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1 RAQUEL SANTOS SANT’ ANA ONILDA ALVES DO CARMO EDVÂNIA ÂNGELA DE SOUZA LOURENÇO QUESTÃO AGRÁRIA, SAÚDE DO TRABALHADOR E OS DESAFIOS PARA O SÉCULO XXI UNESP/CULTURA ACADÊMICA FRANCA 2011

QUESTÃO AGRÁRIA, SAÚDE DO TRABALHADOR E OS DESAFIOS … · 4 Questão Agrária, Saúde do Trabalhador e os Desafios Para o Século XXI Endereço para correspondência: UNESP -

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Questão Agrária, Saúde do Trabalhador e os Desafios Para o Século XXI 1

RAQUEL SANTOS SANT’ ANAONILDA ALVES DO CARMO

EDVÂNIA ÂNGELA DE SOUZA LOURENÇO

QUESTÃO AGRÁRIA, SAÚDE DO TRABALHADOR E OSDESAFIOS PARA O SÉCULO XXI

UNESP/CULTURA ACADÊMICAFRANCA

2011

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2 Questão Agrária, Saúde do Trabalhador e os Desafios Para o Século XXI

UNESP – Universidade Estadual PaulistaUNESP – São Paulo State University

Reitor - Vice-reitor no exercício da ReitoriaProf. Dr. Julio Cezar Durigan

Vice-Reitor no exercício da reitoriaProf. Dr. Julio Cezar Durigan

Pró-Reitor de Pós-GraduaçãoMarilza Vieira Cunha Rudge

Pró-Reitora de PesquisaProfa. Dra. Maria José Soares Mendes Giannini

Faculdade de Ciências Humanas e Sociais

DiretorProf. Dr. Fernando Andrade Fernandes

Vice-DiretoraProf.ª Dr.ª Célia Maria David

Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Serviço SocialPe. Mário José Filho (in memória)

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Questão Agrária, Saúde do Trabalhador e os Desafios Para o Século XXI 3

Conselho Editorial

Anita Pereira Ferraz Programa de Pós-Graduação em Serviço Social – UNESP-Franca/SP

Antonio Thomaz Junior Professor dos Cursos de Graduação e de Pós-graduaçãoem Geografia/FCT/UNESP/Presidente Prudente; coordenador do CEGeT;pesquisador PQ/CNPq

Antonio Lázaro Sant’Ana Prof. Dr. Unesp- Campus de Ilha Solteira

Francisco Alves

Claudia Mazzei Nogueira Departamento e Programa de Pós-graduação emServiço Social da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.

Iris Fenner Bertani - Departamento e Programa de Pós-graduação em ServiçoSocial – UNESP- Franca/SP

José Fernando Siqueira - Departamento e Programa de Pós-graduação emServiço Social – UNESP- Franca/SP

Lívia Hernandes Carvalho - Programa de Pós-graduação em Serviço Social –UNESP- Franca/SP

Maria Izabel da Silva - Programa de Pós-graduação em Serviço Social –UNESP- Franca/SP

Nathalia Brant - Programa de Pós-graduação em Serviço Social – UNESP-Franca/SP

Patrícia Soraya Mustafa - Departamento e Programa de Pós-graduação emServiço Social – UNESP - Franca/SP

Priscila de Souza Oliveira - Programa de Pós-graduação em Serviço Social –UNESP- Franca/SP

Ricardo Lara Departamento e Programa de Pós-graduação em Serviço Socialda Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.

Vera Lúcia Navarro Profa Livre Docente do Departamento de Psicologia eEducação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto –USP. Credenciada aos Programas de Pós-graduação em Saúde na Comunidadeda Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP e Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de RibeirãoPreto – USP.

Vinicius Barbosa de Araújo – Programa de Pós Graduação em Direito -Franca/SP

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4 Questão Agrária, Saúde do Trabalhador e os Desafios Para o Século XXI

Endereço para correspondência:UNESP - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais

Av. Eufrázia Monteiro Petráglia, 900 - C. Postal 211; CEP. l4.409 -160-Franca-SP. Brasil

[email protected]

Índices para catálogo sistemático:1. Questão Agrária..............................................................2. Mundo do Trabalho.... ..........................................................3. Saúde do Trabalhador................................................4. Gênero......................................................................4. Políticas Sociais Publicas..................................................................5. Serviço Social..............................................................................

EQUIPE DE REALIZAÇÃO

Editoração Eletrônica...Ficha Catalográfica...Revisão ABNT...Revisão Final...Capa: Criação Artística

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

S223q Sant’ana, Raquel SantosQuestão agrária e saúde do trabalhador : desafios para o século XXI /Raquel Santos Sant’ana, Onilda Alves do Carmo, Edvânia Ângela deSouza Lourenço ; prefácio Prof. Dr. Francisco Alves - São Paulo :Cultura Acadêmica, 2011.400p. : il.Inclui bibliografiaAnexos ISBN 978-85-7983-236-91. Reforma agrária - Brasil. 2. Agricultura e Estado - Brasil. 3.Trabalhadores rurais - Brasil. I. Carmo, Onilda Alves do. II.Lourenço, Edvânia Ângela de Souza III. Título.

11-8380. CDD: 333.3181 CDU: 332.2.021.8

13.12.11 22.12.11 032134

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Questão Agrária, Saúde do Trabalhador e os Desafios Para o Século XXI 5

...O sol banha seus corposComo quem banha as floresBanha queima e ardeEsse sol invade os corpos;Retiram as energias;Cansa;Causa fadiga;Desmaia;Irrita;Encanta, pois é prova do sonhoDo renascer...A cada dia uma nova missãoA cada dia uma nova metaPerdoaremos aqueles que exploram?Que querem lucroQue querem beber do sucoExtraído nesses eitos...REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVAMais valia!MENOS VIDAS...Eito, direitos trabalhistas e suorSuor, eito e direitos trabalhistasDireitos Trabalhistas, suor e eitoSão eitos das próprias históriasSão sujeitos da história!Podão, que poda os sonhosLaminas afiadas como os movimentos que executamLutam! São trabalhadores que lutamSorriem! São trabalhadores que apesar de tudo SORRIEMAmam! São trabalhadores,Que mesmo mergulhados no capitalismo sem coração,Se atrEvem amar!A vida dos trabalhadores da cana possui brilhoPossui solPossui produção eETANOL!Energia renovável, que não renovaCansa, brutaliza;Explora...Tira as energias dos filhos do sol.

FragmentosMarcos Paulo Rocha Fernandes

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SUMÁRIO

Apresentação..............................................................................................11Préfacio. Francisco Alves............................................................................15

PARTE 1CAPITALISMO E MODELO DE DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO

CAPÍTULO 1 CONTRADIÇÕES DO DESENVOLVIMENTOCAPITALISTA NO BRASIL: limites ambientais e degradação do trabalhono complexo agroindustrial canavieiro.Adriano Pereira Santos................................................................................21

CAPITULO 2 DESENVOLVIMENTO DO CAPITALISMO NOCAMPO: as transformações do trabalhador rural em proletariado agrícola.Marize Rauber Engelbrecht...........................................................................39

CAPITULO 3 ENTRE A TERRA E O PRATO: a geografia alimentar emquestão.Valmir José de Oliveira Valério; Antônio Thomaz Júnior............................49

CAPITULO 4 O PADRÃO DE DESENVOLVIMENTO DOSAGRONEGÓCIOS E A DEVASTAÇÃO DA VIDA.Frederico Daia Firmiano............................................................................61

CAPITULO 5 A CONTRIBUIÇÃO DAS INDUSTRIAS DEAGROTOXICOS À DESTRUTIVIDADE DO CAPITALISMO.Everson de Alcântara Tardeli; Heliton Moreno Mendonça.........................75

CAPITULO 6 PRÁTICAS AGROECOLÓGICAS NO MUNICÍPIO DECRISTALINA/GO: desafios no território do agrohidronegócio.Ricardo Junior de Assis Fernandes Gonçalves; Santiago Henrique Cruz;Marcelo Rodrigues Mendonça....................................................................85

CAPITULO 7 CONTRADIÇÕES DO DESENVOLVIMENTOCAPITALISTA BRASILEIRO: Agronegócio versus Saúde dosTrabalhadores nos frigoríficos de carnes.Alcides Pontes Remijo; Ricardo Lara.........................................................101

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PARTE 2A LUTA PELA TERRA, MOVIMENTOS SOCIAIS, REFORMAAGRÁRIA E ASSENTAMENTOS RURAIS

CAPITULO 8 EXPANSÃO DO AGROHIDRONEGÓCIO NO SEMI-ÁRIDO NORDESTINO E OS CONFLITOS POR TERRA E ÁGUA:revisitando a questão campo-cidade.José Aparecido Lima Dourado...................................................................115

CAPITULO 9 REFORMA AGRÁRIA: sonho ou realidade?Júnia Marise Matos de Sousa; Bruno Gomes Cunha; Celso Donizete Locatel;Maria das Dores Saraiva de Loreto..........................................................127

CAPITULO 10 NEM TUDO QUE SE PLANTA DÁ! Um esboço histórico-social sobre a situação camponesa e agrária no Brasil.Fábio Fraga dos Santos; Giszelda Khenia de Oliveira; Jaqueline de MeloBarros; Luana Braga; Reginaldo Pereira França Junior...........................141

CAPITULO 11 POLÍTICA PUBLICA E SEUS EFEITOS NAAGRICULTURA FAMILIAR NA REGIÃO DE GENERAL SALGADO-SP.Sara Dias da Silva Lisboa e Sant’Ana, Antonio Lázaro............................155

CAPITULO 12 O CINEMA COMO INSTRUMENTO POLÍTICO DEFORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA.Onilda Alves do Carmo, Isabela Campos; Jacqueline Ferreira; Letícia Gomes;Nicole Araujo, Luiza Villarquide Firmino, Wellington Renan Teles de Ataide;Diego Ungari, Larissa Zambelli Caputo, Natasha Cristine da Silva, ViniciusAmericano Paron, Raquel Santos Santa’Ana................................169

PARTE 3SAÚDE DO TRABALHADOR E AGROINDÚSTRIA CANAVIEIRA

CAPITULO 13 ENERGIA PARA QUEM? O discurso do combustívelrenovável e os rebatimentos para a trabalhadores da agroindústria canavieira.Marcos Paulo Rocha Fernandes; Edvânia Ângela de Souza Lourenço......181

CAPITULO 14 EXPANSÃO DO SETOR SUCRO-ALCOOLEIRO ECONDIÇÕES DE TRABALHO E EMPREGO NO PERÍODO 2000/2006Guilherme C. Delgado, Raquel S. Sant’Ana................................................201

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CAPÍTULO 15 A EXPANSÃO DAS AGROINDÚSTRIASCANAVIEIRAS NA REGIÃO DO PONTAL DO PARANAPANEMA E ODISCURSO DO EMPREGO.Maria Joseli Barreto; Antonio Thomaz Júnior............................................219

CAPITULO 16 O MAL ESTAR DO TRABALHO NO CORTE DACANA-DE-AÇÚCAR: superexploração dos trabalhadores migrantes nopontal do paranapanema-SP.Gérson de Souza Oliveira...........................................................................235

CAPÍTULO 17 PARTICULARIDADES DA AGROINDÚSTRIACANAVIEIRA DE ALAGOAS E AS SEQUELAS DASUPEREXPLORAÇÃO DA FORÇA DE TRABALHOLúcio Vasconcellos de Verçoza.....................................................................249

CAPÍTULO 18 O PAGAMENTO POR PRODUÇÃO E ADEGENERAÇÃO FÍSICA DOS CORTADORES DE CANA: uma íntimaconexão.Juliana Biondi Guanais..............................................................................265

CAPITULO 19 MODERNIZAÇÃO PERVERSA E DEGRADAÇÃOAMBIENTAL ATRAVÉS DA PROIBIÇÃO GRADATIVA DA QUEIMA DACANA-DE-AÇÚCAR.José Roberto Porto de Andrade Júnior; Elisabete Maniglia.............................281

CAPITULO 20 AGRAVOS À SAÚDE DOS TRABALHADORES DAAGROINDÚSTRIA CANAVIEIRA: o fel da cana de açúcar.Edvânia Ângela de Souza Lourenço..........................................................297

PARTE 4QUESTÃO AGRÁRIA, GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS SOCIAIS

CAPITULO 21 LINHAS DE TRAJETÓRIAS: experiências laboraisfemininas no campo e na cidade.Juliana Dourado Bueno. Maria Aparecida de Moraes Silva......................321

CAPITULO 22 AS CONDIÇÕES DE VIDA E TRABALHO DASTRABALHADORAS RURAIS USUÁRIAS DA POLÍTICAMUNICIPAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL DE ALTINÓPOLIS/SP.Cassiana Araújo Cutódio.........................................................................335

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CAPITULO 23 TRABALHO ESCRAVO E POLÍTICAS PÚBLICAS:condições de vida e trabalho dos cortadores de cana no Norte Fluminense.Ana Paula Procopio da Silva; Coutinho, Isis; Marilda Villela Iamamoto; PriscilaJesus do Nascimento Fonseca; Thalita Thomé dos Santos...........................349

CAPITULO 24 PROCESSO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E SUAPARTICULARIDADE HISTÓRICA BRASILEIRA.Célia Maria David; Mireille Alves Gazotto..............................................363

CAPITULO 25 QUESTÃO AGRÁRIA E REESTRUTURAÇÃOPRODUTIVA: Reconfigurações e Tendências no Brasil Contemporâneo.Maria das Graças Osório P. Lustosa........................................................377

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Apresentação

O livro que ora apresentamos é resultado do VI Simpósio deQuestão Agrária da UNESP e 1º Fórum de Saúde do Trabalhador daAgroindústria Canavieira, realizado pelo Núcleo Agrário Terra e Raiz(NATRA) e o Grupo Teoria Social de Marx e Serviço Social,particularmente sua linha de pesquisa “Mundo do Trabalho, Serviço Sociale Saúde do Trabalhador” – GEMTSSS da UNESP/Franca.

O NATRA é um grupo de extensão universitária da Faculdade deCiências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio deMesquita Filho”, campus de Franca, o qual já conta 13 anos de existência.Suas ações estão voltadas, sobretudo, ao apoio à luta pela terra na regiãoe ao incentivo do desenvolvimento da identidade rural. Considerafundamental uma postura acadêmica crítica e criativa, noção consolidadaa partir de uma concepção teórica e de uma percepção cultural atentas àperspectiva de totalidade e às transformações ocorridas no mundo dotrabalho.

A contribuição da atividade extensionista para a formação dosdiscentes que compõem o NATRA se dá, tanto no campo teórico quantono prático, pela tentativa de construção cotidiana de um conceito deextensão universitária diferenciado, identificado ao pensamentopaulofreireano e sua proposta de comunicação e mútuo enriquecimento evalorização dos diversos ambientes de produção de saber e cultura, seja omeio acadêmico, sejam os diversos espaços sociais e comunitários, dotadosde um saber dito popular, com que o Grupo entra em contato.

O Grupo também se preocupa em estabelecer espaços de reflexãosobre as questões referentes ao modo de organização e direcionamento dasociedade capitalista, que fetichiza as relações sociais em favor dasexigências do capital e busca refrear qualquer possibilidade emancipatória.Assim, desde sua fundação o NATRA vem realizando edições de seuSimpósio, que em sua VI edição teve como parceiro o Grupo Teoria Socialde Marx de Serviço Social da UNESP/Franca, em sua linha de pesquisa“Mundo do Trabalho, Serviço Social e Saúde do Trabalhador”, o que

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oportunizou a realização de nosso evento: o VI Simpósio de QuestãoAgrária da UNESP e 1º Fórum de Saúde do Trabalhador da AgroindústriaCanavieira.

É importante destacar que a realização do 1º Fórum de Saúde doTrabalhador da Agroindústria Canavieira, especialmente com aparticipação do GEMTSSS, enriqueceu de maneira singular as discussõesque ocorreram entre os dias 26 e 28 de abril de 2011 na UNESP/Franca.Com absoluta certeza, o VI Simpósio mostrou a relevância do NATRA nocenário acadêmico, com significativo destaque na discussão da QuestãoAgrária, ocupando e legitimando cada vez mais o seu espaço com militânciae amadurecimento teórico. Foram dias de intensas e profundas discussõesque possibilitaram a reflexão sobre as ações desenvolvidas pelosmovimentos sociais que têm como bandeira de lutas a concretização dareforma agrária, firmando-se um espaço profícuo em relação aocompartilhamento de ideias e ao fortalecimento de um projeto societárioque aponte para a emancipação humana.

O VI Simpósio alcançou projeção nacional, uma vez que contounão apenas com participantes de diversas regiões do Estado de São Paulo,mas também de outros estados, como Ceará, Goiás, Mato Grosso, MinasGerais, Rio de Janeiro, entre outros. Entre inscritos e ouvintes, participaramem torno de 400 pessoas, o que possibilitou o envolvimento da comunidadeacadêmica, dos movimentos sociais, dos organismos governamentais edemais interessados com o intuito de dar visibilidade aos problemasrelacionados ao modelo nacional de desenvolvimento agrário e à saúdedos trabalhadores que atuam na agroindústria canavieira.

Recebemos mais de 90 trabalhos, entre completos e resumos. Osselecionados pela comissão científica foram publicados nos Anais do VISimpósio e dentre estes fizemos a difícil escolha para a composição destelivro que ora apresentamos. A qualidade dos trabalhos, que trouxeramsignificativa densidade para as mesas temáticas, representa, sem dúvidas,a grande responsabilidade que a Comissão Editorial deste livro teve paraque fosse possível sua publicação impressa.

Não buscando ser uma publicação a mais nos nossos currículosacadêmicos, este livro tem a pretensão de contribuir para a socializaçãode pesquisas, teses, críticas e anseios e, mais do que isso, procurar instigara criticidade e a possibilidade de se conhecer de modo cada vez mais

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competente a realidade que se coloca diante de nós: realidade complexa eem muito desumanizante, porém passível de ser transformada a partir desua captação teórica.

Os trabalhos apresentados foram divididos em sete eixos, sendoeles: 1. Questão Agrária e Gênero; 2. A Luta pela Terra e os MovimentosSociais; 3. Reforma Agrária e Assentamentos Rurais; 4. PolíticasPúblicas Sociais e a Questão Agrária; 5. Trabalho, Questão Agrária eServiço Social; 6. Trabalho Rural, Agroindústria Canavieira e Saúdedo Trabalhador; 7. Capitalismo e Modelo de Desenvolvimento Agrário.

Tendo isso em vista, a Comissão Editorial teve em suas mãos aincumbência de escolher artigos que condensam a rica e profunda discussãorealizada durante o Simpósio. Assim, o livro foi estruturado em torno dequatro eixos temáticos: 1. Capitalismo e Modelo de DesenvolvimentoAgrário, 2. A Luta pela Terra, Movimentos Sociais, Reforma Agrária eAssentamentos Rurais, 3. Saúde do Trabalhador e AgroindústriaCanavieira, 4. Questão Agrária, Gênero e Políticas Públicas Sociais;

Na “Parte 1. Capitalismo e Modelo de Desenvolvimento Agrário”apresenta-se a discussão acerca das contradições da sociedade capitalistae do reflexo, sobretudo no campo, do uso excessivo de agrotóxicos naprodução de alimentos. A “Parte 2. A Luta pela Terra, MovimentosSociais, Reforma Agrária e Assentamentos Rurais” está concentrada emtorno da discussão sobre a situação camponesa no Brasil, a socializaçãode experiência de resistência e militância na luta pela terra, os desafiosencontrados para comercialização dos produtos cultivados, o impacto daspolíticas públicas no campo e a grande tarefa de contribuir para a formaçãode consciência que deslumbra o ser social, coletivo, na luta pelaemancipação. A “Parte 3. Saúde do Trabalhador e AgroindústriaCanavieira” propõe o incisivo debate sobre o caráter predatório dosinteresses do capital, que levam ao dilaceramento da classe trabalhadora eà reificação das relações sociais no processo de expansão do modo deprodução capitalista, o que gera intenso e degradante impacto para ostrabalhadores da agroindústria canavieira no contexto do capitalismodependente brasileiro. Por fim, na “Parte 4: Questão Agrária, Gênero ePolíticas Públicas Sociais”, aborda-se a questão de gênero no campo,com destaque para as condições de trabalho da mulher e para os impactosdas políticas públicas nas condições sociais de existência no meio rural.

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14 Questão Agrária, Saúde do Trabalhador e os Desafios Para o Século XXI

O livro conta ainda com a contribuição de grandes teóricos,acadêmicos e militantes, comprometidos com a qualidade e profundidadedo debate sobre a questão agrária. Temos como significativa a participaçãodo Prof. Dr. Francisco Alves no Prefácio e do Prof. Dr. Antônio ThomazJúnior no Posfácio, o que enriqueceu ainda mais nosso livro. Destaca-seainda a participação precípua das organizadoras do livro e coordenadorasdos grupos supracitados, ponderando seu compromisso, empenho ecaminhar verdadeiro e engajado em prol da extensão universitária, doensino universitário público e critico e do compromisso com a classe quevive do trabalho.

Franca, outubro de 2011.

Anita Pereira Ferraz; Graziela Aparecida Lima Chinali e NathaliaLopes Caldeira Brant

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Questão Agrária, Saúde do Trabalhador e os Desafios Para o Século XXI 15

Prefácio

Fiquei muito contente quando fui convidado pelas Profas. Edvânia,Raquel e Onilda para prefaciar o livro que elas estavam lançando. O meucontentamento e o meu aceite à empreitada se devem a dois problemasque tenho: o primeiro problema é que quando eu admiro o trabalho depessoas, eu tento fazer o máximo para que o trabalho dessas pessoas, queem geral, têm os mesmos valores que eu admiro e vão na direção dascoisas que ainda acredito, frutifique. O meu segundo problema, decorrentee imbricado com o primeiro (isso porque problema é assim mesmo, nuncaestá sozinho e isolado ele sempre se mistura a outros , o que o torna maisdifícil de resolver), é que tenho uma enorme dificuldade de dizer não àspessoas que gosto e às pessoas que fazem trabalhos que admiro. A junçãodesses dois problemas, que tenho e os confesso, foi que aceitei fazer oprefácio do livro antes de ver o livro todo, isto é, antes de tomar contatocom os capítulos e os artigos neles contidos e antes de me dar conta queestamos no fim do ano no famoso sol de quase dezembro, quando o meureloginho biológico começa a apitar, pedindo: férias, férias, férias e eugrito baixo: eu vou, porque não?

Quando me dei conta de tudo isso, já era tarde: eu já havia aceito eo prazo já estava correndo e era também, como sempre, curto. Daí, nãotive alternativa a não ser arregaçar as mangas; no sentido figurado, é claro,porque quase nunca uso camisas de mangas compridas e digitar nãonecessita da liberação das mangas e nem dos braço, basta dedos. Esselivro tem muito a ver com isso tudo: mangas, braços, suor, dedos, saúde,resistência física, sol etc., porque é um livro que trata do trabalho, trata dotrabalho em atividade e qualquer que seja o trabalho em atividade ele tema ver com braços, mãos, dedos, suor e cérebros, que é também tudo o queeu preciso para fazer esse prefácio, mas que nesse momento: fim de ano;fim de semestre; no sol e na chuva de quase dezembro, estão escassos,mas, lendo os trabalhos nele contido e vendo e percebendo a gana e agarra dessa rapaziada, o cansaço vai embora, o ânimo volta e a gente éforçado a adiar o descanso para depois do Natal.

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16 Questão Agrária, Saúde do Trabalhador e os Desafios Para o Século XXI

O traço comum do livro, além de tratar do trabalho em atividade, éque todos os trabalhos, embora divididos em 4 partes e 25 capítulos, outextos, têm a ver direta, ou indiretamente com o Rural, ou questõesatinentes ao mundo do trabalho Rural. Nessa medida, um livro que tem aver com o trabalho em atividade e com o mundo do trabalho, tem a vercom as questões que penso, que trabalho, que escrevo e que falo, há muitosanos.

Quando falo que o livro trata da categoria trabalho na perspectivado mundo do trabalho, estou me referindo a uma visão, que ainda considerao trabalho categoria fundamental para o entendimento do capitalismo emplena segunda década do século XXI e esse conjunto de pessoas é,atualmente, infelizmente, pequeno. Isso porque uma parte da academiabandeou para o lado escuro da força, comprada que foi pelos projetosmilionários e pela perspectiva de uma carreira tranqüila como profissionaisorgânicos do agronegócio, que paga muito mais do que os nossos cadavez mais minguados salários de professores em dedicação exclusiva emuniversidades públicas. Vale lembrar, que também após o fim do socialismoreal, com o final da ex-união soviética, também muita gente deixou deacreditar no trabalho e nos trabalhadores e começou acreditar que ocapitalismo criou uma nova forma de riqueza, que vem da financeirizaçãoda economia, do cassino internacional e essa nova forma de produção deriqueza prescinde do trabalho. Ao contrário dessa maré, esse livro sustentaque ainda é o trabalho de trabalhadores e trabalhadoras, que garantem areprodução do capital e que só há produção de riqueza com a apropriaçãodo trabalho excedente.

Nesse sentido, o livro deixa claro que o que concebe como mundodo trabalho é um mundo no qual está presente uma luta cotidiana, umaluta entre classes sociais: onde uma produz riqueza e outra se apropriadessa riqueza produzida. Essa compreensão é básica no livro. Nele nãoresta dúvida que existe luta no chamado mundo do trabalho e essa existe,quer nos demos conta dela, quer não, e é melhor que a percebamos rápidopara não cairmos no dilema que Millôr Fernandes detestava e dizia, aocontrário: “É melhor entrar logo na briga do que ser baleado como umtranseunte inocente que passava.” Porque morrer é muito ruim, acredito,porém, morrer como um transeunte inocente de bala perdida, é, segundo

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Questão Agrária, Saúde do Trabalhador e os Desafios Para o Século XXI 17

Millor e eu concordo, pior do que morrer numa luta que você não ignoraque existe e que nela tomou partido e por conta disso foi baleado.

Esse livro é isso: mostra que há uma luta na sociedade brasileira,ou mais especificamente, no rural brasileiro, entre os trabalhadores e oagronegócio e nela toma partido ao lado dos trabalhadores, dostrabalhadores rurais, dos pequenos produtores familiares, dos camponeses,dos quilombolas, dos índios, da população ribeirinha, desse conjunto deatores sociais, que estão presentes no livro. Esses atores se defrontamcom o agronegócio: dos grandes proprietários de terra, que antigamenteousávamos chamar de latifundiários, mas que hoje a grande imprensaprefere chamá-los de empreendedores; do grande capital agroindustrial;dos produtores de bens de capital para agricultura; do sistema financeironacional e internacional.

Na concepção adotada no livro, os primeiros, os atores sociais,estão do lado do BEM, não porque são mocinhos, na velha tradiçãoholliwoodiana do mocinho contra os bandidos, do bem contra o mal, masna tradição Glauberiana do Dragão da Maldade contra o santo guerreiro.Onde os que estão do lado do bem são os que querem transformar asociedade numa outra mais justa, mais humana, com a terra justamentedistribuída entre os trabalhadores, com a implementação de uma reformaagrária na direção dos trabalhadores. Os outros, do lado do agronegócio,são mostrados como os MAUS, e assim o são porque fazem na terra econtra os trabalhadores rurais o que querem todos aqueles que desejamque a sociedade brasileira continue exatamente como é e foi: um dos paísesde renda mais concentrada do mundo, apesar de caminhar aceleradamentepara ocupar o lugar da sexta economia do mundo. Portanto há, como émostrado no livro, uma luta em curso e lados bem definidos e o livromostra de que lado está, de que lado estão seus organizadores e autores,cabe aos leitores decidirem de que lado ficarão nessa luta em curso, quenão terminou e que está longe de terminar, mesmo com os soluços docapitalismo contemporâneo após 2008.

Outra coisa boa do livro é que reúne uma rapaziada jovem, isto é,grande parte dos trabalhos é de jovens pesquisadores, que mostram naforma de artigos as suas dissertações e teses. O fato de o livro apresentargente jovem discutindo questões sociais importantes do trabalho, do mundodo trabalho, do rural brasileiro é esperançoso. O livro mostra que apesar

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da pressão do agronegócio sobre os rumos da produção acadêmica, háresistência, que se dá não apenas de nós, mais velhos, o que já é lugarcomum, mas de uma rapaziada que está surgindo agora dos bancosescolares e está mostrando a sua cara e mostrando que tomou partido dolado dos trabalhadores.

Os trabalhos estão apresentados em quatro partes, como dissemos,na primeira discute o Capitalismo e Modelo de DesenvolvimentoAgrário; na segunda discute A Luta pela Terra, Movimentos Sociais,Reforma Agrária e Assentamentos Rurais, na terceira é discutida aSaúde do Trabalhador e Agroindústria Canavieira e na quarta entraem cena a Questão Agrária, Gênero e Políticas Públicas Sociais. Nessacomposição das partes do livro as questões colocadas antes, tais como:concepção adotada no livro, a postura, o compromisso e a militância ficamescanacarados. Espero que façam uma boa leitura, porque os textos aquiapresentados têm muito a ensinar e a, fundamentalmente, discutir.

Novembro/2011.

Francisco Alves

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PARTE 1CAPITALISMO E MODELO DE DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO

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CONTRADIÇÕES DO DESENVOLVIMENTOCAPITALISTA NO BRASIL: limites ambientais edegradação do trabalho no complexo agroindustrial canavieiro

Adriano Pereira Santos1

IntroduçãoNas últimas décadas é possível observar que o modo de produção

capitalista sofreu inúmeras mudanças em seu “metabolismo social” a partir dareestruturação produtiva, que vem se processando com a implantação de novosmodelos produtivos, novas formas de organização do trabalho e inovaçõestécnico-científicas. O objetivo dessas mudanças, além de buscar conter ascontradições sociais inerentes à “crise estrutural do capital” (MESZÁROS,2002), que se manifestou no interior do sistema desde meados dos anos 1970,visa a garantir também novas bases de produção e reprodução econômica enovas formas de controle sobre o trabalho e sobre a natureza para repor omovimento incessante de expansão e acumulação do capital.

O fato preocupante dessas transformações é que além de gerar mais umpadrão de acumulação capitalista, um novo processo de controle e domíniosobre a natureza também se instaura, ou seja, novas formas de capitalizaçãodos recursos naturais e minerais necessários à reprodução do capital se impõem.Nesse sentido, a exploração intensiva e destrutiva da natureza pela ordem socialdo capital engendra não apenas uma forma degradante de existência social eeconômica, mas também coloca em risco a permanência e reprodução da própriahumanidade no planeta Terra.

No que se refere a essa problemática ambiental, que define atualmentea “crise ecológica”, enquanto comprometimento dos mecanismos e ciclosnaturais que possibilitam a produção e reprodução da vida (inclusive a vidahumana) na Terra (COGGIOLA, 2009), um conjunto de fenômenos, tais como– o crescimento exponencial da poluição do ar nas grandes cidades, da águapotável e do meio ambiente em geral; o aquecimento global, a multiplicaçãodas catástrofes naturais, a destruição das florestas tropicais, o desmatamento ea redução da biodiversidade pela extinção de milhares de espécies, etc; – podemser considerados fatores que revelam o esgotamento do padrão civilizatório,instituído a partir da racionalidade econômica (instrumental), característica damodernidade capitalista.

Portanto, a crise ecológica de profundidade estrutural que vivemosatualmente sob a égide da lógica permanentemente destrutiva do capital é reflexoda busca incessante pela maximização do lucro, isto é, resultado da própriaforma de ser da produção e do mercado capitalista. Em outras palavras, os eventos1 Prof. Assistente do Instituto de Ciências Humanas e Letras, UNIFAL-MG Doutorando em Sociologia– IFCH/UNICAMP. e-mail: [email protected]

CAPITULO 1

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e catástrofes naturais que se intensificaram nas últimas décadas decorrem deum desastre ecológico de proporções incalculáveis surgido na ordem do capitale que, por essa razão, constitui uma ameaça da destruição total dos fundamentosnaturais da existência humana.

Diante dessa problemática, busca-se compreender o modo de produçãocapitalista não apenas como formação social na qual os homens se reproduzemeconomicamente de forma determinada, mas também como formação social dedominação política e econômica. Nesse sentido, destaca-se que as formas dedominação política do capital são intrinsecamente ligadas à maneira pela qualo homem domina a natureza. É impossível dissociar a destruição ecológica dadegradação das condições de vida dos proletários urbanos, rurais e de suasfamílias. Isto quer dizer que, tão logo o capital instaura uma forma de dominaçãoe exploração da natureza, certamente se desenvolverá uma forma de domínio eexploração da força de trabalho, colocada em movimento para a reprodução docapital.

Tendo em vista essas considerações mais gerais da lógica destrutiva docapital e de suas formas de dominação e exploração no mundo contemporâneo,o presente texto – como parte de uma pesquisa ainda em andamento – tem porobjetivo discutir as principais contradições sociais e ambientais que esse modode produção impõe à reprodução da sociedade e da natureza, na medida em queo desenvolvimento econômico, associado à sua lógica de expansão e acumulação,tem sido defendido, no Brasil, como a finalidade do progresso econômico esocial. Assim, busca-se desvelar tais contradições e os limites ambientais de taldesenvolvimento capitalista a partir da análise de um determinado setor produtivoque vem sendo apresentado como modelo sustentável do desenvolvimentoeconômico capitalista.

Trata-se, evidentemente, do agronegócio canavieiro que, nos últimosanos (2001-2008), vem se expandindo, sobretudo na região Centro-Sul do Brasil,em decorrência de algumas razões conjunturais e estratégicas referentes ao setor.Dentre elas destacam-se: 1) o crescente aumento do comércio de açúcar e álcoolno mercado interno e externo; 2) crise e elevação do preço do barril de petróleono mercado internacional, bem como sua escassez e alto nível de poluição(emissão de CO2 na atmosfera); 3) aumento da demanda interna por álcoolhidratado, devido ao aparecimento dos novos modelos de carros flex-fuel(bicombustível); 4) devido às alterações climáticas e ao aquecimento globalprovocado pela intensa emissão de CO2, o protocolo de Kyoto defende a reduçãoda emissão de gás carbônico, o que tem contribuído para gerar uma demandainternacional por álcool anidro de outros países da Europa, Ásia e América.

Com isso, parece que a retomada de crescimento do setor sucroalcooleirosurgiu como uma alternativa energética ao petróleo, isto é, uma “alternativa” dedesenvolvimento limpo e sustentável. É o que se pode analisar a partir da posição

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ideológica e apologética de diversos setores sociais que defendem o modelo deagronegócio brasileiro, como modelo de desenvolvimento a ser estendido a todo opaís. No entanto, o que se verifica é exatamente o contrário, pois atrás das cortinasdo presente cenário revelam-se algumas mazelas sociais e ambientais que degradamnão apenas a vida de milhares de trabalhadores (migrantes) canavieiros ecomunidades rurais, mas também o meio ambiente e diversos ecossistemas, quecorrem o risco de desaparecerem devido à expansão dos canaviais.

Contradições sociais do desenvolvimento econômico na lógica do capitalNo alvorecer do século XXI, a realidade social regida pela ordem do

capital encontra-se, indelevelmente, marcada pelo paradoxo e pela contradição.O que parece intensificar-se a cada dia, na medida em que o avanço das forçasprodutivas, geradas pela aplicação tecnológica da ciência e pela ideologia doprogresso produz, inevitavelmente, um conjunto de contradições sociais que seevidenciam por meio da ampliação da desigualdade social, da pobreza,concentração fundiária, alta concentração de renda, subdesenvolvimento edegradação ambiental.

Tais contradições reveladas por essa problemática manifestam-se no fatode que tanto o progresso quanto o desenvolvimento econômico se constituem emmitos construídos no interior da sociedade capitalista, pois já não traduzem maiso bem-estar social outrora possível – apenas para uma parte da população dospaíses centrais – durante a “Era de Ouro” do Capitalismo (HOBSBAWM, 1995).

Celso Furtado (1981) enfatizava – nos anos 1960 – a característica míticado desenvolvimento econômico. Mas desmistificava a falácia e os equívocosde muitos economistas (teóricos do crescimento econômico) ao não perceberemas suas conseqüências, quanto ao crescimento desordenado das grandesmetrópoles com seu ar irrespirável, a crescente desigualdade social e intensadegradação ambiental.

Assim, o autor assinalava que o desenvolvimento econômico comoprocesso civilizatório do capitalismo era intrinsecamente predatório e que asociedade burguesa, orientada para a criação de valor econômico (valor de troca),provocava necessariamente a degradação da natureza e do meio físico. Dessaforma, verifica-se que Celso Furtado revelou a lógica destrutiva e excludentena qual se funda a sociedade regida pelo capital ao afirmar que é impossível ageneralização dos mesmos padrões de consumo para o conjunto do sistemacapitalista, tal como os que são praticados nos países ditos desenvolvidos. Seisso fosse possível,

[...] o custo, em termos de depredação e degradação do mundofísico, desse estilo de vida, é de tal forma elevado que todatentativa de generalizá-lo levaria inexoralmente ao colapso detoda a civilização, pondo em risco as possibilidades de sobre-

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vivência da espécie humana. Temos assim a prova definitivade que o desenvolvimento econômico – a idéia de que os po-vos pobres podem algum dia desfrutar das formas de vida dosatuais povos ricos – é simplesmente irrealizável (FURTADO,1981, p. 75).

Disso decorrem duas questões relevantes para os objetivos aquiperseguidos: qual o significado do subdesenvolvimento nesse contexto? Quaisos impactos da lógica da produção capitalista sobre a natureza e sobre otrabalhador?

A propósito do subdesenvolvimento, pode-se afirmar que se trata deum estado produzido pela Divisão Internacional do Trabalho (DIT) em que seestrutura uma relação de dependência dos países periféricos em relação aoprocesso de acumulação global do capital. Ou seja, ele é resultado de um processode exploração e espoliação que rompe os mecanismos ecológicos e culturais deuma nação (LEFF, 2000). Em outras palavras, significa que a deterioraçãoambiental, a devastação dos recursos naturais e seus efeitos nos problemasambientais globais são, em grande parte, consequências dos padrões deindustrialização, centralização econômica, concentração urbana e capitalizaçãoda natureza, impostos pela racionalidade econômica do capital. Isto é, aomaximizar excedentes e benefícios econômicos em curto prazo ela impõe sobrea questão social e a sustentabilidade ecológica um amplo processo dedesestruturação dos ecossistemas produtivos e das culturas dos povos dos paísesperiféricos (LEFF, 2000).

O caso do desenvolvimento capitalista no Brasil e sua posição nointerior do sistema, subordinada historicamente aos países centrais,apresentam algumas particularidades e especificidades. Segundo Franciscode Oliveira (2006), o subdesenvolvimento do Brasil não se funda apenas naoposição entre o “atrasado” e o “moderno”. Ao contrário, “[...] o processoreal mostra uma simbiose e uma organicidade, uma unidade de contrários,em que o chamado ‘moderno’ cresce e se alimenta da existência do‘atrasado’” (OLIVEIRA, 2006, p. 33). Isto é, o subdesenvolvimento éprecisamente uma produção da expansão capitalista, conforme suanecessidade de reprodução ampliada.

Aliás, desde a década de 1940 Caio Prado Júnior. já enfatizava o caráterdo desenvolvimento brasileiro e sua processualidade contraditória, quandoassinalou

O passado, aquele passado colonial [...] aí ainda está, e bemsaliente; em parte modificado, é certo, mas presente em traçosque não se deixam iludir. Observando-se o Brasil de hoje, oque salta à vista é um organismo em franca e ativa transforma-ção e que não se sedimentou ainda em linhas definidas, que não

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‘tomou forma’. É verdade que em alguns setores aquela trans-formação já é profunda e é diante de elementos própria e positi-vamente novos que nos encontramos. Mas isto, apesar de tudo,é excepcional. Na maior parte dos exemplos, e no conjunto, emtodo caso, atrás daquelas transformações que às vezes nos po-dem iludir, sente-se a presença de uma realidade já muito antigaque até nos admira de aí achar e que não é senão aquele passadocolonial. (PRADO JÚNIOR, 2000, p. 3).

Nesse sentido, e analisando os processos contínuos e descontínuos dodesenvolvimento assinalado tanto por Caio Prado Júnior. (2000) como por Oliveira(2006), Giovanni Arrighi (1997), de outra perspectiva, mas a partir de umareconceituação sobre a estratificação da economia mundial, auxilia-nos a definirqual seria o lugar do Brasil no contexto da divisão internacional do trabalho.

Considerado como um país emergente, na nova definição desse autor, oBrasil faria parte do que ele denomina de semiperiferia, ou seja, posição queenvolve a combinação mais ou menos igual de atividades de núcleo orgânico eatividades periféricas. Isto é, “Estados com essas características teriam o poderde resistir à periferização, mas não teriam poder suficiente para superá-lacompletamente e passar a fazer parte do núcleo orgânico do capital” (ARRIGHI,1997, p. 140). Afinal, as relações entre os países centrais, ditos desenvolvidos,e os países periféricos, ditos subdesenvolvidos, são relações determinadas nãopor combinações específicas de atividades, mas pela posição que ocupam nointerior da divisão mundial do trabalho. Daí o desenvolvimento ser uma ilusão,pois, conforme Arrighi (1997, p. 217) a riqueza dos Estados do núcleo orgânico“[...] não pode ser generalizada porque se baseia em processos relacionais deexploração e processos relacionais de exclusão que pressupõem a reproduçãocontínua da pobreza da maioria da população mundial.”

Por essa razão, o traço essencial da economia capitalista mundial é adesigualdade, ou seja, a inserção de países periféricos é sempre subordinada àstendências excluídoras e exploradoras, através das quais os países centrais sereproduzem como núcleo orgânico do sistema.

Entretanto, o subdesenvolvimento, de acordo com essa ótica, não seinscreve numa cadeia evolutiva que vai do mais simples ao mais complexo, istoé, não se sucede por meio de estágios e etapas ao pleno desenvolvimento.Conforme Francisco de Oliveira (2006, p. 127), como singularidade, o “[...]subdesenvolvimento não era, exatamente, uma evolução truncada, mas umaprodução da dependência pela conjunção de lugar na divisão internacional dotrabalho capitalista e articulação dos interesses internos.” Por isso,subdesenvolvimento é a forma da exceção permanente do sistema.

Assim, a expansão capitalista no Brasil se dá de acordo com a expansãodo modo de acumulação global do capital, mas sendo caracterizada por alguns

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traços que lhes são intrínsecos, pois conforme as condições concretas derealização da acumulação, a expansão capitalista no Brasil caminhainexoravelmente para uma concentração da renda, da propriedade e do poder(OLIVEIRA, 2006). A originalidade desse processo que criou o que Franciscode Oliveira (2006, p. 60) denominou de “Ornitorrinco” consiste, segundo oautor, numa expansão que se desenvolve,

[...] introduzindo relações novas no arcaico e reproduzindorelações arcaicas no novo, um modo de compatibilizar a acu-mulação global, em que a introdução das relações novas noarcaico libera força de trabalho que suporta a acumulação ur-bano-industrial e em que a reprodução de relações arcaicas nonovo preserva o potencial de acumulação liberado exclusiva-mente para os fins de expansão do próprio novo.

Ora, não seria essa a lógica da atual expansão da agroindústriacanavieira, ao combinar amplo desenvolvimento tecnológico e científico comdegradação social do trabalho e destruição ambiental? A colheita mecânica dacana-de-açúcar, associada à superexploração do corte manual realizado portrabalhadores migrantes, submetidos às condições degradantes de trabalhoanálogas ao escravo, não seriam exemplos dessa contradição do desenvolvimentoeconômico?

Diante do exposto anteriormente sugere-se que não só há umaintensificação do processo de destruição da natureza e superexploração dotrabalho, apesar do desenvolvimento tecnológico, mas também a reproduçãocaracterística de um modelo que nos remete ao período colonial da formaçãosocial, política e econômica brasileira, que se define – historicamente – pormeio da grande propriedade, da monocultura e do trabalho escravo.

Limites ambientais da expansão agroindustrial canavieiraDurante muito tempo se defendeu no Brasil a idéia de que aeconomia nacional, baseada no latifúndio e no monocultivoda produção agrícola, era sinônimo de um atraso característi-co de países do chamado Terceiro Mundo, subdesenvolvidos.No entanto, recentemente, o presidente da República afirmouque os usineiros – cuja riqueza nasce justamente da grandepropriedade e da exploração do trabalho na monoculturacanavieira – “podem ser considerados os heróis nacionais”,pois seriam os verdadeiros representantes do que há de maismoderno no agronegócio mundial.2

Nessa perspectiva e diante do quadro recente de expansão daagroindústria canavieira percebe-se um conjunto de estratégias que vem sendo

2 Ver reportagem de Chico Góis em O Globo, 20/03/2007 (apud SANTOS, 2009, online).

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desenvolvido tanto pelo setor privado, ligado ao agronegócio, quanto pelo Estadoque, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social(BNDES) atua como principal credor da expansão canavieira e dos novosprojetos industriais de usinas e destilarias. Assim, para aumentar a oferta deálcool, uma vez que este vem despertando o interesse de outros países, comoEUA, Alemanha e Japão, um conjunto de medidas está sendo elaborado pelosetor sucroalcooleiro, como: novas variedades de cana geneticamentemodificadas; expansão da área agrícola; e inovações na linha de produção dasusinas.

Portanto, para viabilizar as estratégias que vem sendo adotadas pelosetor cujo interesse é atender prioritariamente as demandas internacionais estáprevista até 2010 a construção e inauguração de novas unidades produtivas, denovas usinas de açúcar e álcool em algumas áreas no Brasil que estão no centroda expansão da cultura canavieira. São elas: Araçatuba, no Estado de São Paulo,a região do Triângulo Mineiro e os Estados de Goiás, Mato Grosso e MatoGrosso do Sul (principalmente as regiões de Cerrado).

Dessa forma, o que se verifica em relação aos interesses econômicosde ampliação do setor por meio da expansão e ocupação de terras para a culturacanavieira, e da capacidade produtiva, é um risco anunciado de degradaçãoambiental em algumas regiões, especialmente a região Centro-Oeste, em MatoGrosso, Mato Grosso do Sul e Goiás, onde se localizam biomas com prioridadede preservação: trata-se do Cerrado e do Pantanal brasileiros3.

Não obstante o cenário econômico ser de grande vantagem para a recenteexpansão da agroindústria canavieira, em que pese o fato de que o Brasil reúneboas condições tecnológicas, territoriais, climáticas, econômicas e naturais paraa produção extensiva de cana, não se pode afirmar que a panacéia dosagrocombustíveis, notadamente a cana-de-açúcar, seja sinônimo de modernidadeou modelo de desenvolvimento econômico e sustentável. Pois, como já seafirmou anteriormente a agroindústria canavieira reproduz em escala ampliada,as contradições, mazelas e consequências inerentes à lógica de expansão eacumulação do capital – que intensificam a nossa “vocação agrícola” –,geralmente ocultadas por representantes, ideólogos e empresários do setor.

Assim, por um lado, o álcool é considerado uma alternativa, umcombustível vegetal, renovável e limpo, que pode ser obtido a partir da energiasolar por meio da fotossíntese das plantas. Por outro, as condições nas quais3 A esse respeito vale assinalar, conforme Fuser (2007), que o Cerrado mantinha, em 1985, cerca de75% de sua vegetação original, mas nas duas décadas seguintes o avanço do agronegócio provocouuma devastação implacável, a tal ponto que, em 2004, restavam apenas 43%. Essa lógica é tão perversaque num primeiro momento ela foi marcada por forte concentração da propriedade num processo demonopolização. Agora, a recente expansão tem como característica principal a exigência de terras deboa qualidade, pois sua lógica está voltada, como em qualquer lugar do planeta, para o retorno rápidodo capital, com um mínimo de riscos.

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sua produção se desenvolve são a expressão de um modelo essencialmentedestrutivo, exploratório e amplamente marcado pela degradação não só dapaisagem ambiental, transformada pelo “verde monocromático” da cana-de-açúcar, mas também da situação social de milhares de trabalhadores canavieirose operários metalúrgicos que atuam na cadeia produtiva do referido setor.

No que se referem à questão ambiental, alguns fatores são apontadoscomo conseqüências nefastas desse modelo de desenvolvimento econômicofundado na expansão da agroindústria canavieira. Dentre eles, destacam-se: a) apoluição dos recursos hídricos com agrotóxicos e resíduos (vinhaça) derivadosdo processo produtivo e que são utilizados como fertilizantes, mas que em intensaconcentração no solo podem atingir os lençóis freáticos, contaminando mananciaisde água subterrânea, como é o risco que corre a região de Ribeirão Preto-SP, localde recarga do Aqüífero Guarani; b) poluição do ar com a emissão de partículas deCO2 e ozônio, que em grande concentração a uma baixa altitude na atmosferapode causar danos à saúde humana4; c) e, por fim, o fato de que, além de causar asubstituição de culturas produtivas, a expansão da cana pode provocar a reduçãodas áreas de preservação, com redução das áreas de mata nativa.5

Ademais, uma decorrência da atual expansão da cana-de-açúcar para asáreas onde sua produção se desenvolve é a intensificação de alguns problemasambientais, como a periódica destruição e degradação de ecossistemas inteiros,por meio da prática habitual das queimadas. Segundo Tamás Szmrecsányi (1994,p. 73),

[...] as queimadas provocam periodicamente a destruição edegradação de ecossistemas inteiros, tanto dentro como juntoàs lavouras canavieiras, além de dar origem a uma intensa po-luição atmosférica, prejudicial à saúde, e que afeta não apenasas áreas rurais adjacentes, mas também os centros urbanos maispróximos.

Cabe assinalar ainda, que, além de sua ação biocida em relação à fauna,à flora e aos microorganismos, as queimadas provocam um aumento datemperatura do solo, bem como a perda considerável de seus nutrientes,4 A respeito dessa problemática que envolve as contradições da produção de etanol no Brasil verreportagem especial: (BIO..., 2007).5 O caso que mais chama a atenção é a ameaça que sofre o Pantanal e as áreas de Cerrado em MatoGrosso e Mato Grosso do Sul. Nestas regiões onde se localiza a maior parte do Pantanal brasileiro jáexistem 14 usinas de açúcar e álcool, segundo os dados da ONG WWF-Brasil (Análise da expansãodo complexo agroindustrial canavieiro no Brasil). Há uma estimativa que nos próximos 10 anos,esse número suba para 28 usinas, gerando diversos problemas ambientais. A grande preocupação,entre outras, é que, além da dificuldade dos órgãos estatais fiscalizarem o setor – caso a expansãoocorra de maneira abrupta, surge também a questão referente à interligação do bioma com outros deseu entorno. O Pantanal, longe de se constituir um sistema isolado, guarda uma forte relação deinterdependência com os demais biomas que o cercam, e sua pujança vital, sua sobrevivência, dependeda conservação dos demais biomas locais.

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demonstrando, portanto, os limites ambientais dessa prática agrícola amplamentedestrutiva.

