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Texto de palestra Seminário Literatura de Cordel
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Quem imagina, cria medo e quem tem medo, não vai lá
literatura de folhetos e momento estético da pesquisa em cultura popular
Edson Soares Martins
Crato 2012
Quem imagina, cria medo e
quem tem medo, não vai lá
literatura de folhetos e momento estético
da pesquisa em cultura popular
Edson Soares Martins
Crato 2012
© Edson Soares Martins
Coordenador Editorial: Francisco de Freitas Leite
Conselho Editorial: Edson Soares Martins, Francisco de Freitas Leite, Francysco Pablo
Feitosa Gonçalves, Harlon Homem de Lacerda Sousa, Maria Cleide Rodrigues
Bernardino, Newton de Castro Pontes, Ridalvo Felix Araujo.
Preparação de texto: Ateliê Editorial do Netlli Diagramação: Ateliê Editorial do Netlli Revisão de texto: Edson Soares Martins
FICHA CATALOGRÁFICA
M3865 Martins, Edson Soares.
Quem imagina, cria medo e quem tem medo, não vai lá: literatura de
folhetos e momento estético da pesquisa em cultura popular/ Edson Soares Martins.
Crato: Edição do Autor, 2012.
12 p. 14 cm.
1. Literatura de folhetos. I. Título
CDD: B869.4
CDU: 821.134.3(81)
Ateliê Editorial do Netlli Universidade Regional do Cariri
R. Cel. Antonio Luís, 1611, Pimenta. Crato, Ceará. 63100-000 www.netlli.wordpress.com | [email protected]
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Amadeu Amaral, em Tradições populares, uma obra que
já anda a merecer mais uma reedição e um sopro de
redescoberta, comentando uma “espécie de
romantismo regionalista e plebeísta, que faz questão de
exaltar as qualidades de inteligência, bom senso,
perspicácia, valentia, bondade e honradez das
populações rurais”, apesar de reconhecer seu caráter
simpático, conclui pela ideia que não há “coisa mais
contrária ao espírito científico que tais
sentimentalismos”. Além de iniciar minhas
considerações manifestando total acordo com a
correção e atualidade do pensamento de Amaral, como
alertando que o terei como guia durante a noite de hoje,
ainda que não o cite, para dar fluidez à palestra. O
principal motivo para isto se deve ao delineamento
metodológico por ele desenvolvido e à pertinência com
que tais considerações se oferecem como auxílio ao
trabalho que vimos desenvolvendo no Behetçoho –
Núcleo de Pesquisa em Cultura Popular.
Quero falar do prazer de pesquisar os folhetos da
oraliteratura nordestina. Justifico o termo esquisito com
o lembrete de que a dimensão comunicativa oral
precede à escrita no caso dos folhetos, que, na vertente
apreciativa à qual me alinho, são feitos para serem
ouvidos e, portanto, para serem cantados, ditos ou lidos
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em voz alta pelos que não os detém nos baús da
memória. Seria oportuno, portanto, adiantar o que
entendo por prazer. Chamo prazer à satisfação de uma
necessidade ordinária sentida como falta extraordinária.
Beber água quando se está saciado dificilmente será um
prazer comparável a sorvê-la quando temos o corpo
inteiro castigado pela sede.
Espero não ter desapontado aqueles que esperavam
uma definição mais teórica ou mais erudita. Não me
interessa nem a descrição fisiológica nem a descrição
filosófica (sem desprezá-las, naturalmente), como
também não me interessa arrolar um imponente
conjunto de autores e tratados respeitáveis (sem,
todavia, negar-lhes o mérito de sua posição nos rankings
acadêmicos). Creio ter aprendido, intuitivamente, a
evitar esses perigos quando, ainda aluno de graduação,
conheci o trabalho de Ignez Ayala e Marcos Ayala e
quando, mais tarde, pude compreender, de fato, a
importância do que eles vêm fazendo ao logo das
últimas décadas. Se eu fosse, entretanto, um desses
tantos descarados acadêmicos, poderia afetar ares de
especialista, dizendo que aprendi isso em Amadeu
Amaral, para quem o teorismo e eruditismo, junto com o
sentimentalismo romântico, formam o trio dos males.
