o ponto que nos interessa, segue agora o terceiro princpio prtico da vontade, enquanto condio suprema da consonncia da mesma com a razo prtica universal, a ideia da vontade de todo ser racional como vontade universalmente legisladora:51

    Pois que eu deva, no uso dos meios para qualquer fim, restringir minha mxima condio de sua validade universal como uma lei para todo sujeito, nada mais diz seno que o sujeito dos fins, isto , o ser racional mesmo, no deve jamais ser tomado por fundamento das mximas de ao como um mero meio, mas, sim, como suprema condio restritiva no uso de todos os meios, isto , sempre ao mesmo tempo como fim. Ora, da se segue, incontestavelmente, que todo ser racional, enquanto fim em si mesmo, tem de poder considerar-se, com respeito a quaisquer leis a que possa estar submetido, ao mesmo tempo, como legislando universalmente.52

    A vontade que no est simplesmente submetida lei, mas submetida de tal maneira que ela tambm tem de ser vista como autolegisladora,53 uma vontade autnoma.54 Ao contrrio, Se a vontade busca a lei que deve determin-la em qualquer outro lugar que no seja a aptido de suas mximas para uma legislao universal prpria [...] se, indo alm de si mesma, busca essa lei na qualidade de qualquer um de seus objetos, o resultado ser sempre heteronomia. No a vontade, ento, que d a si mesma a lei, mas o objeto que d a lei vontade por sua relao com esta. Na heteronomia, os imperativos so hipotticos, nunca categricos. No exemplo de Kant, aquele diz: no devo mentir se quero manter minha boa reputao; este, porm: no devo mentir, ainda que isso no me acarretasse a menor desonra.55

    A autonomia a propriedade da vontade pela qual ela uma lei para si mesma (independentemente de toda propriedade dos objetos do querer):56

    Nossa prpria vontade, na medida em que agisse somente sob a condio de uma legislao universal possvel por suas mximas [...] o objeto prprio do respeito, e a dignidade da humanidade consiste exatamente nessa capacidade de ser

    51 GMS, AA 04: 431. 14-18.52 GMS, AA 04: 438. 01-10.53 GMS, AA 04: 431. 21-24.54 O conceito de liberdade transcendental formado na primeira Crtica [vide item II. (i). acima], a independncia

    de toda a natureza, revela-se na tica como a liberdade prtica (moral), como a autodeterminao. A vontade livre de toda a causalidade e determinao estranha d a si mesma sua lei. HFFE, Otfried. Immanuel Kant p. 219.

    55 GMS, AA 04: 441. 03-15.56 GMS, AA 04: 440. 16-18.

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    legislador universal, se bem que com a condio de estar, ao mesmo tempo, submetida a essa mesma legislao.57

    Como se v, a dignidade do ser humano no se vincula e.g. sua pertena ao gnero humano ou sua suposta origem divina, mas sua natureza racional, apta a elevar-se sobre as leis (inclinaes) empricas e submeter-se apenas a leis autoatribudas, vlidas para todo ser racional.58 Por ser autnomo, deixo de ser um sujeito apenas dependente [...]: se obedeo Lei sem estar impelido por algum outro mvel ou motivo, somente na medida em que posso ver-me como o prprio instituidor dela, na qualidade de legislador universal. Isso faz que no haja nenhum mistrio no fato de que, agindo por dever, eu esteja necessariamente desligado de qualquer espcie de interesse [...]: este aparente sacrifcio no passa do efeito da minha fidelidade legislao que dou a mim

    mesmo59 (LEBRUN).A autonomia, diz Kant, o fundamento da dignidade da natureza humana

    e de toda natureza racional.60

    6. Concluso

    Isso no quer dizer que apenas moralistas militantes sejam fins em si/

    tenham dignidade. Seno porque a prpria ao moral, i.e. realizada por respeito lei moral, no certificvel, porque Kant mesmo diz, na Fundamentao, que a moralidade, e a humanidade enquanto capaz de moralidade, a nica coisa que tem dignidade.61 Enquanto capaz de moralidade,62 todo vilo um legislador universal em potencial.63