No que tange a emissão de CO2 causada pelas queimadas, muitosdefendem que o próprio desenvolvimento e crescimento do canavial amenizaessa emissão, visto que a cana é consumidora de CO2 e geradora de O2, porquerealiza a fotossíntese. No entanto, não se pode dizer o mesmo em relação aoOzônio (O3), um gás poluente que também é formado a partir de reaçõesfotoquímicas e que, além de não dispersar facilmente, em grande concentraçãona atmosfera prejudica o crescimento das plantas e o sistema respiratório dosseres vivos em geral (SZMRECSÁNYI, 1994).

Portanto, não são poucos os prejuízos e danos ambientais que compõema produção agroindustrial canavieira. Além da poluição provocada pela queimada cana antes do corte, a queima do bagaço para a geração de energia durante oprocesso de fabricação do açúcar e etanol gera o material particulado (MP),isto é, monóxido e dióxido de carbono e óxido nitrogênio, toxinas residuais decinzas, fuligens e outros materiais que são inalados tanto pelos trabalhadorescanavieiros durante o corte manual da cana, quanto pelos moradores das áreasurbanas, cercadas pelo “mar de cana”. A respiração dessas toxinas, aopenetrarem nos pulmões gera uma diminuição da capacidade respiratória6

(SILVA, 2008, p. 12).Os prejuízos para a natureza não cessam diante da expansão canavieira.

No que se refere à fauna e à flora, as queimadas provocam a morte de váriasespécies de animais, como cobras, tatus, lagartos, capivaras, lobos, seriemas,onças, dentre outros que habitam essas áreas ou que se encontra em extinção.As reservas e florestas também são afetadas, na medida em que até mesmo asmatas ciliares são destruídas para o plantio de cana, havendo, portanto, odesrespeito às Áreas de Preservação Permanente (APPs) (SILVA, 2008). Assim,pode-se observar que a contradição entre capital e natureza se manifesta tãologo as mazelas sociais e ambientais começam a aparecer a partir do momentoem que as cortinas que escondiam a poluição, morte e sangue dos canaviaisforam erguidas.

Condições de vida e trabalho degradante nos canaviaisAs análises feitas acerca das conseqüências da produção agroindustrial

desconstroem os mitos tanto do desenvolvimento quanto da sustentabilidade daprodução de etanol, pois a forma de produção e colheita da cana, associada aoimpulso incessante de expandir e acumular capital causa danos não apenas ao6 Alguns estudos demonstram que as queimadas de biomassa resultam na formação de substânciaspotencialmente tóxicas, tais como monóxido de carbono, amônia e metano. Dentre as substânciaspresentes nos materiais particulados finos liberados durante a queima de biomassa (vegetação), oshidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPAs) são os mais danosos à saúde, apresentando atividadesmutagênicas, carcinogênicas e como desregulamentares do sistema endócrino (HESS, 2008).

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meio ambiente, mas também afeta diretamente a saúde e vida dos milhares detrabalhadores que atuam no setor, sobretudo aqueles que trabalham com acolheita manual da cana.

É o que se pode constatar com o caso dos trabalhadores canavieirosque realizam a colheita manual da cana-de-açúcar. Submetidos a uma jornadade trabalho extenuante de 12 a 14 horas de trabalho diário, os cortadores decana, especialmente os migrantes, trabalhadores temporários que se deslocamde suas terras de origem, principalmente da região nordeste do Brasil, paratrabalhar no corte da cana das usinas de açúcar e álcool do interior do Estado deSão Paulo, sobretudo na região de Ribeirão Preto-SP, são obrigados a cortardiariamente uma média de 10 a 12 toneladas de cana, o que os levam a umesforço extenuante, podendo colocar em risco sua própria vida.

Essa situação imposta a milhares de trabalhadores migrantes de algumasregiões do nordeste brasileiro, que deixam suas famílias em seus lugares de origempara trabalhar em diversas culturas do agronegócio, especialmente a da cana, édegradante em virtude das condições de trabalho e vida a que estão submetidos.

A migração desses trabalhadores (homens jovens) é forçada peloobjetivo de ganhar dinheiro para sustentar suas famílias, que ficaram distantes.As razões que explicam sua migração são inúmeras, porém, destaca-se que umdos fatores decisivos se deve à expulsão desses trabalhadores, quando ascondições de reprodução social e econômica em seus locais de origemencontram-se comprometidas. Nesse sentido, Francisco Alves, assinala que noMaranhão e no Piauí o processo de expulsão é ocasionado pela “[...]impossibilidade de os trabalhadores conseguirem boas terras para o plantio desubsistência e pela impossibilidade de acesso a outras formas de renda, pormeio da venda de sua força de trabalho” (ALVES, 2007, p. 47). Em outraspalavras, o que leva esses trabalhadores a deixarem suas terras de origem e sesubmeterem a uma viagem difícil, a um trabalho penoso e degradante, deixandosuas famílias (mulheres e filhos) é a falta de trabalho.

Assim, ao chegar em São Paulo, lugar de destino de parte dos migrantesque vem para o corte da cana, sua situação, nas usinas e fazendas paulistas, é desujeição por dívida e de imobilização, coerção física e moral, além das exigênciasem torno da alta produtividade. Aliás, no que tange às condições de trabalho, épreciso destacar seus efeitos deletérios sobre o trabalhador que, conformedenúncias feitas tanto pela Pastoral do Migrante de Guariba-SP, quanto peloMinistério Público do Trabalho, revelam uma superexploração do trabalho7, que7 Vale dizer que essa superexploração do trabalho envolve, segundo Dal Rosso (2008) mais trabalho,pois consiste num dispêndio maior das capacidades físicas, cognitivas e emotivas do trabalhador como objetivo de elevar quantitativamente ou melhorar qualitativamente os resultados e a produção. Essenefasto aumento do dispêndio de energia física e mental do trabalhador canavieiro pode colocar suavida em risco, levando-o a uma morte silenciosa, com o surgimento de doenças crônico-degenerativas,ou até mesmo a morte e invalidez absoluta.

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no período de 2004 até 2007 gerou 23 mortes registradas pela Pastoral do Migrante.Tais mortes foram supostamente provocadas pelo excesso de esforço,

isto é, uma verdadeira “overdose de trabalho”, denominada birola pelostrabalhadores. Assim,

Além das condições alimentares insuficientes – causadas pe-los baixos salários, do calor excessivo, do elevado consumode energia, em virtude de ser um trabalho extremamente exte-nuante –, a imposição da média, ou seja, da quantidade diáriade cana cortada, cada vez mais crescente, tem sido o definidordo aumento da produtividade do trabalho, principalmente apartir da década de 1990, quando as máquinas colhedeiras decana passaram a ser empregadas em número crescente (SIL-VA, 2006, p. 15).

As condições de trabalho e produção, além de provocarem mortes devidoao excesso de esforço no desempenho do trabalho, provocam também oadoecimento de muitos trabalhadores que são acometidos por Lesões porEsforços Repetitivos e Doenças Osteomusculares (LER/DORT), câncerprovocado pelo uso de veneno, doenças respiratórias alérgicas provocadas pelafuligem da cana que, aliadas a inexistência de recursos financeiros, conduzemo sujeito a uma morte física e social (SILVA, 2006), já que, lesionado e acometidopor alguma doença, pode ser excluído do mercado de trabalho ao ficar inapto aqualquer outra atividade que lhe garanta condições mínimas de sobrevivência.

Mas qual seria a natureza do processo de trabalho no corte manual dacana que tem provocado esses efeitos deletérios sobre os trabalhadores?

Segundo algumas pesquisas (ALVES, 2007; NOVAES, 2007; SILVA,2008), há a hipótese de que um dos fatores determinantes desses efeitos deletériosproduzidos pelo corte da cana sobre a vida e corpo do trabalhador é a forma depagamento por produção, que aliada às condições degradantes de trabalho e àsnovas exigências de produtividades das usinas tem provocado mortes, mutilaçãoe degradação do trabalhador canavieiro.

Pode-se dizer, com isso, que a imposição do pagamento por produçãoimplica em maior controle sobre o tempo de trabalho do cortador de cana emaior disciplina de seu corpo para uma atividade que se exige, em função de umatendência da mecanização, uma maior produtividade. De acordo comE.P.Thompson (1998), significa usar e gastar o tempo da força de trabalho e cuidarpara que não seja desperdiçado. É o que se pode verificar quando analisamos,especificamente, o próprio processo de trabalho de corte manual da cana. Este,segundo Alves (2007), consiste num processo que não se limita ao exercício daatividade de cortar cana, retirá-la do chão, usando um instrumento de corte, ofacão ou podão. O trabalho no corte de cana envolve, além da atividade do cortede base, um conjunto de outras atividades, isto é, limpeza da cana, transporte e

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arrumação da cana, que não são remuneradas (ALVES, 2007, p. 31).Essas atividades interferem, portanto, no próprio rendimento e capacidade

de produção do trabalhador, pois são essas novas exigências das usinas que aumentame intensificam o ritmo de trabalho, o que significa um maior dispêndio de forçafísica, que se não reposta de maneira adequada, poderá acarretar perda de capacidadedo trabalho, comprometimento da saúde do trabalhador, ou até mesmo podendolevar a morte, por exaustão física.

É evidente, portanto, que o aumento da produtividade8 do corte da cananos últimos anos pode ser levantado como um dos fatores responsáveis por essasuperexploração do trabalho que tem provocado morte e adoecimento. Para seter uma idéia da expansão da produção canavieira nos últimos anos, na décadade 1980, a média (produtividade) exigida pelas usinas era de 5 a 8 toneladas decana cortada por dia; em 1990 aumentou para 8 a 9; de 2000 a 2004 foi para 10toneladas; e a partir de 2004 passou de 10 a 12 e 15 toneladas de cana cortadapor dia (ALVES, 2008; SILVA, 2008). Não é por acaso que muitos trabalhadoresreclamam de dores e câimbras no corpo, pois são obrigados a cumprirem amédia de 10 ou 12 toneladas/dia, o que se torna condicional para a sua contrataçãona próxima safra, já que ficam na mira dos fiscais da usina.

Assim, diante dessas condições de trabalho que, além de colocar emrisco a integridade física dos trabalhadores visto que estão submetidos aosacidentes típicos como mutilações e ferimentos causados por corte de facão epodão (BOAS; DIAS, 2008), eles também estão suscetíveis à hipertermia, quepode surgir em um cortador de cana, pois ele faz um exercício intenso eprolongado exposto às baixas umidades, altas temperaturas, sem adequadahidratação, péssima transpiração por conta das vestimentas pesadas. A situaçãoainda é agravada pelo estímulo ocasionado pelo pagamento por produção decana cortada por dia. Segundo, um grupo de pesquisadores (LAAT et al, 2008)com o desgaste físico dos cortadores de cana e os impactos dessas condições detrabalho: surgem inicialmente sede, fadiga e câimbras intensas, na sequência omecanismo termorregulador corporal começa a entrar em falência e surgemsinais como náuseas, vômitos, irritabilidade, confusão mental, falta decoordenação motora, delírio e desmaio.

É dessa perspectiva de adoecimento e degradação social do trabalhadorque se pode olhar o desenvolvimento econômico, notadamente o setorsucroalcooleiro, defendido como modelo de desenvolvimento limpo esustentável. Portanto, verifica-se a situação de milhares de trabalhadoressubmetidos ao “moinho satânico” (POLANYI, 1980) do capital, que reduz

8 Uma das razões levantadas por pesquisadores da área destaca que as mortes e doenças causadaspelo esgotamento físico dos trabalhadores canavieiros estão ligadas à lógica do ganho ou pagamentopor produtividade, isto é, por tonelada cortada pelo trabalhador. A esse respeito ver importante textosobre a questão de Francisco Alves (2006).

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seu tempo de vida útil no corte de cana abaixo dos escravos que atuavam nomesmo setor no final do século XIX, de 15 anos para 12 anos (BOAS; DIAS,2008). Com um piso salarial de R$ 410,00 e cortando uma média de 10toneladas, o salário de um cortador de cana hoje pode chegar a R$ 800,00reais, mas quando perde o emprego por não atingir a meta de produtividadeexigida pelas usinas, lhe resta integrar as fileiras de trabalhadores itinerantes.Como não tem dinheiro para voltar para sua casa e família, reintegra o ciclovicioso do capital, de exploração do trabalho temporário e precário.

Considerações FinaisDiante das inúmeras possibilidades que a problemática em questão

oferece, buscou-se debater – a partir da crítica ao agronegócio canavieiro,defendido pelos mais histéricos apologetas como modelo econômico, limpoe sustentável – os limites sociais e ambientais inerentes à lógica dodesenvolvimento capitalista. Assim, diante das contradições manifestas darealidade observada, destaca-se que a situação do meio ambiente e dotrabalhador é de extrema vulnerabilidade em virtude da destruição,degradação e precarização das condições de vida e trabalho provocadas pelonovo ciclo de expansão canavieira no Brasil.

Isso significa dizer que a irracionalidade da lógica expansionista docapital não pode mais se reproduzir sob a pena de pôr em xeque a própriaexistência da humanidade no planeta Terra, pois os processos econômicos etecnológicos submetidos à lógica do mercado esgotaram-se, na medida em quedeflagraram uma crise estrutural e ambiental sem precedentes na história. Dessaforma, segundo Leff (2000) surge a necessidade de introduzir novos princípiosvalorativos e forças materiais para reorientar o processo de desenvolvimentohumano e instaurar – por meio da transformação da realidade social – uma“nova ordem ecológica” (FERRY, 1994).

Desta feita, ao apresentar os entraves da recente dinâmica do setorsucroalcooleiro e sua expansão destrutiva, assinala-se os limites da racionalidadeeconômica que permeiam a lógica do capital na sociedade contemporânea. Porisso, verificou-se que além de fazer valer sua força no que se refere ao própriodesenvolvimento tecnológico e produtivo, o complexo agroindustrial canavieirovaloriza aspectos econômicos, como a idéia do etanol ser um possível substitutoalternativo ao petróleo em detrimento do meio ambiente e das condições devida e trabalho dos cortadores de cana que fazem parte do seu processo deprodução e reprodução. Dessa maneira, o setor busca ocultar as consequênciasde uma produção baseada fundamentalmente na concentração latifundiária,monocultura extensiva da cana, destruição de ecossistemas e o esgotamento derecursos naturais fundamentais à reprodução da vida humana. Portanto, apesarde se tratar de uma reflexão preliminar de uma pesquisa ainda em andamento,

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buscou-se não apenas revelar as contradições, mas propor algunsquestionamentos acerca da lógica econômica essencialmente destrutiva docapital. O que exige a necessidade de se adotar uma perspectiva transformadoracom a finalidade de construir uma nova ordem social que paute seudesenvolvimento num novo conjunto de valores e práticas sociais e numa novaconcepção de homem, sociedade e natureza, que vá além das determinações docapital.

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DESENVOLVIMENTO DO CAPITALISMO NOCAMPO: as transformações do trabalhador rural emproletariado agrícola

Marize Rauber Engelbrecht1

IntroduçãoO presente artigo é resultado das pesquisas que vem sendo realizadas

sobre a questão agrária e especificamente o contexto do produtor agrícola debase familiar, enquanto aluna doutoranda do Curso de Serviço Social daPontifícia Universidade Católica de São Paulo. Também é fruto dos estudosque vem sendo realizado a partir da inserção nos Grupos de Pesquisa emPolítica Ambiental Sustentabilidade e de Fundamentos do Serviço Social:Trabalho e Questão Social.

Para esta investigação utilizou-se da pesquisa bibliográfica, adotandouma metodologia embasada pelos referenciais teórico-metodológicos, crítico ehistórico que fundamentam a teoria social de Karl Marx (1975; 1994, L. 1, v.2). Nesta modalidade de pesquisa definiram-se algumas categorias centrais,conceitos e noções usadas por diferentes autores marxistas, destacando osprincipais pressupostos teóricos que aprofundam o debate na perspectiva docapitalismo no campo.

Neste sentido, trazemos brevemente alguns resultados prévios dosestudos teóricos que vem sendo realizado para o trabalho final de construção datese apresentando neste artigo uma síntese do capítulo introdutório sobre atemática do desenvolvimento do capitalismo no campo e a constituição daprodução agrícola de base familiar.

DesenvolvimentoOs acontecimentos do mundo rural brasileiro por que passamos

atualmente são atribuídos à expansão do capitalismo no campo, o qual seguesua lei que é a reprodução crescente e ampliada de acumulação. A tendência docapital é a de tomar conta progressivamente de todos os ramos e setores daprodução no campo e na cidade, na agricultura e na indústria. Mas odesenvolvimento das relações capitalistas na agricultura apresentaparticularidades em relação ao da indústria. A principal delas é que o meio deprodução fundamental na agricultura – a terra – não é suscetível de serreproduzido ao livre arbítrio do homem, como são as máquinas e ou outrosmeios de produção e instrumentos de trabalho.

1 Professora do curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Câmpus Toledo,UNIOESTE. Mestre em Serviço Social e Doutoranda em Serviço Social pela Pontifícia UniversidadeCatólica de São Paulo PUC/SP. Orientadora: Maria Lucia Carvalho da Silva. E-mail:[email protected]

CAPITULO 2

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O fato de a terra ser um meio de produção relativamente não reprodutívelé que a forma de sua apropriação histórica ganha uma importância fundamental.Desde que a terra seja apropriadamente privadamente, o seu dono pode arrogar-se o direito de fazer o que quiser com aquele pedaço de chão. Como também oproprietário de terra pode ter o direito de não utilizá-la produtivamente, isto é,deixá-la abandonada e impedir que outro a utilize (SILVA, 2001, p. 24).

No entanto, falar da expansão do capitalismo no campo refere-se a duassituações combinadas entre si: de um lado, uma massa crescente de lavradoresautônomos cuja existência está baseada estritamente no seu trabalho e no desua família e que gradativamente vem sendo expulsa da terra, expropriada; deoutro lado, em conseqüência, essa massa de lavradores estaria se transformandoem massa de proletários rurais, os trabalhadores sem terra.

A principal característica da expansão do capitalismo no campo ébasicamente os trabalhadores se transformando em trabalhadores livres, isto é,libertos de toda propriedade que não seja a propriedade da sua força de trabalho,da sua capacidade de trabalhar. Como já não são proprietários nem dosinstrumentos de trabalho nem dos objetos, das matérias-primas empregadas notrabalho, não têm alternativas senão a de vender a sua força de trabalho aocapitalista, ao patrão. Também se tornam livres no sentido de que não sãosubjugados por ninguém, por um proprietário de terra ou por um senhor deescravos. Além de livres são, pois iguais àqueles que são proprietários. E nessarelação de liberdade e de igualdade que se baseia a relação social capitalista.

Conforme Martins (1983) os trabalhadores expropriados são livres paravender o que lhes resta, a sua força de trabalho a quem precise comprá-la, quemtem as ferramentas e os materiais, mas não tem o trabalho. São iguais aocapitalista, ao patrão, no sentido de que um vende e o outro compra a mercadoriaforça de trabalho, um trabalha e o outro paga um salário pelo trabalho.

A relação de compra e venda só pode existir entre pessoas formalmenteiguais e somente pessoas juridicamente iguais podem fazer contratos entre si, epor serem iguais cada uma delas tem a liberdade de desfazer o contrato quandobem quiser. Por isso no capitalismo só é possível ser igual quem troca, quemtem o que trocar e tem liberdade para fazê-lo, utilizando assim o critério dautilidade.

É justamente nesta relação que evidencia-se a contradição docapitalismo, ou seja,

[...] para entrar na relação de troca, cada um tem que ser cadaum, individualizado, livre e igual a todos os outros; ao mesmotempo, cada um é cada um porque depende da existência detodas as outras pessoas, das relações que cada um estabelececom os outros. Cada pessoa se cria na pessoa do outro.(MARTINS, 1983, p. 153).

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A relação social capitalista é uma relação, em que aparentemente é igualentre pessoas iguais, mas que produz resultados econômicos profundamentedesiguais entre si, que são o salário e o lucro (o valor a mais criado pelotrabalhador, a mais-valia) personificados por pessoas de fato desiguais, que é otrabalhador e o capitalista. Isso só é possível na medida em que o trabalho quese materializa nas mercadorias que vão produzir o lucro do capitalista, aparececomo propriedade do capital.

Denominamos preliminarmente de relações capitalistas de produção,relações que pressupõem uma troca entre capital e trabalho e ambos por suavez, igualmente sociais. Sendo o capital nada mais do que o trabalho humanoacumulado, o trabalho de muitos e anônimos trabalhadores, é um produtocontraditoriamente acumulado nas mãos particulares capitalistas. O trabalhopassa a ser social no capitalismo quando transformado em mercadoria, onde otrabalho particular de um trabalhador só pode ser trocado com o capitalistaquando se torna equivalente em outras mercadorias representadas pelo salário.

É neste sentido que no campo um instrumento fundamental de produçãoé a terra, a qual é comprada com dinheiro e é utilizada como instrumento paraexplorar a força de trabalho do trabalhador, porém a terra não pode ser confundidacom o capital; não pode ser analisada em suas conseqüências sociais,econômicas e políticas como se fosse capital igual aquele representado pelosoutros meios de produção. O capital pode se apropriar do trabalho como daterra e pode fazer com que ela (a terra) que nem é produto do trabalho nem docapital, apareça dominada por este último, de acordo com Soto (2002).

Para Marx (1975), a terra é um bem natural e não um capital, pois ocapital (móvel) é reproduzível, enquanto o meio fundamental de produção naagricultura, a terra, não é suscetível de ser multiplicado ou de ser reproduzidaconforme a vontade humana como são os instrumentos de trabalho, as máquinase outros meios de produção. Portanto, a terra também é um setor social que temque ser utilizado para produção através do trabalho, pois só assim, obtém valor.Dessa forma, a renda nada mais é do que o fruto do trabalho humano empregadona terra, pois não se paga renda pela terra livre, mas pelo trabalho desenvolvidonela.

A apropriação capitalista da terra permite que o trabalho que nela se dáo trabalho agrícola, se torne subordinado ao capital. A terra assim apropriadaopera como se fosse capital. Ela se torna equivalente de capital, e para ocapitalista obedece a critérios que ele basicamente leva em conta em relaçãoaos outros instrumentos possuídos pelo capital. Ainda assim, o fato de que aterra pareça socialmente capital, não faz dela efetivamente, capital, porque oque ela produz do ponto de vista capitalista, é diferente do que produz o capital.Assim, o capital produz lucro, o trabalho produz salário e a terra produz renda.

Os capitalistas por sua vez, só arrendam terras e investem neste setor se

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podem obter uma taxa de lucro maior que a renda que tem que pagar. Portanto,no modo de produção capitalista a renda da terra é sempre sobra acima de lucro.

Nesta perspectiva que Marx (1975) descreve uma distinção da rendafundiária capitalista apresentando dois tipos de renda: a renda absoluta e a rendadiferencial. A renda absoluta é aquela que resulta da posse privada do solotornando-se monopólio de uma classe que cobra um imposto para colocá-lapara produzir. A renda diferencial depende de alguns fatores: diferencial defertilidade do solo, a proximidade do mercado e o diferencial da tecnologia einvestimentos aplicados na terra.

Como o pequeno proprietário não tem condições de usufruir da rendafundiária, pois ele e a família é que são produtores e que geralmente estão emterras inférteis e não mecanizadas, também não têm capital para reinvestir naterra e poder competir no mercado, pois produzem e recebem apenas em cimado trabalho necessário. Assim, o capital tende a dominar cada vez mais aprodução da agricultura e não só dos setores de produção agrícola onde estasujeição está claramente instituída, mas também do crescente setor de pequenosprodutores baseados no trabalho familiar.

Este produtor familiar preserva a propriedade da terra e nela trabalhasem o recurso do trabalho assalariado, utiliza unicamente o seu trabalho e o dafamília o que vai determinar a crescente dependência em relação ao capital, nãosendo uma sujeição formal do trabalho ao capital, mas sim a sujeição da rendada terra ao capital. É neste movimento que ocorre a gradativa transformação deum trabalhador agrícola em um proletariado (agricultores expropriados) porum lado; e a criação de uma classe com capital excedente (agricultorescapitalizados) por outro.

O movimento do capital na pequena propriedade não se tornaproprietário da terra, mas cria as condições para extrair o excedente econômico,ou seja, especificamente a renda, onde ela aparentemente não existe. Destaforma, o capital começa estabelecendo a dependência do pequeno produtor emrelação ao crédito bancário e aos intermediários, já que possuem escassosrecursos.

Porém, é bom frisar que a medida que o capital subordina o pequenoprodutor rural, controlando os mecanismos de comercialização e financiamentoé que as condições de existência e do produtor rural e sua família bem comosuas necessidades e possibilidades econômicas e sociais começam a serreguladas e controladas pelo capital, como se o próprio produtor fosse umassalariado do capitalista.

Como Marx (1994, L. 1, v. 2) nos afirma no livro Capital, o modocapitalista de produção e de acumulação, portanto a propriedade privadacapitalista exigem como condição existencial o aniquilamento da propriedadeprivada baseada no trabalho próprio, isto é, a necessidade da expropriação do

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trabalhador, em que ocorre a “[...] expropriação da massa do povo por poucosusurpadores [...] em que grande massa da população foi despojada de suasterras, de seus meios de subsistência e de seus instrumentos de trabalho” (MARX,1994, L. 1, v. 2, p. 880-882).

Isto se evidencia de forma bem clara quando a renda tem sidosistematicamente apropriada pelo capital no momento da circulação damercadoria de origem agrícola e que o pequeno produtor de base familiar estásempre endividado com o banco, e a sua propriedade sempre comprometidacomo garantia de empréstimo para investimento sobretudo, para o custeio daslavouras.

Conforme Martins (1983) o pequeno agricultor de base familiargeralmente se apresenta como sem qualquer alteração aparente na sua condição,mantendo-se proprietário, mantendo o seu trabalho organizado com base nafamília, porém este mesmo produtor entrega ao banco anualmente os juros dosempréstimos e financiamentos que faz, tanto para garantir os instrumentosadquiridos com os empréstimos, bem como sua terra. Por esse meio que obanco vai extraindo do produtor agrícola a renda da terra, sem ser ou tronar-seproprietário dela.

Esta relação perversa vai determinando a condição do pequeno produtornão enquanto o proprietário real da terra, mas um proprietário nominal, porquepaga ao banco a renda que nominalmente seria sua. O produtor entra numarelação social com a terra mediatizada pelo capital, que além de ser o trabalhadorpassa a ser o arrendatário.

Nesta lógica a sua terra é terra de trabalho e não terra a ser utilizadacomo instrumento de exploração da força de trabalho alheia, ou seja, não éterra de uso capitalista, o que precisa extrair da terra não é regulado pelo lucromédio do capital, mas regulado pela necessidade de reposição da força detrabalho familiar e da subsistência e por isso, a riqueza que cria realiza-se emmãos estranhas as suas e que geralmente flui disfarçadamente para os lucrosbancários.

Vimos que onde se expande o capitalismo transforma-se as estruturas,até então vigentes de produção. Essas transformações ocasionaram aincorporação de recursos “racionais” de organização e administração dasempresas, bem como de procedimentos tecnológicos avançados. Podemos citara título de ilustração, alguns exemplos de transformações no campo como:destruição do engenho pela usina; alterações provocadas pelos frigoríficos nosmodos de criação e comercialização de suínos, bovinos e aves; instauração defábricas de produtos agrícolas em conserva; crescimento do mercado internodevido o consumidor de gênero de subsistência; atuação do Estado.

Estes exemplos vem demonstrar que a economia agrária e agrícola sofreue continua sofrendo progressivamente a ação de fatores internos e externos que

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revelam entre outros fenômenos a expansão da mentalidade capitalista no campo.Os fenômenos conhecidos como “êxodo rural” ou “migrações internas”, sãotambém expressões demográficas e ecológicas de processos econômicos e sociaisque atingem o chamado “complexo rural”.

Neste aspecto é que passamos agora a explanar sobre o processo deconstituição do proletariado agrícola enquanto um segmento que está ligadodiretamente à divisão social e técnica do trabalho e que vem passando porprofundas mudanças nas relações de produção, modificando suas bases enquantoum trabalhador agrícola que tinha seus meios de produção; processo este inerenteàs transformações do modo de produção capitalista e da expansão do capitalismono campo.

O modo de utilização do trabalho na economia rural brasileira temoscilado desde o braço escravo até o assalariado livre que se oferecem nomercado, passando por diversas formas de escambo, mutirão, diferentes contratosde parceria e arrendamento. Os colonos, parceiros e arrendatários que viviamno interior da fazenda, como componentes de uma estrutura patrimonial, estãose transformando em camarada, diarista, mensalista ou volante, liquidando-sepouco a pouco os componentes não capitalistas entre fazendeiro e trabalhador,agora transformando-se em empresário e proletário. Neste longo processo detransformações, poderíamos apontar como marcante a passagem da economiaescravocrata para a economia fundada na utilização do trabalhador livre.

No âmbito das condições econômicas, a gênese do proletariado ruraldepende da transformação do lavrador em trabalhador livre assalariado, isto épassou a ser vendedor da força de trabalho, ocorrendo a separação entre oprodutor agrícola e a propriedade dos meios de produção. Distingue-se duasconfigurações econômicas e políticas no processo de transição do lavrador emoperário.

Na primeira configuração o lavrador está inserido no universo prático eideológico característico da grande unidade econômica, é um universo sócio-cultural de tipo comunitário em que este lavrador faz parte do sistema social dafazenda. Na segunda configuração, resulta da ruptura daquelas relações deprodução devido a novos desenvolvimentos das forças produtivas decorrentedas transformações do mercado em âmbito nacional e internacional. Verifica-se a ruptura entre a propriedade dos meios de produção e o lavrador e otrabalhador agrícola se transformam em assalariado, surgindo assim o proletáriorural.

Ao apurar as relações capitalistas de trabalho, paralelamente declinaramos padrões de vida dos trabalhadores, decorrência da expansão das lavouras decana para as usinas, em contrapartida foi reduzido o espaço disponível para asculturas de subsistência mantida pelos trabalhadores e das quais eles tiravam oessencial de sua manutenção. Também a intensificação do trabalho necessário

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para fazer frente às novas exigências da produção acrescida foi roubando dotrabalhador o tempo livre de que dispunha para se dedicar as suas culturasparticulares de subsistência. Desta forma, o trabalhador se transformaprogressivamente em assalariado, sem outra fonte de recursos que o saláriorecebido, e com isso seu padrão e condições de vida se agravam.

Diante deste despojamento Martins (1983) se refere que os trabalhadoresexpropriados se veem obrigados a oferecer a sua força de trabalho aos capitalistasem que estes controlam a comercialização dos produtos agrícolas, os insumosempregados na produção além de se assenhorear do resultado do trabalho edeterminando o modo de trabalhar. O produtor agrícola transformado emtrabalhador assalariado já não trabalha mais para si mesmo, mas para ocapitalista, com instrumentos e matérias-primas de propriedade do capitalista,provavelmente até sob um teto que pertence ao capitalista.

Entretanto, a gênese do proletariado rural não se dá apenas emdecorrência das transformações das condições econômicas - desenvolvimentodas forças produtivas (capital, tecnologia, força de trabalho) e das relações sociaisde produção (colono, agregado, assalariado que fundamentam a metamorfosedo lavrador em proletário), mas conforme Ianni (1984, p. 122), esse processoocorre em combinação com modificações dos valores culturais e padrões decomportamento. Efetiva-se por intermédio de crises e movimentos reveladosem fenômenos como o messianismo, o cangaço, a liga camponesa e o sindicatorural.

Acumularam-se através dos anos problemas sociais de toda espécie atéentão nunca resolvidos, agravaram-se os conflitos latentes entre as várias classese camadas e assim foram geradas fortíssimas tensões. Convém lembrar que aslutas no campo pelos diferentes segmentos mostravam que o trabalhador rural éo elo mais fraco, na cadeia do sistema produtivo, porque começa com a suaforça de trabalho e termina no mercado internacional. O produto do seu trabalhose reparte por muitos, sobrando-lhe pouco porque o modelo de desenvolvimentoque o sustenta é concentrador e excludente.

O fato dos trabalhadores rurais terem um parco acesso aos recursos esua transferência permanente de valores a outras áreas de economia sobre asquais não tem poder de decisão e onde se concentra a riqueza vai transformandoestes agricultores em pobres do campo.

Desta forma, a realidade camponesa concebida em sua produção primáriacomo um elo de uma cadeia de processos vai além da propriedade, isto significadizer que os agricultores isolados não controlam, mas que se agregam valores ese definem os preços a sua produção externamente, provocando assim a pobrezado camponês. Conforme Gioverdani (2003) esta pobreza é evidentemente oresultado do funcionamento desta cadeia de processos e da não articulação dospoderes que controlam, situados na comercialização e sobretudo, na agroindústria

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ou em processos de agregação de valores industriais.A conclusão óbvia é que o pequeno agricultor desarticulado da cadeia

alimentar é vítima dos poderes que a controla, isto é a agricultura isolada geraa pobreza. O encadeamento lógico dos mecanismos de subtração da riqueza docampo leva a uma conclusão dramática: o agricultor é pobre porque produz. Ovalor agregado de seu produto, que transforma uma semente de milho em trêsespigas, acumula-se longe da porteira da propriedade, da chácara ou até dagrande fazenda (GIOVERDANI, 2003).

Em outras palavras podemos dizer que, o fato da agricultura setransformar numa crescente consumidora de insumos industriais tem implicadoum crescimento mais rápido dos preços dos produtos agrícolas, sem que otrabalhador rural se beneficie desses acréscimos.

Neste sentido, a capacidade de gerar riqueza torna o produtor pobreporque a riqueza que ele gera se acumula longe dele. A falta ou insuficiência deterra, o quase insignificante acesso à tecnologia de produção, crédito ruralinadequado às necessidades ou aos prazos de produção, baixa produtividade,preços desestimulantes e dificuldades de mercado para os produtos são efeitosperversos de um processo de transferência permanente de valores, de uma paraoutras áreas da economia, sobre os quais o trabalhador rural não tem nenhumpoder de decisão.

A partir destas considerações é que ocorre o processo de conversão dotrabalhado rural em proletário, enquanto categorias políticas envolvem asseguintes condições: 1) o desenvolvimento das forças produtivas, tais comocapital, tecnologia, força de trabalho e divisão social do trabalho; 2) atransformação das relações de produção, conforme essas relações ocorrem naexpropriação de trabalhadores como o colono, agregado, meeiro, parceiro, peão,volante e outros; 3) a “ superação” do messianismo e do cangaço pela ligacamponesa e o sindicato rural, como formas de organização e compreensão dascondições de existência social do trabalhador rural.

ConclusãoAssim, podemos afirmar que o trabalhador rural enquanto proletário,

se encontra prática e ideologicamente divorciado dos meios de produção, dafazenda, da casa-grande ou seus propostos. Encontra-se fora da fazenda, físicae ideologicamente, o seu grupo o seu nós são principalmente os outrostrabalhadores. E o fazendeiro com o seu feitor, capataz, administrador são ououtros. Uns e outros estão divorciados, são estranhos, podem conceber-se comodiferentes, quanto a direitos, deveres e ambições, organizam-se e pensam a simesmas como categorias distintas. Ideologicamente se generaliza o reino dovalor de troca em que as relações de produção passam a ser compreendidas eavaliadas com maior clareza, como mercantilizadas.

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O trabalhador rural produz para o mercado, mas se aliena de boa partedo produto do seu trabalho, e não dispõe das condições sociais e culturaisindispensáveis à compreensão da sua situação real. É apenas uma classeeconômica subalterna na qual Ianni (1984) afirma que, vivem na condição deuma classe-em-si.

Assim, a expansão do capitalismo no campo se dá primeiro efundamentalmente pela sujeição da renda territorial ao capital, comprando aterra para explorar ou vender ou subordinando a produção do tipo camponês,este fato mostra que o capital está interessado na sujeição da renda da terra ena só desta mas de seu lucro, condição esta necessária para sujeitar também otrabalho que se realiza na terra.

Desta forma, a propriedade fundiária levada a efeito na prática demilhares de proletariados rurais neste momento, leva-os mesmo que não queirama encontrar pela frente o novo barão da terra, o grande capital nacional emultinacional. Já não há como separar o que o próprio capitalismo unificou: aterra e o capital; já não há como fazer para que a luta pela terra não seja umaluta contra o capital, contra exploração e expropriação que estão na sua essência.

Referências

GIOVERDANI, E. Os pobres do campo. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2003.

IANNI, O. Origens agrárias do estado brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1984.

MARTINS, J. S. Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1983.

MARX, K. Formações econômicas pré-capitalistas. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1975.

MARX, K. O capital: o processo de produção do capital. 14. ed. Rio deJaneiro: Bertrand Brasil, 1994. L. 1. v. 2.

SILVA, J. G. S. O que é questão agrária. São Paulo: Brasiliense, 2001.(Primeiros passos, 33).

SOTO, W. H. G. A produção do conhecimento sobre o “mundo rural” noBrasil: as contribuições de José de Souza Martins e José Graziano da Silva.Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2002.

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ENTRE A TERRA E O PRATO: A GEOGRAFIAALIMENTAR EM QUESTÃO

Valmir José de Oliveira Valério1

Antônio Thomaz Júnior2

IntroduçãoO imperativo do suprimento nutricional projeta o homem ao

desenvolvimento de técnicas que o fixem de forma inovadora ao lugar,adaptando-o de forma a garantir a satisfação das suas necessidades, em sintoniacom a possibilidade de controle das fontes de alimentação (animais, vegetais eminerais), passo decisivo no processo de fixação dos grupos humanos,denominado Revolução Agrícola. Na agricultura, a relação homem-meio perfazuma combinação espaço-temporal em que o ritmo do trabalho é ditado pelotempo da natureza, fato que, no contexto do capitalismo avançado, confere àagricultura novos valores e significados.

Ao discutir a experiência do tempo e do espaço na sociedade moderna,Harvey (2007) assevera que as compreensões de espaço e tempo “[...] são criadasnecessariamente através de práticas e processos materiais que servem àreprodução da vida social”, de modo que “[...] cada modo distinto de produçãoou formação social incorpora um agregado particular de práticas e conceitos dotempo e do espaço”, fazendo surgir o “tempo da família”, referindo-se ao tempodestinado à criação dos filhos e à transferência de conhecimento e de bens entregerações por meio de redes de parentesco, ou ainda o “tempo industrial”,responsável pela alocação e realocação do “[...] trabalho para tarefas, segundovigorosos ritmos de mudança tecnológica e locacional forjados pela buscaincessante de acumulação do capital”, o que pressupõe “[...] que reconheçamosa multiplicidade das qualidades objetivas que o espaço e o tempo podem exprimire o papel das práticas humanas em sua construção” (HARVEY, 2007, p. 188-189, grifo nosso).

Com base na formulação acima, aventamos a possibilidade de pensar otempo biológico enquanto representação social do tempo necessário aocumprimento das etapas de maturação daqueles organismos vivos manipuladospelo homem em seu benefício, assim como o tempo da natureza ou mesmo otempo do capital, representações sociais referentes ao tempo para além do “poderregulador dos símbolos sociais” (ELIAS, 1998, p. 21) e ao tempo do ponto devista da reprodução do capital via extração da mais-valia social, respectivamente.1 Licenciado e bacharelando em Geografia junto à FCT/UNESP/Presidente Prudente; membro doCentro de Estudos de Geografia do Trabalho, CEGeT. E-mail: [email protected] dos Cursos de Graduação e de Pós-Graduação em Geografia/FCT/UNESP/PresidentePrudente; coordenador do CEGeT; pesquisador PQ/CNPq; autor dos livros: “Por trás dos canaviaisos nós da cana”, 2002; “Geografia Passo-a-Passo”, 2005; organizador da coleção “Geografia eTrabalho no Século XXI”, (Volumes I, II, III, IV e V). E-mail: [email protected]

CAPÍTULO 3

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O descompasso entre o tempo biológico inerente aos cultivos animais evegetais, em relação ao pressuposto da divisão do trabalho próprio ao modocapitalista de produção gera especificidades no que se refere aos sentidos doalimento no espaço, com sujeitos previamente estabelecidos em relação às etapas(espaço/tempo) de produção/processamento, distribuição e consumo que, umavez referenciadas na lógica da mercadoria, pressupõem a produção/reprodução/subordinação daqueles sujeitos que se curvam ao tempo da natureza para,posteriormente, dar prosseguimento às metamorfoses entendidas entre oalimento/comida e os múltiplos alimentos/fast-food, simulacros alimentaresdifundidos no bojo do aparato midiático/ideológico da indústria alimentar.

Transformado, conservado e embalado, o produto do tempo da naturezaextrapola seus limites intrínsecos para, assim, adequar-se ao tempo damercadoria, transmutação que confere ao alimento formas, cores e sabores quefazem surgir o alimento/rótulo, emancipado do tempo da natureza à custa daprodução de uma verdadeira sociedade da embalagem; mais que alimento,mercadoria.

Ao analisarmos o alimento a partir do paralelo entre o tempo da naturezae o tempo da mercadoria ou do capital, queremos com isso destacarparadigmaticamente as implicações de tais temporalidades na qualidade dosalimentos consumidos pelas pessoas. Alimentos frescos e livres de conservantesartificiais com base na pequena produção familiar, ou toda uma diversidade desimulacros alimentares direcionados mais aos olhos que a boca, de forma que osabor da comida sucumbe ao signo do rótulo, com implicações na saúde daspessoas e na qualidade dos recursos, ameaçada pela generalização das formasindustriais e da consequente poluição por resíduos não degradáveis.

Agricultura x indústria: do tempo biológico ao tempo do capitalA necessidade da alimentação constitui uma das mais importantes buscas

do ser humano desde remotos períodos, instinto primário (CASTRO, 1961) queencontra no intercâmbio com a natureza a possibilidade de aquisição dosnutrientes indispensáveis ao pleno desenvolvimento biológico do indivíduo.Pelo fato de se alimentar tanto de seres fotossintetizantes (plantas) como deoutros animais, o homem faz parte dos onívoros (do latim omnis, tudo), o queimplica, no plano espacial, na busca pelo domínio de parcelas do território,com fins à domesticação de animais e plantas para a obtenção daqueles elementosindispensáveis à sua manutenção e desenvolvimento biológico (carboidratos,lipídios, proteínas, sais minerais, vitaminas e água).

Flannery (1973) verifica que a revolução neolítica ocorrida háaproximadamente dez mil anos marca a transição do nomadismo para osedentarismo, momento em que a domesticação de espécies animais e vegetaisem vários locais, simultaneamente, permitiu a passagem de uma economia

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coletora para uma economia produtiva, baseada na exploração da terra, o queteria gerado mudanças na maneira como o homem adquiria os alimentosnecessários à sua dieta, passando, gradativamente, do extrativismo para aagricultura, processo hoje denominado Revolução Agrícola (apud BORÉM;MILACH, 1999, p. 69).

De acordo com o autor, o homem teria domesticado, em toda suaexistência, em torno de cem a duzentas espécies entre os milhares de vegetaisdisponíveis, sendo que, dentre estas, menos de quinze supririam a maior parteda dieta humana na atualidade, podendo ser agrupadas em quatro classes: (a)Cereais: arroz, trigo, milho, sorgo e cevada; (b) Raízes e caules: beterraba,cana-de-açúcar, batata, mandioca e inhame; (c) Legumes: feijão, soja eamendoim; e (d) Frutas: citros e banana (BORÉM; MILACH 1999, p. 69).

A emergência da agricultura teria resultado em importantesconsequências na relação do homem com a terra, assim, segundo estimativas

[...] na pré-história seriam necessários 250 ha de terra paraalimentar um homem por ano. Atualmente essa relação é de 1ha por pessoa por ano. A agricultura também modificou aestratificação social, formando a classe dos proprietários deterra. Finalmente, aumentou o impacto do homem sobre a na-tureza, pela substituição dos ecossistemas naturais pela pro-dução agrícola (BORÉM; MILACH, 1999, p. 69).

Conforme afirma Harlan (1992), a atividade agrícola “[...] tem sidoinseparável da evolução e da atividade humana” (apud BORÉM; MILACH,1999, p. 69). Dessa forma, no bojo do capitalismo avançado a agricultura ganhanovos contornos e significados, encimados na missão do capital em permitircom isso a redução dos custos de reprodução da força de trabalho, possibilitandoassim que os orçamentos domésticos dos assalariados pudessem ser direcionadosao consumo de bens não alimentares, sobretudo bens duráveis. Esta teriaconstituído uma das mudanças mais importantes no capitalismo, especialmenteapós a Segunda Guerra Mundial, transformando de forma significativa a cestade consumo das massas trabalhadoras para, assim, “[...] auxiliar no processogeral de moldagem de um novo modelo de consumo e, por aí, de acumulação”(ABRAMOVAY, 1998, p. 227-228, grifo nosso), onde

[...] o próprio produto agrícola sofreu transformações que ointegraram nesta nova norma social de consumo. Ele foi pa-dronizado, massificado e pode assim participar da verdadeirarevolução que atingiu os padrões sociais de consumo alimen-tar, com base num aumento na ingestão de produtos de origemanimal e de gêneros que passavam cada vez mais porprocessamento industrial (ABRAMOVAY, 1998, p. 232, gri-fo nosso).

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Ao discutir as particularidades da agricultura no capitalismo avançado,o autor chama a atenção para o fato de que, por maior que seja o desenvolvimentotécnico e as inovações surgidas, sobretudo depois da Segunda Guerra no planogenético e químico, “[...] o fato é que a agricultura conserva-se uma atividadefundamentalmente tributária da natureza e dependente dos elementos biológicossobre cujo ritmo e sequência o controle humano é limitado” (ABRAMOVAY,1998, p. 325).

Para Smith (1984, p. 8), “[...] a natureza da agricultura não admite tantassubdivisões de trabalho nem uma tão acentuada divisão entre os diferentes ramosda produção como a que se verifica na indústria”, fato que impossibilitaria acompleta separação dos diferentes ramos de trabalho usados na agricultura,frustrando assim o desejo capitalista de organizar a agricultura aos moldes doconstante aprofundamento na divisão do trabalho verificada no setor industrial,dessa forma:

Submetida a forças naturais e ao fato de lidar com elementosvivos, a agricultura enfrenta obstáculos insuperáveis no pro-cesso de divisão do trabalho: é impossível, [...] colher e plan-tar ao mesmo tempo e no mesmo espaço. Por mais que se re-duza o tempo de germinação de uma cultura ou de gestação deum animal, o ritmo natural continua a decidir a ordem dasoperações produtivas. Neste sentido a Revolução Industrialna agricultura consiste em mudanças essenciais nos instrumen-tos de trabalho, mas não na sequência em que são usados. Asoperações agrícolas encontram-se tão separadas antes da in-trodução das máquinas quanto depois (ABRAMOVAY, 1998,p. 236, grifo do autor).

A incompatibilidade entre o tempo da natureza e as demandas do modocapitalista de produção, legou à produção familiar um papel de fundamentalimportância no processo de consolidação do regime fordista. O exemplo da divisãodo trabalho no interior da fábrica de alfinetes da Riqueza das Nações permiteinferir quanto às especificidades sociais e econômicas da agricultura no capitalismocontemporâneo, pois, “[...] é pela mudança na ordem temporal das atividades queo trabalho, as ferramentas e as máquinas especializadas revolucionam o processoprodutivo” (ABRAMOVAY, 1998, p. 236, grifo do autor).

Relativamente ao processo de trabalho agrícola, a divisão esimultaneidade das operações encontram limites, impostos pelo fato de que“[...] o produto vivo não se deixa subdividir como o alfinete”, pois:

Não é a colheitadeira que produz o trigo nem a ordenhadeiramecânica que fabrica o leite. E é exatamente neste sentido entãoque, por definição, o trabalho agrícola não é industrial. [...] éque a agricultura, opondo-se ao aprofundamento da divisãodo trabalho, bloqueia os elementos que levam à formação do

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trabalhador coletivo de Marx [...] Na esmagadora maioria doscasos, o progresso técnico na agricultura não resulta de suasubdivisão. As etapas produtivas e sua sucessão na produçãode cana-de-açúcar não se alteraram fundamentalmente do sé-culo XVII para cá. [...] É a natureza e não o processo mecâni-co que escraviza o trabalhador a seu ritmo (ABRAMOVAY,1998, p. 237-238, grifo do autor).

Com isso, setores inteiros, como é o caso da produção de alimentos,permanecem como atividade fundamentalmente familiar, conforme demonstraOliveira (2003), em contraponto à distorcida unanimidade imposta pelos meiosde comunicação quanto aos papéis desempenhados pela pequena propriedade epelo dito agronegócio “moderno” na constituição das bases econômico-sociaisdo país, indicando, por meio de uma exaustiva apresentação de dados do censoagropecuário do IBGE, a superioridade das pequenas unidades de produção emgeração de empregos, volume de produção e renda.

O tempo do capital “permite” que outras lógicas assumam funçõesinicialmente desinteressantes ao modo de produção dominante para, depois,subordiná-las via mecanismos de expropriação quando da comercialização doseu produto. Oliveira (1986, p. 67) discute a existência do campesinato naagricultura capitalista a partir do desenvolvimento contraditório do capital onde,“[...] além de redefinir antigas relações, subordinando-as à sua produção,engendra relações não capitalistas igual e contraditoriamente necessárias à suaprodução.”

No bojo do capitalismo mundializado, a internacionalização da economiabrasileira tem levado a uma violenta expansão das culturas de exportação, emdetrimento das culturas destinadas ao abastecimento do mercado interno, paraalimentar a população brasileira, levando a alteração de hábitos alimentares eintrodução de novos produtos, como é bem ilustrativo o caso da soja e dageneralização de seu óleo como produto básico na alimentação nacional. Assim,o processo de desenvolvimento do capitalismo na agricultura é marcado pelasua industrialização, entendida internacionalmente por meio das alianças e fusõescom a participação e o beneplácito do Estado (OLIVEIRA, 2001, p. 23-24).

A industrialização dos hábitos alimentares é acompanhada pari passupela sua mercantilização, o que reforça o abismo entre os que comem e os quenão, entre os famintos do fast-food e seus notórios índices de carência vitamínicae nutricional e aqueles privados do mínimo necessário à sua manutençãobiológica; famintos na gula ou famintos na fome, uma sociedade de famintos(VALÉRIO; THOMAZ JÚNIOR, 2010).

O tempo biológico não se curva aos interesses de aprofundamento dadivisão do trabalho no interior do processo produtivo industrial, resultando emalimentos frescos onde quer que sejam produzidos, em oposição ao que ocorre

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quando da produção industrial de alimentos que, uma vez adquiridos a partir dotempo biológico cultivado pelos que possuem a aquiescência do mercado parase curvarem ao ritmo da natureza, redunda em uma artificialização da naturezaalimentar, deformação de hábitos alimentares em consonância com ageneralização das formas macdonaldizadas (THOMAZ JÚNIOR, 2009) doalimento, onde a comida sucumbe ao fast-food, aumentando de forma cada vezmais acentuada a produção e o consumo de alimentos com algum tipo deindustrialização que, na maioria das vezes, resulta na produção de uma infinidadede resíduos sólidos que contaminam água, solo e ar, com sérios prejuízos paraa saúde e o bem-estar das pessoas.