Para esse pesquisador, “o teorismo peca por demasiada
pressa de construir belos edifícios com materiais exíguos
e frágeis”, enquanto o eruditismo peca “por demasiado
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apego aos materiais [...] que acumula sem pensar
bastante no que se há de fazer com eles”. Quantos de
nós não vimos já pesquisas da mais variada natureza
tomando o folheto como instrumento para aprender a
ler, a escrever, a combater a dengue? A pressa do
edifício teórico nem sempre permitiu a estes
pesquisadores (bem-intencionados, não duvido)
compreender em profundidade a natureza e os
fundamentos estéticos dos folhetos, antes de tentar
domesticar suas prováveis (ou improváveis)
propriedades terapêuticas. Ontem ouvimos isso aqui. A
mesma inquietação me deixa incomodado ante as
pesquisas de natureza enciclopédica, as quais se lançam
à coleta desenfreada de informações tão variadas e
numerosas que a mera perspectiva de autenticação dos
dados provoca calafrios. E isso para não falar em filtros
que parecem aproveitar qualquer coisa que tenha
surgido sob o mandato de Deus... O que é folheto
aparece misturado à literatura de cordel e as mais
variadas contrafações.
A PRIMEIRA HORA DO PRAZER
O primeiro tipo de prazer, e o mais evidente em si
mesmo, é o prazer da mais gratuita fruição
contemplativa. Reside no encontro com as imagens,
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temas e linguagem desse sistema. Candido chamou
interno a esse tipo de componente. Sua natureza pode
ser captada na mais estrita imanência do texto, ainda
que em prejuízo da dimensão de totalidade do processo
de criação artístico. Veja-se o trecho a seguir, da Donzela
Teodora, recriada por Leandro Gomes de Barros:
Em pouco tempo ela tinha Tão grande adiantamento
Que só Salomão teria Um igual conhecimento Cantava música e tocava
A qualquer um instrumento
Estudou e conhecia As sete artes liberais Conhecia a natureza De todos os vegetais Descrevia muito bem A castra dos animais
Descrevia os doze signos De que é composto o ano
Da cabeça até os pés Conhecia o corpo humano
E dava definição De tudo do oceano
Admirou todo mundo O saber desta donzela Tudo que era ciência
Podia se encontrar nela O professor que ensinou-a
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Depois aprendeu com ela
Mas como tudo no mundo É mutável e inconstante
Esse rico mercador Negociava ambulante
E toda sua fortuna Perdeu no mar num instante
Atrás do bem vem o mal Atrás da honra a torpeza Quando ele saiu de casa Levava grande riqueza
Voltou trazendo somente Uma extrema pobreza
Só via em torno de si
O vil manto da marzela Em casa só lhe restava A mulher e a donzela
Então chamou Teodora E pediu o parecer dela
O prazer do acúmulo sucessivo de imagens, da hipérbole, por assim dizer, se conjuga em perspectiva surpreendente com o inusitado: a sabedoria, que já é tão rara, apresenta-se no esplendor da juventude e no corpo da mulher, o que contrabalança, felizmente, a noção equivocada de que este sistema é homogêneo nas estereotipações que, em parte, o constituem.