    57 GMS, AA 04: 440. 07-13.58 Uma crtica a esse entendimento est no voto do ministro Menezes Direito na ADIN 3.510/DF: Com

    todo respeito, essa engenhosa soluo compartilhada por boa parte do mundo ocidental para justificar a violao do embrio: um estatuto intermedirio, fundado em uma dignidade tambm intermediria, geralmente associada ausncia de capacidade moral ou racional. Curiosamente, esse fundamento foi adotado a partir da obra de um dos principais defensores da tica relacional, Kant. Ao mesmo tempo em que nos legou a famosa segunda formulao do imperativo categrico, qual se deve uma importante base da biotica (age de tal maneira que uses a tua humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca como meio), ele no se preocupou em definir o que seria essa humanidade, ensejando o reconhecimento, por parte de alguns, da racionalidade como fundamento nico e exclusivo da condio humana.

    59 LEBRUN, Grard. Uma escatologia para a mora. In: TERRA, Ricardo R. (org.). Idia de uma histria universal de um ponto de vista cosmopolita. Trad. de Rodrigo Naves, Ricardo R. Terra. 2. ed. So Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 73.

    60 GMS, AA 04: 436. 06-07.61 GMS, AA 04: 435. 07-09.62 I.e. de uma boa vontade.63 Para uma outra leitura da relao entre humanidade, natureza racional e moralidade, confira-se DEAN,

    Richard. The value of humanity in Kants moral theory. New York: Oxford University Press, 2006 (The humanity that should be treated as an end in itself is a properly ordered will, which gives priority to moral considerations over self-interest. To employ Kants terminology, the end in itself is a good will, p. 6).

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    O problema que a dignidade humana, assim fundamentada, vincula-se a uma aptido que nem todos os seres humanos tm, ao menos no plenamente/permanentemente. o caso, por exemplo, de embries, fetos, crianas, adultos com deficincias de ordem mental. Por no serem (ainda) autnomos, eles no teriam a mesma

    dignidade de seres humanos sos e maduros -- no teriam, do ponto de vista kantiano, nascido livres e iguais em dignidade e direitos?64 Kant no se detm sobre essa questo.65

    Pode-se tentar respond-la de mais de uma forma, mas no, a nosso ver, infirmando o que foi dito acima sobre a fundamentao da dignidade humana na

    autonomia do ser racional (no que alguma discrepncia de status entre os seres humanos acima subsistiria66). Todos concordamos, por exemplo, que uma criana no pode ser usada meramente como meio pelo fato de no ser capaz de moralidade. Mas no porque um dia ela ainda o ser; essa criana, por algum motivo, pode nunca tornar-se uma pessoa inteiramente apta e responsvel moralmente. Aqui, talvez seja melhor argumentar, com WOOD, que tratar a criana meramente como meio (ao invs de auxili-la em seu processo de amadurecimento) inaceitvel por constituir um desrespeito prpria natureza racional.67

    Claramente, isso no encerra a srie de problemas que a questo acima suscita. O que dizer, por exemplo, de pessoas em estado vegetativo ou da hiptese em que um tratamento respeitoso a fetos ou embries implica um tratamento desrespeitoso, i.e. no condizente com a natureza racional, de outro ser humano?

    Em suma, o conceito kantiano de dignidade humana, se perquirido em sua fundamentao, no um porto assim to seguro, ensejando dificuldades e pontos

    de vista que nem todos estaro dispostos a aceitar (embora essa mesma fundamentao desconforte muito menos do que conhecidos critrios para a distino dos seres humanos).

    Da, a concluso final de que a iniciativa de transpor o tratamento kantiano

    do tema ao Direito to fecunda -- vide a relao entre dignidade humana e direitos sociais aludida na introduo deste artigo -- quanto arriscada, especialmente ao no se atentar a um elemento essencial do projeto kantiano: elaborar uma pura filosofia moral

    que seja completamente depurada de tudo que possa ser somente emprico e pertena Antropologia.68

    So Paulo, 12 de fevereiro de 2014.

    64 Art. 1 da Declarao Universal dos Direitos Humanos, transcrito na introduo deste artigo.65 Para uma anlise do que Kant escreveu em torno dessa questo, Kantian Ethics p. 99-101.66 WOOD, por exemplo, fala em pessoas em sentido estrito (persons in the strict sense) e pessoas em sentido

    amplo (persons in the extended sense). Kantian Ethics p. 95-97.67 Kantian Ethics p. 95-101.68 GMS, AA 04: 389. 07-09.

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