A discussão acerca dos significados do alimento e da alimentação naatual sociedade globalizada impõe analisar as distintas temporalidades quecompõem cada alimento no seu percurso da terra ao prato, o que implicaconsiderar a espacialidade do alimento, ou seja, o alimento entendido a partirdo espaço/tempo responsável pela articulação entre os sujeitos entendidos desdea semente lançada na terra até o alimento que sacia.

Segurança ou soberania alimentar: os sentidos do alimento no espaçoEntre a terra e o prato, o caminho percorrido pelo alimento permite

vislumbrar sujeitos, territórios e territorialidades constituintes do complexosócio-espacial alimentar, arranjo geográfico que traz em si as possibilidades deautonomia (soberania), segurança (dependência) ou mesmo fome (privação),de acordo com a disposição dos atores, fatores e setores determinantes dofenômeno.

Originado no âmbito dos embates promovidos pela Via Campesina desde1996, momento em que se discutiam novas alternativas para a produção dealimentos, o conceito de soberania alimentar3 define o direito de todos os povosou países para poderem decidir sobre suas próprias políticas de agricultura ealimentação, de forma a privilegiar a produção local para o abastecimento dasáreas próximas e, assim, “[...] garantir a produção de alimentos na linha diretada decisão dos povos, da classe trabalhadora sobre o que, como, quanto e emquais condições se produzir” (THOMAZ JÚNIOR, 2008, p. 8). Desse modo:

A Soberania Alimentar supõe novas relações sociais, libertasdas determinações do capital, portanto da opressão e das desi-gualdades entre homens e mulheres, grupos raciais, classessociais, sendo que o direito de acesso à terra, à água, aos re-cursos públicos para produzir, às sementes e à biodiversidadeseja garantido para aqueles que nela produzem os alimentos,social e culturalmente definidos pelos trabalhadores, ou seja,produtores e consumidores (THOMAZ JÚNIOR, 2008, p. 25).

3 Para mais detalhes, ver: Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural.

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Com base em documento preparado pelo Comitê Internacional dePlanejamento para a Soberania Alimentar (IPC) a pedido da Organização dasNações Unidas para a Alimentação e a agricultura (FAO), entendemos a soberaniaalimentar enquanto conjunto de políticas e ações necessárias para que a reformaagrária e o desenvolvimento rural possam verdadeiramente reduzir a pobreza ecumprir o direito à alimentação, à terra, à elaboração de políticas próprias deagricultura e alimentação em respeito aos territórios indígenas, pescadorestradicionais, etc. e o estabelecimento de prioridade para a produção alimentarvoltada aos mercados locais e nacionais (THOMAZ JUNIOR, 2008, p. 4).

O século XXI nos põe frente a uma enorme variedade de novos desafios,alguns, encimados em contradições que remontam ao período colonial.Expressões como: “mundo rural em crise”, “crise no campo”, “crise dealimentos”, “aumento da fome no mundo”, expõem traços das atuais políticasde articulação neoliberal onde instituições financeiras internacionais como oBanco Mundial (BM), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a OrganizaçãoMundial do Comércio (OMC), impõem um conjunto de políticas macro-econômicas e setoriais que tem conspirado para eliminar a viabilidade econômicados pequenos agricultores e camponeses. Tais políticas têm atuado no sentidode fomentar a liberalização do comércio e a consequente inundação dos mercadoslocais com alimentos importados abaixo do preço mínimo praticado, contra osquais os pequenos agricultores não podem competir, o que resulta no desmonteda produção agrícola direcionada a alimentar as pessoas próximas às áreas deprodução (THOMAZ JÚNIOR, 2008, p. 5).

No bojo da abrangência conceitual pretendida na definição da soberaniaalimentar, estaria ainda a prioridade da produção agrícola local, o acesso doscamponeses e daqueles agricultores sem terra aos recursos água, terra, sementes,crédito, acompanhamento técnico, a criação de mecanismos de proteção aospreços agrícolas oriundos da importação de alimentos, além do reconhecimentoe valorização dos direitos e do papel das mulheres agricultoras no desempenhode funções primordiais na produção agrícola e na alimentação, de modo adesenvolver economias alimentares locais baseadas na produção eprocessamento local. Assim pensada: “A soberania alimentar assegura o direitode cada pessoa a uma alimentação localmente produzida e nutritiva, a um preçojusto, segura, saudável, culturalmente apropriada e, a uma vida com dignidade”(ONG/OSC. IPC, 2006, p. 9).

Para Thomaz Júnior (2008, p. 8), faz-se necessária a distinção entresegurança alimentar e soberania alimentar, sendo que a primeira estariarelacionada “[...] com a obrigação dos Estados nacionais em garantir o acessoaos alimentos em quantidades suficientes, sem se por em questão a origem dosmesmos”, enquanto a segunda implicaria na “[...] defesa do direito dos povos edos países em definir suas próprias políticas e estratégias de produção de

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alimentos destinados ao abastecimento de sua população”, o que configura asoberania alimentar como um conceito abrangente que sintetiza uma complexatrama de relações na materialização de um espaço em consonância com asoberania dos territórios numa peculiar geografia produtiva, expressão geográficada soberania alimentar.

Longe de trazer solução para os problemas relacionados à fome nomundo, o conceito de segurança alimentar tem alimentado, na verdade, acirculação de mercadorias na escala do globo. Convertida em mercadoria, aalimentação das pessoas perde o caráter de centralidade contido na produçãode alimentos, em favor da reprodução e ampliação permanente do mercado e docapital, pelo fato de sua realização estar condicionada à circulação dasmercadorias.

É que ao imperialismo econômico e ao comércio internacio-nal a serviço do mesmo interessava que a produção, a distri-buição e o consumo dos produtos alimentares continuassem ase processar indefinidamente como fenômenos exclusivamenteeconômicos – dirigidos e estimulados dentro dos seus interes-ses econômicos – e não como fatos ligados aos interesses dasaúde pública (CASTRO, 1961, p. 14).

Travestido na panacéia da segurança alimentar à sombra da dita“Revolução verde”, consolida-se o desmonte deliberado das práticas camponesasde policultura em sintonia com a especialização produtiva como expressão deum progresso em que a circulação constrange outros objetivos “menos nobres”da produção agrícola, como o abastecimento alimentar local, de modo que oabastecimento interno de alimentos passa a depender de constantes importações,reafirmando o mercado como o lócus privilegiado de mediação entre produtore consumidor.

Segurança alimentar e soberania alimentar são, assim, reciprocamenteexcludentes. Enquanto a soberania traz a tona o sentido de domínio interno dasdeterminações de agricultura e alimentação, a segurança reflete os interesses emalimentar a circulação das mercadorias em favor da reprodução ampliada do capital,o que se traduz na emergência de pelo menos dois paradigmas4: o da “terra denegócio” e o da “terra de trabalho”5; ou ainda: a terra enquanto sustentáculo deprodução e reprodução de mais-valia ou como expressão de um modo de vida que

4 Khun (2007, p. 30) indica que, alguns exemplos aceitos na prática científica proporcionam modelosdos quais brotam as tradições coerentes e específicas da pesquisa científica. Desse modo, “[...] guiadospor um novo paradigma, os cientistas adotam novos instrumentos e orientam seu olhar em novasdireções” (KHUN, 2007, p. 147).5 Do ponto de vista dos grandes proprietários de terra, a quem Prado Jr. denominara homens denegócio, a utilização da terra constitui um negócio como outro qualquer; de forma diferente, para amassa de trabalhadores camponeses, proprietários ou não, a terra e as atividades que nela se exercemconstituem a única fonte de subsistência para eles acessível (PRADO JÚNIOR, 1981, p. 22).

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implica na possibilidade da composição de um sistema territorial alimentar queintegra cidade e campo numa perspectiva de interação e reciprocidade. Assim,“Em muitos casos, e até dos principais, os fatores positivos que favorecem aagropecuária brasileira como ‘negócio’, constituíram precisamente, comoconstituem ainda, as circunstâncias negativas responsáveis pelo baixo nível devida de nossa população rural” (PRADO JÚNIOR, 1981, p. 24-25).

A soberania alimentar implica superação, ruptura e restabelecimentodo poder dos homens e mulheres de produzir o próprio alimento, em sintoniacom hábitos e práticas culturais originados a partir de uma rica trama de relaçõesque particularizam cada lugar no decorrer do processo histórico, dando origema práticas alimentares com estatuto territorial específico. Dessa forma, cristaliza-se no ideário popular uma série de associações entre produtos alimentares eculinárias, em relação a esta ou aquela região.

Na esteira da segurança alimentar, o único compromisso é com o mercadoe a reprodução ampliada do capital, não deixando margem à manutenção desistemas alimentares locais, minados com a liberalização e inundação dosmercados com alimentos importados abaixo do preço praticado, fato queinviabiliza a produção e coloca em risco uma diversidade de culturas alimentareslocais, projetando um futuro sombrio no que se refere à soberania alimentarenquanto autonomia de cada povo para fazer da terra berço de uma sociedadeemancipada e autônoma nas decisões sobre agricultura e alimentação.

Tal qual a soberania enquanto poder de decisão que emanaindependência, a soberania alimentar pressupõe a autonomia de cada povo paraproduzir de acordo com hábitos e práticas culturais de agricultura e alimentação,em sintonia com sistemas alimentares constituídos na diversidade decombinações resultantes da heterogeneidade do quadro natural em relação aoprocesso histórico-social que os caracterizam, de forma a permitir a manutenção/restauração do poder de produzir/consumir o próprio alimento, na linha diretada expressão cultural que caracteriza cada lugar, cada modo de vida, cadaconjunto específico de sistemas de objetos e sistemas de ações (SANTOS, 2002,p. 61) que se materializam na paisagem, configuram territórios e animam oespaço.

A paisagem revela formas que permitem adentrar o visível e transcenderas aparências, caracterizando uma específica distribuição de formas-objetos(SANTOS, 2002, p. 103), porta de entrada para identificar e qualificar os sujeitosque delimitam territórios e territorialidades, de modo a expor as estruturas quecondicionam o funcionamento do espaço, sua dinâmica, seu conteúdo esignificados sociais.

O território projeta o alcance das decisões soberanas numa dada parcelado espaço, possibilitando demarcar escalas de constituição de economiasalimentares locais, territórios soberanos onde impera “[...] a preservação das

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funções vitais da reprodução individual e societal”, em sintonia com oestabelecimento de um sistema de trocas compatível com as necessidadesrequeridas (ANTUNES, 1999, p. 19-20).

A apreensão da lógica de funcionamento expressa na dinâmica socialmaterializada no espaço abre as portas para entendermos as vias deconstituição dos elementos que compõem um sistema alimentar e o alcancede suas determinações (escalas), o que permite avaliar sua soberania ou suadependência em relação ao mercado. Sob a égide da soberania alimentar, oterritório expressa a materialização das mediações de primeira ordem(ANTUNES, 1999, p. 19-20), aproximando o trabalhador dos meios deprodução numa totalidade sócio-territorial pensada para o homem, emoposição à lógica de subordinação estrutural do trabalho ao capital.

Considerações finaisO alimento enquanto síntese de múltiplas relações no espaço e no tempo

perfaz uma peculiar geografia entendida entre a terra e o prato, de modo arevelar paradigma e politicamente os significados do alimento e da alimentação.Submetida aos ditames da lógica da mercadoria, a alimentação humana perde acentralidade implícita na produção de alimentos, de modo a consolidar o mercadocomo lócus privilegiado de intermediação entre produtor e consumidor, fazendodo alimento um privilégio daqueles que por ele possam pagar.

Emancipado do tempo biológico por meio da artificialização da naturezaalimentar, o alimento/mercadoria metamorfoseia-se em uma diversidade deformas alimentares, resultando na generalização do alimento/rótulo,macdonaldização dos hábitos alimentares responsável por tornar aquilo que éimprescindível ao conjunto da sociedade, objeto do controle de poucas empresasdo setor agro-químico-alimentar para, assim, poderem decidir o perfil dosalimentos consumidos e redefinir a alimentação aos moldes do sabor único(THOMAZ JÚNIOR, 2009, p. 167).

Do campo vivo ao prato cheio, avulta a totalidade do fenômeno daalimentação humana, complexo por demais para ser tratado como mera questãode suprimento quantitativo, concepção errônea que exclui o sujeito central daafirmação de um território em que as diferentes formas se combinam naconsolidação do espaço da soberania alimentar, conjunto de pontos que searticulam em rede na satisfação das condições de afirmação do homem paraalém da mercadoria.

Referências

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O PADRÃO DE DESENVOLVIMENTO DOSAGRONEGÓCIOS E A DEVASTAÇÃO DA VIDA

Frederico Daia Firmiano1

IntroduçãoNos últimos sessenta anos a chamada “revolução verde” praticamente

universalizou-se, tornado hegemônico um padrão mundial de organização daagricultura que opera a partir da expansão das monoculturas e da implementaçãotécnica e tecnológica dos processos produtivos. Com isso, emergiu uma “novaagricultura”, tecnificada, com produção em larga escala, altamente especializada,intensiva e extensiva, destinada aos grandes mercados mundiais, que deu lugara um complexo sistema que constitui largas cadeias produtivas, articuladas pelocapital agrário-industrial-financeiro internacional, nas quais predominamempresas transnacionais. Também chamada de “agronegócios”.

No Brasil, este padrão de agricultura tem apresentado como resultadosuma elevação sobremaneira das exportações em produtos agrícolas que, apenasentre 2000 e 2008, saltaram de US$ 13,2 bilhões para US$ 58,4 bilhões,registrando uma taxa média anual de expansão de 20,43%. Os setores ecomplexos da soja, de carnes, sucroalcooleiro, de café, de fumo, de cereais,farinhas e preparações, somente no ano de 2008, movimentaram US$ 50.120milhões, com destaque para o complexo da soja, o setor de carnes e o complexosucroalcooleiro que, juntos, representaram 69,2% do total das exportaçõesbrasileiras (BRASIL, 2009, p. 9-15).

Isto significa o avanço das monoculturas sobre os as áreas de proteção ereservas legais ou, então, sobre os territórios de grupos, comunidades e povoscuja reprodução da existência está vinculada à experiência na terra. Ao ladodesta expansão da fronteira agrícola, ocorre a consolidação de uma racionalidadecientífica que torna a tecnologia um dos componentes mais importantes doprocesso produtivo, em distintos biomas e ecossistemas, conferindo ainda maispoder às indústrias que detêm sua produção (PORTO-GONÇALVES, 2004, p.208-212), e garantindo um elevadíssimo padrão de acumulação de capital comcontrole ainda mais acirrado sobre o trabalho e os recursos ecológicos.

Este texto busca refletir sobre alguns aspectos do padrão dedesenvolvimento rural atual sob as atividades político-econômico-financeirasdo agronegócio, particularmente, aqueles que dizem respeito a expansão da

1 Professor Assistente da Fundação de Ensino Superior de Passos/Universidade do Estado de MinasGerais-Fesp/Uemg; Mestre e doutorando em Sociologia, pelo Programa de Pós-Graduação emSociologia da Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Câmpus de Araraquara-FCLar/Unesp, sob orientação do Prof. Dr. Augusto Caccia-Bava Júnior; integrante do Grupo dePesquisa Segurança Urbana, Juventude e Prevenção de Delitos, do CNPq; bolsista CAPES. E-mail:[email protected].

CAPÍTULO 4

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área agrícola cultivada e aos ganhos em produtividade que, se de um ponto devista das relações entre homem e natureza encontram seus limites objetivos,dada a necessidade de avanço sobre os territórios da vida, para os ideólogos doagronegócio, trata-se, pois, de benefícios alcançados pelo modelo dedesenvolvimento agrário contemporâneo.

Para tanto, apresentaremos alguns dados sobre as áreas disponíveis paraa expansão dos agronegócios, sob o ponto de vista de seus ideólogos, erefletiremos sobre o avanço do capital sobre as áreas que hoje estão sob reservae proteção legal, a partir da tentativa de desmonte do Código Florestal Brasileiro;em seguida, apontaremos o lugar do trabalho na produção de riqueza, segundoa experiência do complexo sucroalcooleiro de Ribeirão Preto-SP, demonstrandoque o aumento de sua produtividade é proporcionalmente igual ao aumento desua degradação. Por fim, trataremos a mística que envolve as chamadas “novastecnologias”, sobretudo à biologia sintética, e suas possibilidades futurasconcretas, como a nova tendência à homogeneização e mercantilização de todamanifestação de vida através do controle da biomassa.

O avanço do capital sobre o território da vida: a reversão das reservaslegais brasileiras para a exploração do agronegócio

Segundo Judas Tadeu Grassi Mendes e João Batista Padilha Júnior paramanter constante a produção mundial de lavouras permanentes e temporárias,seria necessária uma área de cerca de 2,8 bilhões de hectares – quase o dobro daárea cultivada atualmente. No entanto, somente parte desta área adicional estariadisponível para a expansão da fronteira agrícola. A outra parte corresponde àsáreas sob preservação legal (MENDES; PADILHA JÚNIOR, 2007, p. 147).Mas como determinar esta parte correspondente à área disponível para o avançoda fronteira agrícola?

Segundo estes autores, a determinação da área total líquida com potencialarável toma duas variáveis de uso não agrícola: áreas de proteção ambiental eáreas para assentamento humano, que são descontadas da área total bruta quepossui potencial agrícola. A partir desta equação, os autores estimam a existênciade 3,9 bilhões de hectares de área líquida potencialmente arável ainda nãoutilizada em sua totalidade. Uma vez que 1,6 bilhão de hectares já sãoagricultados atualmente, restariam 2,3 bilhões de hectares a serem utilizados.Somente na América do Sul e na África subsaariana estariam 1,7 bilhão dehectares dessa área com suposto potencial para utilização, ou seja, mais de 70%do total disponível não utilizado. Cerca de 1,3 bilhão de hectares pertence apaíses “em desenvolvimento”. E, aspecto de máxima importância, é que naAmérica do Sul estão 836,7 milhões de hectares supostamente disponíveis, dosquais, quase metade, 394 milhões de hectares, são parte do território brasileiro.(MENDES; PADILHA JÚNIOR, 2007, p. 147-148).

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Esses ideólogos do agronegócio sustentam que o gênero humano estariaocupando apenas 41,1% da área potencialmente arável no mundo, o que a tornariaampliável, mesmo não sendo esta uma tarefa fácil, pois “as melhores terras”, ossolos mais férteis, já estão ocupados, restando cerca de 2,3 bilhões de hectarescujas restrições seriam (1) a concentração em apenas duas regiões (África eAmérica do Sul); (2) o fato de uma grande parte desta reserva de terra estar sobfloresta ou em áreas protegidas; (3) e, de acordo com dados da FAO, metadedas reservas passíveis de expansão agrícola serem classificadas nas categoriasúmidas ou marginalmente adequadas para a produção de alimentos, apresentandocusto elevado para a incorporação ao sistema produtivo (MENDES; PADILHAJÚNIOR, 2007, p. 148).

Não é difícil perceber a importância estratégica da África subsaariana e,sobretudo, da América Latina, com amplo destaque para o Brasil, para a expansãodos chamados agronegócios, dada a suposta abundância de terras a seremocupadas - um dos fatores fundamentais para a reprodução deste modelo dedesenvolvimento rural. Tão-pouco a origem dos fundamentos do avanço sobreas áreas supostamente agricultáveis da África e da América do Sul e a tentativade reversão de reservas legais e de áreas de proteção permanente.

Tal é o caso da investida do agronegócio contra o Código FlorestalBrasileiro que, criado no ano de 1934 para regulamentar a expansão da atividadeagrícola no País para as áreas de florestas, conseguiu aplicar até o momento aReserva Legal (RL)2 e as Áreas de Preservação Permanente (APPs)3.

No ano de 2009 constitui-se no Congresso Nacional Brasileiro umaComissão Especial sobre alterações do Código Florestal. Iniciou-se, então, umacampanha para a “flexibilização” da legislação ambiental que responde aosinteresses do chamado agronegócio. Dentre as principais alterações sugeridaspela Comissão estão: a) a desobrigação da recuperação de APPs irregularmenteocupadas e o fim de sua definição em Lei, sob a justificativa de que a recuperaçãodessas áreas prejudicaria os pequenos produtores e algumas culturas; b) apermissão para que os estados definam seus próprios parâmetros para as APPs,podendo definir áreas menores que as atualmente dispostas pelo CódigoFlorestal, sob o argumento de que deve-se respeitar as singularidades locais; c)o fim da figura da RL ou a desobrigação de sua recuperação nos casos dosdesmatamentos ocorridos até o ano de 2006, já que a recuperação das áreasdevastadas significaria perda para a agricultura nacional e possíveis injustiçascontra os produtores rurais; d) a possibilidade de recuperação das RL desmatadascom até 50% de espécies exóticas, como plantas originárias de outros biomas

2 Proporção de vegetação de cada imóvel rural que possui alguns usos produtivos permitidos pelalegislação3 Unidades de conservação dos recursos hídricos que não permitem atividades produtivas nas margensdos rios, declives íngremes e altitudes elevadas.

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ou de outros países para que espécies de uso econômico promovam arecomposição da área; e) a compra de áreas, principalmente na Amazônia, paraproteger as RL, ao invés de recuperar as já constituídas, tendo em vista que suarecuperação além de gerar custos elevados reduz as áreas produtivas, já quevoltam a possuir floresta; f) em caso de não extinguir a RL, permitir que elaseja reduzida na Amazônia Legal de 80% para 50 % em área de floresta e de35% para 20% em área de Cerrado até que seja realizado o ZoneamentoEcológico Econômico.

Caso as alterações no Código Florestal sejam aprovadas, e esta pareceser a tendência, dada a forte representação do agronegócio nas instânciaslegislativas e o comprometimento do atual governo federal com estes setores,ao lado da regulamentação/legalização da destruição ecológica e dos recursosnaturais, dado a diminuição das áreas de reserva legal e das áreas de preservaçãopermanente, da qual será conseqüência a intensificação dos chamados “desastresnaturais”, cuja natureza é, antes, o privilégio da acumulação de capital sobpadrões destrutivos, haverá um fortalecimento ainda maior do modelo dedesenvolvimento rural sob controle do capital transnacional que, hoje, dita apolítica agrícola, controla o comércio e o preço de cereais, sementes eagrotóxicos, e avança sobre a propriedade da terra4, pois nada indica quaisqueralterações no modelo ou mesmo no padrão de expansão do capital sobre oterritório da vida.

O desenvolvimento tecnológico como mistificação da superexploração dotrabalho: a experiência de Ribeirão Preto-SP

Associada a expansão da fronteira agrícola, ou ao avanço do capital sobreas áreas “ainda não disponíveis” para a agricultura, está a busca permanentepelo aumento da produtividade.

Para os ideólogos do agronegócio, “[...] o caminho para o aumento daprodutividade é a adoção generalizada das várias tecnologias já disponíveis nospaíses desenvolvidos, mas ainda pouco difundidas nas regiões menosdesenvolvidas” (MENDES; PADILHA JÚNIOR, 2007, p. 148).

Nesses termos, a competitividade do agronegócio brasileiro no mercadointernacional estaria diretamente relacionada a utilização de cinco tecnologiasestratégicas: a) a tropicalização da soja, que é uma planta de origem asiáticaque se adaptou ao clima brasileiro depois de passar por um processo demelhoramento genético, tornando o País o segundo maior produtor de soja emaior exportador mundial do grão; b) o domínio da agricultura no cerrado ou aexpansão da fronteira agrícola rumo ao cerrado, a partir de um conjunto detecnologias adequado às condições brasileiras (atualmente, o cerrado, outrora4 “Segundo levantamento do INCRA há 33.228 imóveis (0,64 do total) registrados como propriedadesde estrangeiros. Estas propriedades cobrem 5,6 milhões de hectares [...]” (SILVA, 2008, p. 67).

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considerado infértil, constitui-se na maior fronteira agrícola do planeta); c) odesenvolvimento de plantas forrageiras adaptadas às condições brasileiras, quepermite a alimentação animal com baixo custo e alavanca a pecuária de corte,ampliando a produção pecuária brasileira, tornando o País o maior exportadorde carne do mundo; d) a produção do álcool de cana-de-açúcar, com aumentosubstantivo da produtividade média da cana-de-açúcar, baixando o custo doálcool anidro e reduzindo o preço do metro cúbico, viabilizando seu usocombustível renovável e alternativo ao petróleo; e) a produção de celulose deeucalipto, com o desenvolvido de técnicas de manejo e melhoramento genéticodo eucalipto, originalmente da Austrália (o Brasil produz madeira para papel ecelulose em 7 anos, um terço do tempo médio dos demais países produtores.Além disso, o País possui a maior área plantada do planeta) (MENDES;PADILHA JÚNIOR, 2007, p. 153-154).

De fato, no Brasil, a revolução verde engendrou um padrão de agriculturavoltado para o cultivo contínuo de produtos com altos níveis de rentabilidade,configurando um sistema de monoculturas que exige a permanenteimplementação tecnológica para manter os elevados índices de produtividade.Mas este contínuo desenvolvimento tecnológico não eliminou as formas desuperexploração do trabalho pelo capital. Ao contrário, o alto desempenho emprodutividade dado pela implementação tecnológica, que mistifica o lugar dotrabalho na produção da riqueza, tem convivido com as diversas formas desuperexploração do trabalhador. Assim demonstra a experiência da produçãode açúcar e álcool de cana-de-açúcar ou, de modo mais amplo, do complexosucroalcooleiro, em Ribeirão Preto-SP que, para esses autores, é um caso desucesso no mercado internacional, emergindo como combustível renovável ealternativo ao petróleo. Vejamos mais de perto os fundamentos de seu sucesso.

A modernização das lavouras de cana-de-açúcar nesta região, cujomunicípio de Ribeirão Preto-SP se auto-denomina “Capital Nacional doAgronegócio”, apóia-se em duas formas complementares de exploração econtrole sobre o trabalho: um sistema mecanizado de corte de cana-de-açúcar eo corte manual deste produto. No caso do corte mecanizado, o uso de altatecnologia é constante e, por isso, há exigência de trabalhadores especializados,que são contratados diretamente pela unidade de produção, a usina, que têmassegurados direitos trabalhistas fundamentais. Já no caso do corte manual dacana-de-açúcar, o uso de tecnologias é mínimo e os trabalhadores não dispõemde nenhuma especialidade: basta que tenham habilidade, destreza, força,resistência física e saibam manusear o facão, também conhecido por podão, seuinstrumento de trabalho. Na sua grande maioria, estes últimos são trabalhadoresque vêm de outras regiões. São migrantes que, em geral, deslocam-se da regiãoNordeste do País e cuja contratação não se dá de forma direta pela unidadeprodutiva, mas é intermediada por um indivíduo ou empresa contratada pela

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usina, responsável pelos trabalhadores que vendem sua força de trabalhotemporariamente, apenas durante o período da safra. Eles produzem seu salárioa partir de sua produtividade. Por essa razão, esses trabalhadores devem seraltamente produtivos. Como relata José Roberto Pereira Novaes as usinas exigemque cada trabalhador corte 10 toneladas por dia, no mínimo (NOVAES, 2007,p. 170-171).

Este pesquisador acompanhou uma experiência na qual determinadausina contratou 5 mil trabalhadores para o corte da cana-de-açúcar no início dasafra. No primeiro mês de trabalho, calculou o rendimento médio deste grupode trabalhadores e dispensou dois mil trabalhadores que não conseguiramalcançar a média. No mês seguinte, a empresa realizou o mesmo procedimento,dispensando cerca de mil trabalhadores. O impressionante é que os dois miltrabalhadores restantes conseguiram realizar o mesmo quantum de produção detodo o grupo que iniciou a safra, os cinco mil trabalhadores. Estes trabalhadoresselecionados chegaram a manter uma média entre 12 e 17 toneladas de cana-de-açúcar cortadas por dia (NOVAES, 2007, 171-172).

Se, por um lado, a mecanização produz desemprego, por outro lado,onde o trabalho continua sendo indispensável, se acirra o controle sob a forçade trabalho, aumentando, inclusive, o poder disciplinador e de extração de mais-valia, uma vez que o ritmo, a intensidade, e por conseguinte, a produtividade dotrabalho manual no corte de cana-de-açúcar são determinados pelo sistema decorte mecanizado. É deste modo que se intensificam as formas contemporâneasde superexploração do trabalho e do trabalhador que, neste patamar deprodutividade (lembre-se: entre 12 e 17 toneladas de cana-de-açúcar cortadaspor dia), corre altíssimo risco de sofrer algum acidente ou de desenvolver doençascausadas por esforço repetitivo e exagerado. E mais: o risco de morte porexaustão no trabalho pode tornar-se realidade5.

Para István Mészáros na base desta intensificação da superexploração dotrabalho e do trabalhador está a lei tendencial da equalização descendente dataxa de exploração diferencial. O autor toma o conceito de capital social totalpara compreender o desenvolvimento e auto-reprodução do modo de produçãocapitalista, tendo presente o antagonismo entre o capital social total e a totalidadedo trabalho que, como explica, modifica-se de acordo com (1) as circunstânciassocioeconômicas locais, (2) a posição que o país ocupa na estrutura global daprodução de capital e (3) a maturidade relativa do desenvolvimento sócio-histórico global. Cabe salientar, junto com o autor, que em distintos períodoshistóricos, tanto no âmbito do trabalho, quanto do capital, o sistema como umtodo sofre a intervenção de um conjunto complexo de interesses. Para ele, arealidade objetiva das diferentes taxas de exploração que se pode verificar em5 Entre 2005 e 2009, ocorreram 23 mortes nos canaviais paulistas supostamente por excesso de esforço.(SILVA, 2009, p. 8).

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cada país e no sistema mundial do capital é inquestionável tanto quanto asdiferenças objetivas nas taxas de lucro. Esta realidade, no entanto, não altera alei fundamental segundo a qual a crescente equalização das taxas de exploraçãodiferenciais é uma tendência global de desenvolvimento do capital mundial.Distinguindo o capital social total do capital nacional total, o autor afirma quequando este último é afetado por um enfraquecimento relativo de sua posiçãono quadro do sistema global do capital, buscará compensar suas perdas com oaumento da sua taxa de exploração sobre a força de trabalho que está sob seucontrole direto. Não havendo alternativa, tanto em âmbito local, quanto global,ocorrerá, em longo prazo, uma intensificação do antagonismo socialfundamental. (MÉSZÁROS, 2006, p. 36-37).

Dado que o Brasil ocupa posição subalterna no quadro do sistema globaldo capital, como fornecedor de commodity para países desenvolvidos ou “emdesenvolvimento”, algo que não é só determinado pelo conjunto das forçaspolítico-econômicas externas, mas também pela opção política interna de aliançacom o capital transnacional e pela opção econômica pela geração rápida dedivisas através dos agronegócios, é possível tomar como hipótese que, para sereproduzir, os agronegócios apóiam-se necessariamente nas mais variadasformas de violência ou violação dos direitos do trabalho e dos trabalhadores6.

No limite, a manifestação dos processos altamente destrutivos do sistemade metabolismo social sob a lógica do capital, que experimenta sua criseestrutural, como configura fala Mészáros (2009), principalmente – e nãoexclusivamente - em países com posição subalterna no quadro do sistema globaldo capital e cuja opção é a rápida geração de divisas através dos agronegócios,que exige extensas áreas verdes e intensa e extensa exploração do trabalho, dotrabalhador e dos recursos ecológicos, torna inócua, de modo mais amplo,qualquer forma de controle sobre o capital e, de modo mais estrito, qualquertentativa de garantia de direitos.

As promessas da biologia sintética e o controle da reprodução da vidaAlém de mistificar a superexploração do trabalho e do trabalhador como

condição para a manutenção de altos padrões de acumulação de capital, o apeloàs novas tecnologias, que atuam como força produtiva nos setores dinâmicosdos agronegócios, opera, ainda, a despolitização das relações nas quais seinserem. Ou seja, à medida que ocorre o desenvolvimento técnico e tecnológicoe os produtos desta expansão passam a integrar os processos produtivos e asrelações sociais de produção de forma generalizada, as próprias relações entreos homens e entre eles e a natureza e os problemas à que estas relações dão6 A política de ganhos por produtividade, com jornadas de trabalho que chegam a 12 horas/diáriastambém é encontrada por Mildred López na Guatemala, país subdesenvolvido que, na última década,tem registrado a expansão dos agronegócios. (LÓPEZ, 2008, p. 128).

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lugar ganham um caráter técnico, em seu encaminhamento e resolução.Ciência e tecnologia passam a assumir a condição de novos salvadores

da humanidade; entidades que irão resolver todos os problemas gerados por elaao longo de sua história, através de novos produtos, como defensivos virais,kits para diagnóstico de doenças de plantas, vacinas; ou através das áreas demelhoramento genético, aperfeiçoamento de variedades de plantas; ou, ainda,no campo da engenharia genética, como as sementes geneticamente modificadaspela biotecnologia, os chamados transgênicos.

A última “inventiva científica” do pesquisador estadunidense CraigVenter7 é exemplar quando mostra que com a criação de vida artificial auto-replicante, seria possível produzir diversidade biológica não-natural e, com isso,“resolver” problemas ambientais no futuro, criando, por exemplo,agrocombustíveis mais produtivos ou bactérias que limpariam os mares, além,é claro, de uma variedade incrível de alimentos para suprir as carênciasalimentares mundiais.

É como se não houvesse nenhum enraizamento social da ciência e datecnologia (MÉSZÁROS, 2009). É como se o campo técnico-científico estivesseàs margens das relações sociais e de poder (PORTO-GONÇALVES, 2004).

Pat Roy Mooney, co-fundador do centro de estudos sobre tendências ealternativas tecnológicas e socioeconômicas, ETC Group, em duas entrevistasconcedidas ao jornal Brasil de Fato falou sobre as mistificações em torno dasnovas tecnologias e suas reais possibilidades no futuro, apontando os riscos dadevastação da vida.

Na primeira entrevista, referindo-se a possibilidade de criação de vidaartificial auto-replicante o pesquisador canadense afirmou que os governos “[...]pensam que é uma maneira técnica e rápida de consertar problemas atuais, comoa aproximação do pico de produção do petróleo e as crises alimentar e climática”.Porém, não há conhecimento “[...] das profundas implicações para abiodiversidade que essa tecnologia poderia gerar”, além de não existir “[...]capacidade nos governos, individualmente ou de forma coletiva, de regular essatecnologia.”8

Segundo o pesquisador “[...] essa é a tecnologia mais poderosa que omundo já viu, com a exceção, talvez, das armas nucleares.” O problema é queesta sob o controle de empresas transnacionais como a British Petroleum e aExxon, assim como a DuPont e Monsanto (BRASILINO, 2010, p. 5).

E o Brasil pode ser o primeiro lugar onde a tecnologia deve ser7 Em maio de 2010 o geneticista anunciou a criação de uma célula sintética, a partir de um DNAartificial, transplantado para uma bactéria. Em entrevista ao Jornal da Ciência, publicado pelaSociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, o pesquisador disse que pela primeira vez umcientista construiu um cromossoso inteiro, transplantando-o para uma célula receptora, passando aassumir o controle dessa célula. (CONNOR, 2010, online).8 Pat Roy Mooney em entrevista (BRASILINO, 2010, p. 5).

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introduzida, pois já existe um trabalho desenvolvido por Jay Keasling,engenheiro e empresários dos Estados Unidos, da empresa Amyris, especializadano desenvolvimento de biologia sintética, que tem contrato com a BritshPetroleum que, por sua vez, é ligada ao grupo de Craig Venter. Este trabalhoconsistiria na construção de uma planta em São Paulo que produziria umasegunda geração de agrocombustíveis a partir da cana-de-açúcar (BRASILINO,2010, p. 5). Caso os cientistas construam “[...] uma forma de vida que o mundonunca viu, e se essa forma de vida não possuir inimigos no meio ambiente,então ela pode destruir ou se alimentar da biodiversidade.” Embora haja apossibilidade de novas formas de agrocombustíveis mais produtivos ou insumospara a fabricação de combustíveis e alimentos, o pesquisador afirma que: “[...]existe o perigo de que o micróbio artificial que eles [os cientistas] usarem escapepara o meio ambiente.” E é contundente ao dizer que: “Tudo que um dia estevedentro de um laboratório sempre acaba saindo. [...]. E eles estão fazendo issoem um país [Brasil] que tem mais biodiversidade que qualquer outro no mundo.É uma coisa perigosa de se fazer.” E o mais importante: o “campo de batalha”não se encerra nos agrocombustíveis ou nos alimentos, “[...] o que as empresasquerem fazer de verdade é controlar as biomassas [...]. Ao invés de usar carbonofossilizado, como nós fazemos com petróleo ou gás natural, utilizarão carbonovivo, que será transformado em plástico, comida, o que quiserem.”(BRASILINO, 2010, p. 5).

Na segunda entrevista, concedida ao mesmo jornal durante o FórumSocial Mundial de Dacar, realizado entre 6 e 11 de fevereiro de 2011, Pat Mooneyafirma que estaria havendo uma mudança do foco na agricultura para o foco nabiomassa, ou seja, tudo aquilo que até então pode ser feito com o carbono fóssil,o petróleo, passa a ser produzido também com carbono vivo. Com a biologiasintética é possível sintetizar DNA e, em tese, criar formas de vida inimagináveis:

Toda a vida que conhecemos é feita de A, C, G e T, que são asbases de aminoácidos. Agora, eles [os cientistas] podem fazerum F, um X... Em teoria, eles podem fazer 12 letras de DNA.Então, há uma massiva multiplicação da diversidade da vida.Quase tudo que sabemos que é vivo é baseado em 20aminoácidos.

Com a biologia sintética, você pode alterar a célula para ler deum jeito diferente o DNA, fazendo com que passe a existir276 diferentes aminoácidos. Isso significa que você pode criarmais biodiversidade não natural em um tudo de laboratório doque há em todo o mundo, contando a Amazônia e tudo mais.No passado, pela primeira vez, os cientistas foram capazes decriar uma forma de Cida inteira que nunca tinha existido an-tes. Não foi só um micróbio, mas um que pode se replicar porvárias gerações e ir se alterando. O que eles dizem é que po-

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dem pegar esses micróbios e construí-los de tal forma que,com qualquer biomassa, eles a transformam no que eles quise-rem.9

No limite, não importa se haverá monocultura de cana-de-açúcar, de soja,de milho. Nem mesmo se a monocultura será substituída pela policultura dealimentos. Sob o controle do capital tudo poderá se transformar em plástico,combustível, alimentos, eletricidade, tinta ou qualquer outra coisa. Assim, abiomassa se transforma na nova commodity. E considerando que todas as formasde vida são, fundamentalmente, do ponto de vista da biologia, biomassa, tudo,poderá vir a ser commodity - até mesmo grupos de pessoas, principalmente,aqueles que não mais servirem ao capital ou que o servirem para esse fim!

Isto, pois, o controle destas novas tecnologias significa o controle daprópria produção da vida. Como já havia afirmando na entrevista anterior, estecontrole é detido por empresas como Monsanto, Dupont, British Petroleum,Exxon Mobil, Basf, Bayer e empresas menores, como Amyris, financiada entreoutros, pelo Departamento Estadunidense de Energia, por empresas petrolíferas,empresas brasileiras, como a Votorantim, e grupos ligados ao agronegócio dacana-de-açúcar, para quem, o que importa é a produção do maior número debiomassa possível, no menor tempo possível e na menor superfície de terrapossível.

O pesquisador canadense ainda afirma que:Há um dado que acho que deveria amedrontar a todos. Os in-vestidores capitalistas que investem em biologia sintética di-zem a mesma coisa, que 23,8% da biomassa terrestre produzi-da anualmente no mundo está transformada em commodity,ou seja, é um produto para ser vendido. Isso é o que eles po-dem controlar no momento. Então, eles dizem que, com a bio-logia sintética, eles poderão controlar os restantes 76,2%. Aestratégia das grandes empresas é produzir o que elas chamamde genes climáticos, ou seja, que podem suportar as mudançasclimáticas. O que elas na verdade estão fazendo é tentar cap-turar um grande pedaço e DNA e monopolizá-lo. Esse mesmopedaço de DNA existe em praticamente todas as plantas queconhecemos e o que eles estão tentando dizer é que qualquerparte de uma planta que tenha esse pedaço de DNA é delas. E,segundo as empresas, esse pedaço de DNA fará com que asplantas agüentem as mudanças climáticas. Então, elas dizemque vão proporcionar a segurança alimentar de todos nós atra-vés do controle desse pedaço de DNA. Já há 262 patentes des-se tipo, e 79% delas estão nas mãos de apenas seis empresas.(RIBEIRO; BATISTA; RAIMUNDA, 2011, p. 11).

9 Pat Roy Mooney em entrevista (RIBEIRO; BATISTA; RAIMUNDA, 2011, p. 10-11).

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Mais que recriar relações sociais de produção e formas distintas dereprodução da existência, este modelo de desenvolvimento agrário, o padrão deacumulação de capital alcançado na atualidade e o lugar ocupado pelas novastecnologias no processo produtivo, além de tender ao esgotamento de todas asfontes de energia naturais e a devastação da biodiversidade, ameaça as distintasformas de vida, inclusive, do gênero humano ou, pelo menos, de determinadosgrupos sociais.

A mediação violenta da expansão dos agronegócios: em busca de algumasconsiderações finais

A organização da produção agrícola sob o controle do capitaltransnacional, que prioriza os monocultivos extensivos em larga escala, temsignificado seu avanço destrutivo sobre os territórios de produção e reproduçãoda vida, seja com a tentativa de avanço dos agronegócios sobre as reservaslegais e as áreas de proteção permanente, seja por meio da superexploração dotrabalho e dos trabalhadores, como no caso do complexo sucroalcooleiro naregião de Ribeirão Preto-SP ou, ainda, por meio do desenvolvimento das novastecnologias sob o controle das empresas transnacionais que tendem a transformartoda manifestação de vida em commodity.

Assim, este modelo contemporâneo hegemônico de desenvolvimentoagrário produz uma identificação sem precedentes entre a expansão do capital ea devastação da vida, ao que István Mészáros chama de “potencial deautodestruição da humanidade” (MÉSZÁROS, 2009) e que, aqui, pode serentendido como o significado mais radical da violência no presente, cujaobjetivação tem sido registrada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e peloConselho Indigenista Missionário (CIMI).

Para a primeira entidade, em seu documento anual intitulado “Conflitosno Campo Brasil 2009”, também conhecido como Caderno de Conflitos, de2008 para 2009, os conflitos saltaram de um total de 1170 para 1184 conflitos:as tentativas de assassinato passaram de 44 para 62; as ameaças de morte, de 90para 143; o número de pessoas presas aumentou de 168 para 204; o número depessoas torturadas passou de 6 para 71; o número de famílias expulsas da terrasubiu de 1841 para 1884; e o número de famílias despejadas passou de 9077para 12388; famílias ameaças por pistoleiros foram 9031, contra 6963 no anoanterior (CPT, 2010).

Já o documento “Violência contra os povos indígenas no Brasil –relatório 2009”, da segunda entidade, registrou no ano-base do relatório: 43invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversosao patrimônio indígena; 60 assassinatos; 15 vítimas de 16 tentativas deassassinatos; 37 lesões corporais dolosas, em 14 casos; 88 vítimas de 14 casosde abusos de poder. O Mato Grosso do Sul tem sido o estado mais violento do

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País contra os indígenas, sobretudo, contra o povo Guarani Kaiowá: entre 2005e 2008 foram assassinados 151 indígenas; só em 2009, 33 indígenas forammortos no estado (BONIN, 2009, p. 18).

Em ambos os relatórios, a manifestação da violência temcorrespondência direta com o modelo de desenvolvimento agrário concebido,fundamentalmente, a partir do avanço dos agronegócios sobre os territóriosocupados por comunidades de trabalhadores, que nos termos dos ideólogos dosagronegócios são a “área total líquida com potencial arável”, e da intensificaçãoda produtividade do trabalho, tanto pela implementação tecnológica, quantopela exploração da chamada mais-valia absoluta. Para estas entidades, os sujeitosda violência são latifundiários, empresários, usineiros, empreiteiros, funcionáriosde fazendas e empresas rurais, agentes de segurança privada, pistoleiros, políticose instituições do Estado. Atuam de modo articulado (CIMI, 2009; CPT, 2010).

Os processos e fenômenos aqui apresentados, ainda que brevemente,permitem afirmar que a violência é uma mediação contemporânea negativamenteimportante da expansão do capital. E mais do que isto, que está em curso umprocesso de devastação da vida comandado pelo capital transnacional.

O caráter dramático desta consideração final é que não há sinais de queesta tendência seja revertida - o que exige um novo modelo de desenvolvimentoda agricultura capaz de engendrar uma lógica contrária à lógica de expansãodos agronegócios. E isto, por sua vez, necessita de uma nova forma de controlesocial e o restabelecimento de uma relação sustentável entre homem e natureza.

Referências

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A CONTRIBUIÇÃO DAS INDÚSTRIAS DEAGROTÓXICOS À DESTRUTIVIDADE DOCAPITALISMO

Everson de Alcântara Tardeli1

Heliton Moreno Mendonça2

IntroduçãoO objetivo deste artigo é analisar, como o próprio título sugere, a

contribuição da industrialização, da comercialização e do uso de agrotóxicosaos impactos ambientais e aos danos à saúde da população, potencializando as“determinações auto-destrutivas do sistema do capital” e, consequentemente,das possibilidades de sobrevivência da humanidade (MÉSZÁROS, 2007).

As indústrias de agrotóxicos evidenciam e comprovam a realizaçãoperniciosa do sistema do capital ante o meio ambiente e à própria vida no planeta.A compreensão das suas manifestações culturais, econômicas, sociais e políticastorna-se o fio condutor deste estudo, que busca evidenciar a necessidade urgente dainterferência da sociedade, organizada, no sentido de possibilitar a aboliçãoincondicional deste atual modelo de desenvolvimento agrário, sustentadoirresponsavelmente e negligentemente pelas relações industriais capitalistas vigentes.Assim, almejam-se perspectivas de promover alternativas viáveis e inadiáveis para,no mínimo, possibilitar a permanência das condições de sobrevivência dahumanidade.

Contudo, como os preocupados cientistas do movimento eco-lógico nos lembram a todo instante: o longo prazo não está deforma alguma tão longe agora, uma vez que as nuvens de umacatástrofe ecológica tornam-se visivelmente mais escuras emnosso horizonte (MÉSZÁROS, 2007, p. 189).

É neste sentido de urgência que alternativas ao atual sistema capitalistadevem ser pensadas, especialmente quanto à suas manifestações no modelo dedesenvolvimento agrário. Para isto, torna-se necessário compreender, primeiro,como se manifesta esta destrutividade inerente do sistema capitalista, tomando-se por base uma bibliografia interdisciplinar acerca desta realidade. A percepçãoe conscientização são fundamentais para se pensar possibilidades de intervençãourgentes no sentido de promover transformações para um modelo de1 Presidente do Sindicato dos Eletricitários do Sul de minas Gerais. Vice-presidente da Federação dosTrabalhadores nas Indústrias Urbanas de Minas Gerais; Historiador (UNIVÁS); Especialista emEconomia do Trabalho e Sindicalismo (UNICAMP); Mestrando no Programa de Pós Graduação emServiço Social da UNESP-FRANCA, sob orientação do Prof. Dr. José Fernando Siqueira da Silva. E-mail: [email protected] Sócio-Proprietário da empresa Eco Insumos Agrícolas LTDA; Técnico em Agropecuária (EAFMz);Administrador (FACECA); Especialista em Agricultura Orgânica (UFLA). E-mail:[email protected]

CAPITULO 5

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desenvolvimento verdadeiramente sustentável, que respeite a manutenção davida acima de qualquer outra prerrogativa.

Quanto à destrutividade do capitalismoNas perspectivas teóricas sobre as bases estruturais das relações sociais

vigentes, especialmente numa bibliografia básica de autores como RicardoAntunes e István Mészáros, que fundamentam áreas do conhecimento emCiências Humanas e Sociais, o capitalismo vive atualmente uma crise estruturalinsustentável tanto do ponto de vista econômico predominante, como tambémdo cultural, do social e do político, além de seus impactos ao meio ambiente eàs condições de sobrevivência no planeta, o que implica na autodestruição dahumanidade.

É sabido que as alterações ocorridas nos ecossistemas têm ori-gem na atuação humana a qual se tem caracterizadocrescentemente pela exploração dos recursos naturais, ocasionandoa degradação do ambiente e refletindo de forma direta sobre asaúde humana (SEVERO; COSTA; SIMON, 2010, p. 2).

Em suma, sendo o sistema capitalista o atual modelo de relacionamentodo homem com a natureza, a utilização indiscriminada dos recursos naturaisdisponíveis é determinante para a destrutuvidade das condições de vida noplaneta e afeta diretamente a saúde da humanidade.

Ricardo Antunes (2009, p. 17), já na introdução de “Os sentidos dotrabalho”, apresenta de forma explícita algumas das determinações do atualmodelo de desenvolvimento capitalista e suas conseqüências na vida dapopulação do mundo:

A crise experimentada pelo capital, bem como suas respostas,das quais o neoliberalismo e a reestruturação produtiva da erada acumulação flexível são expressão, tem acarretado, entretantas conseqüências, profundas mutações no interior do mun-do do trabalho. Dentre elas podemos inicialmente mencionaro enorme desemprego estrutural, um crescente contingente detrabalhadores em condições precarizadas, além de uma degra-dação que se amplia, na relação metabólica entre homem enatureza, conduzida pela lógica societal voltadaprioritariamente para a produção de mercadorias e para a va-lorização do capital.

Ao aprofundar os conceitos implícitos em sua afirmação, percebe-seque estes apontam a destrutividade do atual modelo, tanto pela sua incapacidadede promover a distribuição justa na apropriação dos bens produzidos mesmoentre os seus produtores, na medida em que promove a exploração do homempelo homem, quanto pela sua própria insustentabilidade no tocante aoesgotamento dos recursos naturais do planeta.

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A ideologia do desenvolvimento não trata de um processo quetraga benefícios a todos e a todas. Pelo contrário, ela beneficiaalguns e prejudica a muitos. Movidos pela necessidade intrín-seca de expansão permanente do capital, os processos de pro-dução e consumo tendem a promover profundas transforma-ções nos territórios em que inserem, produzindo conflitossocioambientais, além da utilização de matérias e energia àsvezes não renováveis; a degradação do ambiente, como odesmatamento e a desertificação; a contaminação da água, dosolo, do ar, da biota e dos alimentos por substâncias químicas,como os agrotóxicos, ou riscos tecnológicos de natureza físi-ca; a mudança de padrões culturais, valores, hábitos, além daalteração de paisagens de importante significado cultural paraas populações tradicionais, entre outros (RIGOTTO;TEIXEIRA, 2009, p. 79-80).