O SEGUNDO MOMENTO DO PRAZER
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O outro momento de prazer que vejo em conexão com a pesquisa dos folhetos é aquele da dimensão do método. Pesquisar folhetos requer constituir um fazer elaborativo de instrumentos procedimentais com os quais a comunidade científica, muitas vezes, se acomoda mal. Enumero alguns elementos, sem pretensão de apresentá-los de forma mais robusta:
a) O reconhecimento de que o fazer intelectual não é trato distintivo das camadas letradas da sociedade requer a construção da pesquisa sob o solo da humildade, quando o terreno que mais havíamos palmilhado era aquele das mestrias socialmente autorizadas pelas instituições tradicionais de segregação do saber, com destaque para as universidades.
b) Decorrência disto, é que o artista intelectual que atua fora do mundo da ciência oferece-nos obras que se destacam do mundo da vida por meio de procedimentos composicionais diferentes daqueles com que a academia se havia familiarizado. O que é folheto pressupõe uma dimensão enunciativa primeira, na qual artista e público costumam estar frente a frente; a sua mera transposição para um suporte escrito, não dispensa esse momento constitutivo original de uma poesia da voz para os ouvidos e que deve ser lida com os ouvidos, como ontem se disse aqui.
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c) A diferença, que aprendemos a chamar de diversidade, desde que passamos a habitar o politicamente correto, impõe um delineamento axiológico da pesquisa que esteja em conformidade com o real de sua existência concreta, única e irrepetível. Remeto ao trecho do ensaio de Maria Ignez Ayala, que tivemos o prazer de publicar recentemente, em que ela analisa um baião de aniversário, apontando-lhe as invariantes do gênero, sem contudo ignorar o acontecer-em-si da cantoria e, principalmente, sem avançar nenhuma apreciação valorativa que não sejam aquelas do universo mesmo da cantoria.
d) Por último, mas não por fim, podemos considerar o efeito de reorganização da experiência humana pressuposto no necessário entrecruzamento de saberes vindos de tradições distintas. Na pesquisa dos folhetos, o olhar do linguista roça as bordas do analista literário, do antropólogo, do sociólogo, do historiador, do filósofo e do artista. O afã classificatório da academia é forçado a se banhar nas águas da não-centralidade e ao sair de lá, quando não sai apenas molhado, emerge como que batizado em uma revelação de um mundo da cultura desprovido das noções ocidentais (e um tanto autoritárias, no uso que delas fazem os ideólogos disfarçados de intelectuais) de centro e periferia.
O TERCEIRO PRAZER
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A última experiência que trago para comentar aqui é, justamente, aquela da formação do intelectual acadêmico capaz de dialogar com o intelectual do mundo em que a letra escrita não é um fundamento da autoridade do saber. Note-se que não falo de mundo iletrado, porque esta noção toma como centro a importância da escrita que é uma obsessão não universalizável: nem todas as formas de convívio social atribuem o mesmo papel à escrita, logo, deve ser errado chamar de desforrozados os povos que não valorizam o forró como prática cultural. Iletrado é uma noção a serviço da dominação dos outros e, como tal, pouca valia tem em uma noite em que nos dispusemos a falar de prazeres.
Para refletir sobre este terceiro prazer, que é o de nos pormos a trabalhar para aproximar irmãos, recito o poema de um certo Antonio Vieira (poeta de folhetos de Santo Amaro da Purificação, Bahia) com que encerro minhas considerações:
A nossa poesia é uma só Eu não vejo razão pra separar
Todo o conhecimento que está cá Foi trazido dentro de um só mocó
E ao chegar aqui abriram o nó E foi como se ela saísse do ovo A poesia recebeu sangue novo Elementos deveras salutares
Os nomes dos poetas populares
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Deveriam estar na boca do povo
Os livros que vieram para cá O Lunário e a Missão Abreviada
A donzela Teodora e a fábula Obrigaram o sertão a estudar
De repente começaram a rimar A criar um sistema todo novo
O diabo deixou de ser um estorvo E o boi ocupou outros lugares
Os nomes dos poetas populares Deveriam estar na boca do povo
No contexto de uma sala de aula
Não estarem esses nomes me dá pena A escola devia ensinar
Pro aluno não me achar um bobo Sem saber que os nomes que eu louvo
São vates de muitas qualidades O aluno devia bater palma
Saber de cada um o nome todo Se sentir satisfeito e orgulhoso
E falar deles para os de menor idade Os nomes dos poetas populares
[Antonio Vieira]