Neste contexto, a expansão do capital cria novos valores e necessidadessustentados na valorização do individualismo, que é a base da sobrevivênciadesse modelo. A expansão do capital se vale dos recursos midiáticos, em especial,dos meios de comunicação de massa, governos, instituições de ensino e outrosmeios formadores de opinião para prevalecer hegemonicamente como únicaopção de desenvolvimento possível, desconsiderando, ainda, que esta é umaopção irrealizável.

Do ponto de vista político e econômico global, o desenvolvimentodos países centrais depende da degradação e do subdesenvolvimento nospaíses periféricos. Diante disto, cabe aos países em desenvolvimento, comoo Brasil, disponibilizar suas reservas naturais, como a terra, a água, energia,biodiversidade e a força de trabalho para produzir grandes quantidades debens de baixo valor no mercado internacional. As commodities, tais comosoja, etanol, celulose, ferro-aço, dentre outras, seguem na cadeia produtivados países desenvolvidos executando as etapas que agregam mais valor,degradando e contaminando, assim, menos o seu ambiente, demandandoum trabalho mais saudável e digno para sua população, garantindo o seupadrão de desenvolvimento enquanto inviabiliza nos demais países.

O planeta não tem como alimentar a generalização de processos deprodução e consumo como os dos ditos países desenvolvidos para todo omundo; não tem a água, os combustíveis e outras fontes de energianecessários; não aguenta receber os resíduos, efluentes e emissões geradassem degradar-se fortemente, a ponto de inviabilizar a própria existênciahumana. Portanto, seria irracional negar esta destrutividade explícita.

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Quanto à Contribuição das Indústrias de Agrotóxicos no Contexto deDestrutividade do Capitalismo

É na conjuntura apresentada que o modelo de desenvolvimento agrário,fundamentado na chamada revolução verde3, se baseia. O atual modelo agrícola,ou agronegócio, por se tratar de uma atividade em que predomina a concentraçãofundiária nas mãos de investidores, muitas vezes, pertencentes a gruposinternacionais, e ainda, formado por fornecedores de insumos da agriculturaaltamente oligopolizados, agrava as consequências perniciosas do capitalismo.

A revolução verde na agricultura deveria ter resolvido de umavez por todas o problema mundial da fome e da desnutrição.Ao contrário, criou corporações-monstro, como a Monsanto,que estabeleceram de tal forma seu poder em todo o mundo,que será necessária uma grande ação popular voltada às raízesdo problema para erradicá-lo. Contudo, a ideologia das solu-ções estritamente tecnológicas continua a ser propagandeadaaté hoje, apesar de todos os fracassos. Recentemente, algunslíderes de governo, incluindo o inglês, começaram a pregarsermões sobre a vindoura ‘revolução verde industrial’, o quequer que isso signifique. Está claro, no entanto, que panacéiatecnológica de última moda é prometida, novamente, comouma forma de fugir da dimensão social e política inextirpáveldos perigos ambientais cada vez mais intensos (MÉSZÁROS,2007, p. 189-190).

Para compreender melhor de que se trata tal “revolução verde” bastauma breve análise de suas revelações no Brasil, onde este modelo começou aser implantado a partir de 1950 e incentivado pelo Estado, garantindo a ampliaçãodos mercados para as indústrias de agrotóxicos e para o agronegócio (baseadofundamentalmente em grandes latifúndios e na monocultura), com o argumentode aumentar a oferta de alimentos.

Ao longo dos anos, no desenvolvimento das políticas agráriasbrasileiras, principalmente no processo de modernização daagricultura, a implementação do uso de agrotóxicos teve sub-sídios governamentais. O Plano Nacional de Desenvolvimen-to Agrícola foi um exemplo de política que vinculou a libera-ção de crédito rural à utilização de agrotóxicos, com interesse

3 A revolução verde caracteriza-se pela invenção e disseminação de novas sementes e práticas quepermitiram um vasto aumento na produção agrícola em países menos desenvolvidos durante as décadasde 50, 60 e 70. É um amplo programa idealizado para aumentar a produção agrícola no mundo pormeio do ‘melhoramento genético’ de sementes, uso intensivo de insumos industriais, mecanização eredução do custo de manejo. O modelo se baseia na intensiva utilização de sementes geneticamentemelhoradas (particularmente sementes híbridas), insumos industriais(fertilizantes e agrotóxicos), mecanização e diminuição do custo de manejo. Também são creditadosà revolução verde o uso extensivo de tecnologia no plantio, na irrigação e na colheita, assim como nogerenciamento de produção.

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de estimular as vendas e o consumo desses produtos sem, en-tretanto, considerar os impactos de sua utilização na saúde dotrabalhador, da população e no ambiente. Essa trajetória re-percutiu nas práticas de utilização dos agrotóxicos no país,estimulando o consumo sem que houvesse políticas eficazesde prevenção aos riscos da utilização indevida (VIANA;DUARTE, 1998, p. 1-2).

É importante ponderar que o problema do uso de agrotóxicos no Brasilvem tomando proporções cada vez maiores. Sua utilização em larga escala éresponsável por um grande número de mortes e doenças dos trabalhadores, do agravodas condições de saúde da população que consome estes alimentos (intoxicaçõesleves, agudas e crônicas, distúrbios no sistema nervoso, tontura, náuseas, cefaléia)e de suas consequências ao meio ambiente, que vem sendo degradado.

Alguns dados extraídos de estudos realizados nos EUA, acer-ca da alta incidência de câncer em diferentes órgãos, revelamque 80% dos casos estão relacionados ao uso indiscriminadode pesticidas e outros produtos químicos que contribuem paraa degradação também do meio ambiente (SEVERO; COSTA;SIMON, 2010, p. 3).

Este processo de modernização da agricultura desvalorizou os processosnaturais biológicos e priorizou a automecânica, os adubos minerais e osagrotóxicos. Pacote tecnológico que elevou sobremaneira a produtividade dasculturas e gerou incontáveis problemas ambientais, dentre os quais se destacam:declínio da produtividade pela degradação do solo, erosão e perda de matériaorgânica; degradação dos recursos naturais pela poluição por meio dosagrotóxicos e fertilizantes, com efeitos maléficos em plantas, animais, água esolo; contaminação de alimentos e de trabalhadores rurais; aumento da resistênciade pragas, doenças e plantas daninhas; compactação, desertificação, salinizaçãoe “morte” dos solos; utilização de insumos sintéticos (combustível, adubos,agrotóxicos) de alta demanda de energia, provocando um reduzido balançoenergético; o produtor rural tornando-se cada vez mais dependente da indústriaquímica, o que provoca grande aumento nos custos de produção e endividamentoagrícola (MENDONÇA, 2010).

Apesar da crescente conscientização pública acerca dos prejuízos ao meioambiente, os problemas a eles relacionados, tanto locais quanto regionais ouglobais, continuam crescendo, sendo o atual modelo de desenvolvimento agrárioavalizado, permitido e garantido pela sociedade de consumo e pelo Estado.

É, claro, nossas práticas como cidadãos consumidores tam-bém pesam nesse processo. Ao pagar pelos produtos, bens eserviços desse modelo estamos de alguma forma validando-o.Nosso desejo mais profundo, e até inconsciente, tem sido cap-

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turado para o consumismo por sofisticadas técnicas de comu-nicação de massa, cujo preço já está embutido no que compra-mos (RIGOTTO; TEIXEIRA, 2009, p. 80).

No Brasil, por exemplo, a legalização da poluição se dá por meio dachamada Lei dos Agrotóxicos, regulamentada pela Agência Nacional deVigilância Sanitária (ANVISA), estabelecendo o Limite Máximo de Resíduos(LMR) permitido nos alimentos. É o caso da regulamentação do LMR doglifosato na soja, que passou de 0,2mg/Kg para 10mg/Kg em 2003 (PIGNATI,2010). Medida esta que favoreceu sobremaneira as indústrias de agrotóxicos,como a Monsanto, detentora do herbicida ROUNDUP® e das sementes de sojatransgênica resistente ao glifosato, princípio ativo do ROUNDUP®.

No campo da produção rural, no intuito de elevar a produtivida-de nas atividades agrícolas, proporcionando aumento na quan-tidade de produtos, e a fim de reduzir custos, o agricultor lançamão da utilização de máquinas, fertilizantes, defensivos, corre-tivos de acidez do solo, engenharia genética, além de energiaelétrica e outros mecanismos da cadeia produtiva. Cada um des-ses elementos constituinte do atual modo de produção contribuino processo de degradação ambiental, implicando a compactaçãoe a desertificação dos solos devido à perda de nutrientes, alémda contaminação dos rios, vertentes e da perda da biodiversidadegenética (SEVERO; COSTA; SIMON, 2010, p. 2).

Este processo complexo em que se articulam grandes proprietários de terra,o capital financeiro, a indústria de insumos (máquinas, equipamentos, sementes,fertilizantes e agrotóxicos) e o Estado, atua de forma violenta contra a própriaexistência humana, representando a parcela que cabe às indústrias de agrotóxicosem sua contribuição potencializadora do poder destrutivo do sistema capitalista.

Quanto às Possibilidades de Resistência Rumo a um Novo Modo deProdução Agrária_ A Guisa de Conclusão

Para se pensar possibilidades de superação do atual modelo dedesenvolvimento agrário, altamente periculoso para a sobrevivência humana,torna-se necessário pensar experiências concretas de esforços de resistência ecriação de alternativas, seja por questões culturais, econômicas, políticas, sociaise de saúde, antagônicas ao atual modelo.

Dialeticamente, num esforço de resistência e criação de alter-nativas, diversas entidades, movimentos, instituições, grupos,pessoas – seja na cidade, no campo, nas florestas ou no litoral– vêm defendendo seus territórios, lutando pela preservaçãodo seu modo de vida frente aos interesses de mercado dos gran-des empreendedores, produzindo e difundindo valores e cul-turas baseadas em um modo de produção e usufruto sustentá-

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vel do patrimônio natural, nas potencialidades locais, no aten-dimento das necessidades sociais, no resgate da dignidade eda poesia do trabalho humano, etc. São formas cooperativasde produção, associações populares, alternativas ao desenvol-vimento que vão se articulando em redes locais e internacio-nais como as de turismo comunitário ou de economia solidá-ria urbana, ‘produzindo para viver em caminhos não capitalis-tas’ (RIGOTTO; TEIXEIRA, 2009, p. 83).

Várias destas experiências são realizadas com o apoio de Instituiçõesda sociedade organizada. Tal como o exemplo, dentre outras tantasexperiências, da comunidade Lagoa dos Cavalos, exteriorizado por meio depesquisa acadêmica que demonstra como os agricultores do município deRussas/CE se organizaram de tal forma que obtiveram significativas conquistascomunitárias, tais como uma casa de farinha mecanizada; casa de sementescomunitária, cujos principais cultivos são de milho e feijão; cisternas de placapara captação de água da chuva, fonte de água para consumo humano; barragemsubterrânea, quatro poços profundos de água salgada com dessalinizadores euma adutora por gravidade; apiário e nova casa de mel; início de um sistemade agrofloresta e de um sistema agrosilvopastoril.

Todas estas experiências foram realizadas com o apoio de váriasentidades como: Cáritas Regional e Diocesana Limoeiro do Norte, OrganizaçãoNão Governamental ESPLAR, Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Russas,Paróquia de Russas, Instituto de Direitos Humanos Frei Tito, Movimento dosTrabalhadores Rurais Sem Terra/MST, Empresa de Assistência Técnica eExtensão Rural (EMATER), Federação dos Trabalhadores na Agricultura doEstado do Ceará (FETRAECE), Articulação do Semi-Árido Brasileiro (ASA),Ministério do Desenvolvimento Agrário. Sobretudo, a organização dacomunidade tem oferecido forte resistência ao avanço do agronegócio e contraa desapropriação proposta por projetos financiados pelo Banco Internacionalpara a Recuperação e o Desenvolvimento (BIRD) e pelo Ministério daIntegração Nacional (VIANA; RIGOTTO, 2009).

Tecnicamente, a mudança para outro modelo agrário vem se confirmandopor pesquisas acadêmicas e experiências agroecológicas, como no Sul de Minas,o caso do cultivo do morango (considerado um dos produtos mais contaminadospor resíduos químicos), em que vários produtores vêm substituindo o uso deagrotóxicos e praticando agricultura orgânica com sucesso. Pesquisas realizadascom a utilização do “pó de rocha” e biofertizantes, por exemplo, tem subsidiadoas ações destes agricultores no tocante às dosagens mais apropriadas para aobtenção de melhores resultados para o cultivo do morango orgânico(MENDONÇA, 2010).

Importante perceber como as experiências regionais adotam princípios

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econômicos que caminham no sentido daquilo que é discutido por Mészáros(2007, p. 259):

[...] a única economia possível – significativamenteeconomizadora e com isso sustentável no futuro próximo e nomais distante – só pode ser o tipo de economia administradade maneira racional, orientada para a utilização otimizada dosbens e serviços produzidos. Não pode haver crescimento deum tipo sustentável além desses parâmetros de economia raci-onal orientada pela necessidade humana genuína.

Para se pensar nas possibilidades de colocar em prática uma economiasustentável é necessário o envolvimento e mobilização de toda sociedade, naperspectiva de ampliação das experiências de sucesso, fortalecendo umaatuação interventiva no sentido de impedir a expansão do agronegócio. Ademocratização da posse da terra e a agricultura orgânica, especialmente afamiliar, são fundamentais nesse processo, conforme demonstrado por DelzeSantos (2007, p. 67-68):

Porém, o mais significativo aspecto a ser defendido na agricul-tura familiar é o modo de produção agroecológico. Aposta-se,atualmente, nesses trabalhadores e na forma de produção quedesenvolvem como saída para a humanidade diante dos gravesproblemas socioambientais existentes, da violência crescente nascidades e da destruição de ecossistemas naturais sem preceden-tes.[...] a agricultura familiar para ser viável tem de estar assen-tada sobre as premissas da democratização da posse da terra.Deve ser orgânica e desenvolvida nas formas compatíveis coma capacidade de trabalho da família de camponeses, ou comajuda eventual de terceiros, com prioridade para o mutirão e asolidariedade entre os trabalhadores da comunidade. O objetivonão deve ser a exportação de produtos primários, para atenderos interesses capitalistas ou aos deleites de uma classe rica queconsome demais, come demais, produz lixo demais. Mas parafortalecer a soberania nacional com a produção de alimentosem quantidade suficiente para o abastecimento interno e de cus-to acessível para a população pobre. As sementes devem serproduzidas pelos próprios agricultores ou com seleção naturalmediante técnicas que preservem a biodiversidade, os fatoresculturais que determinam as identidades regionais e a identida-de nacional do povo brasileiro. Essa, no nosso entendimento, éa melhor bandeira sindical costurada em toda essa história deluta dos trabalhadores do campo no Brasil e que não se limitaaos interesses corporativistas, mas contrariamente se adéquaperfeitamente a um sindicalismo consciente dos problemas so-ciais que tem incorporado as aspirações coletivas por uma so-ciedade mais justa e sustentável.

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É com esse espírito que se conclui esse ensaio, propondo uma reflexãoacerca da conjuntura apresentada. Os acontecimentos e experiências que marcamtodo esse contexto ajudam a compreender um pouco das relações sociaispresentes e orientam na construção do futuro, possibilitando a realização deuma grande resistência, cada vez mais forte e combativa, no sentido de propiciarações eficazes na construção de uma nova realidade e de um mundo melhor. Odesafio está lançado.

Referências

ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e anegação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2009.

MENDONÇA, H. M. Desempenho da cultivar camarosa de morangueiroem diferentes doses de Rocksil® em sistema orgânico. Lavras: Ed. UFLA,2010.

MÉSZÁROS, I. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo, SP:Boitempo, 2007.

PIGNATI, W. Vigilância e assistência a saúde do trabalhador: estruturanacional de atendimento à saúde do trabalhador. Palestra apresentada no IEncontro Nacional de Saúde do Trabalhador Industriário. Brasília, DF: CTE :CNTI, 2010.

RIGOTTO, R. M.; TEIXEIRA, A. C. A. Desenvolvimento e sustentabilidadesocioambiental no campo, na cidade e na floresta. In: CONFERÊNCIANACIONAL DE SAÚDE AMBIENTAL, 1., 2009, Ceará. Anais.... Ceará:ABRASCO, 2009.

SANTOS, D. O sindicalismo rural: luta pela posse da terra e contra aexploração do trabalhador do campo. In: INÁCIO, José R.(Org.).Sindicalismo no Brasil: os primeiros 100 anos? Belo Horizonte: Crisálida,2007.

SEVERO, L. O.; COSTA, V. Z.; SIMON, D. Saúde e ambiente: a relaçãopara os agricultores da região da fronteira oeste do Rio Grande do Sul. In:SEMINÁRIO DE PESQUISA QUALITATIVA, 9., 2010, Rio Grande.Anais.... Rio Grande: FURG, 2010.

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VIANA, L. Q.; RIGOTTO, R. M. A importância da resistência e organizaçãocomunitária diante dos desafios da sustentabilidade agroecológica em Russas,Ceará. Revista Brasileira de Agroecologia, Cruz Alta, v. 4, n. 2, p. 3826-3829, nov. 2009.

VIANA, V. P.; DUARTE, M. S. M. O uso de agrotóxicos em pequenasproduções agrícolas no município de Brejo da Madre de Deus/PE. Cadernosde Extensão: Meio Ambiente, Recife, 1998. Disponível em: <http://www.ufpe.br/proext/index.php?option=com_content&view=article&id=37&Itemid=119>. Acessoem: 15 ago. 2011.

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PRÁTICAS AGROECOLÓGICAS NO MUNICÍPIO DECRISTALINA/GO: desafios no território doagrohidronegócio

Ricardo Junior de Assis Fernandes Gonçalves1

Santiago Henrique Cruz2

Marcelo Rodrigues Mendonça 3

IntroduçãoAs ações dos movimentos sociais e a problematização dos efeitos sócio-

ambientais (pressupõe processos que podem permanecer por décadas) resultantesdo modelo capitalista e da (re)produção destrutiva do capital através daterritorialização do agrohidronegócio (empresas rurais, agroindústrias,hidrelétricas etc.) nas áreas do Cerrado brasileiro nas últimas décadas faz partedas pesquisas e projetos desenvolvidos pelo Núcleo de Pesquisa GeografiaTrabalho e Movimentos Sociais (GETeM), na Universidade Federal de Goiás/Câmpus Catalão (UFG/CAC). Como afirma Mendonça (2007, p. 20),

A capacidade metamorfoseante do capital, territorializada noagronegócio, precisamente nas áreas de Cerrado, nas últimasdécadas, expressa a necessidade de indagar acerca da naturezadesta produtividade e, mais, questionar sobre os impactos so-ciais e ambientais decorrentes dessa forma de uso e explora-ção da terra, da água e dos homens.

Diante do processo de modernização conservadora da agricultura4 nasáreas do Cerrado brasileiro, milhares de famílias tem sido expulsas da terra,migrando para as periferias urbanas ou se deslocando para as áreas de fronteiras,ora se restabelecendo nas bordas das chapadas e nos vales, em áreas enrugadasdo relevo. Isso tem transformado as relações de produção e trabalho no campo,os saberes e fazeres, construídos historicamente pelos Povos Cerradeiros5, alvosda complexificação, intensificação e precarização do trabalho, diante dos1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Goiás/CâmpusCatalão. Membro do Núcleo de Pesquisa Geografia, Trabalho e Movimentos Sociais – GETeM. E-mail: [email protected] Graduando do Curso de Engenharia de Minas pela Universidade Federal de Goiás – Câmpus Catalão/GO e membro do Núcleo de Pesquisa Geografia Trabalho e Movimentos Sociais – GETeM. Email:[email protected] Professor dos Cursos de Graduação e Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal deGoiás/CâmpusCatalão. Membro do Núcleo de Pesquisa Geografia, Trabalho e Movimentos Sociais –GETeM. E-mail: [email protected] Conforme Thomaz Júnior (2009, p. 23-24) “Com o atributo de conservadora, entende-se amodernização como algo capaz de conservar inalterado o espectro de desigualdades, sobretudo aconcentração fundiária, não se associando sequer aos princípios das políticas compensatóriasdistributivistas, como também, extremamente seletiva, tendo em vista que a apropriação não é realizadapor todos, mas apenas por uma minoria.”

CAPÍTULO 6

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(re)arranjos do capital. Além disso, as flores, as cores, os odores, os saberes eos sabores do Cerrado brasileiro (MESQUITA, 2009), são contaminados poresse modelo que, fortalecido pelo Estado, insiste em sua expansão destrutiva.

Através de estudos desenvolvidos por alunos dos cursos de graduação ePós-Graduação (mestrado) em Geografia da UFG/CAC, membros do GETeM,diversas pesquisas tem mostrado as contradições do capital no Estado de Goiás eno Sudeste Goiano de forma particular, através do agrohidronegócio. Além disso,professores e alunos tem desenvolvido projetos com o objetivo de problematizaros efeitos do agrohidronegócio, propondo alternativas agroecológicas para asfamílias camponesas, valorizando a cultura, as racionalidades, os saberescamponeses no modo de lidar com a terra, com a água, sementes etc., para garantiruma vida com maior dignidade e qualidade no campo, diante dos desdobramentosespaciais da reestruturação produtiva do capital nas áreas de Cerrado6.

Enquanto a burguesia agrária, altamente capitalizada concentra terras e renda,camponeses expropriados engrossam as fileiras dos sem terra e sem trabalho. Diantedesse quadro, é importante reforçar a importância das famílias camponesas quecontinuam na terra (Re)existindo e experimentando práticas como a agroecologia,enquanto uma forma de entender e “[...] atuar para campenisar a agricultura, apecuária, o florestamento e o agroextrativismo. Isso significa resgatar a relaçãosimbiótica com o meio sem agredir a natureza, compreendendo homem e naturezacomo natureza una” (MENDONÇA, 2010, p. 17, grifo do autor).

Desta forma, através do projeto; A sistematização de metodologias depesquisa para extensão rural no Brasil7 buscamos realizar um levantamento das

5 Segundo Mendonça (2007, p. 27), Compreende-se esses povos (indígenas, quilombolas, camponeses,trabalhadores da terra propriamente tradicionais, etc.) como aqueles que historicamente viveram evivem nas áreas de Cerrado, constituindo formas de uso e exploração da terra a partir das diferenciaçõesnaturais-sociais de produção e de trabalho muito próprias e em acordo com as condições ambientais,resultando em múltiplas expressões culturais. Entretanto, o que os diferencia além da perspectiva dese manterem na terra, constituindo modos de ser e de viver é a ação política na defesa da terra detrabalho e da reforma agrária a partir de diversos elementos, dentre eles a cultura como determinantede ações políticas de cariz revolucionária6 Um exemplo das atividades desenvolvidas pelo GETeM foi o projeto denominado; Cidadania,Trabalho e Juventude no Campo: formação, qualificação e geração de renda a partir da agroecologia;financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), conformeEdital MCT/CNPq Nº 23/2008 – Programa Intervivência Universitária. A proposta iniciada visa garantiraos jovens que estão no campo capacitação e orientação, a partir de suas realidades, com o intuito depotencializar formação/condição de se tornarem agentes de desenvolvimento nas ComunidadesCamponesas, garantindo renda e inclusão social a partir da implementação de práticas agroecológicas.A finalidade é compreender as relações sociais de produção e de trabalho, acompanhar e incentivar aorganização social e o associativismo, estimular as atividades agroecológicas e a instalação de Bancosde Sementes e formas de utilização dos recursos naturais sustentáveis, bem como, noções de ecologiae informações sobre legislação ambiental, dentre outras. O projeto iniciou-se em julho de 2009 efinalizou em Janeiro de 2011. As atividades foram realizadas em módulos semestrais na UniversidadeFederal de Goiás/Campus Catalão através de oficinas, palestras e acompanhamento nas ComunidadesRurais, atendendo 60 jovens através de oficinas e dias de campo.7 Projeto - Edital MCT/CNPq/MDA/SAF/Dater Nº 033/2009.

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Comunidades Camponesas e Assentamentos que desenvolvem práticasagroecológicas no Estado de Goiás e na região do Triângulo Mineiro, no Estadode Minas Gerais. O intuito é que através do projeto, possamos conhecer ecompartilhar os resultados das práticas agroecológicas, as experiências organizativas(como cooperativas, associações etc.) e torná-las conhecidas e acessíveis para oshomens e mulheres, camponeses e trabalhadores da terra que desejam produzir naterra de forma agroecológica, seguindo os modelos que tiveram sucesso, levandoem conta as diferenças e especificidades de cada realidade.

Materializando os objetivos propostos pelo projeto, através deste artigoapresentamos os resultados da pesquisa de campo realizada no mês de fevereiro(2011) no município de Cristalina e Luziânia, ambos no estado de Goiás elocalizados no Entorno de Brasília8. O trabalho de campo realizado nosrespectivos municípios teve como centralidade, conhecer a Rede Terra, suasações e identificar as diferentes experiências com práticas agroecológias emáreas de Assentamentos e Comunidades Camponesas, buscando reafirmar a partirda agricultura camponesa as práticas já bem sucedidas e ao mesmo tempo, darvisibilidade a elas. Desta forma, neste artigo priorizamos a Pesquisa de Campoefetuada na sede da Rede Terra na cidade de Cristalina/GO e no AssentamentoVale do São Marcos (município de Cristalina/GO).

No Assentamento Vale do São Marcos (município de Cristalina/GO), oobjetivo foi verificar os diferentes usos da terra e as experiências agroecológicasatravés do Produção Agroecológica Integrada e Sustentável (PAIS), a partir daparceria entre as famílias assentadas com a Rede Terra. Para isso, damos ênfasena visita em um dos lotes do Assentamento, onde conversamos e observamos aspráticas agroecológicas realizadas por José Amado (62 anos), mais conhecidocomo Zé Paraíba9. Em seu lote, o trabalho na terra é permeado por saberes efazeres do ser camponês, caracterizado pela forma como concebe e lida com aterra, a água, os animais, sementes, plantas etc.

Quanto a metodologia, a primeira fase foi norteada pela pesquisadocumental, baseada no levantamento de informações no site da Rede Terra,prefeitura de Cristalina, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),seleção de livros, teses e artigos. No segundo momento (documentação direta),a metodologia usada na pesquisa de campo foi baseada em procedimentosqualitativos, como observação, entrevistas e diário de campo, o que nos permitiuadentrar no universo de significados dos sujeitos da pesquisa.

O uso de equipamento fotográfico, filmadora, gravador de voz e o diáriode campo foram imprescindíveis. Em determinados momentos, ouvindo o canto8 O Entorno de Brasília é construído pelos municípios de: Abadiânia; Água Fria de Goiás; ÁguasLindas de Goiás; Alexânia; Cabeceiras; Cidade Ocidental; Cocalzinho de Goiás; Corumbá de Goiás;Cristalina; Formosa; Luziânia; Mimoso de Goiás; Novo Gama; Padre Bernardo; Pirenópolis; Planaltina;Santo Antônio do Descoberto; Valparaíso de Goiás; Vila Boa; Vila Propício.9 No artigo, usaremos o cognome Zé Paraíba. No decorrer da entrevista, o informante permitiu a suaidentificação, caso publicassemos os resultados da pesquisa.

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dos canarinhos saltitando de galho em galho nas árvores que faziam sombrasonde conversávamos, das seriemas no campo, do galo no pomar, os berros dosbois, bezerros e vacas nas pastagens, observando as brincadeiras do grupo deamigos no campo de futebol, diante do olhares curiosos dos que passavam pornós, através do diário de campo registramos as percepções fenomênicas diantedo movimento da vida que nos cercava.

No decorrer das entrevistas, tivemos momentos de pausas para contarhistórias, sorrir, se emocionar e poetizar. No percurso, conversamos com homense mulheres, crianças e velhos, fazendo da pesquisa de campo, um momento detabulação de informações e dados, mas também de aprendizado, inserção emrealidades em que as relações e a sociabilidade ainda são permeadas pelasolidariedade, amizade, companheirismo, traquinagens, dos saberes e fazeresque mesmo sendo metamorfoseados pela (re)produção destrutiva do capital nocampo e na cidade, expressa o movimento da vida em sua diversidade.

A Rede Terra e Práticas Agroecológicas no Território do Agrohidronegócio:município de Cristalina/GO

A antiga Serra dos Cristais (como foi chamada no século XVIII) e depoisSão Sebastião dos Cristais no final do século XIX, o atual município de Cristalina/GO localiza-se no Estado de Goiás, na região do Entorno de Brasília. Durantedécadas o município do interior de Goiás atraiu garimpeiros de toda parte doBrasil, em decorrência da qualidade dos cristais encontrados em seu subsolo. Suapopulação é de 46.568 habitantes, segundo dados do último censo (IBGE, 2010,online). Quanto a relação entre população urbana e do campo, aproximadamente38.430 vivem na cidade (82,5%), enquanto 8.138 estão no campo (17,5%).

Até o final da década de 1970, a extração e comercialização de cristaisera a atividade econômica central, praticada pela população em Cristalina/GO.Com o processo de modernização da agricultura e a expansão da fronteiraagrícola sobre o Cerrado brasileiro, a partir da década de 70 do século XX oagronegócio desponta como a principal atividade econômica no município deCristalina/GO. Esse processo se deu no âmbito da reestruturação produtiva docapital, territorializada no Cerrado goiano e controlado pelas empresas rurais,sob o apoio do Estado. Como afirma Mendonça (2007, p. 23),

[...] a reestruturação produtiva do capital territorializada no Cer-rado goiano a partir dos anos 1970, diante da intensificação damodernização capitalista na agricultura, tendo como sustenta-ção fundamental as atividades agropecuárias, passou a ser orde-nada pelas empresas rurais e escudadas nas políticas públicas.

Diante desse processo, intensas transformações espaciais ocorreram noCerrado goiano a partir da modernização conservadora da agricultura. Omunicípio de Cristalina/GO é um exemplo dessas mudanças na paisagem do

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Cerrado e na produção dos territórios do agrohidronegócio no Estado de Goiás.Dados de 2009, apresenta o município como pioneiro em irrigação na AméricaLatina. Com 570 pivôs centrais espalhados por aproximadamente 47 mil hectaresnum total de mais de 200 mil hectares de áreas ocupadas pelos empresáriosrurais. Cristalina/GO possui a maior produção de batata, trigo, milho e alhoirrigados do Brasil (REDE TERRA, 2011a, online). A intensificação de culturasirrigadas no município se atribuiu principalmente à sua extensa rede hidrográfica,tendo como principais rios o São Marcos e São Bartolomeu, favorecendo tambéma construção de hidrelétricas. Expandindo a dimensão espacial do capital, amodernização conservadora da agricultura, empreendimento barrageiros nomunicípio, fez de Cristalina/GO o território do agrohidronegócio.

A expansão da fronteira agrícola no município veio acompanhada pelamodernização do campo e da cidade, com construção de sistemas de silagem earmazenamento de grãos, corredores de exportação, hidrelétricas, abastecimentode energia elétrica, empresas de máquinas (tratores, colhedeiras etc.), sistemasde irrigação, prestação de serviços (agrimensura, agrônomos, geoprocessamentoetc.) e lojas de venda de fertilizantes químicos e agrotóxicos. Isso para serviraos reclamos do agrohidronegócio.

Enquanto o agrohidronegócio expande a dimensão espacial do capital nasáreas do Cerrado no município de Cristalina/GO, dezenas de famílias lutam pelaterra e para permanecer na terra, em Assentamentos e Comunidades Rurais, noesforço de construir autonomia econômica, política e manter-se histórica, social eterritorialmente. Atualmente há 10 assentamentos implantados pelo Instituto Nacionalde Colonização e Reforma Agrária (INCRA) no município. Na pesquisa de campo,passamos por três deles; Casa Branca, Presidente Lula e Vale do São Marcos.

Historicamente excluídos da terra e do trabalho, milhares de homens emulheres forjam através da luta os assentamentos. De acordo com Fernandes (2001)a existência de milhares de assentamentos em diferentes regiões do Brasil, é muitomais resultado da luta pela terra construída pelos trabalhadores, e não somente depolíticas do governo. A transformação do latifúndio em assentamento é a construçãode um novo território. Isso pode expressar outra lógica de organização do espaçogeográfico, baseada na produção para o auto-consumo, práticas agroecológicas,comercialização do excedente, pequena propriedade e trabalho familiar, comoobservamos nos lotes do Assentamento Vale do São Marcos.

É neste contexto que atua a Rede Terra. Presente no município de Cristalina/GO por aproximadamente 3 anos, ela vem direcionando ações em parceria com asfamílias das Comunidades Camponesas e dos Assentamentos em Cristalina/GO eoutros municípios do Entrono de Brasília, como Luziânia, Cidade Ocidental,Valparaíso, Novo Gama entre outros, fomentando a produção agroecológica ecomercialização de alimentos saudáveis, gerando renda para as famílias camponesas.

A Rede Terra é uma entidade de direito privado e sem fins lucrativos,fundado em 1999 por agricultores familiares, técnicos agrícolas e educadores

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(REDE TERRA, 2011b, online), com o objetivo de contribuir para o desenvolvimentode práticas agrícolas agroecológicas, promovendo a conservação do Bioma Cerradoe estimulando a autonomia das famílias camponesas da região da bacia do BaixoRio São Bartolomeu e no Entorno do Distrito Federal. Atualmente as açõesempreendidas pela Rede Terra abrange centenas de famílias camponesas organizadasem cooperativas, associações e sindicatos de trabalhadores rurais.

Pautada numa metodologia de trabalho em grupo, a Rede Terra, sejacaptando fundos perdidos, ou em parceria com diversas empresas, instituiçõesfederais e organizações não governamentais (ONGs)10, desenvolve projetos quelevam em consideração objetivos como a promoção da sustentabilidade e avalorização da agricultura camponesa; Prestação de assistência técnica àsfamílias camponesas da região; Contribuir para a formulação de políticaspúblicas voltadas para as famílias em Comunidades camponesas eAssentamentos; Capacitar os agricultores camponeses em técnicas alternativasde produção agroecológica; Fomentar a agricultura urbana através do PAIS;Fortalecer a autonomia das organizações de trabalhadores camponeses.

Na sede da Rede Terra, uma das instalações que mais nos chamou aatenção foi o “mini” PAIS. Mesmo pequeno, expressa a lógica das práticasagroecológicas que permeiam o projeto.

Foto 1: “Mini-PAIS”31

10 Atualmente a Rede Terra desenvolve projetos em parceria com a CORUMBÁ, Fundação Banco doBrasil, Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDS), Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA),Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), Companhia Nacional de Abastecimento (CONABE),Serviço Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e COOPERFORTE.11 O PAIS é montado em torno de um sistema de anéis, cada um destinado a uma determinada cultura,que complementa a seguinte. O centro do sistema de agricultura familiar ecológica é utilizado para acriação de pequenos animais, como galinhas caipiras e até mesmo patos. O esterco produzido pelasaves é utilizado para adubar a horta. No primeiro canteiro, é comum o plantio de ervas aromáticas e osdemais para o cultivo de alface, cenoura, tomate, abóbora etc., de acordo com o interesse de cada um.

Fonte: Ricardo Junior de Assis Fernandes Gonçalves - Pesquisa de Campo - fev/2011.

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O PAIS é uma das técnicas de produção agroecológica que está sendoimplantada em diversas regiões do país. Essa tecnologia já vem demonstrandosua eficácia, com as primeiras unidades demonstrativas, implantadas emCristalina/GO, Pai Pedro/MG, Pedra Branca/CE e Sumé/PB. Atualmente, emparceria com a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), a Rede Terraestabelece relações (projetos, apoio técnico etc.) com aproximadamente 400famílias no município de Cristalina/GO, focadas na produção de hortaliçasatravés do PAIS. As famílias que se aderem ao PAIS, além da tela, mangueira euma bomba para irrigação, acompanha a instalação de uma cisterna ferrocimentoe a fossa séptica biodigestora. Parte do que é produzido é comprado por meiodo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), operado pela CONAB, a RedeTerra faz a captação e distribuição dos alimentos (cenoura, abobora, alface,couve, tomate etc.) para instituições cadastradas, como escolas, grupos espíritas,igrejas e creches.

Através da entrevista com dois trabalhadores da terra do AssentamentoTrês Barras (município de Cristalina/GO), conversamos sobre a experiência daRede Terra e o que ela vem representando para o município de Cristalina/GO,em termos de parceria, projetos, acessória técnica, comercialização, PAIS etc.Sobre o PAIS, para um dos entrevistados “[...] depois que chegou o PAIS, issoaí pra nois foi bom demais, tirou a gente do sufoco né. Levantou um degrauzinhoa mais. Pra nóis que não tinha um salário e todo mês pegar um salário daqui efalar que tem, é bom demais, enricamos né.”12

Quanto aos desafios e problemas enfrentados pelas famílias nomunicípio, conforme um dos entrevistados, para aqueles que estão na terra seesforçando para produzir de forma agroecológica em pequenos pedaços dechão, não é fácil sobreviver com qualidade diante da pressão doagrohidronegócio. Muitos lotes ficam ilhados por lavouras de soja, em que apulverização aérea tem comprometido as famílias nos assentamentos ecomunidades. Segundo um dos assentados, numa área cercada peloagronegócio “[...] nóis fica prejudicado. Agora mesmo nóis estamos, porquecolheram as lavouras em roda todinho e os insetos, as pragas que estavam lácorreram tudo pros nossos lotes, nossas plantas.”

As entrevistas com os diferentes sujeitos e as observações das práticasdo agrohidronegócio e das famílias camponesas no município de Cristalina/GO demonstram que enquanto essas últimas se esforçam em produzir de formalimpa, a (re)produção do capital e a territorização do agrohidronegócio avançasobre as áreas de Cerrado, desconsiderando os prejuízos sociais e os crimesambientais cometidos. É o território do agrohidronegócio versus o territóriocamponês, esse último, permeado por saberes, culturas, imaginários, emoções,12 Todos os depoimentos priorizados no texto resultam da Pesquisa de Campo realizada no municípiode Cristalina/GO, no mês de fevereiro de 2011.

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histórias, enfim, pela diversidade, que cada vez mais é obstruída pelo discursoda homogeneização espacial, levada avante pelos personas do capital. Mas,com força, coragem e trabalho, como nos disse um trabalhador da terra “agente luta de um lado, luta do outro mas chega lá”.

Uma “Odisséia” no Município de Cristalino/Go: práticas agroecológicas noAssentamento Vale do São Marcos

O Assentamento Vale do São Marcos localiza-se no município deCristalina/GO, criado pelo INCRA a 11 anos, integrando 70 famílias distribuídasem 70 lotes. Com a intenção de conhecer o Assentamento e acompanhados porM., técnico da Rede Terra, deixamos a cidade de Cristalina/GO, percorremospor aproximadamente 30 km pela Br-040 até que a “aventura” se iniciou. Debaixode chuva, entramos a esquerda por estrada de terra, atravessamos pontes demadeiras, mata-burros, poços de lama e água acumulada, entre serras, vales eáreas de chapadas tomadas por lavouras de soja continuamos nossa “odisséia”,uma viagem pelo município de Cristalina/GO. As rajadas de chuva, a lama e obarro nas estradas, fazendo o carro “dançar” ou quase atolar no meio de paisagensdesconhecidas por nós, pareciam as fortes ondas do mar bravio que lançavam obarco de Odisseu13 e seus tripulantes para outros rumos, sobre a fúria dePoseidon14. Mas, diferente das aventuras e desventuras de Odisseu, atormentadopelos deuses em seu regresso para casa, esses pareciam estar do nosso lado,tudo correu bem até chegarmos ao destino almejado, o lote do Zé Paraíba, noAssentamento Vale do Rio São Marcos.

Sem entendermos bem o que significava chegamos em “Aqui que éaqui”. Esse é o nome do lote de Zé Paraíba, onde vive com a esposa. Nordestinodo interior da Paraíba, poeta, contador de história e piada, já trabalhou em circo,foi assalariado, cansado de ver tanta discriminação na cidade e de ser empregadodos outros15, hoje vive do trabalho na terra. Como milhares de homens e mulherespelo Brasil a fora, sem terra e sem trabalho, alimentados pelo sonho de ter aterra de trabalho, entrou na luta por ela, conquistou um lote no AssentamentoVale do Rio São Marcos e a 11 anos está no campo, vivendo do que terra produz.Esse é Zé Paraíba.

13 Héroi grego e um dos personagens dos poemas épicos, Íliada e Odisséia, de Homero. Na Odisséia,é narrado de forma poético o regresso de Odisseu para o seu reino, Ítaca, uma das numerosas ilhasgregas e onde sua fiel esposa o esperava. No poema (Odisséia), nos divertimos com as aventuras edesventuras de Odisseu em sua viagem para casa, conheceu diversas ilhas, enfrentou a ira dos deuses,até que chegou a seu destino, após 10 anos de viagem de regresso.14 Na mitologia grega, Poseidon é considerado o Deus supremo do mar.15 Conforme suas próprias palavras “[...] na cidade eu vivia a vida de pau, via tanta discriminaçãonas cidades por onde eu passava, que aquilo fazia eu fugir da cidade. Vou pra roça porque lá eu seiviver, tenho coragem de trabalhar, sei plantar e sei colher.“

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Foto 2: Entrevista com Zé Paraíba16

Fonte: Ricardo Junior de Assis Fernandes Gonçalves - Pesquisa de Campo - fev/2011.

Para esse sujeito a luta pela terra garantiu a conquista de um novoterritório. Para Zé Paraíba, a luta valeu a pena, no início enfrentou obstáculos,morou em barraco de lona, não tinha o que plantar, mas com os recursos doPrograma Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) eatravés do trabalho, segundo suas próprias palavras “[...] eu já fiz bom proveitocom a terra, plantei, to colhendo, hoje tenho onde morar com dignidade. Anteseu morei aqui debaixo de uma lona, queimava as costas quando estava quente.Hoje deus me ajudou e eu consegui fazer uma casa.”

O trabalho na terra também tem espaço para o devaneio poético. Atrajetória de luta, des-re-territorialização, conquista da terra, as transformaçõesno Assentamento, ou seja, os processos em curso vivenciados por Zé Paraíba,foram expressados por ele através da poesia História do Assentamento, de suaprópria autoria;

Está fazendo onze anos que essa festa começou.Isso aqui era recanto de animais corredor,os homens se aproximaram e os animais se afastou.Lembro daqui quando chegou, aqui dentro num caminhão,uma Mercedes cara chata com uma bagagem do cão,o chefe era Genaro, Zé Rodrigues e o Falcão.Hoje aqui planta feijão, planta abóbora e melancia,um dia eu vou criar porco outro dia vou criar gia,e eu planto feijão de corda pra alimentar a família.Coisas que eu não conhecia, o INCRA, UNB, prefeitura, Sindicato,pra mim é o maior prazer, fizemos deste diserto uma área de lazer.

16 Na foto o resultado de seu trabalho, alimentos saudáveis cultivados através de práticas agroecológicas,como as sementes crioulas de feijão (preto e carioca) e ainda as abóboras e o cacho de bananaamadurecendo.

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Coisas que eu queria ver, não sei se passo no teste,vejo as crianças crescer acompanhando o progresso.Não posso dar um repente, mas posso dar em verso.Sou um filho do nordeste, a seca jogou-me fora, sou contador de história,mas está faltando um parceiro pra me ajudar na memória.

Enquanto “[...] a realidade do homem moderno é recheada de solidão,individualismo e de uma lógica mercantil-consumista que sufoca cada vez maiso seu lado poético, a sua imaginação criadora” (HAESBEART, 2006, p. 155),encontramos entre as sociabilidades e territorialidades camponesas, a relaçãoentre poesia e vida, luta e trabalho, traquinagens, sensibilidade e imaginação. Apoesia de Zé Paraíba é carregada de possibilidades interpretativas, mas estas“[...] não podem privar-se da referência ao real, seu significado não pode sernem totalmente fechado, lógico, nem totalmente abeto, sem referência a umarealidade concreta” (HAESBEART, 2006, p. 148-149). Essa realidade concretana poesia de Zé Paraíba é representada através da leitura das lutas, dastransformações, relação com a terra, os saberes, trabalho, memória, identidadee a trajetória vivida por milhares de nordestinos que deixaram seus territórios ese reterritorializaram pelo Brasil a fora, como afirma em seus versos “sou umfilho do nordeste e a seca jogou-me fora”. Como a literatura, através do critérioestético, a poesia nos ajuda desvendar o movimenta da vida, encontros,desencontros, os conflitos e travessias.

A relação com a terra, a preocupação com a natureza, os fazeres, o usode sementes crioulas, o trabalho familiar, revelam características próprias doser camponês. Mas é preciso esclarecer que esse conceito é dinâmico, inseridono movimento do real e por isso em transformação. Mas, diante da expansão doagronegócio, tem sido cada vez mais difícil produzir alimentos saudáveis, semagrotóxicos. No Assentamento Vale do São Marcos como afirma Zé Paraíba:

[...] aqui nóis faz o possível, mas ainda não é 100% limpo. Osmeninos da Rede Terra tem ajudado muito, mas acho que praeles ta sendo difícil ainda, porque tem esses avião aí da la-voura grande dos fazendeiros, que acaba com nóis aqui. Essasemana o avião bateu veneno aqui 3 dias seguidos. Passa aquiencima da casa e quando ele fecha lá o negócio do avião ain-da passa garoando veneno aqui. Como é que isso aqui é lim-po, não pode ser mais limpo porque a gente é vizinho da la-voura dos ricos. Isso vem acontecendo no inverno todinho.Esse ano o avião já passou aqui umas 10 vezes. Ele percorrea metade do Assentamento fazendo manobra, então eu souatingido com minhas plantas.

Enquanto isso, o agrohidronegócio continua expropriando camponeses,explorando o trabalho, cometendo crimes ambientais, (como observamos,

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abelhas mortas e envenenadas por agrotóxicos usados nas lavouras de sojapróximas ao Assentamento Vale do São Marcos) e descumprindo as leisambientais e trabalhistas. Estereótipos são construídos na tentativa de implantaruma “confusão dos espíritos” (SANTOS, 2001) para mascar essa realidade, eprocurando anular a importância dos camponeses como sujeitos sócio-econômicose políticos, que evidenciam formas de uso da terra antagônicas ao latifúndio e asempresas rurais modernas. De açodo com Mendonça (2007, p. 19),

Os estereótipos construídos, financiados com belíssimas pro-pagandas, daqueles que não compartilham desse modelo deprodução no campo, os camponeses, populações tradicionais,que tidos como obstáculos, devem ser removidos para dar pas-sagem ao moderno, identificado com a capacidade deimplementar as inovações técnicas e tecnológicas no processoprodutivo, desconsiderando os prejuízos sociais e os crimesambientais cometidos.

Diferente da lógica produtivista e destrutiva do agrohidronegócio, e natentativa de priorizar o uso da terra levando em consideração a conservação domeio ambiente, a preocupação com a natureza, valorizando a terra como fontede vida, a produção para o auto-consumo, venda do excedente, autonomia, sãoquestões expressadas por Zé Paraíba:

Eu gosto de plantar, me sinto feliz quando estou plantandouma muda e digo; essa daqui amanhã eu tenho resultado. Eutenho um rio muito bonito no fundo do lote, eu nunca pegueiuma piaba nele, porque eu acho que a piaba estando vivendolá no rio está melhor do que na minha casa. Lá no rio ela estávivendo, vai produzir e então ela produz lá e produzo aqui.Aqui eu planto, eu vivo da roça, aqui dá pra eu comer, dá praeu viver a minha vida. Agora aqui pra mim é tudo na minhavida. A terra pra mim é a vida, porque só de estar trabalhandocom a natureza, só de estar plantando, ta colhendo. Tudo quevocês estão vendo aqui foi eu que plantei e hoje eu estou co-lhendo, isso é um prazer.

O uso da terra por Zé Paraíba em “Aqui que é aqui”, diverso daspaisagens homogêneas das lavouras de sojas que observamos nas áreas dechapadas a caminho do Assentamento, apresenta uma diversidade de plantas,todas cultivadas através de práticas agroecológicas, com o apoio da Rede Terra.

Com seu lote no Assentamento Vale do São Marcos, Zé Paraíba garantea produção para o auto-consumo e vende o que excede por meio da parceriacom a Rede Terra, gerando renda e uma vida com mais dignidade e qualidadena terra. Esse camponês afirma que tem autonomia, não trabalha pros outros, otrabalho é familiar e tudo manual, plantio, capina, colheita e também o leite,que aproveita para fazer um queijo diário, destinado ao próprio gasto.

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Foto 3: Mudas de café fornecidas pela Rede Terra e plantação de mandioca17

Fonte: Ricardo Junior de Assis Fernandes Gonçalves - Pesquisa de Campo - fev/2011.

Foto 4: Plantação de bananeira18

Fonte: Ricardo Junior de Assis Fernandes Gonçalves - Pesquisa de Campo - fev/2011.

Através da Rede Terra, diz que muita coisa melhorou no AssentamentoVale do São Marcos, por meio do PAIS, como as fossas sépticas implantas emtodos os lotes, fornecimento de mudas e geração de renda para as famílias,fortalecendo a permanência na terra.

Conforme as informações fornecidas por esse camponês (Zé Paraíba):[...] na época que a Rede Terra se aproximou de nóis isso aquiera muito difícil e ela deu um grande apoio. O primeiro passofoi trazer a fossa séptica, que agora toda casa tem, são 70 fos-

17 Resultado do próprio trabalho de Zé Paraíba, ao fundo cerca viva, também utilizada como barra-vendo.18 Baseada no modelo de agrofloresta. Ao meio das linhas das bananeiras foi feito o plantio demamoneira, goiaba e feijão.

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sas implantadas. Em seguida foi trazido 10 quites de horta doPAIS e depois a Rede Terra trouxe mais 15, completou 25 qui-tes pra serem plantados em nosso Assentamento. Então elaajuda com esterço, eles fazem um frete mais barato ou em tro-ca até de produto se você não tem dinheiro. Eles são de amiza-de. Então eu sou feliz com o trabalho da Rede Terra. Eles mederam muita planta, muita muda. Essa bananeira que eu tenhoaqui foi tudo muda da Rede Terra. Aquela cerca viva que estána frente do lote também veio da Rede terra. Eles me trouxe-ram essas mudas e mais ainda, eu estou feliz.

A forma como esse camponês (Zé Paraíba) lida com a terra, baseadoem práticas agroecológicas, (uso da fossa séptica, agrofloresta, cisterna deferrocimento etc.), a preocupação em não usar agrotóxicos, os saberes e a relaçãocom a natureza, demonstra a importância em priorizar um modelo agrícolabaseado na agroecologia e na diversificação da produção, considerando osecossistemas. Como defende Thomaz Júnior (2007, p. 20), “As experiências deagricultura camponesa, a partir da diversidade dos ecossistemas, permitem oigualmente uso de múltiplas tecnologias e conhecimentos tradicionais deprodução agroflorestais, agropastoris, integrados, e outros.”

Além do PAIS, as famílias do Assentamento Vale São Marcos, sededicam a plantação de pimentas, gerando uma produção que chega aaproximadamente 5000 quilos por mês, na época da colheita. Em outro lote doAssentamento, verificamos o cultivo de hortaliça por meio do PAIS e ainda oplantio de pimenta, expressando a diversidade através da agricultura camponesa.

Foto 5: Pés de pimenta (primeiro plano a esquerda) e quiabos circulando ahorta do PAIS, ao centro, além de milho e bananeira ao fundo19

Fonte: Ricardo Junior de Assis Fernandes Gonçalves - Pesquisa de Campo - fev/2011.

19 Ainda sem construir o galinheiro ao centro, a ideia é usar os estaleiros para o plantio de pés de chuchu.

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A ideia é fortalecer a autonomia dos camponeses do Assentamento, baseandoem práticas agrícolas limpas, sem uso de agrotóxicos, que são contaminantes emortíferos. Através do PAIS e a parceria com a Rede Terra, o camponês doAssentamento afirma que isso tem sido uma boa oportunidade para garantir novasfontes de renda em seu lote e para muitas famílias do Assentamento. Além disso,eles produzem já com a certeza de que seus produtos serão comercializados atravésda Rede Terra, aumentando as perspectivas em termos de renda. Além disso, ocaminhão da Rede Terra vai na “porta” de cada família buscar os alimentosproduzidos, diminuindo ainda mais os gastos. Isso tem feito da Rede Terra, umaexperiência de sucesso para os camponeses do Assentamento Vale do São Marcos,como afirmou Zé Paraíba, “a Rede Terra foi uma coisa bem plantada aqui”.

Considerações FinaisEnquanto milhares de homens e mulheres lutam pela terra e para

permanecer na terra, a territorialização do capital nas áreas do Cerrado brasileironas últimas décadas, através do agrohidronegócio, acentuou os efeitos sócio-ambientais no campo, expropriando camponeses, desmatando, contaminandoos solos, a água, matando animais, assoreando ou alagando os rios, explorandoo trabalho de homens e mulheres, expressando uma acumulação dedestrutivismo.

O agrohidronegócio, da forma como está sendo territorializado no Cerradobrasileiro é insustentável, expropriador e destrutivo da vida em sua diversidade.Por isso, é cada vez mais urgente repensar esse modelo e propor novas alternativas,baseadas em práticas fundamentadas na agroecologia e na diversificação daprodução. É preciso valorizar as experiências da agricultura camponesa,reconhecendo e conservando os ecossistemas, a cultura e os conhecimentos,pensando na autonomia dos povos, comunidades e na soberania alimentar. Asexperiências da Rede Terra no município de Cristalina/GO demonstra que isso éprocessual e possível, mesmo com os desafios perante a orquestração do capitalhegemônico em parceria com o Estado, sobre o Cerrado e os Povos Cerradeiros.

Referências

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CONTRADIÇÕES DO DESENVOLVIMENTOCAPITALISTA BRASILEIRO: agronegócio versussaúde dos trabalhadores nos frigoríficos de carnes

Alcides Pontes Remijo1

Ricardo Lara2

IntroduçãoO presente trabalho tem como objetivo discutir a exploração da classe

trabalhadora no atual estágio da acumulação capitalista, em especial, osrebatimentos na saúde do trabalhador inserido no agronegócio, nos frigoríficosde carnes de Barretos e região. O atual ciclo de acumulação capitalista trásinúmeras formas de doenças relacionadas ao trabalho, como Lesão por EsforçoRepetitivo (LER), Doenças Osteomusculares Relacionadas ao Trabalho (DORT),stress e outras doenças que afetam a saúde mental da classe trabalhadora. Acondição de adoecimento do trabalhador não se limita apenas aos trabalhadoresdos frigoríficos, o moderno agronegócio brasileiro atinge o conjunto da classetrabalhadora no atual estágio de mundialização do capital e precarizaçãoestrutural do trabalho.

Nossa pesquisa tende a proceder “metodologicamente” segundo ospreceitos da ontologia histórico-materialista para observar as atuais contradiçõesdo capital. Para Gyögy Lukács (1969, p. 30), a pesquisa genética, pautada naontologia histórico-materialista, tem como respaldo a história, não como fatosmortos como quer o pensamento decadente da burguesia, mas: “Devemosentender o passado em sentido ontológico e não no sentido da teoria doconhecimento [...] Ontologicamente, ao contrário, o passado nem sempre é algopassado, mas exerce uma função no presente [...].”

Partindo desse passado que se modificou e expressa uma nova (e velha)contradição, buscaremos demonstrar que os antigas personificações do capitalnacional, oriundo da via colonial, se metamorfoseou em agentes financeirosdas grandes empresas transnacionais, ou conectados intimamente à eles. Masisso não deixa de expressar sua forma nefasta de desumanização que a produçãocapitalista engendra em toda humanidade, em especial à classe trabalhadora.Portanto, toda crítica ao atual modelo de desenvolvimento no campo tem que seatentar não somente ao trabalhador rural propriamente dito, mas destacar oagronegócio como processo totalizante da produção capitalista, que englobaatualmente tanto o processo produtivo que antecede a produção rural, como afabricação de insumos e maquinários voltados para a produção.1Graduado em Serviço Social pela UNESP-Franca, Mestrando em Serviço Social pela UniversidadeFederal de Santa Catariana (UFSC). E-mail [email protected] Prof. Dr. Ricardo Lara, Professor Adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: [email protected].

CAPÍTULO 7

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A atual conjuntura da sociedade capitalista emana de mudanças significativase consolidadas no mundo do trabalho entre o fim dos anos sessenta e início dosanos setenta, quando simultaneamente em face à “crise internacional do petróleo”que se instaurou à época, acelerou o processo de substituição do modelo deacumulação capitalista baseado na produção taylorista/fordista, sob a égide do Estadode Bem Estar Social, pelo de acumulação flexível baseado no modelo de produçãotoyotista, sob a emergência do neoliberalismo. Esse novo patamar de acumulaçãodo capitalismo mundial trouxe a possibilidade de maior controle sobre o trabalhovivo, tendo como resultado o aumento da produção industrial, agrária e de serviços.

Esses novos índices de produtividade acarretaram, para a classetrabalhadora, inéditas situações e condições de trabalho, que ocasionaram oaumento demasiado de doenças relacionadas à atividade laborativa, como ostress, a ler e o dort. Tais mudanças afetaram tanto a objetividade da classetrabalhadora, seu modo de trabalhar e de se empregar, quanto a sua subjetividade,como o trabalhador observa e compreende a produção e sua organizaçãoenquanto classe trabalhadora frente ao capital, como classe para si.

Dentro desse cenário de grande intensidade do trabalho, verifica-se queos frigoríficos brasileiros estão conquistando o mercado mundial de produção edistribuição de produtos alimentícios industrializados – tanto na área de enlatados,como in natura3. Atribuirmos tal ganho de competitividade à forma de exploraçãodo trabalho e sua organização nesse espaço industrial. Nos frigoríficos não hácondições de se realizar completa automação ou terceirização do trabalho, comoocorreu em alguns ramos da produção como calçados, automotiva, vestuário,entre tantas outras, portanto não havendo uma possibilidade de terceirização, excetopor consórcio modular4. A alternativa encontrada para o aumento do índice deprodutividade no agronegócio brasileiro e, por conseguinte, de lucros exorbitantes,sustenta-se no recrudescimento da exploração do trabalho vivo.

A via colonial brasileira e superexploração capitalistaAo falar no desenvolvimento capitalista brasileiro queremos demonstrar,

mesmo de modo sumário, alguns conceitos do desenvolvimento das forçasprodutivas em solo nacional. Os móveis capitalistas no Brasil foram formadosvoltados para atender a demanda do mercado europeu de produtos agrícolas3 Os produtos considerados in natura são todos aqueles que são retirados da natureza e não sofremintenso processo de industrialização, no caso da carne é apenas retirada do animal e comercializada,apesar de passar por processo de industrialização não mudou consideravelmente o produto.4 O consórcio modular é uma experiência que foi utilizada pela Volkswagen de Resende (RJ), produçãode caminhão e ônibus (hoje a MAM), onde cada fornecedor não somente produz as peças para amontadora, como é consórcio é fabricado cada peça, mas monta e recebe às peças somente após avenda do produto final. Desta maneira arcando também com os prejuízos de períodos de poucasvendas. O caso dos frigoríficos, pode-se estimular a formação de cooperativas que seriam as “parceiras”do negócio, isso seria apenas uma possibilidade. Outra particularidade é que as empresas que fazemparte do consórcio estão no mesmo espaço físico, várias empresas sob o mesmo teto e mesmo uniforme.

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tropicais, em decorrência desse processo houve atrofiamento no incrementodas forças produtivas, e o atraso no desenvolvimento de relações de produção.Outro dilema que atravessa nossa análise, diz respeito a pecuária, visto que atéo século XX foi concebida como atividade secundária na economia brasileira, eseu processo de industrialização foi subsumido ao imperialismo (PRADOJÚNIOR, 1994, p. 340).

A gênese da objetivação da lógica do capital no Brasil tem umaparticularidade que deve ser destacada, a imanência do setor agro-exportador,que em linhas gerais se baseou sempre em grandes concentrações de terras,dominação patrimonialista, baseada no patrimônio, com utilização do trabalhoescravo, e economia extremamente mercantil, que permanece ainda até hojeem busca de atender o mercado externo de produtos agropecuários. Outracaracterística que se manteve foi a concentração de terras, agora sob o domíniodos grandes capitais. Como quase de forma imanente, o setor “moderno” daeconomia, o agronegócio, mantém e acentua a superexploração do trabalho.

A industrialização brasileira e parte da América Latina, que seindustrializou, deu-se, segundo Chasin (1989), pela chamada via colonial, típicado capitalismo de industrialização hiper-tardia. Por se formar em estrutura emomento histórico diversos dos países que percorreram a via clássica5, ou a viaprussiana6, ficaram totalmente dependentes das empresas imperialistas. Essestrustes internacionais, também se configuravam empresas frigoríficas, seinstalam no Brasil, a exemplo da Swift e, no caso de Barretos, do Anglo S/A.Em Barretos, a industrialização de carnes inicia-se por volta de 1914, quandose instala a Companhia Anglo Pastoril, que pertencia a um grupo inglês.

O tipo particular de objetivação do capitalismo que ocorreu em paísesda América Latina sofre os influxos do capitalismo dos países centrais, como acrise de superprodução e produção destrutiva, outra característica da via colonialque se expressa é a subsunção total aos agentes financeiros externos, segundoChasin (1989, p. 62, grifo do autor):

O que importa ressaltar [...] é que pela via colonial daobjetivação do capitalismo o receptor tem de ser reproduzidosempre enquanto receptor, ou seja, em nível hierárquico infe-rior da escala global de desenvolvimento. Em outras palavras,

5 Entendemos como via clássica o modelo de formação capitalista que as nações como Inglaterra,França e Estados Unidos obtiveram, rompendo com o passado via revoluções, e os agentes econômicosocupando os espaços de produção naturalmente, onde formou-se uma economia autônoma e possibilitoua industrialização autônoma.6 Compreendemos a via prussiana, modelo de industrialização que tem a participação do Estado, oraincentivando, ora protegendo a nascente indústria nacional, entretanto não ocorreu processorevolucionário, por isso a ala conservadora (reatualização de agentes oriundo do antigo regime),permanecem como figuras importantes na sociedade. Na Alemanha, a figura dos proprietários deterras era perceptível até o começo do século XX. ora protegendo a nascente indmodelos de indtepolalbalho.e trabalho o trabalhador fornece valor compativel

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pelo estatuto de seu arcabouço e pelos imperativos imanentesde sua subordinação, tais formações do capital nuncaintegralizam a figura própria do capital, isto é, são capitaisestruturalmente incompletos e incompletáveis. Pelo que são evão sendo, em todo fluxo de sua ascensão, ponto a ponto, rei-teram a condição de subalternidade do “arcaico”, para a qualtodo estágio de “modernização” alcançada é imediatamentereafirmação de sua incontemporaneidade.

O processo imperialista distribuiu para a periferia do sistema os ramosdas indústrias que eram os mais nocivos para a saúde dos (as) trabalhadores (as),incluindo o Brasil como produtor de matéria-prima dessas indústrias. É fácilperceber onde estão os maiores pólos têxteis, calçadistas, frigoríficos e complexosligados a indústrias petroquímicas, onde os resíduos poluentes são extremamentenocivos. Com a “repartição” realizada pelo imperialismo, países que passarampela via colonial, na formação capitalista, não puderam completar seu ciclo deformação econômica. Faltou para tais nações a formação de indústria de base,voltada para produção de insumos para a indústria, enfim o desenvolvimento dasforças produtivas avançadas. Em decorrência desse processo as burguesiasimperialistas que se instalaram no Brasil, quanto à nativa, alçou método alternativode exploração da mais-valia, a superexploração do trabalho vivo, baseado emduas pilastras principais: a superexploração do trabalho, utilizando a mais-valiaabsoluta e relativa, além de expropriar o fundo de consumo dos trabalhadores,visto que a força de trabalho é paga abaixo do seu valor.

O Brasil, nas ultimas décadas, objetivou “nova” plataforma econômica,reatualizando o velho modelo, ou seja, a produção agropecuária voltada para omercado externo, o qual foi incrementado com maior tecnologia, exemplo dissofoi o investimento na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária(EMBRAPA), para melhoramento genético de plantas (cana de açúcar e soja) eanimais, além do incentivo às empresas imperialistas à se instalarem no Brasil,com novos produtos tecnologicamente mais avançados, caso dos transgênicose maquinário vinculado ao último estágio de desenvolvimentos tecnológico.

A exploração da mais-valia no CapitalismoAgora é preciso evidenciar o labor exercido pelos trabalhadores dos

frigoríficos, os quais sofrem os reflexos da produção capitalista destrutiva. Apremissa da acumulação especificamente capitalista foi longamente analisada,por autores como Marx, Lênin e atualmente Mészáros, destaca-se a submissãoreal do trabalho ao capital, com despojamento de todos os meios de produção,e, por conseqüência, os meios de subsistência. Ambos estão nas mãos daburguesia, não só os meios de trabalho, como terras, indústrias, o intercâmbioentre produtos. Mas os meios de subsistência que o trabalhador deve adquirirmediante ao pagamento de dinheiro, para sua reprodução física e social, desta

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forma assegurando a forma de reprodução do capital (MÉSZÁROS, 2002, p. 55).Pontuaremos a lei do valor como sustentação da atual superexploração

dos trabalhadores no agronegócio, é claro que pensamos a questão do valorconcatenado com a reprodução do capital em escala ampliada, típico do nossoperíodo histórico. É inexorável no capitalismo que os capitais se definham naconcorrência fazendo que o valor das mercadorias seja reduzido, para isto éindispensável que o preço da força de trabalho, ou o trabalho necessário devediminuir, para que a taxa de mais-valia permaneça mais elevada possível. Seum capitalista individual, que produz, por exemplo, peças para automóveis,ele barateia seus produtos elevando a força produtiva do trabalho, e, porconseguinte, diminuindo o tempo de trabalho necessário, o dono do capitaldessa forma auxilia para elevar a taxa geral da mais-valia. O capitalista queconsegue desenvolver forças produtivas mais eficazes faz com que dobre suaprodutividade, e assim maior apropriação do trabalho excedente. A empresacapitalista apropria-se da mais-valia extra quando os outros capitalistasfabricam ainda de forma arcaica, assim que os outros concorrentes buscarãointensamente atingirem os mesmos moldes do abastado capitalista, estadiferença desaparece, sendo este novo marco da produção como a média dotrabalho socialmente necessário (MARX, 2008, p. 699).

Para aumentar a mais-valia o capitalista tem duas formas para apropriardo trabalho alheio; um pelo aumento da jornada de trabalho, tal processo Marxdenominou de produção de mais-valia absoluta. Na mais-valia absoluta o capitalbusca aumentar o trabalho excedente, sem modificar o tempo de trabalhonecessário. Tal expediente foi amplamente utilizado no começo do modo deprodução capitalista no final do século XVIII e inicio do século XIX, antes daregulamentação das leis fabris que limitaram a jornada de trabalho na segundametade do século XIX. Outro expediente para ampliação da produção e, portanto,da mais-valia nela contida é a mais-valia relativa, que tem as seguintesparticularidades:

Entendemos aqui por elevação da produtividade do trabalhoem geral uma modificação no processo de trabalho por meioda qual se encurta o tempo de trabalho socialmente necessáriopara a produção de uma mercadoria, conseguindo-se produzir,com a mesma quantidade de trabalho, quantidade maior devalor-de-uso (MARX, 2008, p. 365).

A mais-valia relativa pode ocorrer com o incremente de instrumentos deprodução mais eficazes, ou seja, o maquinário e ferramentas, por isso aceleramcontinuamente o processo de captação do trabalho. Ou pode ocorrer por melhororganização do trabalho, como ocorreu no fordismo, e depois no toyotismo,desse modo vai atuar na força de trabalho através da divisão do trabalho a qualpossibilita o aumento das forças produtivas.

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Por isso é uma tendência da lógica do capital sempre arquitetar novasformas para melhor organização da produção, a fim de extrair mais-valia relativa.Durante o século XX, o mundo do trabalho foi marcado pela busca de novasformas de organizar o trabalho. Destaca-se nesse caso o binômiotaylorismo\fordismo, esta organização é muito importante para nossa análise,pois foi e ainda é muito utilizada na organização do espaço físico dos frigoríficos.

O funcionamento dos frigoríficos de carnes bovina em Barretos baseia-se:[em] estruturas quase vertical, típica do fordismo. O primeirosetor é o abate. Ao iniciar a produção o gado é morto, entrandoa seguir em um espaço onde são retirados o couro e o sangue. Atriparia será responsável por separar alguns órgãos que tem va-lor comercial como fígado, coração, língua etc., além de retiraras fezes do intestino para futura comercialização (de ambos).

No setor da desossa, ou descarniação, o gado vem por umanora7 e chega aos trabalhadores, que estarão a postos para de-sossa. Os desossadores retiram os cortes um de cada vez, sen-do responsáveis pela qualidade da carne, pois quanto maisnobre a carne, maior a especialidade exigida do faqueiro. Nes-te local, há uma organização do trabalho, quase em moldestayloristas, onde os faqueiros colocam-se lado a lado um dosoutros para retirar os cortes, atividade cujo ritmo é dado pelanora, portanto um ritmo de trabalho intenso, repetitivo eestafante para os trabalhadores.

O quarto setor, chamadas de “salinhas” locais, é onde a carne é embalada,e depois posta em caixas, assim podendo seguir para o embarque ou estoque.Esses últimos trabalhadores não são especialistas, são auxiliares de produçãocom salários muitos baixos, e um trabalho repetitivo, assim como os desossadoresestão sujeitos às doenças ocupacionais. O quinto setor compreende as câmarasfrias, a estocagem e o embarque de carnes. O local é pouco arejado, ambientadoa temperaturas muito baixas, que podem chegar a cerca de 20 graus Celsiusabaixo de zero. O embarque é um setor em que normalmente se encontram ostrabalhadores mais fortes fisicamente, pois tem que carregar caixas de carnessem ossos que pesam em média de 15 a 20 quilos; já as carnes com ossos pesamem média de 70 a 100 quilos. (REMIJO, 2010, online).

Até aqui foi demonstrado os setores que trabalha diretamente com acarne, há outros setores produtivos que são necessários para a produção, comoa caldeira, a manutenção e a equipe de limpeza que atua em todos os setoresprodutivos, além de setores de vendas e o setor administrativo. O último setor,existente apenas no Frigorífico JBS Friboi, é a linha de produção, em que ocorrea fabricação de enlatados. Na indústria, esse setor tem como característica7 Nos frigoríficos as esteiras têm essa denominação, pois em seu funcionamento o gado normalmenteestá de cabeça para baixo “amarrado” pelos pés, percorrendo a linha de “desmontagem” do gado.

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principal o intenso calor devido ao cozimento de carnes e à retorta, cozimentodos produtos depois do enlatamento. Há ainda o local, anexo à indústria principal,onde são produzidas as embalagens de metal, chamado estamparia.

Conclusão: as doenças do trabalho nos frigoríficos de Barretos-SPÉ lógica imanente do capital a depreciação da força de trabalho, ou seja, o ser

social é rebaixado à condição de mercadoria. Mercadoria especial, única capaz deproporcionar a ampliação do capital. O capital não tem, por isso, a menorconsideração com a saúde e com a vida do (a) trabalhador (a), a não ser quando aclasse trabalhadora o compele a respeitá-la. A queixa da classe trabalhadora sobre adegradação física, moral, mental quando não levada a morte prematura, pela completaexaustão, os capitalistas respondem: “Por que nos atormentarmos com essessofrimentos, se aumentam nosso lucro!” (MARX, 2008, p. 293-294).

A produção capitalista e a saúde da classe trabalhadora é uma questãoinconciliável dentro dos limites da sociedade burguesa. As denúncias sobre ascondições insalubres de trabalho está presente na teoria social crítica, os primeirostrabalhos deram-se na Inglaterra do século XIX, dentre eles podemos destacar Engelsno célebre trabalho “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”. Marx ao longoda sua obra “O Capital”, afirma a completa desumanização dos trabalhadores, porexemplo, os ferroviários são obrigados a trabalharem mais de 14 horas diárias, essajornada exaustiva de trabalho poderia aumentar no pico da produção, tanto noescoamento da produção quanto em épocas de turismo (MARX, 2008, p. 293).Aliás, para o capital não têm discrepância em abusar da força de trabalho dotrabalhador bem preparado ou não. Como mostra Marx, a morte nas “casas de moda”(hoje as grandes indústrias de vestuários) por excesso de trabalho, as mulheresmorriam devido às condições insalubres. No capitalismo, quando não é impostanenhuma barreira legal, ou outra forma de impedir o abuso da superexploração daforça de trabalho, o processo produtivo tende a exaurir as forcas vitais do trabalhador.

Fica desde logo claro que o trabalhador, durante toda a suaexistência, nada mais é que força de trabalho, a ser empregadono próprio aumento do capital. [...] Mas, em seu impulso cego,desmedido, em sua voracidade por trabalho excedente, viola ocapital os limites extremos, físicos e morais, da jornada detrabalho. Usurpa o tempo que deve pertencer ao crescimento,ao desenvolvimento e à saúde do corpo (MARX, 2008, p. 306,grifo do autor).

Partindo das considerações de Marx, evidencia-se a contradição entreacumulação do capital em escala ampliada e saúde do trabalhador. Como jámencionado, os Frigoríficos sustentam sua produção em moldes taylorista/fordista, e se organizam nesse modelo para extrair maior quantidade de mais-valia dos trabalhadores. Os trabalhadores dos frigoríficos já sofriam com a

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superexploração do trabalho, resquícios da via colonial, conforme já exposto: aextensão da jornada de trabalho como manifestação da mais-valia absoluta,além de baixos salários.

Para infelicidade dos trabalhadores dos frigoríficos, as empresas lançamprocessos de espoliação mais contundentes para esse proletariado. São introduzidosos métodos inspirados no modelo “japonês” de produção para o controle da forçade trabalho, que são mais produtivos. Neste caso fundiu uma estrutura fabrilalicerçada no taylorismo/fordismo com recentes técnicas de gestão toyotista. Oobjeto dessas técnicas é capturar a subjetividade operaria e envolve-las nos Círculosde Controle de Qualidade (CCQ), característica principal, ou seja, os própriostrabalhadores assumem a gerência científica. Os frigoríficos atingiram os objetivoseliminando os “desperdícios” de trabalho, principalmente o fim da porosidade outempo morto na produção. Os Círculos de Controle de Qualidade são na área deabate, desossa, e outros setores que contêm linha de produção. A peculiaridadedesse processo organizativo que atua na subjetividade do trabalhador, obtendo oaumento de desempenho dos trabalhadores, atua no trabalhador individual e notrabalho coletivo através da “cooperação” dos trabalhadores, mesclando formasde trabalho parcelar taylorista com modelos gerências que operam na subjetividadedos trabalhadores, nos moldes toyotista. Os Círculos de Controle do trabalho nosfrigoríficos de Barretos é:

[...] operacionalizado pelos círculos de controle de qualidadetotal, chamado no JBS Friboi de TQF (Total Qualidade Friboi).No frigorífico Minerva, o sistema de “qualidade total” não foiimplementado de forma que os trabalhadores reconheçam, poisao indagá-los sobre o Programa de Qualidade Total não souberesponder, enquanto no JBS Friboi os trabalhadores identifi-cou. O modelo utilizado pelo JBS Friboi é a medida deenvolvimento da força de trabalho, com os círculos de contro-le de qualidade, em toda a área da desossa um novo modelo degestão da força de trabalho está baseado no que seconvencionou chamar cinco S’s (5S) (REMIJO, 2010, online).

Os Frigoríficos não inventaram nada de novo. Esse sincretismo entretoyotismo e fordismo já ocorreu, segundo Giovanni Alves (2005, p. 128-129),no ABC paulista na passagem do fordismo rígido para o toyotismo restrito. Otoyotismo restrito foi utilizado durante a década de 1980, pois as empresasbuscavam maximizar sua produção através de Círculos de Controle de Qualidade,just-in-time, kanban, sem o incremento tecnológico de terceira revoluçãoindustrial, e, principalmente atuando na subsunção real do trabalho ao capital,o que afirma a captura da subjetividade operária frente ao capital, em que omarco é o sindicalismo de empresa, quando os trabalhadores se adaptam aolema da família “Toyota”, a empresa casa.

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No “ajustamento” para o novo marco da acumulação capitalistadecorrentes de modernos processos de controle da força de trabalho osfrigoríficos brasileiros atingiram ganhos de produção de forma exorbitante, comoconseqüência atingiu o segundo lugar no ranking das exportações brasileiras.Segundo o Repórter Brasil em 2006, a venda de carne bovina, de frangos e desuínos, alcançou a cifra dos US$ 8,6 bilhões, aumento de 5,5% em relação a2005 (apud REMIJO, 2010, online). A monopolização decorrente do novopatamar de produção capitalista, não atingiu os consumidores de carnes, masde forma nefasta os trabalhadores dos frigoríficos. Para ilustrar sumariamentenossas assertivas basta um depoimento do presidente da Confederação dosTrabalhadores nas Indústrias de Alimentação, Agroindústrias, Cooperativas deCereais e Assalariados Rurais (Contac), Siderlei de Oliveira, relatada ao RepórterBrasil acerca do trabalho nos frigoríficos, em especial, na região de abrangênciada Contac (apud REMIJO, 2010, online):

No ano passado, o setor das indústrias de alimentação alcan-çou primeiro lugar nas estatísticas de acidentes de trabalho,com 48.424 casos registrados, de acordo com o Ministério daPrevidência Social. O número de acidentes e doenças relacio-nadas ao trabalho cresce nesse setor, porque as empresas ele-varam suas metas de produção sem ampliar o número de traba-lhadores. Os trabalhadores estão num ritmo insuportável. Amáquina dita o ritmo de trabalho no setor agrícola. O trabalha-dor faz esforço físico repetitivo, durante 8 horas e em ambientede baixa temperatura. A combinação disso é uma série de lesõesgraves, nos tendões, nos ombros, nos membros superiores.

Assim, no contexto dessas inovações tecnológicas e de gestão da forçade trabalho, evidencia-se na organização do trabalho os resquícios da via colonial,principalmente pelo aviltamento desse setor que se sustenta na superexploraçãodo trabalhador. Ao observar as tendências na atividade dos frigoríficos, percebe-se o aumento das doenças laborais. A desumanização da nova divisão do trabalhovem provocando inúmeros reflexos nas condições de saúde, trabalho, qualidadede vida e organização política. O tratamento dado ao gado não difere muito dooferecido aos trabalhadores, pois é exercida constante pressão aos trabalhadorespor parte de todo o complexo industrial frigorífico. Observem na reportagemdo Repórter Brasil o seguinte Termo de Ajustamento de Conduta (TAC):

O tratamento dado aos animais e trabalhadores é desumano.As idas ao sanitário são controladas, não existe água fresca oupotável próxima aos setores da linha de produção, os afasta-mentos decorrentes de lesões por esforço repetitivo, doençasosteomusculares (DORT) e psíquicas (stress e depressão) sãofreqüentes. As patologias vão de pneumonia pela exposiçãoao frio a lombalgias pela posição no trabalho, os casos mais

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comuns. Mas ocorrem também otites pelo alto nível de ruído,e dores generalizadas pelo corpo, principalmente braços e cos-tas. Os casos de depressão acontecem porque os trabalhadoresficam neste ambiente insalubre por cerca de dez horas, semver a luz do sol e sob forte pressão da produção. A rotatividadede trabalhadores é alta. Num momento de pico, em janeiro,foram contratados 148 trabalhadores e dispensados 169 (da-dos do Caged). Poucos conseguem continuar nas atividadespor mais de três anos. “Nunca vi um que ficasse até aposen-tar”, declarou um trabalhador que está há oito anos na empre-sa, e que não quis se identificar. Ninguém ganha adicional deinsalubridade ou periculosidade. Quase todos reclamam dosbaixos salários e excesso de jornada, além do esforço exigidoe das condições ambientais. Em outro frigorífico na regiãoforam registradas três mortes de trabalhadores nos últimos anos.E em uma delas o trabalhador caiu dentro do triturador de car-ne. No Frigorífico Minerva não há registro de morte, mas osacidentes acontecem, principalmente com cortes por facas.(MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO, 2008, online).

Nas indústrias frigoríficas abatem-se carne bovina, suína, aves – bemcomo em todas as empresas ligadas ao agronegócio as empresas não somenteconsome a força de trabalho até ele exaurir, mas também provoca uma quantidadegrande de acidentes e doenças do trabalho.

As psicopatias como estresse e doenças como a Ler e o Dort deveriamser evitadas. Além do processo de proteção por intermédio do Ministério doTrabalho, e políticas publicas de saúde do trabalhador como os Centros deReferencia em Saúde do Trabalhador (CEREST), a Comissão Interna dePrevenção à Acidentes (CIPA) tem papel importante na comissão de fábrica,pois tem por obrigação expor os perigos do trabalho, esclarecer os ricos de cadaatividade, os direitos referentes a cada função, como também orientar em relaçãoa insalubridade, riscos de quedas, prevenção com certos maquinários.

Percebemos, ao analisar a situação dos trabalhadores inseridos no setordo agronegócio, que os limites são impostos dentro da lógica destrutiva docapital e, para suprimi-lá, devemos pensar na supressão do trabalho estranhado.Ou seja, na re-apropriação do homem no controle da produção e reprodução davida humana. Porém, até que isso se efetive, temos algumas lutas imediataspara travar, tais como: o fortalecimento dos sindicatos, do Ministério doTrabalho, do CEREST e outras instituições capazes de infligir limites a super-exploração do trabalho no círculo produtivo do agronegócio.

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PARTE 2A Luta pela Terra, Movimentos Sociais, Reforma Agrária e

Assentamentos Rurais

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EXPANSÃO DO AGROHIDRONEGÓCIO NO SEMI-ÁRIDO NORDESTINO E OS CONFLITOS POR TERRAE ÁGUA: revisitando a questão campo-cidade

José Aparecido Lima Dourado1

IntroduçãoA “indústria da seca” não é uma discussão superada quando se trata da

análise conjuntural e estrutural do Semi-árido nordestino. De tempos em tempos,ela é reeditada sob discursos inflados que buscam colocar a seca como temacentral para justificar investimentos estatais, que têm como propósito criar ascondições favoráveis à manutenção do status quo da oligarquia agrária regional,historicamente sedimentada no controle do acesso à terra e à água nesta fraçãodo território nacional. O grandioso Projeto de Transposição do Rio São Franciscoé um bom e já desgastado exemplo de como as diferenças regionais são utilizadaspara sustentar ações, a partir do falseamento da realidade, quando utilizam comojustificativa a necessidade de disponibilizar água para a população do Semi-árido, camuflando, assim, os verdadeiros interesses que, no caso da transposiçãodo São Francisco, é fornecer água para a expansão do agrohidronegócio2.Segundo informações contidas no próprio projeto governamental, o destino daágua da transposição será, majoritariamente, para irrigação (70%), indústria(26%) e abastecimento da população rural (4%).

Porém, há algo “novo” nesse processo de reedição da “questãoNordeste”, visto que agora não se trata apenas de disputas internas sobre quemdomina o acesso à água e às terras. Trata-se da territorialização do grande capitalnacional-transnacional, que busca controlar o acesso à terra e à água, além deaproveitar dos incentivos fiscais de toda ordem, oferecidos através das políticaspúblicas de desenvolvimento territorial rural. Surge um elementocomplexificador e que se soma à questão agrária, que é a territorialização degrandes empresas de mineração, cuja disputa pelo controle do mercado mundial,se materializa no território nordestino, através da implantação do ComplexoSiderúrgico e Portuário do Pecém, em Fortaleza (CE) e da instalação de minasde exploração, como é o caso das Indústrias Nucleares do Brasil (INB)3 e daBahia Mineração (BAMIN)4, essa última, em fase de implantação. A instalaçãodas empresas mineradoras ocorre com rapidez e transforma a paisagem de formaavassaladora, ocasionando processos intensos de des-reterritorialização de

1 Doutorando em Geografia pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP),Câmpus Presidente Prudente - Brasil. E-mail: [email protected] Aqui entendido como as atividades voltadas à agropecuária e mineração que têm grande dependênciaem relação aos recursos hídricos, como a fruticultura irrigada, carcinicultura e a extração de minériode ferro e aço, atividades estas em franca ascensão no Nordeste brasileiro.3 Empresa estatal responsável pela extração de urânio4 Empresa transnacional do setor de extração de minério de ferro.

CAPITULO 8

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camponeses, ribeirinhos, populações indígenas e quilombolas, em muitos casos,tidos como “obstáculos” ao desenvolvimento do país.

No contexto da agricultura, frações do território do Semi-árido nordestinosão transformadas em “grandes pomares”, passando a produzir variedades defrutas, cujo mercado consumidor extrapola os limites nacionais, sendo exportadaspara diversos países da União Europeia, Estados Unidos da América e Japão.Denominaremos esse fenômeno de agrohidronegócio, aqui entendido como umconjunto de estratégias utilizadas pelo grande capital para dominar todo o circuitoda produção, inclusive mantendo o controle ao acesso à terra e à água. Comodesdobramentos desse fenômeno, verifica-se a integração do Semi-árido nordestinoao circuito nacional e internacional, como importante fornecedor de frutas tropicais,sendo relevantes as transformações sócio-espaciais verificadas em determinadasfrações do território nordestino que passam a ser dotadas de fixos e fluxos paraatender às necessidades de expansão e reprodução do capital.

A água, de elemento natural e recurso inalienável, passa a ser tratadocomo uma mercadoria, tornando-se praticamente uma “commoditie”. Tem-se,nessa lógica, a transformação do território a partir dos usos da água, pois, osprojetos desenvolvimentistas implantados pelo Estado e os projetos privadospassam a buscar, cada vez mais, os lugares com disponibilidade de água, demodo que esse recurso esteja acessível e a um custo relativamente baixo,colocando, assim, o agrohidronegócio no centro das disputas territoriais.

A espacialização dos perímetros irrigados e das plantasagroprocessadoras de frutas e das monoculturas, demonstra o movimento docapital no Semi-árido nordestino, evidenciando as regiões onde o capitalconcentra suas ações de maneira intensificada e articulada, com o propósito dereproduzir-se. A eleição dessas áreas não se trata de um movimentodespretensioso ou “natural”. Trata-se de um conjunto de estratégicas, na buscaincessante pelo acesso e controle da água.

O objetivo deste artigo é fomentar o debate acerca da expansão doagrohidronegócio, predominante em extensas áreas no Semi-árido nordestino,bem como revisitar a questão campo-cidade, de modo a perspectivar sobreos argumentos políticos e ideológicos que dão sustentação aoagrohidronegócio. O que motivou a elaboração deste artigo é o fato de muitosprojetos de irrigação ser rodeados por acampamentos de camponeses semterra ao passo que as terras desapropriadas pelo Estado e a infraestruturadisponibilizada, como os sistemas de irrigação, estão sob o domínio dogrande capital. A partir de referencial bibliográfico e das pesquisas de campo,propõe-se ampliar o debate acerca da questão campo-cidade bem comoperspectivar sobre outras possibilidades para a agricultura praticada nestesespaços, como alternativa ao modelo fruticultor agroexportadorpredominante.

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Destaca-se, ainda, a natureza inicial da discussão/utilização do termoagrohidronegócio, visto que este passou a ser usado por Mendonça e Mesquita(2007) e, desde, então, vem ganhando adeptos como Thomaz Júnior (2008a,2008b, 2010a, 2010b), sendo que, esse último, tem buscado identificar ecompreender a territorialidade da expansão agropecuária capitalista, no que eledenominou de Polígono do Agrohidronegócio, área que abrange o oeste de SãoPaulo, leste de Mato Grosso do Sul, noroeste do Paraná, Triângulo Mineiro eSul-Sudoeste de Goiás.

Para efeito de abordagem, serão consideradas, neste artigo, comoáreas de expansão do agrohidronegócio, os municípios de Bom Jesus daLapa, Livramento de Nossa Senhora e Juazeiro, na Bahia, Petrolina, emPernambuco, Jaguari, no Ceará e Mossoró, no Rio Grande do Norte. Essesmunicípios têm se destacado na produção de frutas tropicais, como manga,melão, banana e uva, em áreas dos projetos de irrigação implantados pelosDepartamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) e Companhiade Desenvolvimento dos Vales do São Francisco (CODEVASF),demonstrando a primazia que tem fundamentado a Política de Irrigaçãocolocada em prática no Nordeste brasileiro, direcionada ao modelo fruticultormonocultor, voltado ao abastecimento dos mercados do Centro-Sul do paíse do exterior.

Da Terra Esturricada ao agrohidronegócio: o Semi-árido nordestino nocentro das disputas territoriais

A partir da década de 1970, a Política de Irrigação no Nordeste passoua fundamentar-se na criação de projetos de irrigação. De certa forma issorepresentou certo “avanço” porque a construção de açudes em propriedadesparticulares deixou de ser o foco da ação de órgãos estatais, como aSuperintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e DepartamentoNacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) e, mais recentemente, e Companhiade Desenvolvimento do Vale do São Francisco (CODEVASF). Estesempreendimentos seriam implantados sob duas perspectivas: a captação de águaem rios perenes, como é o caso do Rio São Francisco, ou ainda, a construção deaçudes para regularizar o fluxo hídrico, e assim, permitir a irrigação dedeterminadas áreas durante todo o ano, cujo exemplo utilizado, pode ser aconstrução da Barragem Luis Vieira no Rio Brumado, no município de Rio deContas (BA), que fornece água para o Perímetro Irrigado do Vale do Rio Brumadoem Livramento de Nossa Senhora (BA). Assim, determinadas frações do Semi-árido nordestino – verdadeiros enclaves modernizados - passariam por“inovações”, visto que a implantação dos projetos de irrigação em áreas deCaatinga (Figura 1), tratadas pelos discursos hegemônicos como a região dafome, da pobreza e das terras improdutivas, mudaria a face de muitos municípios

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que passariam a interagir com os mercados nacional e internacional, em funçãoda fruticultura irrigada.

A ação do Estado através da Política de Irrigação no Semi-áridonordestino requer uma análise multiescalar (local, regional, nacional einternacional) e multidimensional porque não representa apenas mudançasde ordem econômica. Há que se reconhecer as mudanças de ordem social,econômica, política e cultural, pois a introdução da lavoura empresarialnestes territórios modernizados significa, também, a introdução de novoselementos materiais e imateriais que interferem diretamente na organizaçãosocial dos sujeitos que interagem nestes espaços. Assim, novas formas deapropriação e produção do espaço têm como desdobramento a expansão dasrelações capitalistas de produção e, em contrapartida, a inserção de práticassócio-culturais que não condizem com a realidade dos sujeitos, cujasrealidades foram modificadas. Há, nesse contexto, uma tentativa deisolamento das outras dimensões como a cultural, a econômica, a ambientale a política, como forma de impedir que os sujeitos afetados pelas açõesdecorrentes da parceria entre o Estado e o capital possam esboçar qualquerreação que venha contrapor aos interesses dos atores hegemônicos.

Figura 1 – Espacialização dos Projetos de Irrigação no Semiárido nordestinoFonte: IBGE, 2010Organização: José Aparecido Lima Dourado (2010).Elaboração: GUIMARÃES, A. A, 2010

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Os projetos de irrigação passaram a ser os responsáveis, de acordo como Estado, por reduzir as desigualdades sociais do Semi-árido nordestino, pois,em função destes, dar-se-ia a geração de emprego e renda. A cargo daCODEVASF e do DNOCS, diversos projetos de irrigação foram implantados,tendo como cenário político a ideia de que, assim, o Estado estaria fazendo“mini reformas agrárias”. Em outros termos, a concentração fundiária sendocombatida como forma de camuflar os problemas candentes da maioria doscamponeses, como o acesso e permanência na terra e o acesso à terra.

A política de desenvolvimento territorial executada através da criaçãodos projetos de irrigação no Semi-árido nordestino não conseguiu ultrapassar asimples amenização das desigualdades sócio-espaciais, embora, em casosespecíficos, municípios como em Juazeiro (BA), Livramento de Nossa Senhora(BA), Petrolina (PE), Mossoró (RN) e Sobral (CE), transformaram-se em polosfrutícolas, totalmente inseridos na lógica da produção globalizada. Tratam-sede medidas parciais e paliativas porque a sua capacidade de geração de empregoe renda geralmente fica restrita aos lotes, haja vista não existir uma política deintegração das atividades agrícolas desenvolvidas nos projetos de irrigação comas práticas agrícolas locais, nem mudança na estrutura fundiária, porque aindaque os lotes para irrigação não sejam grandes, a produção neles requer altosinvestimentos, a que os camponeses caatingueiros e trabalhadores da terra,não dispõem, tampouco, têm acesso junto às instituições credoras. Por isso, amodernização da agricultura presenciada no Semiárido nordestino, assim comoem todo o Brasil, é conservadora e dolorosa. Esse pensamento é corroboradopor Bloch (1996) para quem

[...] o processo “conservador” da modernização agrícola fazcom que a terra continue monopolizada por poucos, enquantoa maioria se vê impelida a migrar ou a se tornar assalariada emcondições extremamente precárias. A irrigação no Nordestenão foge à regra: as tentativas (tímidas, mal conduzidas e ge-ralmente fracassadas) de pôr alguns lotes nas mãos de colonosnão souberam substituir um amplo processo de redistribuiçãoda terra (BLOCH, 1996, p. 83).

A expansão dos projetos de irrigação na Região Nordeste, implantadospelo Estado, ocorre em um momento de profundas transformações no campobrasileiro, devido ao processo de modernização da agricultura, iniciado já nadécada de 1960, no Sul do país e cujo avanço para as demais regiões foi verificadoa partir da década de 1970 (Centro-Oeste) e 1980 (Nordeste), havendo, pois, aintenção desses projetos estatais de atender aos interesses externos. Essaintegração entre o Estado e o capital no pós-1945 é enfatizada por Mesquita(1993, p. 18, grifos da autora) para quem “[...] a política econômica brasileira apartir de 1950 já propiciava a expansão dos interesses dos grupos criadores da

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Revolução Verde, cujos canais de implantação foram os programas Aliançapara o progresso5 e Alimentos para a paz6”. Com os projetos de irrigação, veioo agronegócio, inserindo estes lugares no contexto da economia globalizada.Estas ações são caracterizadas por processos de desterritorialização-reterritorialização dos camponeses e, em contrapartida, a concentração de terras,a ampliação da exploração de mão-de-obra assalariada e alterações significativasna dinâmica espacial dos lugares.

Outra leitura dos projetos de irrigação permite destacar os significativosimpactos sociais e econômicos decorrentes desses empreendimentos para osmunicípios onde são implantados, pois esses lugares passam por profundasmudanças em virtude dos novos direcionamentos adotados para a produçãoagrícola local. Dentre os impactos, pode-se mencionar a intensificação do fluxomigratório campo-cidade e cidade-campo, com um consequente aumento dapopulação urbana, como se verifica em Juazeiro (BA), Petrolina (PE) eLivramento de Nossa Senhora (BA), a expulsão de camponeses de suas terras edesagregação da produção tradicional familiar camponesa existente nas áreasdesapropriadas por conta da inserção da agricultura empresarial.

A Política de Irrigação acabaria por fomentar o surgimento de novos tipos dedisputas e conflitos, visto que os projetos de irrigação se transformaram em territóriosdo agronegócio, com transformações sócio-espaciais no campo e na cidade. Conflitospor água e terra assumiram lugar de destaque nesses espaços, pois as ações do Estadodar-se-iam associadas ao grande capital e em detrimento daqueles que historicamenteviveram na/da terra. As disputas territoriais entre o campesinato e o agronegócioapresentam características das contradições que perpassam a realidade do campobrasileiro, levando alguns autores a defender a existência do “território camponês”(FABRINI, 2008, p. 258), como resultado das lutas de resistência contra a expansãodo capital no campo, resistência essa baseada em elementos culturais e identitários,principalmente. De acordo com Thomaz Júnior (2009, p. 237)

A questão da terra, em nosso país, é, em essência, um elemen-to estrutural, sendo, por conseguinte, um dos epicentros daestrutura de poder. Por dentro desse processo é que podemosidentificar a dinâmica geográfica da luta de classes, os conteú-

5 Com o crescimento da influência do socialismo em Cuba na década de 1960, houve o recrudescimentopor parte do governo norte-americano, que firmou, durante a Conferência da Organização dos EstadosAmericanos em Punta del Leste, Uruguay em 1961, o Tratado da Aliança para o Progresso. Seuobjetivo era criar na América Latina zonas de comércio livre e mercado comuns. Consta nas açõesdeste programa o envio ao Brasil, mais especificamente à Região Nordeste, de militares norte-americanos disfarçados de comerciantes, religiosos e empresários para combater os movimentos sociaisem ebulição como é o caso das Ligas Camponesas.6 Quando a Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO) foi criada em 1946, nofinal da Segunda Guerra Mundial, acreditava-se que o aumento da produção de alimentos seriafundamental para evitar o surgimento de conflitos. Nesse sentido, havia a associação da produção dealimentos à manutenção da paz, através da ideia de segurança alimentar.

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dos estratégicos que se estabelecem para o campo ou como seimbricam instâncias de poder, produção, distribuição, circula-ção e consumo, e toda a estrutura produtiva agrária, no Brasil.

O enfrentamento político no marco da distinção entre campesinato eagronegócio tem, na questão agrária, elementos importantes para reflexão, vistoque as políticas públicas planejadas pelo Estado com o propósito de promover odesenvolvimento territorial rural são, na verdade, orquestradas com o objetivo desubordinar os camponeses à produção para o mercado, destituindo-os da relativaautonomia que estes possuem, visto que seu trabalho tem como centralidade areprodução da família, e não a lógica do lucro e da renda. Tais políticas estataiscriam uma espécie de blindagem para o agronegócio e o latifúndio, pois ao defendera sua eficiência econômica a partir da aliança terra-capital, colocam o campesinato,centrado na tríade família, terra e trabalho, como um obstáculo a ser superadorumo ao desenvolvimento do campo. Importa dizer que “a cultura camponesanão tem apoio” (ALMEIDA, 2008, p. 323) nas políticas públicas, principalmentea partir do governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), contexto histórico emque o conceito de “agricultura familiar” assume lugar de destaque nas discussõesacadêmicas e no âmbito da política estatal.

Acredita-se ser necessário refletir sobre a função social dos projetos deirrigação implantados pelo Estado, pois estes têm conseguido alcançar índicesde produção e produtividade significativos, todavia, o que se produz não servepara o abastecimento do mercado local, pois a produção é destinada aos grandesmercados consumidores do Centro-Sul do país e ao mercado externo. Há, nessecontexto, o desvelamento da estrutura de poder de classe, em torno da Políticade Irrigação no Semi-árido brasileiro porque suas bases refletem,

[...] o projeto de sociedade fundado nas grandes empresas, naconcentração fundiária e na exclusão social de milhões de fa-mílias camponesas, e de trabalhadores que se vêem constante-mente ameaçados, em conformidade com os interesses do ca-pital e do Estado (THOMAZ JÚNIOR, 2008a, p. 328).

A esse respeito, pode-se afirmar que ao buscar minimizar os efeitos dassecas o Estado acaba por criar outros e problemas, que são tão graves quantoaqueles já existentes no Semi-árido nordestino. Recolocar em cena a luta declasse, as ações do Estado em benefício das oligarquias agrárias regionais/locaise os processos de des-reterritorialização de camponeses e trabalhadores daterra torna-se fundamental para que a dinâmica geográfica dos territórios emdisputa (THOMAZ JÚNIOR, 2008a, p. 342) seja compreendida. Aqui secompreende o processo de desterritorialização como sendo mais amplo queapenas a expropriação da terra, envolvendo a perda de saberes-fazeres elaboradose repassados por meio das práticas sócio-culturais. Esse processo de despossessãoe desterreamento implica fortes conseqüências para o campesinato do Semi-

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árido nordestino, principalmente em seu universo do trabalho, interferindo ainda,na afirmação das identidades territoriais dos camponeses, que após aexpropriação são, em determinados casos, assimilados como mão-de-obra nasterras que outrora foram donos e que agora dispõem apenas da força de trabalhoa ser vendida temporariamente nos “pomares” da fruticultura irrigada.

Os rearranjos espaciais das áreas beneficiadas com os Projetos deIrrigação revelam que a modernização da agricultura está fundamentada nomodelo monocultor, no aumento do assalariamento no campo, precarização dotrabalho e na intensificação da degradação ambiental. Como conseqüência dessefenômeno, os municípios contemplados com Projetos de Irrigação tiveram, emsua maioria, um crescimento da população urbana, significando, por sua vez,problemas de ordem social, como o aumento da violência urbana, da pobreza ede problemas estruturais, como a especulação imobiliária, a falta de moradia ede serviços básicos, como abastecimento de água, coleta de lixo, entre outros.

Novas territorialidades foram construídas a partir dos Projetos deIrrigação, com a chegada de investimentos nacionais e estrangeiros. Aterritorialização do grande capital se dá através da introdução da agriculturaempresarial que acaba gerando a intensificação do fluxo migratório interno(campo-cidade) e entre municípios, além de acelerar os fluxos comerciais, coma compra de máquinas e insumos, e em decorrência da comercialização daprodução com o mercado consumidor. O cenário regional passa a sercaracterizado por uma produção frutícola com elevado padrão de qualidade,realidade contraditória aos discursos fatalistas que apresenta o Semi-árido comouma “região doente”. Nessa perspectiva, vê-se que o capital em seu processo deexpansão no Semi-árido brasileiro (agronegócio fruticultor) subordina ocampesinato, em alguns momentos, ao passo que em outros busca proletarizaro camponês, incorporando-o como mão-de-obra barata e pouco qualificada.Por esta razão, a leitura da Política de Irrigação no Semi-árido nordestino deveser feita a partir da dualidade agrohidronegócio versus campesinato, pois estesfiguram, constantemente, no cenário agrário, como sujeitos antagônicos nadisputa por frações do território.

De fato, a lógica produtiva/destrutiva do agrohidronegócio,fundamentado no modelo fruticultor amplamente difundido nos Projetos deIrrigação no Semi-árido nordestino, impõe novas formas de organização laboral,cujas alterações levam à produção de um excedente de trabalhadores excluídosdo mercado de trabalho que assumem funções temporárias, como trabalhadoresda construção civil (serventes, pedreiros), moto-taxistas, garis, camelôs,empregadas domésticas. A plasticidade e a mobilidade do trabalho (THOMAZJÚNIOR, 2009, p. 180) revelam as estratégias do capital para ampliar a suareprodução. Deste modo, é necessário reafirmar que a modernização daagricultura está atrelada aos efeitos da reestruturação produtiva do capital, com

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repercussão no campo e na cidade, impondo a camponeses e trabalhadoresurbanos situações de exploração diversificadas, (subcontratação, trabalho parcial,domiciliar, terceirizado). Inserido no projeto hegemônico do capital, ora ocamponês esta envolvido com o trabalho na terra enquanto que em outrosmomentos este se proletariza temporariamente para conseguir manter-se na terra.

Todo esse processo serve de cenário para que a questão campo cidadeseja revisitada, via relação de trabalho, pois, a realidade vivenciada pela classetrabalhadora, coloca por terra a ordem hermética das gavetas das especializaçõesdas ciências, e aqui, especificamente, da Geografia, cuja abordagem dicotômicaentre o campo e a cidade não consegue explicar o conjunto das relações sociaise de produção que sustentam o projeto de desenvolvimento destrutivo daagricultura monocultora. As fronteiras postas entre o campo e a cidade, ou ainda,entre o rural e o urbano, tratam-se, na verdade, de “discursos”; não existem narealidade. Basta reconhecer o fato de muitos camponeses buscarem, na vendatemporária de sua força de trabalho, as condições para permanecer na terra,enquanto os camponeses sem terra procuram entrar na terra, através da ocupação,havendo, por outro lado, trabalhadores urbanos que se ocupam de atividades nocampo, para perceber as fissuras no interior do sistema do capital. Para ThomazJúnior (2010a, p. 96)

[...] é no interior dos conflitos (territoriais) que temos o fiocondutor das ações dos sujeitos envolvidos nesse cenário.Então, as ações que antepõem trabalhadores x capital, asfissuras intercapital reveladas pela necessidade de terras pla-nas, férteis e com disponibilidade hídrica – portanto aptas àmecanização -, e entre os próprios trabalhadores, são, por ex-celência, os exemplos das disputas por território que revelamo conteúdo e os significados do processo expansionista doagronegócio em geral.

Ante ao exposto, vê-se que a Política de Irrigação implantada no Semi-árido nordestino não dispõe de instrumentos capazes de equacionar a questãoagrária, de modo que o acesso à terra e à água não tem sido garantido para aquelescuja existência está relacionada ao trabalho na terra. Os conflitos por água nasáreas dos Projetos de Irrigação são cada vez mais freqüentes, o que demonstra anecessidade de novas pesquisas, no sentido de compreender as disputas territoriaisentre campesinato e agronegócio, visto que as políticas estatais priorizam aagricultura produtora de commodities em detrimento da produção camponesa,responsável pelo abastecimento dos mercados locais/regional.

Para o camponês catingueiro (DOURADO, 2011) o acesso à água é tãoimportante quanto o acesso à terra, pois as práticas sócio-culturais deste sujeitorevelam que a sua relação com esse recurso natural é repleta de misticismo.Nestecontexto, ter acesso à água significa ter a possibilidade de produzir, de obter

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fartura, de permanecer autônomo frente às investidas do capital, de permanênciade modos de vida baseados no trabalho familiar e na produção voltada para oautoconsumo.

Essa realidade “bordada” pelo modo de vida do camponês caatingueiro,sujeito que deveria ser o protagonista da Política de Irrigação implantada peloEstado no Semi-árido nordestino, não é considerada quando tais ações sãoplanejadas, transformando-se, de fato, em projetos civilizatórios, cuja função étrazer o “desenvolvimento” para as regiões onde são implantados.

Considerações FinaisA resistência e recriação do campesinato nas áreas dos Projetos de

Irrigação no Semi-árido nordestino tem ocorrido em um cenário de francofortalecimento do agrohidronegócio. A Política de Irrigação, em sua perspectivade privilégio ao agrohidronegócio, tem favorecido, sobremodo, para oacirramento dos conflitos por terra e água entre campesinato e agronegócio. Écerto que essa política de combate aos efeitos da seca é tímida, para não dizeromissa diante à concentração de terras e ao acesso à água, fato que gerainsatisfação e acabam fomentando a mobilização dos camponeses que buscampor meio de estratégias diversas, dentre elas a ocupação de terras, dispor dascondições favoráveis para a sua reprodução.

O Estado, por meio dos mecanismos legais e de discursos enviesados einflamados, procura convencer a população de que os grandes projetos deirrigação e de transposição são a única maneira de combater os efeitos dassecas. Entretanto, esconde-se que os maiores beneficiados com tamanhosinvestimentos são, em sua maioria, as oligarquias agrárias locais e as grandesempresas do setor da construção civil, enquanto que o ônus é distribuído,principalmente, entre aqueles que deveriam ser os verdadeiros beneficiados.

A Política de Irrigação implantada no Semi-árido nordestino deve serpensada de forma mais ampla, considerando a questão agrária, de modo a buscarromper com as velhas estruturas de poder e dominação para que novos sujeitospossam figurar no cenário dos beneficiados com os investimentos públicos.Trata-se, pois, de romper com círculo de vulnerabilidade a que está sujeito ocamponês caatingueiro, para que este possa beneficiar-se da mesma maneiracomo faz o agronegócio

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REFORMA AGRÁRIA: Sonho ou Realidade?

Júnia Marise Matos de Sousa1

Bruno Gomes Cunha2

Celso Donizete Locatel3

Maria das Dores Saraiva de Loreto4

IntroduçãoA questão agrária brasileira pode ser compreendida como um conjunto

de processos históricos, de caráter político, econômico e social, que tem suasorigens na colonização do País pelos europeus e que se define basicamente pelaconcentração de terras nas mãos de poucos, pelo grande contingente detrabalhadores rurais que não têm acesso à terra e às condições dignas de suasobrevivência. De acordo com Oliveira (2001), todo esse processo está vinculadoao desenvolvimento do capitalismo, que se faz de forma desigual e contraditória,que tem como parte constitutiva a concentração da propriedade de terra. Aoconcentrar a terra, o desenvolvimento capitalista empurra uma parcela cada vezmaior da população rural para as áreas urbanas, acentuando o êxodo rural eaumentando o contingente de pobres e miseráveis.

Se por um lado todas essas questões expõem aos riscos sociais milharesde trabalhadores rurais, por outro há uma grande massa que luta para permanecerna terra, para ter condições de produzir e garantir a sua sobrevivência ereprodução ao longo dos anos. É neste contexto que pode ser compreendida aluta pela terra em Sergipe, a luta organizada pelos movimentos sociais que sematerializa nos acampamentos de reforma agrária.

As famílias que lutam pela terra nos acampamentos vivenciam umarealidade que nem sequer pode ser imaginada por muitos, mas que impacta aquelesque a conhecem. Um olhar sobre a forma acampamento permite a sua compreensãocomo sendo o lugar da materialização da luta pela terra. É nesse lugar que asfamílias constroem seus próprios códigos, suas normas de convívio e suasestratégias de sobrevivência; que constroem sonhos e alimentam esperanças deque um dia a terra prometida há de ser conquistada. Os desafios vivenciados sãovários, a exemplo das condições precárias de vida debaixo da lona, dos riscos deacidentes à beira da rodovia, além das ameaças e da pressão daqueles que insistemem ser os únicos donos da terra: os proprietários e os grileiros de terras.

1 Professora Adjunta do Departamento de Economia Doméstica, Campus UFV, Viçosa/MG,Universidade Federal de Viçosa. Dra. em Geografia. (31) 3899-1631. [email protected] Engenheiro Agrônomo, Departamento de Solos e Nutrição de Plantas, Campus UFV, Viçosa/MG,Mestrando em Solos e Nutrição de Plantas – UFV. [email protected]. UFV/ INCRA SR 23.3 Professor Adjunto do Departamento de Geografia, Campus Lagoa Nova, Natal/RN. UniversidadeFederal do Rio Grande do Norte – UFRN. Dr. em Geografia. [email protected] Professora Associada do Departamento de Economia Doméstica, Campus UFV, Viçosa/MG,Universidade Federal de Viçosa. Dra. Economia Rural. [email protected].

CAPÍTULO 9

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Nos acampamentos sergipanos a realidade da luta pela terra se concretizadia a dia, ano a ano, chegando, em um caso extremo, a durar 12 anos de espera.Os acampados, à luz dos três poderes, vivem em constante pressão, seja porparte da militância, que em alguns casos esquece sua origem, e por ser agorarepresentante daquele grupo se torna ditador poderoso e cobra posturas e atitudesnem sempre compatíveis com as capacidades dos acampados; seja por partedos fazendeiros, que através das ameaças constantes pressionam e provocam adesistência de muitos; ora por parte do Instituto Nacional de Colonização eReforma Agrária (INCRA), que pelo descaso para com essas famíliasacampadas faz da morosidade para as vistorias um mecanismo de opressão dosonho da reforma agrária. Mesmo assim, os acampados sergipanos insistem epersistem na luta pela terra.

Diante dessa realidade, um questionamento fundamenta este trabalho:Quais as expectativas das famílias acampadas em Sergipe com relação à reformaagrária? Assim, este artigo tem por objetivo caracterizar o processo de formaçãoe luta pela terra nos acampamentos em Sergipe e identificar a percepção dasfamílias acampadas sobre a reforma agrária, bem como os aspectos que explicamestas percepções.

Os caminhos da pesquisaEsta pesquisa, do tipo exploratório-descritiva, foi realizada em Sergipe,

no ano de 2008. O público alvo desta pesquisa são as famílias que lutam pelaterra em Sergipe, de forma organizada via movimentos sociais. Para atingir osobjetivos propostos, foram selecionados três acampamentos, com característicasdiferentes, em especial quanto à vinculação a movimentos sociais, conformepode ser observado na Tabela 1.

Não foi considerada a amostra probabilística, mas sim aquelaidentificada por Gil (2008) como amostragem por acessibilidade, que constituio menos rigoroso de todos os tipos de amostragem, destituída de qualquer rigorestatístico. Neste caso, o pesquisador seleciona os elementos a que tem acesso,admitindo que estes possam, de alguma forma, representar o universo.Normalmente, esse tipo de amostragem é utilizado em estudos exploratórios ouqualitativos, que é o caso da pesquisa nos acampamentos.

Tabela 1 – Acampamentos selecionados para o estudo. Sergipe, 2008

Fonte: INCRA (2009a), organizado por Sousa (2009).

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Para obtenção dos dados da pesquisa nos acampamentos, foram utilizadosinstrumentos ou ferramentas específicas, conforme os objetivos a serem atingidosem cada etapa da pesquisa. Estes podem ser apresentados da seguinte maneira:a) Encontros diagnósticos/grupos focais para conhecer a história dosacampamentos; De acordo com Cruz Neto, Moreira e Sucena (2002), ao optarpor abordar a técnica de Grupos Focais na pesquisa social, é preciso enfatizarque esse debate recebe destaque por sua importância para o futuro da pesquisasocial, que demanda, cada vez mais, uma postura crítica e dialética, visando àsuperação dos pontos contraditórios, tornando-os públicos para que possamtambém ser submetidos a outras críticas.b) Entrevistas com o uso de questionários para identificar quem são, comosobrevivem e quais as expectativas das famílias acampadas quanto à reformaagrária.

As informações obtidas no Encontro Diagnóstico/Grupo Focal nosacampamentos foram sistematizadas e transcritas na íntegra, de forma a relatara história de luta pela terra e do acampamento em questão, bem como asexpectativas quanto à reforma agrária e aos impasses vivenciados. Osdepoimentos marcantes foram utilizados para ilustrar as questões de pesquisa.Os dados obtidos através dos questionários foram tabulados e analisados pormeio de métodos estatísticos descritivos (medições de frequências simples emédia).

A luta pela terra nos acampamentos em Sergipe: Breve caracterizaçãoOs acampamentos Amigos para Sempre, no município de Estância,

Mochila, em Itaporanga D’Ajuda, e D. José Brandão de Castro, em Brejo Grande,foram selecionados para esta da pesquisa, de modo a identificar a diversidade,com base nos aspectos apresentados, além de buscar captar as suas diferenças,consideradas significativas para ilustrar a realidade dos acampamentos emSergipe.

Cabe destacar que o Estado de Sergipe possuía, em junho de 2008, umtotal de 178 acampamentos. Foi pela impossibilidade de analisar um a um quese optou pelo recorte ora apresentado, selecionando um acampamento organizadopelos movimentos sociais de maior destaque no Estado.

O Acampamento “Amigos para Sempre”, Estância/SENo que se refere ao processo de formação e luta pela terra, o “Amigos

para Sempre”, organizado inicialmente pelo Movimento dos Sem Terra (MST),é o mais recente dos acampamentos pesquisados. De acordo com o INCRA(2009b), esse acampamento foi criado em 16 de setembro de 2005, e até 6 deabril de 2009 contava com 54 famílias cadastradas.

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Na verdade, apesar de sua criação estar registrada em 2005, a composiçãode pessoas encontrada no momento da pesquisa era recente, sendo sua criaçãorelatada em 13 de abril de 2008, por isso é considerado nesta pesquisa como omais recente dos três acampamentos.

O acampamento está localizado na Rodovia Federal BR 101, na áreaindustrial do município de Estância, nas coordenadas UTM5 671479; 8757574,com barracos e plantio dentro da área pleiteada. Verificou-se naqueleacampamento o plantio de hortaliças e mandioca. De acordo com os relatos dosacampados e os dados coletados no INCRA, o imóvel possui 600 tarefas (181,5ha), não constando processo administrativo para fiscalização no INCRA.

A história do acampamento Amigos para Sempre começa com um grupopequeno de seis pessoas acampadas, que em virtude de divergências comcoordenadores e militantes do movimento em outro acampamento iniciam umanova caminhada, rumo a uma nova ocupação e acampamento. No inícioocuparam uma pequena área, nesse mesmo município, às margens da mesmarodovia federal, em que se encontram hoje. Entretanto, no momento em quecomeçaram a construção dos barracos foram abordadas por policiais e peloproprietário, solicitando que desocupassem a área. Houve negociação com acoordenação do movimento social, e ficou definido que deveriam sair do local.Assim, esses acampados foram reconduzidos a uma nova área, considerada poreles abandonada e improdutiva, que é a área em que se encontravam no momentoda pesquisa.

No relato daquelas famílias e do coordenador, faziam parte daqueleacampamento cerca de 60 famílias, cumprindo as normas, o que está bempróximo dos dados fornecidos pelo INCRA, no caso, 54 cadastrados.

Como esse acampamento está praticamente dentro da cidade, a suacomposição é bastante heterogênea, com pessoas da área urbana e rural. Sãohomens jovens e mulheres acampadas, que buscam, em área considerada urbana,o acesso à terra.

O Acampamento D. José Brandão de CastroO acampamento D. José Brandão de Castro foi criado em 14 de fevereiro

de 2000, com 167 famílias cadastradas, sendo coordenado pela Cáritas. Oacampamento está localizado na Rodovia Estadual SE 202, no município de“Brejo Grande”, mais precisamente nas coordenadas UTM 772950; 8844397,apresentando barracos cujo material predominante na construção é a palha,combinada à lona e a outros materiais. Os acampados se encontram em umaárea cedida, e uma parte está na faixa de domínio da SE 202, onde há plantio decoco e mandioca. Um dos imóveis reivindicados, com área de 465 hectares, jáfoi vistoriado pelo INCRA, aguardando apenas ser decretado para fins de reforma

5 Universal Transverse Mercator (UTM) - Sistema Universal Transverso de Mercator.

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agrária, já que se trata de uma desapropriação acordada.Ao apresentarem a história de luta e formação do acampamento, os

acampados relataram que estão nessa área desde 2005, mas que já passaram poroutros locais, a exemplo de Saramém, o primeiro imóvel ocupado por um grupode 185 famílias, também localizado no município de “Brejo Grande”. Entretanto,ao serem informados por policiais que deveriam sair do local (certamente apartir de um pedido de reintegração de posse do proprietário), os acampados sedirigiram para um segundo local, um imóvel cedido para o acampamento.

Nesse período, os fazendeiros rondavam o acampamento com ameaçase apresentando armas, para pressionar a saída dos acampados daquele local, jáque, na concepção dos proprietários, o acampamento representava uma ameaçaàs propriedades daquela região. Então os acampados se dirigiram ao local emque se encontram atualmente.

Em todo esse processo, os acampados revelaram momentos de dificuldadee muita pressão, que fez com que muitos desistissem da luta. Entre as pressõesdestacam-se as ameaças dos políticos locais e a discriminação dos acampados.De acordo com os relatos apresentados, políticos da localidade e fazendeiros jáatearam fogo em barracos e os acusaram de roubo. A discriminação também ésentida por parte da comunidade, desde a negação de uma oportunidade de trabalhoaté o cerceamento do direito de uso de transporte público do município. Nesteacampamento, os acampados são, em sua grande maioria, pescadores e nãoagricultores, mas nem por isso afirmam que deixam de ser sem-terra.

O Acampamento MochilaO outro acampamento pesquisado foi o “Mochila”, localizado no

município de Itaporanga D’ajuda, que foi criado em 6 de abril de 1999, com 28famílias acampadas, sendo o mais antigo dos três acampamentos pesquisados(INCRA, 2009a). O movimento social que organizou e acompanha esseacampamento é a Federação dos Trabalhadores Rurais de Sergipe (FETASE),ou seja, um movimento que atua em todo o Estado de forma articulada com osSindicatos dos Trabalhadores Rurais.

O acampamento Mochila está localizado no Povoado Sapé, nacoordenada UTM 672028; 8792281, não apresentando barracos de lona preta,característicos dos acampamentos. Os acampados estão dentro do imóvel, como plantio de “roças”. O imóvel possui uma área de cerca de 250 hectares, comacentuada declividade, sendo as áreas com relevo suave utilizadas para o plantiode mandioca e maracujá. O imóvel reivindicado já foi vistoriado, decretadopara fins de reforma agrária, mas sofreu impugnação na justiça, tendo oproprietário saído vitorioso. Atualmente, foi realizada nova vistoria eencaminhado novo processo para a desapropriação.

Nesse sentido, curioso fato foi relatado pelos acampados, ao

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apresentarem, durante a visita de campo, documentos que comprovavam adeclaração de interesse social para fins de reforma agrária do imóvel em questão(BRASIL, 2005). Em seguida, novo documento revoga essa medida (BRASIL,2006), ou seja, por um instante a área foi destinada para fins de reforma agráriae, em seguida, novamente perdida, a partir da impugnação vitoriosa elencadapelo proprietário do imóvel. No relato dos acampados, a posse da terra estevemuito próxima de acontecer (ou aconteceu, já que a medida foi divulgada peloINCRA), mas novamente voltaram à situação inicial.

A história de luta desse acampamento é um pouco diferenciada dasdemais, a começar pelo fato de que inicia com um grupo de pessoas conhecidas,por iniciativa própria, que ocuparam uma área e posteriormente é que foramincorporadas ao movimento social que as coordenava, no caso, a FETASE.

De acordo com os relatos, o imóvel requerido foi ocupado por essasfamílias, que passaram a plantar roças na área. Então, por ocasião do falecimentodo proprietário, a família solicitou ao coordenador do acampamento que “tomasseconta” da área. Em seguida, os acampados foram procurados pelo SindicatoMunicipal dos Trabalhadores Rurais, ocasião em que foi efetivado o cadastrode 117 famílias, com o objetivo de conseguir terras via reforma agrária.Entretanto, houve muitas desistências e hoje apenas 27 acampados permanecemno local.

Ao comentarem sobre as dificuldades da luta pela terra, os acampadosidentificam mais os fatores relacionados à produção, uma vez que nãovivenciaram os conflitos já mencionados nos demais acampamentos. Reclamamque não têm auxílio do governo para o plantio e, inclusive, que a falta de créditodificulta a sobrevivência na terra, já que no memento de contração de financia-mentos agrícolas devem apresentar garantias de pagamento, que, quase sempre,é a posse da terra.

Assim, ao analisar a história desse acampamento não se percebe, pelosmotivos explicitados, o engajamento no movimento social e nem a vivência doque seja, nos moldes apresentados, a luta pela terra em acampamento. Entretanto,apesar de estarem na terra há tantos anos, esses acampados não podem serconsiderados posseiros, pois, segundo a definição, posseiro detém a posse, masnão o título da terra, de forma mansa e pacífica. Neste caso, os proprietáriosreclamam a posse do imóvel em questão.

Reforma agrária: Sonho ou realidade?A realidade vivenciada nos acampamentos durante a pesquisa revela

dois lados igualmente importantes: a realidade da luta pela terra e as expectativase sonhos com relação à reforma agrária. Pode-se constatar que se não fossemalimentadas pelo sonho de possuir a terra certamente aquelas famílias não teriamcondições de suportar as situações diárias nos acampamentos.

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Para compreender o que representa o acesso à terra, buscou-se identificaros elementos-chave a que os acampados se reportaram com maior frequênciaem seus relatos. Desta forma, percebeu-se que a garantia do “pão de cada dia”a partir da “terra própria” e do “trabalhar para si” para garantir o “futuro dosfilhos” foram elementos determinantes para a permanência na luta pela terra.

Explica-se que o sonho da terra possui os significados representados,cuja análise é mais profunda ao se referir às condições materiais necessáriaspara a sobrevivência e subsistência desses trabalhadores.

Inicialmente, interpreta-se o “pão de cada dia” como sendo os alimentosbásicos que podem ser produzidos pelos agricultores, desde a mandioca, frutase hortaliças até os pequenos animais que podem criar e, assim, incrementar aalimentação diária. Refere-se ainda ao cultivo de roças e pastos para criação deanimais de maior porte (no caso, bois e vacas). Nesse sentido, depara-se comrelatos como os que seguem:

Quando tiver a terra, nós vamos trabalhar. Ter sua terrinha pratrabalhar não é bom, não!? Se o cara tem sua terra para plantara mandioca, criar umas “réis”, um porco e galinha e não terque trabalhar pros outros, ta bom demais (acampado 9).

As dificuldades são muitas, mas tem que esperar que um diasaia a terra pra gente trabalhar, porque os fazendeiros não que-rem dar suas terras pra ninguém, querem é arrendar. É precisotrabalhar no que é da gente, ter o pão certo (acampado 10).

Eu vou plantar batata, mandioca, coqueiro e arroz. O arroz é oprincipal pra mim, pois posso comer e posso vender (acampa-do 11).

Esta perspectiva está de acordo com a realidade da agricultura familiarbrasileira, segundo dados do Censo Agropecuário 2006, organizados peloMinistério do Desenvolvimento Agrário (MDA), que diz que a agriculturafamiliar é responsável por 87% da mandioca, 70% do feijão, 46% do milho,38% do café, 34% do arroz, 21% do trigo e 16% da soja produzida no País.Além disso, é importante fornecedora de proteína animal, com 58% do leite,50% das aves, 59% dos suínos e 30% dos bovinos advindos desta agricultura(MINISTÉRIO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO, 2006).

Em pesquisa encomendada pela Confederação Nacional da Agricultura(CNA), divulgada na mídia, apresentou-se a realidade dos assentamentosbrasileiros e concluiu que

[...] a criação de gado foi apontada como a maior atividadenesses assentamentos, registrada por 64% dos moradores. Emseguida vêm milho (55%), legumes e verduras (50%), frutas(50%), criação de outros animais (46%), feijão (38%), arroz(28%), mandioca (28%), cana-de-açúcar (12%) e soja (5%).(CNA..., 2009, online).

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Ao analisar essa diversidade, nessa mesma reportagem, a senadora epresidente da CNA, Kátia Abreu, afirma que

Trata-se de culturas de baixa rentabilidade por hectare. NaEuropa, a pequena propriedade se especializa: produz queijo,vinho, etc. Aqui não. São ‘Bombril’, fazem de tudo. Aqui seproduz um pouco de cada coisa [...] e aí o resultado é pífio. Oideal seria se, enquanto um produtor se especializasse em lei-te, o outro dominasse a cultura do milho, por exemplo. Assim,haveria ganho de escala e a produção nos assentamentos po-deria se tornar mais rentável. Mas é que nem nas ‘Casas Bahia’,encontra-se de tudo. Eles não têm escala, regularidade de pro-dução e, portanto, não têm mercado (CNA..., 2009, online).

Essa afirmação tem dois aspectos que devem ser ressaltados. Um é afalta de planejamento e eficiência nas políticas públicas. O outro, o risco daespecialização produtiva e a vulnerabilidade a que os agricultores assentadosse expõem nesse caso, ampliando o grau de sujeição ao mercado.

O primeiro aspecto remete à necessidade de um planejamento, que deveser observado desde o início do processo de desapropriação, sendo crucial aanálise da viabilidade econômica desses imóveis desapropriados, baseando-senum enfoque técnico criterioso, e não nas pressões dos movimentos sociais, nanecessidade de alcançar as metas propostas e no apelo social da política dereforma agrária.

Na fase de implantação dos PAs, é imprescindível a realização dozoneamento geoambiental dos imóveis, através de diagnósticos dos meios físico,biótico e socioeconômico na área desapropriada, permitindo, assim, avaliar acapacidade agroecológica do sistema e realizar um planejamento ambiental(SHIMBO et al, 2007). Sobre esta metodologia, Shimbo e Jiménez-Rueda (2007,p. 115), comentam que

[...] os estudos sobre diagnósticos ambientais que visam o pla-nejamento e sustentabilidade ambiental em projetos da refor-ma agrária são poucos ou apresentam deficiências em suasanálises. A ausência desses estudos e de orientações técnicaspode aumentar os impactos ambientais negativos, como situa-ções de erosão, degradação do solo, poluição e assoreamentodos corpos d’água, prejuízos à biodiversidade, o que pode in-terferir significativamente na produtividade, renda e qualida-de de vida das famílias assentadas.

Através desses diagnósticos, pode-se fazer uma estratificaçãoagroambiental destes imóveis,

[...] já que a agricultura familiar se baseia no uso adaptado ediversificado das diversas unidades ecogeográficas, ou estra-tos/unidades da paisagem, e essa característica é compatível e

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necessária para a construção de sistemas sustentáveis de pro-dução, é na identificação dessas unidades/estratos que se en-contra a base para um planejamento agroambientalespacializado que vise à exploração racional de uma área a serdestinada à criação de um PA (SILVA; COELHO; ALVES FI-LHO, 2006, p. 5).

Em Sergipe, observou-se que o INCRA, até um passado não muitodistante, estava sempre a reboque dos movimentos sociais, sempre a um passoatrás, ou seja, no planejamento do projeto de parcelamento dos PAs muitasvezes apenas ratificava o que já estava materializado no campo, já que osassentados, cansados de esperar, faziam por si só a divisão dos lotes, nãorespeitando as áreas de Preservação Permanente e Reserva Legal, nem tampoucouma divisão quantitativa e, ou, qualitativa desses lotes. Como exemplo, tem-seo PA Terra Prometida, em Propriá, onde as 12 famílias assentadas, temerosasem não poder acessar o Programa Nacional de Fortalecimento da AgriculturaFamiliar (PRONAF) A, pagaram a uma empresa particular a demarcação e oparcelamento do PA, apesar de esta função ser do INCRA. Atualmente, tem-seum esforço desta Autarquia em se antecipar, realizando reuniões com as famíliasrecém-assentadas, já demarcando as áreas de proteção ambiental e discutindoas propostas de parcelamento (anteprojeto de demarcação do PA).

Relata-se, ainda, o aumento da capacidade de assentamento proposto pelostécnicos do INCRA, sem nenhum contraponto técnico, apenas baseado no viéspolítico, sendo referendado pelo Superintendente Regional. Têm-se inúmerosexemplos desta prática, como o PA Novo Marimbondo, em Tobias Barreto, ondeo número de famílias assentadas era pouco mais de 38 e passou para 76.

Assim, de nada adianta desapropriar milhares de hectares de terra senão houver um planejamento desses ambientes e o aporte necessário, atravésde políticas públicas, para implementar medidas que visem o desenvolvimentodesses PAs.

Com relação à especialização da produção do assentado da reformaagrária, percebe-se que a diversificação da produção familiar serve como medidade precaução, tanto contra as variações de preços de produtos quanto dos insumosnecessários para produzi-los. Além disso, tem-se o aspecto da segurançaalimentar, o que pode ser visto nos assentamentos rurais, através aferição darenda proveniente do autoconsumo (DUVAL et al, 2008).

Segundo Santana (2009, p. 1), a diversificação rural/agrícola poderá:[...] diminuir os riscos de se ter apenas uma atividade comoprincipal fonte de renda e manutenção familiar. Encarada comoum ato coletivo enquadrador de um processo de revitalizaçãosocial, econômica e ambiental, a diversificação constitui umadas opções estratégicas na política do desenvolvimento rural,

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em particular dos territórios rurais mais afetados pelo declíniode determinadas atividades agrícolas.

Assim, acredita-se que é importante que o assentado se especialize, apartir das possibilidades da região6, como no Alto Sertão (bacia leiteira), aexemplo do PA Barra da Onça (Poço Redondo), ou no Sertão Ocidental (produçãode milho), como os PAs “Oito de Outubro” (Simão Dias), “Edmilson Oliveira”(Carira) e “Santa Maria da Lage” (Poço Verde), destaques na produção de milho,sendo o primeiro conhecido como um dos maiores produtores de abóbora doEstado. Mas que não se não abandone a produção de produtos básicos para aalimentação e sobrevivência do seu núcleo familiar.

A propriedade da terra ou “terra própria”, quando mencionada pelosacampados, está diretamente associada à condição de libertação ou “trabalharpara si”, com relação aos proprietários das terras em que trabalham comoparceiros, arrendatários, trabalhadores rurais assalariados temporários, conformediscutido anteriormente. O significado é de libertação, uma vez que, sendosenhores de suas próprias terras, não terão mais que se sujeitar ao trabalho emterras alheias.

No entanto, a conquista da terra não é o fim da luta, é sempre o pontode partida. Os sem-terra foram aprendendo na caminhada que quem luta só porterra tem na própria terra o seu fim (BATISTA, 2005).

E como o último elemento da análise sobre as perspectivas dosacampados quanto à reforma agrária está a questão da sucessão hereditária naagricultura de base familiar, que pode ser aqui interpretada como o “garantir ofuturo dos filhos”. Numa análise inicial, esta perspectiva de garantir o futurodos filhos se refere às condições não apenas de garantir a sua sobrevivência eeducação, de preferência repassando os valores e experiências relacionadas àvida de agricultor, como também as condições de garantir que os filhos possamrealizar a sucessão hereditária, ou seja, seguir os caminhos dos pais, a partir dodesmembramento do lote de terra, normalmente quando os filhos se casam econstituem família. Entretanto, ao questionar os acampados sobre o desejo deque os seus filhos permanecessem na terra, no trabalho da agricultura, os dadosnão confirmam as hipóteses sobre o interesse da sucessão hereditária

Conforme os dados apresentados, o desejo dos acampados que seusfilhos sejam agricultores não é unânime. No acampamento Mochila, verificou-se que 53,90% não têm este desejo. No acampamento Amigos para Sempre,esse porcentual é maior (61%), seguido de 34,10% que não desejam este futuropara os filhos e 4,90% que não souberam responder a questão. No acampamentoD. José Brandão, 41,20%, desejam que os filhos sejam agricultores, contra6 O MDA vem desenvolvendo, nos territórios reconhecidos, Planos do Território para o DesenvolvimentoRural Sustentável (PTDRS), onde se busca traçar um panorama ambiental, social e econômico destasregiões. Em Sergipe já foram elaborados dois PTDRS, o do Alto Sertão e do Sertão Ocidental.

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54,90% que não querem esse futuro para o filho, seguidos ainda, de 3,9% quenão souberam responder. Nesta análise, percebe-se que um porcentualsignificativo não deseja que os filhos sejam agricultores como eles, o que deixadúvidas sobre o futuro da agricultura, já que os filhos, se depender da opçãodos pais, não serão agricultores. Quem vai trabalhar na terra?

Ao aprofundar esta questão com os acampados, verificou-se que o desejode que os filhos não sejam agricultores está relacionado à situação de luta esofrimento que estão vivenciando na busca pela terra e considerando as dificuldadespara se manterem depois na terra. Consequentemente, não querem que os filhosvivenciem isto também, buscando assim a educação dos filhos como meio paramudarem de vida. Ou seja, o desejo desses pais e que os filhos possam estudar e,assim, conquistar condições melhores de vida do que as que eles tiveram.

Percebe-se que as mudanças de vida esperadas pela reforma agrária porparte dos acampados estão diretamente relacionadas à sobrevivência e liberdadede trabalho não assalariado em terras de outros. Almejam melhoria da qualidadede vida a partir da reforma agrária, que na sua concepção está relacionada a tercondições para sobreviver a partir da terra, produzir seu alimento. Sobre esseaspecto os acampados relatam:

Vai mudar muita coisa com a reforma agrária [...] vou traba-lhar no meu pedaço de terra, não precisa se “esbagaçar” nasterras dos outros (acampado 12).

A gente vai ter onde plantar, vai colher e depois vai desfrutar eter uma vida melhor do que a gente tem (acampado 13).

Vai diminuir a preocupação porque todos os dias quando ama-nhecer o dia já sei para onde eu vou e a partir de um certotempo terei o alimento pra comer (acampado 14).

Nessa perspectiva, a qualidade de vida é associada pelos acampadoscomo as condições necessárias para sobreviver. Ou seja, pela condição em quese encontram, a concepção de qualidade de vida está diretamente associada àvida após a conquista da terra, que é o poder plantar e colher, enfim, podergarantir o sustento. Nesse sentido os acampados afirmam que

Qualidade de vida é a pessoa ter onde trabalhar e tirar o seusustento. (acampado 15).

Eu não sonho em ser rico, vida boa era poder dar o que meusfilhos precisam e ter a barriga cheia (acampado 16).

Vida boa é ter de onde tirar o sustento para melhorar nossasvidas através de nossas terras (acampado 17)

Ao serem questionados sobre a vida após a reforma agrária, se vãoconseguir sobreviver apenas da terra, a maioria dos acampados acredita que

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sim (“Mochila”, 92,3%; “Amigos para Sempre”, 80%; e “D. José Brandão deCastro”, 60,8% dos acampados). Entretanto, consideram a necessidade dosincentivos e de apoio governamental para que sejam proporcionadas as condiçõesadequadas para que possam sobreviver apenas da terra. Os acampadosmencionam não apenas o acesso à terra, mas aos créditos e demais incentivosda reforma agrária, demonstrando assim que vivenciam os obstáculos inerentesao processo de luta pela terra, mas possuem conhecimento de que esta é apenasuma parte da luta, pois permanecer nos assentamentos será ainda uma nova etapaa ser vencida.

Considerações finaisAs famílias que lutam pela terra nos acampamentos vivenciam uma

realidade que nem sequer pode ser imaginada por muitos, mas que impactaaqueles que a conhecem. Um olhar sobre a forma acampamento permite a suacompreensão como sendo o lugar da materialização da luta pela terra.

É nesse lugar que as famílias constroem seus próprios códigos, suasnormas de convívio e suas estratégias de sobrevivência; que constroem sonhose alimentam esperanças de que um dia a terra prometida há de ser conquistada.Os desafios vivenciados são vários, a exemplo das condições precárias de vidadebaixo da lona, dos riscos de acidentes à beira da rodovia, além das ameaças eda pressão daqueles que insistem em serem os únicos donos da terra: osproprietários e os grileiros de terras.

Os motivos que as fazem persistir na luta pela terra, mesmo diante dasadversidades, o que pode ser explicado a partir da concepção e das perspectivasquanto à reforma agrária. É o sonho do acesso à terra, com seus significadosobjetivos de garantia da sobrevivência e subjetivos, que envolvem a liberdadede trabalhar para si mesmo, em sua própria terra, que motiva os acampados eexplica a persistência na luta pela terra. Entretanto, elas vêem na oportunidadedo acesso à educação a saída para que os filhos possam ter uma vida “melhor”do que têm agora, lutando por um lote de terra. De certa forma, essas famíliastêm em mente que a reforma agrária e o acesso à terra são apenas o ponto departida, sendo necessária a continuidade da luta para garantir sua permanênciana terra.

Referências

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BRASIL. Decreto de 10 de março de 2005. Declara de interesse social, parafins de reforma agrária, os imóveis rurais que menciona, e dá outrasprovidências. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 11mar. 2005. Seção 1, n. 48, p. 3.

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NEM TUDO QUE SE PLANTA DÁ! Um esboçohistórico-social sobre a situação camponesa e agrária noBrasil

Fábio Fraga dos Santos1

Giszelda Khenia de Oliveira2

Jaqueline de Melo Barros3

Luana Braga4

Reginaldo Pereira França Junior5

As políticas públicas para o desenvolvimento rural no Brasil têm sido muitodiversificadas e caracterizadas por serem descontínuas e fragmentadas do ponto devista político-administrativo. Esse é um fato que precisa ser abordado paracompreender os reflexos e impactos da questão agrária na esfera das desigualdadessociais. Torna-se importante estudar essa temática também para ampliar acompreensão do papel dos atores sociais nas localidades e avaliar a dinâmica dosgrupos de famílias envolvidas dentro deste quadro de instabilidades políticas.

As transformações recentes nas relações entre agricultores familiares,ocasionadas entre outros fatores, pelas políticas públicas, configuram um vastoprocesso de possíveis configurações no meio rural. Essas transformações sãorealizadas também por meio do surgimento de atores sociais, que por fimpromovem a construção de dinâmicas produtivas e tecnológicas.

No bojo dessas análises, se insere o assistente social, profissional esteque deve estimular as análises sobre a questão agrária no Brasil no intuito depromover uma compreensão real da conjuntura rural, a fim de estabelecerintervenções concretas, centradas em seu projeto ético-político profissional. Destemodo, este artigo tem como intuito apontar ferramentas para análises da conjunturaatual e suas relações com a questão agrária no Brasil a partir do processo históricode estruturação das políticas agrárias e fundiárias, além de refletir sobre aspossibilidades de intervenção do assistente social no contexto rural brasileiro.1 Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná – UFPR e Graduado em CiênciasSociais na Universidade Estadual de Londrina – UEL. Atua como Professor convidado de Sociologiae Teoria Política no Curso de Serviço Social da UNIUBE. E-mail : [email protected] Formada em Serviço Social pela Faculdade de Mantena - FAMA. Atua como assistente social daPrefeitura Municipal de Mantena - MG. E-mail: [email protected] Assistente Social graduada pela Universidade Federal Fluminense – UFF/ RJ. Mestre em ServiçoSocial pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RJ. Coordenadora e Docentedo Curso de Serviço Social da Faculdade Flama. E-mail: [email protected] Assistente Social graduada pela Universidade de Uberaba – UNIUBE, especialista em ServiçoSocial, Direitos Sociais e Competências Profissionais pela Universidade de Brasília. Docente docurso de Serviço Social da Universidade de Uberaba. Assistente Social do Sanatório Espírita deUberaba. E-mail: [email protected] Assistente Social graduado pela Universidade de Uberaba – UNIUBE, mestrando em Serviço Socialpela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor do curso de Serviço Social da UNIUBEe assistente social do Sanatório Espírita de Uberaba. E-mail: [email protected]

CAPITULO 10

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E, para isso, nos propomos identificar o processo de formação fundiáriae agrária no Brasil e suas implicações no processo de transformação da sociedadebrasileira; além de analisar a estruturação das políticas agrárias e o seu papel natransformação social, com vistas a estabelecer as relações entre as mudanças eas influências do sistema produtivo; buscando compreender as políticas públicassociais existentes no Brasil e mecanismos de alcance ao morador da zona rural;e analisar o efeito das políticas sociais na vida das pessoas que são por elasatendidas e a atual necessidade dos cidadãos no contexto rural.

Estrutura Agrária no BrasilO Estatuto da Terra foi formulado num período de grande agitação social

e política, a reforma agrária tornou-se uma das demandas, com maioresrepercussões junto a amplos setores da sociedade, considerando principalmenteo contexto do Estado e da Sociedade Civil.

O surgimento do Estatuto da Terra, criado em 30 de novembrode 1964 constitui-se fundamentalmente como instrumento deestímulo aos interesses que se consolidavam no âmbito doEstado e que favoreciam as classes proprietárias edirigentes. Frente às novas e constantes (re)configuraçõespolíticas e as relações econômicas, com destaque para o pro-cesso de modernização da agricultura, a defesa da reformaagrária foi sendo substituída por uma outra noção que passoua ser privilegiada no Estatuto da Terra, a de modernização.Assim, a mudança de rumo sobre o debate da reforma agrária,não passa despercebida e Andrade (1980) aponta o surgimentode novos parâmetros relativos à questão agrária. Ao inclinar-se em outra direção e consistir na base da orientação calcadaem aumentos de produtividade em detrimento do acesso e per-manência na terra por parte dos trabalhadores rurais, o Estatu-to da Terra explicitava sua verdadeira finalidade, isto é, antesde ser um instrumento destinado à realização da reforma agrá-ria, consistia em um instrumento de controle das tensões soci-ais e dos conflitos gerados pelo processo de crescente expro-priação e concentração da propriedade privada, aqui lembradacomo uma das marcas principais do sistema de produção vi-gente. O Estatuto, desta forma, apresentava uma resposta àslutas dos trabalhadores rurais, mas se consubstanciava numaproposta conciliatória da burguesia industrial e a agrária paraacelerar as transformações econômicas e produtivas no agronacional. (SANTOS, 2005, p. 34).

A política de colonização dirigida contemplada no Estatuto da Terraserviu como instrumento que dificultava a realização de qualquer iniciativavinculada à reforma agrária. Na realidade, a colonização dirigida substituiu oconceito de Reforma Agrária. Esta política transformou-se numa das principais

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Questão Agrária, Saúde do Trabalhador e os Desafios Para o Século XXI 143

iniciativas de cunho ídeo-político com o intuito de desarticular a luta em favorde uma reforma agrária.

Em 1985, foi elaborado o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA)pelo governo do Presidente José Sarney, previsto no Estatuto da Terra e commetas extremamente ambiciosas: assentamento de um milhão e 400 mil famíliasao longo de cinco anos. No final de cinco anos, porém, foram assentadas cercade 90.000, apenas. Os números demonstram a fragilidade do Plano que, dirigidopelo Estado, não decolou devido ao pesado lobby da bancada ruralista.

O PNRA visava dar efetiva aplicação aos dispositivos do Es-tatuto da Terra (Lei nº 4.504/64), no que diz respeito à melhordistribuição da terra, fixando metas e prazos e buscando darviabilidade prática ao processo de reforma agrária, além deindicar como programas complementares ao processo de refor-ma agrária a regularização fundiária, a colonização e a tributa-ção da terra. O governo se encarregou de assinar e publicar oDecreto 91.766, no final do ano de 1985, aprovando o Plano jábem descaracterizado em relação à sua versão original, a pontodo Presidente do INCRA (Instituto Nacional de Colonização eReforma Agrária), José Gomes da Silva, demitir-se do cargopor entender que a reforma agrária estava inviabilizada. Estadescaracterização resultou, principalmente, das pressões da UDR(União Democrática Ruralista), nascida em Goiás e rapidamen-te organizada em muitos Estados, contrapondo-se à possívelrealização da reforma agrária prevista na legislação desde o Es-tatuto da Terra (SANTOS, 2005, p. 37).

Ao longo dos anos, a discussão da estrutura agrária foi cravejada porquestões ideológicas, econômicas, sociais e políticas, que acabaram por situá-la em um complexo jogo, que somente serviu para sua paulatina erosão. Umexemplo deste processo de erosão foi a paralisação completa do projeto peloGoverno Collor de Melo, pelo alinhamento à política liberal implantada na suadesastrosa gestão. O projeto só é retomado tempos depois, quando seu sucessor,Itamar Franco, pressionado pelos movimentos sociais, reinicia um tímidoprocesso de assentamento, dentro de uma condição emergencial,

Vejamos o posicionamento de Santos (2005, p. 37):No governo de Fernando Collor (1990-1992), o programa deassentamentos foi paralisado, cabendo ressaltar que, nesseperíodo, não houve nenhuma desapropriação de terra por inte-resse social para fins de reforma agrária. Como resultado, ocurto período de seu governo caracterizou-se pelo aumento daviolência no campo, inclusive contra as representações dostrabalhadores.Já no governo de Itamar Franco (1992-1994)retomaram-se os projetos de reforma agrária, sendo aprovadoum programa emergencial para o assentamento de 80 mil fa-

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mílias, porém só foi possível atender 23 mil com a implanta-ção de 152 projetos, numa área de um milhão 229 mil hecta-res. No final de 1994, após 30 anos da promulgação do Esta-tuto da Terra, o total de famílias beneficiadas pelo governoFederal e pelos órgãos estaduais de terra, em projetos de refor-ma agrária e de colonização, foi da ordem de 300 mil, estima-tiva sujeita a correções, dada a diversidade de critérios e a fal-ta de recenseamento no período 1964-1994, segundo informa-ções do Ministério do Desenvolvimento Agrário.

Enquanto isso, os primeiros anos do governo de Fernando HenriqueCardoso (1994-2001) culminam num plano macroeconômico, com sucessivosdéficits na balança comercial, como resultado em boa medida da maior velocidadede crescimento das importações, em detrimento das exportações agrícolas.

Não é por acaso que a agricultura serviu de âncora verde aoplano de estabilização, inviabilizando muitos produtores, emespecial agricultores familiares ou pequenos produtores. Osdados de censo agropecuário 1995/96 mostram que em dez anoshouve queda de 5 milhões de postos de trabalho na agricultura[...].Esses dados também mostram a consolidação da tendênciaa concentração fundiária e a aceleração do processo de expul-são dos trabalhadores rurais (CARVALHO, 2001, p. 193).

De acordo com alguns analistas, o período de 1995 a 1998, a ReformaAgrária emergia nos planos do governo como reforma de desenvolvimento daagricultura familiar, solução do problema da segurança alimentar e redução dosconflitos agrários. Mas, o projeto se limitou a uma política compensatória, nãoobjetivando alterar o modelo de desenvolvimento da agricultura.

A meta fixada de assentamentos para o período supracitado foi de 280mil famílias, representando apenas 20% de um milhão e quatrocentas famíliasprevistos no PNRA, considerando, assim, uma redução brutal, resultado dapolítica neoliberal chancelada por Fernando Henrique Cardoso (FHC). Ogoverno FHC lançou o Banco da Terra e, seguindo a lógica neoliberal na questãoagrária, transformou a política agrária em um mero negócio de mercado, emque os grandes latifundiários, mesmo os improdutivos, receberiam pagamentoà vista pelas parcelas de terras que estivessem dispostos a ceder gentilmente aoEstado.

De acordo Relatório realizado pela Rede Social de Justiça e DireitosHumanos (2002) o então presidente FHC afirmou que em 2001 que

[...] a concentração da propriedade da terra no Brasil teria di-minuído e que estaria ocorrendo uma verdadeira revoluçãodemocrática, produtiva e pacificadora no campo. Entre 1995 e2000, seu governo teria assentado 482 mil famílias, ou seja,cerca de 2,4 milhões de pessoas. Neste período, 18 milhões de

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hectares teriam passado das mãos de latifundiários para a depequenos proprietários. (DOMINGOS, online).6

Em sua concepção, ele teria concretizado a maior reforma agrária dahistória do país. Revolução democrática tão bem sucedida que, em Abril de 1996,ocorre o maior massacre a trabalhadores sem-terra na cidade de Eldorado dosCarajás, no Sul do Estado do Pará. A tão propalada “revolução democrática” deFHC, por meio do Banco da terra, em que seus beneficiários tão logo adquirissema terra, constituía-se em um artifício para desobrigar o poder público no que dizrespeito à responsabilidade de viabilizar a transformação dos assentados emprodutores independentes e economicamente consolidados, sem assistência técnicae diante de uma política agrícola desfavorável, os beneficiários dificilmentepoderão saldar suas dívidas. Já no governo Lula, a esperança dos movimentossociais ligados ao campo era de reversão da implementação do mercado de terras,e que a reforma agrária estaria no centro da agenda política, como forma de geraçãode emprego, de garantia de soberania alimentar e como base de um novo modelode desenvolvimento. Mas, o que ocorreu na verdade, foi a continuidade daspolíticas neoliberais do governo FHC, políticas estas voltadas para as vontadesdo Banco Mundial. Assim, observa-se que a questão agrária ainda não está calcadano cerne da questão política, pois trata-se de um assunto temido pelas elites eevitado pelos governos (DOMINGOS, online).

Com a introdução das máquinas no meio rural, a condição dos pequenosproprietários de terra se tornou ainda mais complexa, pois o processo demecanização do campo promoveu um profundo desgaste nas relações trabalhistas,sob a ótica da redução do trabalho humano no campo, por exemplo. Com esteprocesso, o Estado priorizou o grande capital, com subsídios para o agronegócio(internacional) em detrimento das políticas para o campo, que beneficiaram ospequenos produtores e, assim, a reforma agrária ficou cada vez mais distante danossa realidade. Este processo foi profundamente injusto para duas classesdistintas: os grandes produtores e os camponeses que viviam da agricultura familiar.

O desenvolvimento do Capitalismo e a modernização no campo levaramà concentração de riquezas e produção nas mãos de uma pequena parte (oslatifundiários) e de outro lado, a concentração da miséria que atingiusobremaneira os pequenos agricultores, forçando-os ao abandono de suas terrase à conseqüente migração para os grandes centros industriais. Sob a égide demandatários internacionais, a modernização do campo no Brasil, traduziu osdesejos da grande indústria capitalista, sob a falaciosa proposta de situar o Brasilcomo celeiro do mundo. À medida que o campo torna-se uma empresa, ospequenos produtores amargaram uma acentuada exclusão do processo e comisso, o acirramento da questão social no campo.

6 Trecho extraído do Relatório de 2002

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Os acontecimentos das duas últimas décadas só confirmam a existênciade uma guerra não declarada entre os latifundiários e os representantes doscamponeses. Nos últimos anos, o número de assassinatos de líderes sindicais eagentes pastorais juntamente com trabalhadores da terra, tornou-se umacontecimento corriqueiro. “Centenas de pessoas vêm sendo vitimadas pelaviolência dos detentores do monopólio da terra e do Capital acobertados porinstâncias do poder constituído” (GARCIA JUNIOR, 1999, p. 186).

A ausência de políticas públicas abrangentes e a desatenção àsnecessidades dos pequenos agricultores e posseiros têm levado a uma correlaçãode forças dentro do campo. De um lado, os representantes do governo, como oInstituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e de outro, osgrandes detentores de terra. Estes últimos, geralmente melhor amparados pelasleis que os próprios órgãos governamentais. E no centro de toda essa disputa depoder, os trabalhadores rurais e os pequenos produtores de terra que sãoenvolvidos em processos de litígio entre eles, o governo e o grande capital.

Questões Contemporâneas: Agricultura Familiar e Movimentos Sociais noCampo

A agricultura familiar no Brasil compõe um universo numeri-camente significativo e bastante diverso de famílias rurais paraas quais a agricultura constitui importante componente de suareprodução econômica e principal referência de identidadesocial. Ela enfrenta problemas de oportunidades desiguais emsua história de acesso e exploração da terra e de apropriaçãodos frutos de seu trabalho. Não obstante, pode-se afirmar queo Brasil é um país onde ainda se pode atribuir um papel rele-vante às famílias rurais e à agricultura familiar na construçãode uma sociedade socialmente eqüitativa e ambientalmentesustentável. (MALUF, 2006, p. 38-39).

No que diz respeito ao acesso ao crédito agrícola, também há uma grandediferença entre os agricultores familiares e os patronais, sendo que os primeiros,apesar de representarem mais de 85% do total de estabelecimentos, acessamapenas 25% do financiamento destinado à agricultura (INCRA, 1999).

A agricultura familiar brasileira é reconhecida por sua capacidade degerar postos de trabalho, sendo responsável por mais da metade dos contratostemporários de trabalho, e vem apresentando taxas de crescimento superiores àmédia nacional, contudo, os créditos continuam sendo atribuídos à grandeagricultura exportadora. É no contexto da minimização do processo excludenteque ocorre dentro do campo, que o conceito de “agricultura familiar” se assenta,sob o escopo da redistribuição e benefícios aos pequenos e médios produtores.

No Brasil, classificam-se como pobres as famílias com renda per capitainferior a meio salário mínimo por mês e como indigentes, aquelas com renda

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per capita inferior a um quarto do salário do salário mínimo. A desigualdadesocial é medida pelos indicadores de renda, mas este é um procedimentocomplexo, devido aos vários métodos para estimar o número potencial de pessoasvulneráveis à fome.

Ao criar o Programa Fome Zero, o governo recorreu ao conceito de“linha de pobreza extrema”, adotado pelo Banco Mundial, assim, se estimouque houvesse mais de quarenta e quatro milhões de pessoas em situação devulnerabilidade à fome no Brasil. Em 1990, a estimativa era de que quase 9%da população brasileira viviam abaixo da linha de pobreza no país, fazendocom que o governo assumisse um compromisso com as chamadas “Metas doMilênio” com o objetivo de reduzir esse percentual pela metade, em 25 anos,sendo que em 2004, ele já era 4,7%.

Os programas de Previdência e Assistência Social contribuíram para aqueda desse percentual. Os maiores índices de pobreza no Brasil se concentramna região Nordeste, sendo que além de ser geográfica, a desigualdade tambémtem cor: ela é preta e parda. O salário mínimo brasileiro está muito aquém dovalor que deveria estar para suprir as necessidades básicas do trabalhador, egarantir os direitos prescritos na Constituição Federal de 1988.

A melhora nas condições de saúde e alimentação das criançasbrasileiras não se apresenta de forma homogênea, se conside-rar os vários indicadores [...] e as diferentes regiões, [sendo][...] que o problema da desnutrição crônica é mais grave nasregiões Norte e Nordeste e, também na zona rural. [...] aprevalência da desnutrição infantil crônica no Brasil (10%) équatro vezes maior que a prevalência esperada em populaçõessaudáveis (2,5%).

A maioria dos programas federais é, atualmente, gerida pelosgovernos estaduais e municipais através de convênios e parceri-as com o Governo Federal. Essa descentralização é fruto da re-forma institucional do Estado brasileiro, iniciada nos anos 80,com implicações nas ações governamentais de combate à fomee à pobreza que visam atuar sobre as causas das desigualdadesnacionais, potencializando as ações intra-governamentais e comparticipação de organizações da sociedade civil.

Há um conjunto amplo e variado de ações que vão desde ageração de emprego e renda, redução do trabalho infantil, de-senvolvimento agrário, ações sócio-educativas e transferênciade renda. A amplitude e eficácia dessas ações e programas foiafetada, [...], por dois fatores principais [...] constrangimentosimpostos pela política macroeconômica e a segmentação e dis-persão das ações setoriais (MALUF; ZIMMERMANN, 2005,p. 8-10).

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Por meio de transferências diretas de renda para as famílias mais pobres,de políticas estruturais de geração de emprego e renda, de políticas específicasde combate à fome e de promoção do acesso aos alimentos e de políticasemergenciais para os grupos mais vulneráveis, o Programa Fome Zero, dogoverno Lula, procura intervir nas causas da fome.

Referente à política de transferência de renda,[...] o Programa Bolsa Família atendeu em 2004 cerca de seismilhões e meio de famílias em situações de pobreza, conce-dendo um benefício médio mensal de setenta e cinco reais,calculando um investimento de quase seis bilhões de reais.Este programa é implementado pelo Ministério do Desenvol-vimento Social e Combate à Fome, associando ao benefíciofinanceiro o acesso a direitos sociais básicos, como saúde, ali-mentação, educação e Assistência Social. O benefício é trans-ferido por meio de um cartão magnético único, prioritariamentepara as mulheres, por serem as famílias geralmente chefiadaspor elas (BRASIL). Os programas do Ministério do Desenvol-vimento Agrário e o processo de Reforma Agrária vêm sendoacelerados, provendo o benefício de mais de um milhão defamílias com a titulação de terras. O PRONAF foi ampliadoem duas frentes, disponibilizando maiores recursos e novosmecanismos de comercialização dos produtos agrícolas. Em2003, foi criado o Programa de Aquisição de Alimentos daAgricultura Familiar, através de compra direta, compra anteci-pada e compra antecipada especial, incentivando a agriculturafamiliar por meio de remuneração adequada, baseada em pre-ços diferenciados, introduzindo a garantia de compra do pro-duto do agricultor, associada à destinação dos alimentos ad-quiridos para programas de Segurança Alimentar Nutricional,e também, para recompor estoques de produtos da cesta bási-ca (BRASIL, 2005).

Para participar dessa iniciativa, os agricultores familiares necessitamde um nível de organização, seja ela em cooperativas, associações ou gruposinformais. Além das políticas agrícolas convencionais, instituiu-se uma açãointer-ministerial, com o objetivo de canalizar para a produção de base familiar,boa parte da ampliação na demanda de alimentos gerada pelos programas detransferência de renda e pelas compras governamentais de alimentos pararecompor estoques ou para a distribuição de cestas básicas emergenciais.

Espaço Rural como ambiente de transformação socialSabemos que processo de formação territorial no Brasil sempre foi

vinculado aos interesses do grande capital e das elites. As conseqüências dessemodelo resultaram no aumento da pobreza urbana (conseqüências do expressivoêxodo rural), além de outros fatores como o aumento dos conflitos agrários; a

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violência institucionalizada (exploração da mão de obra, ex. bóias-frias), ovolume exagerado de a concentração de terra e de renda, entre outros, comoaponta Martins (1994).

Esses reflexos, resultados dessas transformações no meio rural, as quaisefetivamente geraram uma massa de excluídos que não tem lugar nem vida,sendo absorvida por sub-empregos e por condições precárias e sem acesso aosdireitos trabalhistas, previdenciários e sociais, configurando-se em uma situaçãoque não está de acordo com às previstas no Artigo 7º da Constituição Federal de1988, que assegura aos trabalhadores as garantias necessárias para a mínimacondição de estado de dignidade.

Em decorrência do processo de transformação do meio rural e suasimplicações sociais, surgiram movimentos de luta e questionamento sobre aestrutura agrária no Brasil. Destaca-se atualmente, duas organizações detrabalhadores rurais que lutam por melhores condições de trabalho no campo epelo acesso à terra, a saber: a Confederação Nacional do Trabalhadores naAgricultura (CONTAG) e o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST).

De acordo com as análises de Touraine (1999), o movimento socialtornou-se um forte instrumento de construção de uma sociedade democrática.Na luta contra o surgimento de um poder absoluto e apontou que a ação dosmovimentos sociais é capaz de estabelecer o reino da igualdade, ou seja, dereduzir ou de abolir as desigualdades sociais.

O espaço rural, assim como o urbano, tornou-se uma forma de resistênciae de criação de espaços de manobra, de construção de uma autonomiagradualmente construída e imprescindível para o projeto de transformação social.

No Brasil, apesar do avanço alcançado na área social nos últimos anos,ainda existe uma série de desigualdades sócio-econômicas que permeiam a vidados brasileiros em geral. Discutiremos alguns dessas expressões, e como semanifestam no espaço rural.

O desemprego afeta milhões de brasileiros, embora com o crescimentoda economia, essa taxa venha diminuindo gradativamente, esse é um indicadorque ainda preocupa. No campo a realidade não é diferente, pois a falta de estruturapara manter o homem no campo é alarmante. A ausência ou insuficiência deempregos “expulsa” o agricultor para os grandes centros, gerando uma série deexpressões da questão social.

A maioria dos postos de trabalhos são esporádicos e informais, nãohavendo contribuição com sindicato ou Instituto Nacional de Seguro Social(INSS), e consequentemente, nenhuma proteção contra desemprego involuntárioou doença. Uma alternativa para garantir uma seguridade social mínima épotencializando a reforma agrária e inserindo os trabalhadores rurais nosprogramas de crédito fundiário e agrário, como apontam analistas econômicose sociais (NORDER, 2004). Outra questão de relevância é a violência e a

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criminalidade, que apresenta dados crescentes a cada ano. Essa expressão daquestão social afeta desde as grandes metrópoles até as pequenas comunidadesrurais. Conforme citado no primeiro tópico, a violência no campo é inversamenteproporcional ao investimento em reforma agrária.

A questão da saúde pública no Brasil é outro ponto de ordem públicaque aflige a população nacional. Sabemos que a Constituição de 1988 foimarcada por avanços no sentido da ampliação e das garantias dos direitos decidadania, tais como a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), no entanto,observamos que esses avanços não acontecem de forma linear. Essa questão seagrava no meio rural, pois no campo não existe a menor estrutura para os cuidadosde saúde. Em algumas comunidades foram instaladas unidades de Programa deSaúde da Família (PSF), mas essas apresentam limites ao atendimento. E adistância geográfica dos hospitais, as condições das estradas, as dificuldadesde acesso ao transporte.

Ainda podemos citar a falta de acesso à educação como uma expressãoda questão social que afeta a população brasileira. De acordo com Bof eMassuquetti (2006), a ultima década foi de uma considerável melhoria comrelação ao acesso às escolas, cerca de 96% das crianças de 7 a 14 anos estãomatriculadas. No entanto essa perspectiva é geral (meio rural e urbano) e aindase encontra com restrições no que se refere a qualidade e conclusão do ensinofundamental e médio. Portanto, vários estudos apontam que o difícil acesso aoespaço rural faz desse ambiente o lugar com os mais baixos índices deescolaridade no Brasil (BOF, 2006). Segundo dados do INCRA, apesar daurbanização intensa nas últimas décadas, ainda existem cerca de 32 milhões debrasileiros residentes no meio rural.

A desigualdade social permeia toda sociedade brasileira, e não é diferenteno campo, onde vemos grandes latifundiários se contrastando com pequenosprodutores, e trabalhadores rurais, que trabalham apenas para a subsistência,muitas vezes vivendo em situação subumana. Todas as manifestações da questãosocial apontadas até o momento são realidades que podem ser observadasempiricamente e os elementos de promoção para a minimização dessasdesigualdades sociais são diversas, desde a crítica ao modelo produtivo vigenteaté construção de políticas públicas para fortalecer os desprovidos (socialmentee economicamente). No entanto, focaremos agora como as transformações domundo rural podem se apresentar enquanto possibilidade de mudanças nasquestões acerca da falta de habitação, emprego, geração de renda, saúde,educação, etc.

Os processos de trabalho que envolvem a produção agropecuária,principalmente de cunho familiar, podem ser tomadas como ponto de partidapara o desencadeamento de inovações nas relações sociais e econômicas entreo meio rural e urbano. Muitos estudos apontam que a produção agrícola familiar

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pode impulsionar, de diferentes maneiras, a realização de atividades econômicascomplementares em pequenas localidades.

Assim, o fortalecimento da produção agropecuária em bases locais(endógenas) pode se converter em um vetor na criação de “empregos indiretos”,no comércio atacadista e varejista, nos serviços de transporte, no processamentoda produção e na prestação de diversos serviços com maior ou menorespecialização técnica, portanto, refletindo na estrutura social de muitosmunicípios (NORDER, 2004).

De outra forma, trata-se de focalizar as alternativas e a geração deoportunidades de ocupação agrícola a partir do fortalecimento dodesenvolvimento local.

Em vista das especificidades da formação agrária brasileira, adiversidade na produção agropecuária nos remete a duas con-siderações: a) a crítica aos impactos sociais e ambientais daprodução especializada em grande escala, realizada em gran-des propriedades, com elevada mercantilização, com apoioprioritário das políticas estatais de modernização nas últimasdécadas; b) a indicação dos processos produtivos naagropecuária que, notadamente com base na agricultura fami-liar, procuram ampliar a geração de empregos no campo e di-namizar a interação entre o meio rural e sua localidade, ouseja, a promoção de formas endógenas de produçãoagropecuária e seu impacto no desenvolvimento de localida-des, particularmente para um grande número de pequenosmunicípios em decadência ou estagnação econômica epopulacional (NORDER, 2004, p. 95).

Sabemos que em muitas regiões, as economias urbanas não oferecem omesmo conjunto de possibilidades econômicas e profissionais para a populaçãode modo geral. O desenvolvimento da produção agropecuária se destaca entãocomo fonte de emprego e renda para uma população (principalmente das famíliasrurais) e como política de desenvolvimento local e regional – e isso não implica,necessariamente, vale ressaltar, em uma relação de exclusão com odesenvolvimento de atividades não-agrícolas (ALENTEJANO, 1999).

Portanto, as estratégias de produção familiar estão relacionadas àsfunções desenvolvidas pelos diferentes membros da família no processo deprodução e de decisão, no controle dos meios disponíveis e do acesso aosinstrumentos de trabalho na tentativa de suprir suas necessidades. Para atingiros objetivos de reprodução da família em todos os seus aspectos, muitosagricultores geralmente utilizam as mais diversas maneiras para se reproduziremsocialmente e assegurar a sobrevivência da família e o patrimônio para as futurasgerações (WANDERLEY, 1999).

Em termos de perspectivas de reprodução da vida social, a agricultura

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familiar deve ser analisada dentro da sua forma heterogênea de produção, o quenos remete a valorização dos conhecimentos e culturas locais, ou seja, paraalém das questões materiais (alimentação, moradia, etc) as atividadesagropecuárias se apresentam como elemento de fortalecimento cultural. Porisso, a necessidade de também analisar o papel da assistência social no Brasil,como instância mediadora e fomentadora de políticas públicas que prestigiam atransformação do mundo rural.

Considerações FinaisConsiderando o capitalismo enquanto motor de produção e reprodução

das desigualdades sociais e o Estado enquanto garantidor dos direitos sociais, oenfoque dado à questão agrária se desenvolveu no sentido de que, diante doavanço do neoliberalismo com conseqüências devastadoras vivenciadas pelaclasse trabalhadora, faz-se necessário e urgente, uma intervenção efetiva doEstado, no sentido de cumprir sua função social.

As reflexões apresentadas no artigo nos permitiram desvendar oselementos intrínsecos ao modo capitalista de produção. Tendo em vista que setrata de um sistema excludente, em que a discrepância entre as classes, temdesencadeado cotidianamente a degradação humana.

Em síntese, as Políticas desenvolvidas não apenas no contexto agrário,mas nos diversos segmentos, são ainda pouco eficazes para o enfrentamentodas mazelas da questão social. Configura-se em uma relação direta comprogramas que visam na prática, minimizar os efeitos do capitalismo que assolama sociedade atual. São ações focalizadas, que não permitem a superação dascondições de subordinação e exploração vivenciadas pela classe trabalhadora.

O momento em que se debate Reforma Agrária pela via mais cruel, aconservadora, reforça ainda a concepção dos movimentos sociais ligados aocampo à imagem de desordeiros, agitadores políticos e aproveitadores. Fundadana idéia burguesa de distribuição de terras e renda, o movimento de ReformaAgrária viu-se polarizado por interesses estranhos aos seus preceitos basais,incorporando muitas vezes, um discurso liberal, fundado na lógica burguesa.Mas, em contraponto, experimentamos um processo acentuado de resistência emarcha contínua pela terra, pautada não mais na luta, mas na batalha do campodas idéias, da cena política contemporânea em que pesa a reflexão jurídico-legal, mesmo que atravessada por incongruências, divergências e convergências.

A pauta segue na construção da luta cotidiana de muitas “Roses” queperderam sua vida em favor de uma causa coletiva, inscrita numa cena perversa,criminalizada e reprodutora das relações sociais de produção capitalista. Omomento não é de resfolegar e sim, inspirar os pulmões em longos haustos eseguir adiante na luta pela terra, pela distribuição justa e por uma reforma agráriarealmente reformista.

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Questão Agrária, Saúde do Trabalhador e os Desafios Para o Século XXI 155

POLÍTICA PÚBLICA E SEUS EFEITOS NAAGRICULTURA FAMILIAR NA REGIÃO DEGENERAL SALGADO-SP

Sara Dias da Silva Lisboa1

Antonio Lazaro de Sant Ana2

IntroduçãoA agricultura brasileira sofreu o processo de modernização após a década

de 1960. Anteriormente o aumento da produção agrícola dava-se principalmentepor meio da expansão da fronteira, tendo como destaque a mão de obra familiare de parceiros.

O poder público estimulou essa modernização com o objetivo detransformar latifúndios em empresas rurais, sem, contudo, reformular a estruturafundiária concentrada, cumprindo o pacto formado entre as classes dominantese o Governo Militar na década de 1960 (HESPANHOL, 1996). Este processo semostrou altamente seletivo, pois priorizou os grandes e médios proprietáriosrurais em detrimento dos pequenos, que enfrentaram maiores dificuldades paraalterar a base técnica da produção e para permanecerem no campo (DELGADO,1985).

Esse processo de modernização acarretou várias consequências,especialmente em duas dimensões: uma relacionada aos impactossocioeconômicos, causados pelas transformações rápidas e complexas daprodução agrícola, implantadas no campo, a outra, ligada aos impactosambientais, devido ao padrão de produção baseado na monocultora que causoudestruição das florestas, da biodiversidade genética, erosão dos solos econtaminação dos recursos naturais e dos alimentos.

O Programa Estadual de Microbacias Hidrográficas, implementado noEstado de São Paulo a partir de 2000, tem se destacado dentre as políticasdestinadas ao rural por conter diretrizes bastante avançadas, as quais contemplamsimultaneamente a necessidade de mitigação dos efeitos ambientais, causadospelos métodos predatórios de exploração dos recursos naturais, ao mesmo tempoem que busca minorar a pobreza e a exclusão social no campo (CLEMENTE;HESPANHOL, 2009.)

O objetivo desse trabalho é analisar os resultados da atuação do ProgramaEstadual de Microbacias Hidrográficas em relação à agricultura familiar naárea de abrangência do Escritório de Desenvolvimento Rural (EDR) de GeneralSalgado. Os dados referentes às microbacias hidrográficas foram obtidos com

1 Eng. Agrônoma. Estudante pós graduação – mestrado UNESP/ Ilha Solteira. E-mail:[email protected] Prof. Dr. Unesp- Campus de Ilha Solteira. E-mail: [email protected]

CAPÍTULO 11

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técnicos do referido EDR e Casa da Agricultura de Guzolândia, por meio deentrevistas e da análise de documentos fornecidos pelos mesmos.

Modernização da Agricultura e Políticas PúblicasA partir de meados da década de 1960, a agricultura brasileira inicia o

processo de modernização, chamado Revolução Verde. Ao incorporar o pacotetecnológico da Revolução Verde na agricultura brasileira, houve a ampliaçãodos níveis de produtividade agrícola das lavouras, resultando no aumento daescala de exploração, possibilitando a liberação de mão-de-obra e assimintensificando o êxodo rural (HESPANHOL, 2008).

Segundo Graziano Neto (1982), a modernização da agricultura brasileiratendeu a favorecer o aumento da participação relativa das camadas mais ricasna apropriação da renda total. Assim com a difusão da modernização, ocorretambém um processo de especialização da agricultura em escala nacional. Emalgumas regiões desenvolveu-se e modernizou-se a produção de culturas que,embora presentes em economias familiares, são consideradas típicas de umaagricultura comercial. Foi o que aconteceu com a cana-de-açúcar, o algodão, ofumo e o cacau no Nordeste, o café, o algodão e a cana-de-açúcar no Sudeste eo arroz, o trigo, a soja e a uva no Sul (SOARES, 2000).

A expansão da agricultura “moderna” ocorre concomitante à constituiçãodo complexo agroindustrial, modernizando a base técnica dos meios de produção,alterando as formas de produção agrícola e gerando efeitos socioeconômicos eambientais. As transformações no campo ocorrem, porém, heterogeneamente,pois as políticas de desenvolvimento rural, inspiradas na “modernização daagricultura”, são eivadas de desigualdades e privilégios (BALSAN, 2006).

Essa modernização agrícola apresenta objetivos que não levam,necessariamente, ao desenvolvimento rural, ou seja, a modernização indica acapacidade que tem um sistema social de produzir a modernidade e odesenvolvimento se refere à vontade dos diferentes atores sociais (ou políticos)de transformar a sua sociedade (ALMEIDA, 1997).

A análise das tendências dessa modernidade requer que atentar parauma realidade, que ao mesmo tempo em que coloca uma classe da sociedadecom o que há de mais moderno na agricultura e pecuária, contraditoriamente,deixa outra, os agricultores familiares, que são a maioria dos produtores rurais,cada vez mais excluídos de tais inovações. É esta categoria que se apresentacada vez mais próxima do limite de sobrevivência que, atualmente, tem merecidomaior preocupação por parte das políticas governamentais, tendo em vista odesenvolvimento local sustentável no contexto de um “novo mundo rural”.Entretanto, é uma utopia buscar esta forma de desenvolvimento quando muitosagricultores familiares são privados até mesmo das condições dignas desobrevivência (BALSAN, 2006).

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Nos últimos anos tem havido uma preocupação crescente com a questãoambiental, em que importantes segmentos da sociedade passaram a questionaro modelo de desenvolvimento centrado no crescimento econômico (SABANÉS,2002). Parcelas da sociedade têm reivindicado um padrão de desenvolvimentomenos predatório do meio ambiente e mais justo socialmente, um modelo deagricultura sustentável. Neste sentido, é necessário distribuir renda, revitalizaros programas de assistência técnica direcionada aos produtores familiares ereconsiderar as bases dos recursos naturais (OLIVETTE, 2005).

No que tange às políticas públicas voltadas ao setor agrícola brasileiro,a história mostra significativos insucessos que geraram graves conseqüênciasque hoje podem ser observadas na própria estruturação e organização produtivado setor, como a grande concentração fundiária, a elevada valorização da terra(muitas vezes de forma especulativa), a marginalização e agravamento daproblemática social, a formação de uma categoria patronal economicamenteforte em detrimento do setor produtivo familiar, além de graves problemasambientais.

A partir dos anos 1980, a crise fiscal do Estado brasileiro e a adoção depolíticas de cunho neoliberal, bem como o fortalecimento de preocupaçõesecológico-ambientais, passaram a sinalizar que o modelo de desenvolvimentoagrícola, adotado pelo Brasil a partir dos anos 1950, encontrava-se inadequadofrente às novas necessidades e mudanças. As políticas públicas destinadas àagricultura, até então se mostravam estritamente produtivistas e setoriais,preocupadas apenas com o aumento da produtividade (CLEMENTE;ESPANHOL, 2009).

A partir da década de 1990, o Governo Federal implementou algumaspolíticas públicas direcionadas para a agricultura familiar, baseadas em um novodiscurso e em outra estratégia de desenvolvimento. Dentre estas políticas, estáo Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF),criado no ano de 1996 para fornecer assistência diferenciada aos agricultoresfamiliares. Porém, o crédito tem sido direcionado aos produtores familiaresmais capitalizados e que oferecem maiores garantias ao sistema financeiro. Comisso, mesmo com a implantação desta política, grande parte dos pequenosproprietários familiares ainda não tem acesso ao crédito oficial (HESPANHOL,2005).

No final da década de 1990, diante dos problemas ambientais e sociaisgerados e agravados pelos processos de modernização da agricultura, o governoinstituiu o Programa Nacional de Microbacias Hidrográficas, mas em razão defalta de recursos humanos e financeiros, este não atingiu as metaspreestabelecidas, sendo posteriormente esquecido (HESPANHOL, 2008).

Os estados do Paraná e Santa Catarina foram os primeiros que adotaramo programa de microbacias, com a denominação “Paraná Rural” no Paraná e

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“Microbacias” em Santa Catarina. O enfoque no início foi em práticasagronômicas, mas a partir de 1990 apareceram preocupações de ordem sócio-econômicas, incorporando a idéia de sustentabilidade em suas diretrizes eobjetivos (SABANÉS, 2002).

No Estado de São Paulo o processo de modernização, baseado nosparâmetros da Revolução Verde, foi intenso e, em função disso, apresenta sériosproblemas ambientais e sociais no meio rural, causados em grande em partepela mudança na base técnica da agricultura sob a qual o aumento deprodutividade é atingido, com mecanização e uso de insumos agrícolas, muitasvezes utilizados de maneira inadequada (RÓS-GOLLA, 2006).

No ano de 1994, a Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (CATI)solicitou recursos ao Banco Mundial para o financiamento do programa demicrobacias, processo que tramitou por cinco anos, até a assinatura do Acordode Empréstimo entre o Governo do Estado e o Banco Mundial, em 07 dedezembro de 1999. O acordo previa o desembolso de recursos por parte doBanco de 2000 a 2006.

O Programa Estadual de Microbacias Hidrográficas (PEMH) passoupor diversas reformulações desde sua concepção original até o formato finalaprovado pelo Banco Mundial. O caráter primordialmente ambiental eagronômico foi lentamente modificado, assumindo cada vez mais umdelineamento social. Segundo Navarro, o PEMH agrega elementos de diversasordens para avançar para um projeto típico de desenvolvimento rural, “talvez aprimeira experiência digna do nome”, no país (NAVARRO, 2008, p. 25).

Somente foi possível a implementação do Programa no ano de 2000,sendo desenvolvido até o ano de 2008. O objetivo principal do programa tambémteve que ser redefinido, como já comentado, e passou a visar o “aumento dobem-estar das populações rurais”. De acordo com informações oficiais, o PEMH,em sua última versão, tinha por objetivo promover o desenvolvimento ruralsustentável no Estado de São Paulo, por meio da ampliação das oportunidadesde ocupação, melhoria dos níveis de renda, maior produtividade geral dasunidades de produção, redução dos custos e uma reorientação técnico-agronômica. Ele tem como pressuposto a plena participação e envolvimentodos beneficiários e da sociedade civil organizada (SÃO PAULO, online).

Programa Estadual de Microbacias HidrográficasA gestão do Programa de Microbacias Hidrográficas no estado de São

Paulo ficou a cargo da Coordeandoria de Assistência Técnica Integral (CATI)em Campinas e por meio de 40 Escritórios de Desenvolvimento Rural (EDR),distribuídos em todo território Paulista. A execução dos projetos nas microbaciashidrográficas realizou-se em parceria com as Prefeituras Municipais.

Números oficiais informam que 518 municípios estabeleceram parceria

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com o Governo do Estado para implantação do PEMH, 966 planos demicrobacias foram aprovados, representando 3,3 milhões de hectares trabalhadose o envolvimento de 70.000 famílias de agricultores nas ações do Programa(SÃO PAULO, online).

Segundo Hespanhol (2008), as regiões do Estado de São Paulo foramclassificadas em três níveis de prioridade para a implantação do Programa, apartir dos seguintes critérios: grau susceptibilidade à erosão de solo, proporçãode pequenos produtores rurais e o índice de pobreza dos municípios, com basenos dados do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA).

Para atender as necessidades específicas de cada caso, o Programa foidividido em três subcomponentes: Mapeamento Agroambiental, AssistênciaTécnica e Extensão Rural, Organização Rural (SÃO PAULO, 1998).

O subcomponente Mapeamento Agroambiental teve a função de auxiliar nofornecimento de dados como: mapa municipal com localização da microbaciahidrográfica, mapa da hidrografia, mapa da malha viária e classes de declive, mapade solos, mapa de uso atual do solo e estrutura fundiária e mapa de dinâmicaambiental, para o planejamento das microbacias. Esses dados foram de extremaimportância para recomendar as práticas agrícolas, diagnosticar e selecionar as áreasa serem recuperadas e definir quais trechos das estradas que deveriam ser adequados.

No Subcomponente Assistência Técnica e Extensão Rural buscou-se aimplantação de uma nova forma de atuação da extensão rural, dando prioridadeà capacitação das comunidades, estimulando a participação e conscientizando-as das potencialidades do seu meio, além de valorizar as soluções baseadas nosrecursos disponíveis no local. A função do técnico capacitado nessa linha foi ade auxiliar os produtores quanto às práticas agrícolas realizadas na propriedade.

Navarro (2008) defende que a “ação extensionista” tem centralidadedecisiva no sucesso dos projetos e que, portanto, a formação técnica para odesempenho de tarefas tão complexas é mais do que necessária – embora estaformação, na avaliação do autor, não venha sendo “sequer remotamente”oferecida pelas universidades. Para ele, os profissionais precisam ser capazesde propor técnicas inovadoras para os produtores e famílias rurais sobre a lógicasistêmica da ação extensionista em microbacias, o que exige conhecimentomultidisciplinar. Os técnicos precisariam também ser capazes de mobilizarsocialmente as famílias residentes (ou produtoras) nas microbacias trabalhadas,cooperar em sua organização social e, eventualmente, opinar no que Navarrochama de “delicadas questões políticas”, que surgiriam quando as famílias ruraisbeneficiárias se sentissem fortalecidas o suficiente para estabelecer diálogoscom outras forças municipais (a prefeitura, em especial), reivindicando outrasações externas aos projetos.

Dentro do Programa o recebimento de subvenções econômicas e dedoação de sementes e mudas está condicionado à aprovação do Projeto Integral

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de Propriedade (PIP), pelos Conselhos de Desenvolvimento Rural. O PIP é odocumento base para autorização das intervenções implementadas napropriedade; nele constam quais práticas devem ser adotadas na propriedade,quais equipamentos devem ser adquiridos e quais as recomendações técnicasprevistas. A elaboração do PIP é responsabilidade do corpo técnico da CATI, oque ocorre, segundo a instituição, depois de um planejamento conjunto entreagricultor e técnico executor, levando em conta a capacidade de uso do solo,adequação à legislação ambiental e condições socioeconômicas do produtor(SÃO PAULO, 2000). Desta forma, os agrônomos e técnicos das Casas deAgricultura dos municípios têm papel de destaque no âmbito do programa.

Com as ações do subcomponente Organização Rural, o Programa visoufortalecer as organizações de produtores rurais, pois foi identificado, por meioda elaboração de diagnósticos participativos, que os problemas poderiam teruma resolução mais fácil com a participação de todos. Os técnicos executoresdo Programa fizeram o papel de mediadores, com a função de estimular emobilizar as comunidades; identificar as organizações presentes; dividirresponsabilidades e capacitar seus membros.

O PEMH tem como foco os pequenos produtores rurais, sendo a maiorparte dos recursos financeiros direcionados a este grupo. Desta forma foramoferecidas as práticas individuais, como adubação verde, cerca de proteção deárea de preservação permanente, faixa de retenção, terraceamento, calcário,fossas sépticas e sistema de divisão de pastagem. Dentre as práticas coletivas oPrograma apoiava a construção de abastecedouro comunitário, aquisição deroçadeira, distribuidor de calcário e escarificador/subsolador.

Na elaboração do Projeto Individual da Propriedade foram tambémconsiderados os produtores arrendatários e parceiros, que tinham contrato detrês anos no mínimo a partir da data do investimento. No projeto deEmpreendimento Comunitário, os beneficiados precisavam estar organizadosem grupos formais ou informais.

Caracterização do Município de Guzolândia e o Programa de MicrobaciasHidrográficas

O município de Guzolândia está localizado a 575 km da capital, possui25.000 hectares de extensão e pertence ao Comitê da Bacia Hidrográfica doRio São José dos Dourados. Também faz parte do EDR de General Salgado queestá localizado na área de Prioridade 1 do PEMH.

Guzolândia teve seu início de desbravamento durante a década de 1940,com técnicas manuais ou de tração animal. As primeiras famílias (mão de obra)que chegaram à região eram em sua maioria migrantes nordestinos sob o domíniode grandes proprietários responsáveis pelo desmatamento e desbravaramentopara implantação de lavouras de café, algodão, arroz e milho. A cultura do

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algodão foi dominante entre as décadas de 1960 e 1970 tanto em termos de áreacultivada, como também teve grande expressão econômica na região. Logodepois houve o declínio, sendo substituído pela lavoura de café que teve a grandeascensão, sendo que, ainda nos tempos atuais (2011), a maioria das grandespropriedades possui benfeitorias construídas na época do auge do café. Com odecorrer dos anos ocorreu à diminuição das lavouras cafeeiras de 1.500.000pés na década de 1980 para menos de 11.000 pés nos dias atuais. Com a quaseerradicação das lavouras a população que residia e integrava a mão-de-obrarural se direcionou para os centros urbanos. A pecuária, além da produção desementes de capim e cana de açúcar, ganhou espaço na economia do município.

Entre o final da década de 1970 e início de 1980, teve início na região ocultivo de capins para a produção de sementes; tendo esta cultura uma grandeimportância no município até meados da década de 1990, época que encontraproblemas com a mecanização, já que a produção era até então totalmentemanual. Com isto o êxodo rural voltou a ocorrer, atingindo o segmento deempregados, meeiros e parceiros. Ainda assim, em Guzolândia, 25% dapopulação reside no campo (IBGE, online), sendo esta composta de uma minoriade trabalhadores rurais e arrendatários e em sua maioria de pequenos e médiosagricultores em regime de agricultura familiar, porém, estes estão em sua maioriaem processo de exclusão e deterioração econômica, especialmente após aampliação da área de cana-de-açúcar na região.

Segundo dados fornecidos pela Coordenadoria de Assistência TécnicaIntegral (CATI, 2009), o município possui 309 propriedades, das quais cerca de84% são caracterizadas como propriedades de base familiar e 63,10% ( possuematé 50 ha) são caracterizadas como pequenas propriedades rurais de base familiar.

O programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF)enquadra os produtores rurais como beneficiários de linhas de crédito ruralquando atendem aos seguintes requisitos: sejam proprietários, posseiros,arrendatários, parceiros ou concessionários da Reforma Agrária; residam napropriedade ou em local próximo; detenham, sob qualquer forma, no máximo 4(quatro) módulos fiscais de terra, quantificados conforme a legislação em vigor,ou no máximo 6 (seis) módulos quando tratar-se de pecuarista familiar; com80% da renda bruta anual familiar advinda da exploração agropecuária ou nãoagropecuária do estabelecimento e mantenham até 2 (dois) empregadospermanentes – sendo admitida a ajuda eventual de terceiros.

Na Tabela 1, também podemos observar que as propriedades familiaresocupam cerca de 36% da área do município e abrangem 84,78% do númerototal de propriedades, enquanto as grandes propriedades correspondem a cercade 64% da área do município e contempla apenas 16% dos produtores. Assimfica fácil observar a concentração de terras e entender a contribuição dessefator pelo avanço de monoculturas como a cana de açúcar no município.

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Tabela 1: Estrutura agrária no município de Guzolândia

Fonte: SÃO PAULO, 2008.

O Município tem 07 microbacias hidrográficas: Córrego do Guará,Córrego do Buriti, Córrego das Cobras, Córrego dos Coqueiros, Córrego doBarreiro, Córrego da Araúna e Córrego do escondido. Foram trabalhadas trêsmicrobacias no PEMH, priorizadas pelo Conselho Municipal deDesenvolvimento Rural, com base nos índices de degradação ambiental e índicessocioeconômicos. Os planos aprovados foram: Microbacia Córrego do Guará,no dia 30 de junho de 2000; Microbacia Córrego do Buriti, no dia 09 de janeirode 2004; e Microbacia Córrego das Cobras, no dia 10 de janeiro de 2006.

Nas Tabelas 2, 3 e 4 podemos verificar a estrutura fundiária dasmicrobacias trabalhadas durante o PEMH. Essas microbacias apresentavamsérios problemas, como degradação ambiental, inexpressiva organização dentreos produtores, baixo nível de instrução formal dos produtores, descapitalizaçãodos produtores e poucos recursos do poder público municipal. Era fundamentalbuscar a reversão deste quadro impotência que foi se formando ao longo dosanos, por falta de um planejamento sustentável e de uma política agrícolacoerente com as necessidades da agricultura familiar.

No município de Guzolândia o Programa contribuiu para a melhorianas condições ambientais na adequação de estradas rurais, controle de erosãode solos (voçorocas), motivação para o associativismo, reflorestamento dosmananciais, além das subvenções de práticas agrícolas coletivas e individuais.Dentre os principais entraves que ainda permanecem para os agricultoresfamiliares obterem a sustentabilidade econômica, social e ambiental estão àfalta de recursos para investimento, redução de recursos para financiamentos,elevada taxa de juros, baixa coesão dos grupos e associações que não atuam deforma autônoma e por iniciativa própria, ausência de uma política de preços

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mínimos, baixo nível tecnológico e baixo acesso à assistência técnica e extensãorural.

A Microbacia Córrego do Guará tem 74 propriedades que abrangemuma área total de 5.555,30 ha, sendo que 87,8% dessas propriedades é baseadano trabalho familiar. A Microbacia do Buriti tem 107 propriedades rurais quetotalizam uma área de 4.682,72 ha, das quais 97,10 % são baseadas na agriculturafamiliar. A Microbacia Córrego das Cobras possui 43 propriedades que abrangemuma área de 5.118,98 ha, 93% das quais caracterizadas como familiares.

Na Figura 1 pode-se observar que foram beneficiados 68 propriedades(63,55% do total) na Microbacia Buriti. Na Microbacia Córrego do Guará forambeneficiadas 44 propriedades (59,46%) e na Microbacia Córrego das Cobrasforam beneficiadas apenas 5 propriedades, totalizando 10,20% do total deagricultores desta microbacia, devido ter sido a ultima a ser beneficiada, houvepouco tempo para a difusão e implementação do programa.

Tabela 2: Estrutura fundiária Microbacia Córrego do Guará

Fonte: Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (CATI, 2009)

Tabela 3: Estrutura fundiária Microbacia Córrego do Buriti

Fonte: Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (CATI, 2009)

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Tabela 04: Estrutura fundiária da Microbacia Córrego das Cobras

Fonte: Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (CATI, 2009)

Figura 1: Porcentagem de produtores beneficiados nas microbacias

Fonte: Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (CATI)

Ao todo foram beneficiadas diretamente, através do PEMH, comsubvenções de práticas individuais e coletivas 47% das propriedades familiaresdo município. As práticas coletivas observadas na Figura 2 totalizaram 53,10%dos benefícios concedidos no município.

As práticas coletivas foi objeto de motivação do PEMH para amobilização e fortalecimento de laços entre vizinhos, familiares e amigos paraa formação de associações ou grupos entre os produtores. Apesar das práticascoletivas ter sobressaído, observou-se que a motivação para a realização daspráticas decorreu mais das subvenções concedidas pelo Programa, que variavade 60% a 80% do valor do bem, às vezes chegando até 100%, do que daconscientização dos agricultores em relação às necessidades de resolução deproblemas da comunidade.

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Figura 2: Relação de Benefícios individuais e coletivos do PEMH no município. Fonte: Casa da Agricultura, 2011.

Fonte: Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (CATI)

Esta constatação baseia-se no fato de que após o término do Programaos grupos não se mobilizaram para execução de atividades coletivas, como aaquisição de insumos para a produção, comercialização, aquisição deequipamentos, busca de melhorias para a comunidade, dentre outras formas deorganização.

Considerações FinaisAs políticas públicas voltadas ao meio rural no Brasil tiveram caráter

discriminatório ao longo dos anos, pois elas resultaram na ampliação dasdesigualdades entre os produtores rurais. O Programa Estadual de MicrobaciasHidrográficas foi uma política diferenciada que priorizou a agricultura Familiar.

Embora não tenha atingido a totalidade dos produtores rurais domunicípio de Guzolândia e tenha atuado dentro de um conjunto limitado epadronizado de práticas, o PEMH foi uma política pública importante para osagricultores familiares, pois tem contribuído tanto a melhoria das condiçõessocioeconômicas dos produtores e das condições ambientais das propriedades,especialmente no que concerne ao manejo dos solos e das águas.

Os agricultores familiares devem buscar o fortalecimento da organizaçãorural e a solução em conjunto de problemas que impedem o desenvolvimentoda comunidade, pois a organização rural é uma ferramenta fundamental para odesenvolvimento sócio-econômico das microbacias. Portanto, aliados aosincentivos e à motivação são necessárias ações educativas de extensão rural

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que contribuam para a conscientização dos produtores sobre a importância doassociativismo praticado com protagonismo e autonomia, assim como daampliação e manutenção das práticas que visam a conservação dos recursosnaturais.

Também é importante ressaltar que o fortalecimento de políticas públicasvoltadas para os agricultores familiares será fundamental para que construamalternativas de produção e renda que evite o arrendamento de suas terras paraas agroindústrias sucroalcooleiras presentes no município.

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O COMPROMISSO COM AS LUTAS SOCIAIS: aexperiência do Núcleo Agrário Terra e Raiz (NATRA) noprojeto “Cinema da Terra”.

Onilda Alves do Carmo1

Raquel Santos Santa’Ana2

Isabela Campos Pinheiro3

Jacqueline Ferreira4

Letícia Gomes5

Nicole Barbosa de Araujo6

Luiza Villarquide Firmino7

Wellington Renan Teles de Ataide8

Diego Ungari9

Larissa Zambelli Caputo10

Natasha Cristine da Silva11

Vinicius; Americano Paron12

IntroduçãoA realidade brasileira tem se configurado a partir de um processo de

precarização do trabalho e da vida que se mantém quase inalterado apesar dasdiferentes particularidades assumidas ao longo da história. No atual contexto, os1 Profa. Dra. do Departamento do Curso de Serviço Social da Unesp Coordenadora do Conselho deCurso de Serviço Social da UNESP-Franca. Pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa Teoriasocial de Marx e Serviço Social e líder da linha de Pesquisa Gênero e Educação Popular denominadoMargarida Alves e Coordenadora do Núcleo Agrário Terra e Raiz - NATRA.2 Profa. Dra. do Departamento do Curso de Serviço Social da Unesp de Franca e Coordenadora doNúcleo Agrário Terra e Raiz (NATRA), Pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa Teoria social deMarx e Serviço Social.3 Graduanda do curso de Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP –Campus de Franca e membro do Núcleo Agrário Terra e Raiz (NATRA).4 Graduanda do curso de Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP –Campus de Franca e membro do Núcleo Agrário Terra e Raiz (NATRA).5 Graduanda do curso de Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP –Campus de Franca e membro do Núcleo Agrário Terra e Raiz (NATRA).6 Graduanda do curso de Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP –Campus de Franca e membro do Núcleo Agrário Terra e Raiz (NATRA).7 Graduanda do Curso de Direito da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP – Campusde Franca e membro do Núcleo Agrário Terra e Raiz (NATRA).8 Graduando do Curso de História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP – Campusde Franca e membro do Núcleo Agrário Terra e Raiz (NATRA).9 Graduando do Curso de História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP – Campusde Franca e membro do Núcleo Agrário Terra e Raiz (NATRA).10 Graduanda do Curso de Direito da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP – Campusde Franca e membro do Núcleo Agrário Terra e Raiz (NATRA).11 Graduanda do Curso de Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP –Campus de Franca e membro do Núcleo Agrário Terra e Raiz (NATRA).12 Graduando do Curso de Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais daUNESP – Campus de Franca e membro do Núcleo Agrário Terra e Raiz (NATRA).

CAPÍTULO 12

Título no sumário diferente

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níveis de concentração da riqueza e da terra e a intensidade dos conflitos vivenciadosem âmbito rural e urbano são parte deste cenário, onde a sociabilidade do capitalestabelece os parâmetros das relações sociais instituídas e garante sua reproduçãoampliada. Como afirma Mészaros (2006, p. 606): “A completa subordinação dasnecessidades humanas à reprodução de valor de troca- no interesse da auto-realizaçãoampliada do capital- tem sido o traço marcante do sistema do capital desde o seuinício.”

Para a viabilização desta forma de sociabilidade poderosos mecanismosideológicos vão se configurando de maneira a garantir a “naturalização darealidade social”. A divisão social do trabalho e a decorrente reificação dasrelações sociais criam as condições da inversão citada por Mészaros e, legitimamum modo de vida insustentável do ponto de vista social e ambiental.

Esta realidade exige em nível ideológico, tornar as idéias da classedominantes legítimas para o conjunto da sociedade. Este modo de vida é tidocomo única possibilidade histórica, já que a ele é atribuído a produção dodesenvolvimento tecnológico responsável pelo recuo das barreiras naturais e,portanto, fundamental para o desenvolvimento de relações ditas “humanizadas”.

A desconstrução desta ideologia e a resistência frente aos processos deexpropriação e dominação são parte dos embates estabelecidos por diversossujeitos que se colocam na defesa dos interesses do trabalho.

Nas universidades brasileiras, o debate a partir da ótica do trabalho noenfoque da realidade agrária é feito por uma minoria que reconhece na estruturafundiária extremamente concentrada e no modelo de desenvolvimento agrário,as raízes da atual configuração das desigualdades instituídas no campo.

O Núcleo Agrário Terra e Raiz (NATRA) é um grupo interdisciplinar deextensão universitária da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS – UNESPFranca) que faz a discussão sobre o rural na sociedade brasileira pela ótica do trabalho.Seu objetivo principal é fortalecer a luta pela terra e os movimentos sociais e, aomesmo tempo, formar profissionais que tenham um enfoque crítico e desmistificadorda realidade do capital e da atual sociabilidade. A extensão é entendida como umespaço importante para construir uma visão crítica da realidade social, bem comouma experiência de militância, necessária à formação dos/das alunos/as.

Como grupo de extensão universitária, o NATRA compõe o tripé dauniversidade junto com o ensino e a pesquisa e disputa dentro desta realidade aprevalência de uma concepção de extensão cuja ênfase esteja na relaçãotransformadora entre sociedade e universidade.

O grupo existe desde 1997 e a cada ano tem uma média de 25 estudantesde graduação e pós-graduação dos quatro cursos presentes no campus de Franca:serviço social, história, direito e relações internacionais. As ações do grupo sãonorteadas pela metodologia de Paulo Freire, e também pelos princípios daeducação popular.

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O NATRA desenvolve projetos cujas temáticas se reportam a educaçãoe cultura em assentamentos e acampamentos rurais, em escolas públicas e naprópria universidade. Narrar um de seus projetos tem como objetivo trazer areferência de uma prática política desenvolvida dentro da universidade que,apesar de hegemonizada pelo capital, contraditoriamente constrói espaços deresistência e luta.

Nestes anos foram planejadas ações junto com a comunidade, foramdesenvolvidos vários projetos que permitiram a inserção do grupo na luta pelaterra. O grupo participou da luta pela terra a partir de seu lócus que é auniversidade pública. Ao longo de sua trajetória foram realizados trabalhos comgrupos de jovens, grupos de mulheres, grupos de produção coletiva, associações,grupos de educação infantil e de alfabetização de jovens e adultos. No ano de2011, 4 projetos estão sendo desenvolvidos pelo Núcleo: “Educação de Jovense Adultos no assentamento Mario Lago”, e “Trabalho Social com acampamentose assentamentos rurais na região de Ribeirão Preto, SP”, ambos parcialmentefinanciados pela Pro-reitoria de Extensão Universitária; “Diálogo entre mundos:refletindo o rural e o urbano” financiado pelo Núcleo de Ensino Unesp e “Cinemada Terra: as culturas em movimento nas áreas rurais da região de Ribeirão Pretoe na periferia urbana de Franca”, financiado pelo Ministério da Cultura pormeio do edital Proext cultura de São Paulo 2010.

Neste artigo pretende-se apresentar um pouco da experiênciadesenvolvida neste último projeto mencionado “Cinema da Terra” desenvolvidono ano de 2010/11 e que foi executado em parceria com o Movimento dosTrabalhadores Sem Terra (MST) e, financiado pelo Ministério da Cultura, tendocomo pano de fundo a discussão sobre culturas.

O Projeto Cinema da Terra.O projeto “Cinema da Terra: as culturas13 em movimento nas áreas

rurais da região de Ribeirão Preto e na periferia urbana de Franca” desenvolvidopelo NATRA, no ano de 2010/1114 contribuiu para que a população assentada13 O NATRA entende que entre “as culturas” está a cultura popular entendida como aquela construídae estruturada por uma classe, a partir das relações internas da sua vida social, oposta à cultura demassa, que de forma ideológica, é imposta de “cima para baixo”. Na sociedade de consumo, a indústriacultural se utiliza da reificação (coisificação) e da alienação para que a cultura passe a ser vista comoum produto trocável por dinheiro, passível de ser consumida como qualquer outro produto, deixandode ser considerada um instrumento de crítica e conhecimento.Ao longo da história, alguns movimentos se organizaram no sentido de suscitar a discussão a respeitoda cultura popular, de seu papel e sua função. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra(MST) desenvolve essa discussão com o intuito de incluir a reflexão da cultura camponesa nesseâmbito, entendendo-a como forma de resistência à opressão, desigualdade e exploração próprias dasociedade do capital.14 Apesar do financiamento público, o grupo trabalhou a partir de sua diretriz política com totalautonomia.

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do Mario Lago e do acampamento Alexandra Kolontay tivesse acesso a umespaço de cultura15 2 e lazer.

Conforme apontam diversos estudos (MEDEIROS et al, 2004;SANTANA, 2008) sobre os assentamentos rurais, as dificuldades de acesso àcultura e ao lazer são recorrentes nestes espaços e dificultam a permanência dapopulação jovem nestes locais.

Os objetivos do grupo ao escolher a exibição de filmes como forma defomentar reflexões e discussões consistiu em proporcionar o acesso dascomunidades rurais assentadas e acampadas à linguagem cinematográfica e àtecnologia, criando um espaço de democratização do contato com o cinemanessas áreas. Outro objetivo foi suscitar o debate sobre a realidade agráriabrasileira em escolas públicas de Franca, SP. Trazer essa discussão por meio docinema pareceu pertinente ao grupo, por considerar que as manifestaçõesartísticas e em especial, os filmes podem constituir-se em mediaçõesfundamentais para discutir e refletir sobre temas importantes para o entendimentoda atual sociabilidade burguesa.

No desenvolvimento do projeto, buscou-se contribuir para viabilizar oacesso à cultura e à arte, contribuindo para o fomento de atividades de formaçãoe politização da população rural, bem como para a organicidade e coesão internasdestas comunidades. Ao mesmo tempo viabilizou a troca entre comunidade/universidade de maneira a permitir que todos os envolvidos se fortalecem nestesespaços de socialização e debate.

As atividades desenvolvidas na execução do Projeto Cinema daTerra envolveram tanto as comunidades assentadas e acampadas quanto umaescola pública de Franca e nestes dois espaços os procedimentos foram diferentesaté porque o espaço da Escola é mais formal e foi preciso ter o cronogramaadaptado à realidade institucional.

Antes de iniciar os trabalhos, os integrantes e a coordenação doNATRA realizaram reuniões com as duas comunidades rurais envolvidas e comdiretora da instituição pública de ensino, onde conjuntamente organizou-se umcronograma de atividades a serem realizadas. A partir das demandas trazidaspelos parceiros, ocorreram reuniões apenas com os extensionistas ecoordenação16 do grupo para a preparação das oficinas a serem ministradas.

15 Quando se fala em cultura, imagina-se que há “a Cultura” branca, européia, das elites e se esqueceque há “Culturas”. Para Gramsci (1982), a hegemonia cultural, dá-se a partir da ação da sociedadecivil, passando pelas instituições sociais e políticas, entre estas a escola, a religião, a família, osmeios de comunicações, entre outras. Estas instituições são instrumentos de propagação da ideologiada classe dominante, por isso para o autor, os intelectuais orgânicos deveriam se ocupar dadesconstrução dessa ideologia, pois esta é que dá sustentação ao pensamento dos sujeitos do processosócio-histórico e constitui-se, portanto no elemento a ser trabalhado pelos intelectuais orgânicos.16 As professoras coordenadoras do Núcleo Agrário Terra e Raiz são do departamento de Serviçosocial da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP de Franca.

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Os extensionistas reuniram-se para discutir as temáticas tratadas nos filmesantes de sua exibição e assim subsidiar-se para o debate. Estas reuniõespreparatórias envolveram leituras de obras de Paulo Freire, Antonio Gramsci,Caio Prado Junior, Ricardo Antunes, Istvan Mészaros, entre outros.

Na discussão com as comunidades (o assentamento Mario Lago deRibeirão Preto e o acampamento Alexandra Kolontay, ambos do Movimento deTrabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e localizados na região de RibeirãoPreto, interior do estado de São Paulo) foi possível envolvê-las de maneira queparticipassem das escolhas das obras a serem exibidas. A indicação foi feitapelos diversos segmentos etários: crianças, jovens, adultos e idosos.

A sistemática de trabalho consistia em apresentar um ou mais filmesprocurando sempre, depois da sessão, promover o debate a respeito da temáticasuscitada pela exibição. Estes filmes eram dirigidos tanto ao público infantilquanto ao público adulto e adolescente. Em vários momentos, depois do filmeocorriam as noites culturais.

Foram exibidos filmes com diversas temáticas: Avatar, Ilha das Flores,Tapete Vermelho, Acorda Raimundo, Como uma Onda no Ar, Araguaia - aconspiração do Silêncio, Nós que Aqui Estamos, por Vós Esperamos, Diário deMotocicleta e Terra para Rose.

As diferentes temáticas presentes nos filmes permitiram a discussãosobre a insustentabilidade do capital e seu modelo predador de produção demercadorias, a cultura brasileira e a estereotipia do rural, os conflitos agráriosdecorrentes da luta pela terra e a presença dos sujeitos coletivos, como foi ocaso dos três primeiros filmes mencionados e do último.

Na sessão onde foram exibidos os filmes “Acorda Raimundo” e “Comouma Onda no Ar”, a discussão foi enriquecida com a questão de gênero, noprimeiro caso, e no segundo, com a questão da organização de jovens em tornoda constituição de uma rádio comunitária.

No início de 2011, a exibição do documentário “Nós que Aqui Estamos,por Vós Esperamos” inseriu a discussão dos principais momentos históricos degenocídio, principalmente do nazismo e o massacre dos judeus. Durante asdiscussões deste filme os participantes abordaram a questão dos palestinos e asações do Estado de Israel. O grupo deixou-os a vontade para falar do tema, jáque o tema foi posto com naturalidade pela comunidade.

A apresentação e debate do filme “Diário de Motocicleta” agradarammuito os jovens assentados que puderam ter uma abordagem sobre Che Guevaraa partir de uma perspectiva histórica.

Para o público infantil foram projetados os filmes: Formiguinha Z, CasteloRá-Tim-Bum e Fuga das Galinhas. Em cada sessão procurou-se abordar de formalúdica temáticas como sujeito coletivo e a possibilidade de superação do statusquo e, também, um pouco do sonho e do fantástico num mundo mágico. No

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último filme mencionado analisou-se, ao lado das crianças e pais, o significadoda liberdade, trabalhada metaforicamente na necessidade de fuga das galinhase o respeito à força de uma comunidade organizada na superação da situação deopressão.

A vigência do projeto foi de seis meses (agosto de 2010 a janeiro de2011). Neste período foi possível viabilizar a infraestrutura necessária (comprade material incluindo vídeo, telão, filmes, cadeiras, etc.) e desenvolver asatividades culturais. Estas, porém, não se extinguiram com o término do projeto,aliás, ainda estão acontecendo, ainda que sem a mesma sistematicidade, emoutro acampamento mais próximo, o Aparecida Segura do município deOrlândia,SP. Outros filmes e outras temáticas estão disponíveis e vão sendoutilizadas de acordo com as necessidades do trabalho de extensão desenvolvidonas diversas comunidades rurais.

Paralelamente às atividades desenvolvidas no assentamento17, o projetotambém aconteceu com educandos do terceiro ano do Ensino Médio da EscolaEstadual “Professor Sérgio Leça Teixeira” de Franca. Entretanto, o processometodológico de trabalho se diferenciou, pois para além de um debate a respeitoda formação político-cultural, que era o que se dava com os assentados, tinhatambém a finalidade de buscar uma aproximação com a questão da terra econtribuir para a construção de uma visão mais respeitosa para com ostrabalhadores do campo.

Numa perspectiva dialógica e horizontal, o NATRA levantou com oseducandos os temas que acreditavam ter maior relevância, e a partir disto, foramfeitas as escolhas dos filmes. O tempo disponível era de 90 minutos, o quesignificou importante limitação e empecilho ao trabalho do grupo, visto que aexibição dos filmes, em sua maioria, ultrapassava esse tempo. Para solucionartal dificuldade, os extensionistas decidiram, de modo coletivo com os educandosexibir documentários ou filmes de menor duração ou que este fosse editadopara dar tempo para o debate que ocorreria após cada sessão.

O filme “Ilha das Flores” trouxe para a discussão questões como otrabalho, a pobreza e a questão ambiental. O envolvimento e sensibilização doseducandos ficaram evidentes ao final do documentário, em especial com ascenas finais que trazem a dura realidade do ser humano que nesta sociabilidadepode ser tratado sem nenhum respeito ou dignidade.

“Terra para Rose” que é um longa metragem exigiu que os extensionistasse debruçassem para viabilizar sua edição, de maneira a diminuir o tempo eviabilizar a sessão e o debate em 90 minutos. Isto fez com que o filme fosseassistido e discutido previamente pelo grupo; feita esta atividade, os bolsistasse encarregaram da edição do filme. Este foi exibido para os jovens dos terceiros17 As atividades na escola ocorreram apenas durante o ano letivo de 2010 se estendendo durante osegundo semestre.

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colegiais, que demonstraram amplo interesse na discussão acerca daconcentração de terras. Neste dia a presença do professor de geografia enriqueceudebate e motivou o grupo a novas discussões.

Na escola, as oficinas de apresentação de filme se mesclavam comatividades que traziam outras manifestações culturais como música e a poesia.O NATRA, após um debate sobre campo/cidade propôs a apresentação de “Comouma Onda No Ar”.

Em dezembro aconteceu a exibição de “O Ano que Meus Pais Saíramde Férias” o que para o NATRA foi muito importante, visto que, ainda que comum número menor de espectadores, houve a participação dos pais dos educandos.Embora a avaliação do Núcleo tenha sido positiva em relação às exibições, anecessidade de ampliar o projeto na comunidade ficou bastante evidente e, ogrupo pretende propor novo projeto envolvendo não só os estudantes, mastambém suas famílias.

O desenvolvimento do projeto, incluindo os trabalhos nos dois espaços,ou seja, tanto nas comunidades rurais, quanto na escola de Franca, foi umaprendizado fundamental para os integrantes do NATRA e possibilitou efetivaro tripé da universidade de maneira a envolver ensino, pesquisa e extensão. Opreparo das atividades trouxe leituras e debates que permitiram aos extensionistasampliar sua perspectiva sobre a questão agrária, a cultura e a educação brasileirae sua relação com os movimentos sociais. Além disso, contribuiu paradesenvolver habilidades mais técnicas como fazer relatório de atividades, editarfilmes, trabalhar em equipe de maneira interdisciplinar e conhecer e respeitaros processos individuais e coletivos das classes populares.

Dentre os participantes do NATRA havia o revezamento nasresponsabilidades para com as oficinas, mas contemplando que os diversosextensionistas tivessem a experiência de responsabilizar-se tanto por umaatividade nos assentamentos rurais, quanto na escola. Esta troca com os jovensassentados, com as famílias e também com os estudantes da periferia trouxepara o grupo uma possibilidade impar de aprendizado e experiência de trabalhocoletivo.

Considerações FinaisA intenção deste trabalho foi relatar as experiências do projeto “Cinema

da Terra: as culturas em movimento nas áreas rurais da região de Ribeirão Pretoe na periferia urbana de Franca”. Para subsidiar as atividades do grupo narealização deste projeto, foram organizados ciclos de estudos acerca de temasconsiderados importantes para as discussões após a exibição dos filmes. Nesteprocesso, a leitura crítica e desmistificadora da realidade e dos movimentossociais permitiu aos envolvidos uma formação comprometida com umaperspectiva teórica que se alinha com os interesses do trabalho.

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A parceria com o movimento social e com a escola, bem como ofinanciamento público, foram fundamentais para efetivação da proposta. Deum lado viabilizou a inserção nestes espaços e permitiu uma relação horizontale respeitosa entre a comunidade e a universidade. O financiamento do projetofoi importante, pois viabilizou a compra de equipamentos fundamentais para arealização do Cinema e possibilitou que o grupo adquirisse autonomia paraefetivar suas ações em áreas sem infraestrutura, como a falta de energia elétrica,em assentamentos e acampamentos da região.

O grupo avaliou que o projeto teve considerável relevância na articulaçãoda juventude nos espaços em que as atividades propostas foram desenvolvidas.Além disso, foi possível fortalecer os vínculos dos extensionistas junto àscomunidades participantes através do contato proporcionado pelas ações doprojeto.

A exibição dos filmes na escola possibilitou que os educandos do 3ºano do Ensino Médio, moradores da área urbana de Franca, tivessem acesso àrealidade agrária atual e à problemática da luta pela terra e dos movimentossociais. Os educandos consideraram as posições sobre a urgência da reformaagrária apresentadas através das oficinas, diferente das posições difundidas pelamídia em geral e o senso comum, demonstrando criticidade nas discussões.

A partir da avaliação do projeto, o NATRA entendeu a necessidade de,não só dar continuidade a esta atividade, mas também ampliar sua abrangência.O bom andamento das atividades evidenciou que aliar obras como cinema,documentário, entre outros, às ações é uma forma de fortalecer a construção desujeitos coletivos, com condições para questionar a estrutura social vigente ecompreender a necessidade de transformá-la.

O Núcleo avaliou também que esta atividade do Cinema contribuiu parao fortalecimento dos vínculos e do compromisso dos extensionistas com a lutados trabalhadores. Estes extensionistas se constituem no grupo que Gramsci(1982) chamou de intelectuais orgânicos. Segundo este autor toda classe socialtem seus intelectuais. O proletariado necessita dos conhecimentos dosintelectuais orgânicos para ajudar a realizar uma leitura do mundo e, assim,possibilitar construir alternativas de hegemonia, no contexto de luta pelaqualificação da vida, em todos os sentidos: espirituais e/ou materiais.

A escola, para Gramsci é a instituição que prepara estes intelectuais,daí a necessidade de os movimentos sociais aproximarem-se dela para conquistaros seus futuros intelectuais.

A universidade como espaço de construção de conhecimento deve abrir-se à reflexão de toda a comunidade acadêmica: que conhecimento se estáproduzindo, para que e para quem os está produzindo? Qual o lugar dosmovimentos sociais nos debates sobre a produção do conhecimento?

A presença de grupos como o Núcleo Agrário Terra e Raiz na UNESP

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de Franca, contribui para esta reflexão. A participação dos/das natreanos/nasnos espaços de debate trazendo questões como luta pela terra, reforma agrária,entre outros, coloca na pauta da universidade o desafio de criar condições paraformar sujeitos com consciência crítica capazes de, no limite, contribuir para aconstrução de conhecimento que faça o enfrentamento das desigualdades sociaise, portanto, beneficie a maioria da população.

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PARTE 3Saúde do Trabalhador e Agroindústria Canavieira

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ENERGIA PARA QUEM? O discurso do combustívelrenovável e os rebatimentos para os trabalhadores daagroindústria canavieira

Marcos Paulo Rocha Fernandes1

Edvânia Ângela de Souza Lourenço2

Das cinzas do café se fez a industrializaçãoA crise de 1929 foi um divisor de águas na história e na economia brasileira.

Para trás, ficaria o passado, a economia primário exportadora, um Estado poucointervencionista e oligarquias regionais que dividiam o poder. Na época, o paístinha 35 milhões de habitantes, dos quais 75% de analfabetos, com menos de 30%residindo na área urbana (CANO, 2000, p. 160).

Fernandes (1975) explicita que a formação econômica brasileira estevedurante todo o período colonial estagnada, devido ao contexto sociopolíticoque absorvia objetiva e subjetivamente os agentes econômicos limitando-os econdenando-os a dimensão colonial. Com a formação do Estado nacional houveo esforço para a formação da economia interna com o desenvolvimento de váriasInstituições e das condições para a expansão de novas atividades econômicas.Dois novos personagens caracterizam as intensas mudanças nas estruturas sociaise econômicas até então vigentes, são eles: o migrante e o fazendeiro de café.

Os efeitos inovadores baseavam no espírito burguês, mas sem rompercom as antigas estruturas. A incipiente formação industrial, o comércio deexportação e importação, os novos personagens (comerciante, banqueiro,funcionários públicos) entre outros, a formação de uma massa de assalariados,foram configurando o processo de urbanização e diversificação da sociedade.Contudo, Fernandes (1975) explica que as estruturas do mundo colonial, noque diz respeito ao substrato moral e social, de algum modo, perpetuou-se nanascente sociedade nacional e, logo após, industrial evitando que o processo de1 Discente da graduação, 3ª ano, de História, da Universidade Estadual Paulista “Júlio MesquitaFilho”. Faculdade de História, Direito e Serviço Social (FHDSS), Franca/SP. É bolsista PIBIC, doProjeto de Pesquisa “O Processo de Trabalho na Agroindústria Canavieira: os desafios para o SistemaÚnico de Saúde (SUS) e sindicato dos trabalhadores” coordenado pela Profa. Dra. Edvânia Ângelade Souza Lourenço e apoiado financeiramente pelo CNPq, conforme edital 02/2010, processo número401159/2010-8. É membro do grupo de Estudos e Pesquisas: Teoria Social de Marx e da linha depesquisa “Mundo do Trabalho: Serviço Social e Saúde do Trabalhador (GEMTSS).2 Professora do Departamento de Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS)- UNESP- Franca/SP. Pesquisadora e Coordenadora do Projeto de Pesquisa “O Processo de Trabalhona Agroindústria Canavieira: os desafios para o Sistema Único de Saúde (SUS) e sindicato dostrabalhadores” apoiado pelo CNPq. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Teoria Social deMarx, responsável pela linha de pesquisa “Mundo do Trabalho: Serviço Social e Saúde do Trabalhador(GEMTSSS)“, também é pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisas sobre Saúde, Qualidade deVida e Relações do Trabalho (QUAVISSS), UNESP-Franca/SP. Endereço eletrônico:[email protected]

CAPÍTULO 13

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industrialização fosse revolucionário.A respeito da revolução burguesa o autor deixa claro que, no Brasil,

essa não ocorreu no Brasil, aqui não houve o processo revolucionário nos moldessimilares do contexto europeu, mas a partir da Independência, pode ser vistapor meio dos fatores e condições histórico-sociais que sustentaram a formaçãodo Estado Nacional e da modernização do país, sobretudo, do viés econômico,que mediou a formação de novos moveis econômicos, contudo, sem mexer naestrutura da grande lavoura, a qual foi adaptada para maiores possibilidades delucro por meio do cultivo de produtos exportáveis, mantendo a concentração dariqueza nas mãos de pequenos grupos e a exploração do trabalho sob o mantodo assalariamento e da suposta liberdade.

A lavoura de café manteve as características da agricultura extensiva ea exploração do trabalho, mas potencializou o aparecimento de novos tipos deagentes econômicos. Embora, Fernandes (1975) deixa claro que o substratocultural do antigo Senhor de Engenho subsistiu nas personalidades que seenriqueceram e se fizeram respeitar por meio de símbolos. Ou seja, as elitessolaparam a estrutura material da Colônia, mas manteve as estruturas do poderpolítico adaptadas, assim, “[...] da escravidão à extrema concentração de rendae do monopólio do poder por reduzidas elites, com a marginalização permanenteda enorme massa de homens livres que não conseguia classificar-se na sociedadecivil e a erosão invisível da soberania nacional nas relações econômicas,diplomáticas ou políticas das grandes potencias (FERNANDES, 1975, p. 33).

Cano (2000) mostra que da nascente classe operária e de um pequenosegmento da classe média, surgiu varias agremiações e partidos políticoslibertários. As oligarquias detinham o poder do Executivo central e dos Estados,controlando as eleições e a justiça - o aparelho repressivo. O exército, por meiode seus jovens oficiais, ansiava por maior profissionalismo e modernização dopaís e, junto com a pequena classe média, pela moralização dos processoseleitorais (CANO, 2000, p. 160).

O potencial da economia brasileira, ainda de base agrário-exportadora,sofreu forte impacto com a “crise de 29”:

[...] penso que as condições econômicas ao final da década de1920 estavam amadurecidas para pressionar a sociedade bra-sileira para superar a crise cafeeira quanto a industrial, bemcomo para aprofundar a industrialização. Ainda que por meiode “visões parciais”, as principais frações da classe dominantetinham consciência da necessidade premente de superar a cri-se, e pressionaram nesse sentido, mesmo antes de seu momen-to mais culminante, que foi o final de 1929 [...] o liberalismode Washington Luiz ainda tentou, até setembro de 1930, man-ter a política econômica de seu receituário, exaurindo nossasreservas e aprofundando a crise. A revolução de 1930 alteraria

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profundamente esse quadro, enfrentando a adversidade exter-na- principalmente do imperialismo- e usando soberanamentenossa política econômica. Ao contrário de vários países lati-no-americanos, que estavam atrelados á área do dólar e às de-terminações da política e da economia dos EUA (ou da Ingla-terra), o Brasil fez parte desse restrito grupo de países queenfrentaram a situação e enveredaram, assim, mais do que,outros, pelos caminhos da industrialização (CANO, 2000, p.162-163).

Segundo Cano (2000) os mecanismos de recuperação à crise cafeeirase deu embasado em planos de valorização do café, em 1906, 1917, e 1921tiveram resultados consideráveis forçando o governo federal elaborar uma“Política de Defesa Permanente” do café, contudo, esse Plano só se iniciariaem 1924 com a passagem da responsabilidade que seria do governo federalpara o governo de São Paulo e ocorreu até 1926. Com a previsão que as safrasde 1927-1928 seriam o dobro das dos últimos três anos, criou-se uma esperançaalentadora para os produtores. Para Cano (2000), mesmo com o preçointernacional do café baixando, em 1927, a consistência da política de defesapermanente dirigida ou guiada pelo Instituto do café do Estado de São Paulofez com que o preço do café retomasse a níveis dos anos anteriores, atingindo,em 1928, níveis mais altos dos que os de 1926. Entretanto, segundo o autor, acrise se agravava momento a momento, a safra de 1928-1929 correspondeu àmetade da anterior. Contrariando as expectativas do ciclo, a safra de 1929-1930 estimada no segundo semestre de 1929 em volume elevado,corresponderam a quatro anos de exportações normais, isso graças a intervençãodo Instituto do Café, que conseguiu manter ou regular os preços até setembrode 1929 (CANO, 2000, p. 163-164). O autor coloca alguns motivos que ajudaramno fomento da crise:

[...] dois eventos precipitariam os preços para enorme baixa.No plano interno, o governo federal, tendo em vista a campa-nha sucessória da Presidência da Republica e sua política eco-nômica deflacionista e de estabilização cambial, deixou desocorrer o Instituto do Café, gerando clima de desconfiançano comercio cafeeiro. Logo a seguir, no plano externo, a eclosãoda crise na Bolsa de Nova York repercutiu pronta e negativa-mente no mercado internacional do café. A manutenção dapolítica econômica federal, que provocou inclusive a baixa dovalor-base para o financiamento interno do café, precipitouainda mais a baixa do preço, demonstrando a impossibilidadede se continuar com a política de sustentação cafeeira nosmoldes em que estava organizada. A insistência na política delivre conversibilidade, ainda vigorando em plena crise, fariaque, além da grande fuga de ouro e divisas, ela gerasse, por

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isso mesmo, forte redução no meio circulante, que passa de3,4 para 2,8 milhões de contos entre 1929 e 1930. Dada a es-trutura e o funcionamento do sistema bancário da época, essefato restringiria as possibilidades de socorro creditício, agra-vando a crise com a diminuição da liquidez. O Estado de SãoPaulo conseguiu, ainda em 1930, empréstimos externo de £20 milhões, mas a política de sustentação cafeeira ruiu. Com arevolução, o governo federal reorganizaria a política de defesado café, retomando, a partir de fevereiro de 1931, as comprasde excedentes e criando o Conselho Nacional do Café, “quefoi aos poucos assumindo a política cafeeira nacional”. Osprincipais instrumentos de política econômica utilizados paraenfrentar a crise foram, resumidamente: 1) proibição de novosplantios de café, salvo nos estados de menor expressão cafeeira;2) imposto adicional sobre cada saca de café exportada (che-gou a15 shilings por saca) que só aparentemente onerava ofazendeiro, pois, dada a relativa inelasticidade- preço de suademanda-, este imposto significava, na verdade, ônus adicio-nal para o consumidor internacional do café; 3) cota de sacri-fício, em que uma fração de cada saca era cedida ao preçobaixo pelos fazendeiros, para a destruição de cafés de baixaqualidade; 4) compra pelo governo,a preços mínimos garanti-dos, do restante da safra, para retenção de estoques ou eventu-al exportação ( CANO, 2000, p. 164-165).

Com essa política chegou a destruir entre 1931 e 1942, cerca de 78milhões de sacas de café “enxugando” o excedente não-exportável. Parte doesquema financeiro se constituía do imposto adicional já referido, e o restantede recursos públicos, do Banco do Brasil e do Tesouro Nacional. A políticabrasileira para essa crise significou, assim, verdadeira antecipação a políticakeynesiana anticíclica que seria formulada em 1936, que permitiu que sesustentasse, em grande parte, a renda e o emprego da economia (CANO, 2000,p. 165-166).

Antes da crise, a elevada rentabilidade do café praticamente impediraque outros produtos de exportação pudessem ser economicamente produzidosna agricultura capitalista de São Paulo. Com a crise, os preços externos do cafécaíram, ao mesmo tempo, os preços de alguns produtos foram sustentados nomercado internacional pelos países que os controlavam, tornando-os atrativos.Esse foi o caso do algodão americano, que permitiu abrupta alteração na estruturade preços relativos algodão/café, aumentando a rentabilidade relativa do algodãobrasileiro para exportação (CANO, 2000). Esses fatos propiciaram, ao longo dadécada de 1930, mais uma transformação importante na agricultura de São Paulo,expandindo-se e modernizando-se as culturas do algodão e da cana-de-açúcar,produto que passaria a ter no governo federal, controle e amparo. Ambospassaram a ser produzidos em São Paulo, em bases técnicas e econômicas muito

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mais avançadas do que no Nordeste que perdeu competitividade interna. Cano(2000, p. 166-167) destaca que em 1931 o Produto Interno Bruto (PIB) foi 4%menor do que o de 1928. Contudo, a intervenção do governo na política propiciourápida recuperação, assim, produto agrícola e o industrial eram respectivamente13% e 5% maiores, em 1933.

A partir de 1930, o governo brasileiro intervém nas políticas agrícolas ecomerciais, inclusive por meio da federalização das políticas de fomento e defesados segmentos rurais organizados. Szmercsanyi e Suzigan (2002) expoem queno período de 1930-1946, houve uma diversificação e crescimento significativono conjunto da produção agrícola (exceto o café), o que foi associado tambémpelo crescimento da taxa populacional e de urbanização. O fortalecimento daeconomia esteve voltado para o aumento da produtividade e da exportação,cujo plano de governo, reforçou o poder central, contemplando os interesses daoligarquia rural. A elevação agrícola pode ser vista nas produções de algodão,arroz e mandioca, cujo crescimento físico entre os anos mencionados foi de212%, 203% e 134%, respectivamente. Em segundo plano vinha a cana-de-açúcar e o cacau que tiveram um crescimento de 59% e 90% no período, enquantoque a população apresenta um crescimento em torno de 60%.

Observa-se que, em 1930 a 1945, o Governo Federal criou oureorganizou varias instituições estatais, denominadas por produto rural atendido,cobrindo um leque de políticas agrícolas que iam além da mera articulação dapolítica econômica do Estado. Em 1931, foi criada a Comissão de Defesa daProdução do Açúcar (CDPA), posteriormente transformada no Instituto doAçúcar e do Álcool (IAA), em 1933. Originalmente acionada como estruturade defesa da economia açucareira contras as dificuldades internacionais criadaspela crise de 1929, o IAA evoluiu até se transformar no organismo regulador daprodução, dos preços e de sua distribuição regional (São Paulo e Nordeste,basicamente), e ainda no lócus de interação dos interesses dos proprietáriosrurais e agroindustriais em conflito, função que foi explicitamente atribuídapelo Estatuto da Lavoura Canavieira (1941) (SZMERCSANYI; SUZIGAN,2002, p. 211-212).

Frente a crise do café, o Estado Brasileiro mostrou-se preocupado emfortalecer a economia e, no âmbito, agrícola a solução foi investir na culturacanavieira, na expectativa de retornar ao apogeu de outrora. Pode-se dizer quese iniciou a “modernização da agricultura”, com incentivo às tecnologias a partirda intervenção do Estado brasileiro, tal interferência logrou em edificar asestruturas para o Proálcool, que, como se verá adiante, fez da agricultura, oagrobusiness, que a partir da agroindústria canavieira investiu na proteçãoenergética, gerando um discurso de um combustível ecologicamente corretopor se tratar de uma espécie renovável, mas nada se fala da exploração da forçade trabalho empregada neste setor.

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Proálcool e as intermediações do Estado para a modernização da agriculturaSegundo Souza (1999 apud COURY, 2008, p. 8), a agroindústria

sucroalcooleira, reage em efeito de encadeamento, onde um setor da economiaatrai ou puxa outro setor, por meio da venda de seus produtos ou por meio dacompra de insumos.

A agroindústria canavieira é um exemplo clássico no Brasildesse tipo de indústria motriz, formando ao seu redor verda-deiras cadeias econômicas interligando diferentes indústrias eaté setores de serviço, desde a produção de bens de capital emaquinários agrícolas ate escritórios de exportação e portos(COURY, 2008, p. 8).

Alves (1991) explica que o fato do álcool ser produzido a partir doresíduo natural da produção de açúcar, ou resultado da destilação do caldo dacana moída, esse se tornou uma formula acertada para os usineiros aquecer assuas economias, otimizando ao máximo o aproveitamento do produto, a medidaque nada se desperdiça e, sobretudo, para equilibrar as perdas nos períodos dequeda do preço do açúcar. Assim, a construção de destilarias anexas foifundamental para o aumento da produtividade e para o enriquecimento dosproprietários do setor.

A partir de 1973, segundo Alves (1991), as quedas colossais do preçodo açúcar no mercado internacional provocou a intervenção direta do Estadobrasileiro na economia agrícola, sobretudo, a partir da criação do Proálcool queem linhas gerais iria dar um novo sentido econômico ao setor sucroalcooleiro,como afirma o autor:

[...] o ano de 1975 marcou o termino de um período de euforiano comercio externo de açúcar, com uma acentuada queda dospreços do produto no mercado internacional. Estes preços vi-nham apresentando uma tendência ascendente desde o finalda década de 1960. Depois de ter atingido o seu nível máximode todos os tempos, em novembro de 1974 (cerca de US$ 1400TM), as cotações do açúcar demerara foram baixando abruptae ininterruptamente, alcançando US$ 268 por TM em dezem-bro de 1975, e fixando-se em torno de US$ 300 ao final doprimeiro trimestre de 1976 (SZMRECSANY, 1979 apudALVES, 1991, p. 32).

Durante o governo militar, iniciado com o golpe em 1964 e sóinterrompido com a democratização do Estado Brasileiro em meados dos anosde 1980, a discussão da modernização da economia veio a tona, sobretudo,aquela relativa à agricultura, tida como atrasada. Foi a partir da constatação dabaixa produtividade, que o IAA e os usineiros se posicionaram indicando anecessidade doccrescimento do setor, a partir das exportações, ou seja, teriaque tornar o produto competitivo no mercado internacional, - no que se refere a

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custos e rendimentos - (ALVES, 1991, p. 32-33). Segundo o autor, esse objetivosupôs, o que de fato ocorreu, um forte papel interventivo do Estado:

[...] com este objetivo o IAA cria, em 1971, o Programa Naci-onal de Melhoramento da Cana-de-açúcar, que necessita, paraimplementa-lo, de uma nova entidade, o PLANALSUCAR. Oprograma objetivava a implantação e execução de projetos depesquisa nos campos da genética, fitossanalise e agronomia,para obtenção de novas variedades de cana com maiores pro-dutividades agrícola e industrial. A eficácia deste programa demelhoria da qualidade de matéria prima dependia de outrosprogramas de modernização da agroindústria, tendo em vistatambém o aumento da produtividade industrial. Assim, em1971, foi criado o Programa Nacional de Racionalização daAgroindústria Açucareira, que previa um conjunto de medi-das para a modernização do setor, compreendendo: fusões eincorporações de unidades de produção; desenvolvimento denovos produtos e processos; construção de terminais açuca-reiros etc. Todas essas medidas visavam reduzir os custos deprodução, bem como, diminuir a histórica dependência do se-tor para com os recursos e medidas do Estado. A subida dospreços do açúcar no mercado externo fez com que aumentas-sem os recursos acumulados no Fundo Especial de Exporta-ções, constituído ao fim da década de 50, destinado a financi-ar a modernização do setor. Em 1972 o fundo dispunha de 15bilhões de Cruzeiros, dos quais 8 bilhões foram destinados amodernização das usinas, 2 bilhões foram destinados a cons-trução de terminais marítimos de exportação e 5 bilhões desti-naram-se a subsidiar o preço do açúcar para exportação, para-lelamente, há deterioração da situação das reservas brasileirasprovocadas pela elevação do preço do petróleo importado, quepassou de US$ 2,5 por barril em 1973, para US$ 10,5 em 1974.Estas subidas agravaram os desembolsos do Brasil com o pe-tróleo, que sobem de US$ 0,6 bilhões em 1973, para US$ 10,6bilhões em 1981. Alem desta subida de preços do petróleo,havia o perigo do, na época influente, cartel da OPEP (Organi-zação dos Países Exportadores de Petróleo) promover aumen-tos sucessivos no preço do produto. Estes aumentos visavam,segundo o OPEP, compensar o efeito perverso da deterioraçãodos termos de intercambio, que beneficiava os países industri-alizados e penalizava os exportadores de matérias primas, in-cluindo ai os exportadores de petróleo. No mesmo sentido,eram divulgados os sombrios levantamentos sobre as reservasmundiais de petróleo, que apontavam pela necessidade urgen-te no mundo encontrar um sucedâneo energético do petróleo,um mineral não rapidamente renovável, o que ainda hoje umaquestão não resolvida (ALVES, 1991, p. 33-34).

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A crise do petróleo no inicio da década de 1970 e a demandainternacional pelo açúcar parece que foram os pilares fundamentais para a criaçãodo Programa Nacional do Álcool (PROÁLCOOL), quando a produção de álcoolcarburante a partir da cana de açúcar ascendeu a possibilidade de se produzirum combustível renovável, que, segundo Coury (2008), marcou a aliança entreo governo federal e o setor sucroalcooleiro que se concentrou no Centro-Sul dopaís, especificamente no Estado de São Paulo.

Segundo Puglas Silva (2006) esse Programa proporcionou umdesenvolvimento tecnológico o suficiente para transformar o setorsucroalcooleiro num eficiente e competitivo instrumento da economia brasileira,dado que se integrou em dois ramos da economia brasileira: alimentação eenergia, e esses dois segmentos fazem com que o setor da agroindústria secomunique com todos os outros segmentos da economia nacional, o autor declaraque tudo isso graças a luz ou o avanço que o Proálcool legou.

Para Alves (1991) a idéia que o Proálcool tenha ajudado na construçãode um Brasil moderno e tecnológico, deve ser vista e analisada com mais vagar,uma vez que este Programa e os seus respectivos investimentos não visoucontemplar as reais necessidades dos trabalhadores rurais.

A cana de açúcar sempre fez parte da economia agrária brasileira, noinicio da colonização, foi cultivada em lavouras de grande extensão voltadapara o atendimento da demanda européia do açúcar, mas com o passar do tempofoi utilizada também em pequena escala para a fabricação de água-ardente,rapadura e forragem, como mostra Szmrecsányi (1979). Contudo, o apoiogovernamental para o cultivo em grande escala e produção industrial se deu pormeio dos planos e o Proálcool concentrou os esforços para a pretensa saídabrasileira da crise do petróleo. Além disso, representou o projeto de continuidadedo processo de “modernização conservadora” da agricultura, que a partir doauxilio financeiro do Estado criou possibilidades de avanço industrial daprodução do açúcar e do álcool (sem mencionar os demais produtosagropecuários), transformando a capacidade ociosa dos antigosempreendimentos sem mexer na estrutura agrária, que se manteve concentradanas mãos de poucos. Isto significa, que o Proálcool ao mesmo tempo em que seconstitui num instrumento econômico de salvação de um setor da atividade, étambém continuidade e aprofundamento de um projeto de desenvolvimento daagricultura (ALVES, 1991, p. 34).

A implantação do Proálcool pode ser dividida em duas fases bemdefinidas:

[...] na primeira fase do programa, se aproveita a capacidadeociosa do setor açucareiro com a implantação de destilariasanexas ás usinas de açúcar existentes. Nesta, se prioriza a pro-dução de álcool anidro, para ser misturado como aditivo a ga-

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solina, em substituição ao poluente chumbo-tetraetila, na pro-porção de 20% de álcool para 80% de gasolina para cada litrodo produto. Esta mistura prescindia de qualquer alteração nosveículos disponíveis no mercado [...]a segunda fase doProalcool apresentou profundas modificações tanto na estru-tura produtiva do álcool, quanto na estrutura de consumo deautomóveis. Esta se caracteriza pela produção de álcoolhidratado para o consumo direto dos automóveis produzidos eexistentes no país tiveram que ter seus motores projetados ouadaptados para o consumo deste combustível, o qual não ne-cessitava, para ser consumido, de nenhuma mistura a gasolina(ALVES, 1991, p. 36-37).

O apoio financeiro e ideológico do governo somado as condiçõesclimáticas do país e, ainda, a extensão territorial e a ausência de uma reformaagrária que limitasse o predomínio da monocultura e do latifúndio criaram ascondições favoráveis para a alta rentabilidade dos usineiros.

Etanol: o discurso do combustível renovável nas bases da agriculturaconservadora

A partir do Proálcool houve o incentivo para a criação das “grandesusinas”, a terra e a renda gerada passaram a ser definitivamente concentradasnas mãos da nova classe empresarial que surgiu subsidiada pelos recursospúblicos: os usineiros. Nesse quadro histórico, concentrou-se o poder político eeconômico nas mãos dos usineiros, em detrimento das alternativas dedesenvolvimento que contemplassem os trabalhadores, os municípios e apopulação das áreas de concentração da cana. Em conseqüência as políticasbrasileiras nos espaços canavieiros sempre foram voltadas quase exclusivamenteàs demandas dos latifundiários, em prejuízo dos trabalhadores, de seus direitose da sua cidadania (PAIVA; PLASSAT, 2008, online).

O Proálcool não foi a única tentativa brasileira de desenvolvercombustíveis renováveis, tendo estes esforços se iniciado ain-da nos anos 20 e impulsionados durante a II Guerra Mundialem função do risco de interrupção da importação de petró-leo.” Em 1975 o governo criou, mas não implementou oProóleo - Plano de Produção de Óleos Vegetais para FinsEnergéticos transformando-o em programa em 1983, quandodeu inicio ao Programa Nacional de Óleos Vegetais para Pro-dução de Energia, também chamado de Proóleo. O foco destePrograma foi o desenvolvimento e a produção de biodisel apartir de algodão, bagacu, resíduos, palma, algodão, canola,girassol, nabo forajerro, mamona, soja e gordura animal paramisturá-los ao diesel. Os esforços foram descontinuados em

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1985 devido a redução dos preços do petróleo e retomados em2003, com Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel(PNPB) (MASIERO; LOPES, 2008, p. 60, grifo do autor).

O autor ainda destaca:Os esforços de investigação de novas formas de energia alter-nativa tem sido orientados pelo aumento da demanda porbiocombustiveis que se caracteriza por: a) aumentos contínu-os do preço do petróleo que hoje e a principal fonte primariade energia e devido a sua crescente utilização tem causado oencarecimento das matrizes energéticas de varias nações de-pendentes da commodity, desencadeando sérios desequilíbriosem suas balanças comercias; b) benefícios que a expansão daulitilizacao dos biocombustiveis pode trazer para o setor agrí-cola por meio da implantação de projetos específicos para finsenergéticos com o objetivo de promover o desenvolvimentoregional sustentável; e,c) redução das emissões de gáscarbônico que alem do beneficio em si poderá ser fonte deganhos no mercado de carbônico uma vez que a parcela degases não emitidos por um pais poderá ser comercializada naforma de créditos a outro participante interessado em não re-duzir suas emissões (MASIERO; LOPES, 2008, p. 61).

Mas mesmo com o subsídio estatal a economia açucareira e, sobretudo,alcooleira não ficou isenta dos períodos de escassez e superprodução, assim,em fins dos anos de 1980, segundo Coury (2008, p. 11), a crise dedesabastecimento de álcool indicou o declínio do Proálcool. Devido a umamudança política e uma crise fiscal, o governo passou a cortar gastos comsubsídios, salgando os custos de produção e do produto no mercado, gerando oabandono gradual dos carros a álcool e o retorno à gasolina, que ficara maisbarata a partir de 1986 com o contra-choque do petróleo. O autor ainda afirmaque: “[…] ao longo da década de 1990, o álcool voltava a ser um produtosecundário para a indústria sucroalcooleira e o PROÁLCOOL passou a ser vistocomo um fracasso, que deveria ser deixado no passado.”

Já na primeira década do século XXI, o discurso do combustívelrenovável retorna com mais força. A visita de George W. Bush, então Presidentedos Estados Unidos da América (EUA), ao Brasil em 2007, significou não só asubstituição do nome de álcool para o etanol, mas a abertura para o mercadoexterior, um mercado de energias, altamente competitivo e rentável, além douso do álcool significar o uso consciente do combustível à medida que vemsendo apontado como menos poluente, o que diante do cenário de devastaçãoambiental e poluição, assume, no imaginário popular, a dimensão de preservaçãodo meio ambiente. Desde então, álcool passou a ser chamado de etanol, inclusivea União da Indústria de Cana de Açúcar (ÚNICA) vem incentivando o uso

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deste novo termo, lançando inclusive campanha para sua popularização esubstituição do termo “álcool”, possivelmente devido a experiência mal sucedidado Proálcool. Não obstante, trata-se de sinônimos, como explica Coury (2008,p. 12).

No Brasil o etanol é utilizado como combustível automotivode duas formas: álcool hidratado, para carros a álcool ou flexfuel, e álcool anidro, que é adicionado a gasolina, atualmentena proporção de 25%. A diferença entre os dois é o teor deágua presente no produto: o álcool hidratado possui cerca de7% de água, enquanto o álcool anidro possui apenas 0,7% nomáximo (PETROBAS, 2007, p. 30).

No Brasil o etanol é produzido pela fermentação, por leveduras, docaldo extraído da cana de açúcar (ALVES, 1991). A produção do álcoolcombustível, no contexto brasileiro, se dá por meio da cana de açúcar. Contudo,outras culturas podem servir de matérias-prima, por exemplo, o milho, nos EUAe a beterraba, na Europa. Mas segundo a Cartilha da Petrobras (2007, p. 31),nestes casos, é necessário transformar o amido presente nestes alimentos emaçúcar, antes da fermentação. Esta etapa adicional aumenta os custos e reduz orendimento do processo, quando comparado a fermentação direta do caldo dacana. Após a fermentação, o produto passa por várias etapas, culminando coma sua destilação para retirar o excesso de água e adequá-lo ao uso do combustível,tal processo pode elevar os custos de produção, exigindo o subsidio dos governos.A América Latina, parte da África, Índia e o Sudeste Asiático produzem álcoola partir da cana-de-açúcar (PETROBÁS, 2007, p. 31).

O etanol, produzido no Brasil, a partir da cana-de-açúcar, conta comexpectativas de crescimento os próximos anos, considerando, sobretudo, oconsumo interno. Apesar das dificuldades, sobretudo, relativas a logística que,na grande maioria, é feita via rodoviária, embora em alguns casos usa-se ferroviasou dutos, produção projetada para 2019 é de 58,8 bilhões de litros, mais do queo dobro da registrada em 2008. “O consumo interno está projetado em 50 bilhõesde litros e as exportações em 8,8 bilhões” (BRASIL, 2011, online). Portanto,trata-se de um setor em franca expansão e “De acordo com a União da Indústriade Cana-de-Açúcar-Única, os investimentos em novas plantas e ampliação deusinas de álcool nos próximos, cinco anos somarão mais de R$ 17 bilhões.”(PETROBÁS, 2007, p. 34).

A projeção de crescimento não é apenas para o etanol, mas tambémpara o açúcar. Segundo o Ministério da Agricultura (BRASIL, 2011, online) oBrasil é responsável pela metade do açúcar produzido no mundo, e deve alcançarum aumento de 14,6 milhões de toneladas em relação ao período de 2007/2008,já para nível de exportação para o ano de 2019 está previsto 32,6 milhões detoneladas.

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Além dos subsídios diretos feitos pelo Estado para motivar e compensaro setor sucroalcooleiro, ainda é necessário destacar o papel das agências quefomentam pesquisas, as quais têm incentivado pesquisas voltada ao mercadodo etanol. Nesse contexto, merece destaque o trabalho da Fundação de Amparoa Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que tem viabilizado acordos entreuniversidades e empresas, na busca do melhoramento genético da cana votadopara energia, da produção de etanol e outros produtos a partir da celulose, denovos processos de alcoolquímica e do desenvolvimento de células decombustível a base de etanol (COMISSÃO MINAS E ENERGIA, 2008, online).

O podão golpeia a cana, e as usinas os seus trabalhadores“CORPO DOBRADO e podão na mão Manoel Rodrigues daSilva corta cana num canavial que se estende a perder de vista.De repente, sente tontura, e por força, tem que parar. Não é aprimeira vez que isso lhe acontece. Já sofreu enxaquecas edores em toda parte, tendo que ficar parado por dias a fio e atéser internado. Sua remuneração e seu emprego dependem dequanta cana consegue cortar por dia. O canavial abastece ausina de etanol Cosan S.A., maior exportadora de um com-bustível que políticos vendem mundo afora como uma alter-nativa limpa e renovável (Bloomberg Markets (novembro de2007) apud PAIVA; PLASSAT, 2008, p. 2).

Neste contexto, além do vertiginoso crescimento econômico é precisopensar que a produção do açúcar e álcool expõe os trabalhadores a cadência dotrabalho repetitivo e mal remunerado. Além disso, o trabalho é realizado abaixode chuva ou de sol, mesmo quando esse esquenta acima dos 35º graus. O trabalhodo corte da cana é realizado num ambiente repleto de fuligem e, muitas vezes,cercado por animais peçonhentos.

O consumo da força de trabalho na agroindústria canavieira, apesar daimagem de modernização, ainda não conseguiu se desvincular de elementosarcaicos como a monocultura, o latifúndio e a escravidão, claro, agora sob omanto do trabalho assalariado. A exploração implica não apenas em baixossalários, que nos moldes do pagamento por produção, eleva o ritmo a umaintensidade incapaz de ser suportada pelo corpo humano, resultando nasdenuncias de morte por exaustão3; como também nas precárias condições demoradia, alimentação e vida, uma vez que o trabalho realizado pelos negros de3 “No período de 2004 a 2006, houve 17 mortes, registradas pela Pastoral dos Migrantes, provocadas,supostamente, pelo excesso de esforço uma verdadeira overdose do trabalho denominada birola pelostrabalhadores” (SILVA; MARTINS, 2007, p. 13). Essas mortes soaram forte na sociedade mobilizandodiversos setores para discutir e tomar providências a respeito. Os autores chamam a atenção para asdez Audiências Públicas realizadas em defesa dos direitos humanos no trabalho e efetivação da NormaRegulamentadora (NR 31), a exemplo a saúde pública, incluiu no Plano Diretor de Vigilância emSaúde as ações de vigilância nas moradias dos cortadores de cana.

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outrora, hoje, é feito pelos migrantes, ou seja, a mão de obra não é fornecidapelas senzalas, mas pelas regiões mais pobres, assim, homens jovens advêm daregião Norte e Nordeste e se submetem as condições precárias de trabalho e devida, no interior do estado de São Paulo, fazendo o trabalho que os trabalhadoreslocais, não fazem pelo valor pago aos migrantes, inclusive muitos trabalhadorestêm sido encontrados em condições análogas a escravidão.

Segundo dados do Ministério do Trabalho, quase seis mil escravos foramlibertos em 2007 no Brasil pelas equipes do Grupo Móvel de Fiscalização epelas Superintendências Regionais do Trabalho, resgatados em situações tãodegradantes que configuram a chamada “condição análoga a escravidão”. Alocalização geográfica destes resgates é instrutiva: 1.064 foram encontrados noPará (Usina Pagrisa), 1509 no Mato Grosso do Sul (1.011 índios na usinaDebrasa, do Grupo José Pessoa e 498 na Dicol-Iguatemi), além de 113 em Goiás.Embora flagrante de trabalho escravo seja bem mais raro nos canaviais que napecuária, pela terceira vez em três anos, o recorde em libertação de escravos noBrasil é conquistada por canaviais (PAIVA; PLASSAT, 2008, p. 2). Para tanto,os autores ainda explicam:

[...] nos últimos 10 anos, apesar de o setor canavieiro ter sebeneficiado com uma grande expansão, o desemprego tempermanecido intenso nas principais áreas canavieiras brasilei-ras. Em São Paulo, tem ocorrido uma grande liberação de mão-de-obra permanente, em decorrência dos cortes nos custos deprodução. As usinas plantam e colhem cada vez mais com ummenor número de trabalhadores. Este processo está associadoa ampliação da mecanização, em meio a crescentes fusões deempresas.

Também em Alagoas e em Pernambuco, o quadro de desem-prego tem sido critico porque, além da pressão para reduzircustos, essas regiões tem atravessado profunda crise estrutu-ral, com fechamento de várias empresas e migração de empre-sas para o Centro-Sul e Centro-Oeste do país.

O amplo desemprego nas áreas canavieiras tem possibilitadoa fixação de níveis excessivos de trabalho em condições insa-lubre, bem como o descumprimento crônico da legislação tra-balhista. Também tem facilitado a “contratação” (ou melhor, oaliciamento) de trabalhadores de outros Estados ou de outrasregiões do mesmo Estado, alojando-se em condições precári-as durante toda a safra para evitar sindicalização (PAIVA;PLASSAT, 2008, p. 2).

“A violação dos direitos humanos e sociais em favor da acumulação de lucrosse manifesta na omissão de direitos e na negação de conquistas, ao sujeitar à servidãoaqueles que não reúnem condições para satisfazer dignamente as suas necessidades

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na sociedade de mercado” (CARVALHO, 2008, online).O trabalhador que corta em media 12 mil quilos ao dia anda8.880 metros; da 336.300 golpes de facão e faz em media36.630 flexões com as pernas e entorses torácicos para golpe-ar a cana. Para juntar as 12 toneladas ele percorre a distanciade 1,5 a 3 metros, 800 vezes, carregando feixes de 15 quilospor vez, portanto, realiza no mínimo 800 trajetos e 800 flexões,o cortador traja uma indumentária que o protege da cana, masaumenta sua temperatura corporal. A perda de água pelo orga-nismo pode chegar a oito litros por dia, em media. Todo esseesforço físico sob sol forte do interior de São Paulo, aliado aosefeitos da poeira, da fuligem expelida pela cana queimada(ALVES, 2003 apud CARVALHO, 2008, online).

O Relatório Nacional de Direitos Humanos, Econômicos So-ciais e Culturais, de julho de 2007, aponta a morte de 135lavradores, somente no interior do Estado de São Paulo. Algu-mas das principais causas de acidentes e mortes, de acordocom o estudo, estão relacionadas à ausência de equipamentosde proteção, desnutrição, insolação, alojamentos inadequados,exaustão, transporte irregular, carbonização e intoxicação comherbicidas e com gás carbônico liberado durante a queima dacana. (CARVALHO, 2008, online).

É interessante observar que a saída para a proteção da saúde dostrabalhadores têm sido marginais, em vez da garantia de um salário adequado efixo, e não mais por produção, instauram-se medidas voltadas quase queabsolutamente para o uso dos denominados Equipamentos de Proteção Individual(EPI), mas as condições de trabalho continuam as mesmas. Os EPI constituídosvestimenta e calçados pesados, luvas, botina com biqueiras, entre outros acabamcontribuindo para o aquecimento do corpo. Além disso, infelizmente, os EPIapesar de darem alguma proteção contra possíveis cortes ou picadas de animaispeçonhentos, além é claro da exposição excessiva ao sol, não evitam as doençasrelacionadas ao trabalho, causadas pelo movimento repetitivo e os mal estar.Observa-se que as denuncias de mortes por exaustão estiveram relacionadascom a sensação de câimbras num momento precedente a fatalidade.

As câimbras começam, em geral, pelas mãos e pelos pés, avan-çam pelas pernas até chegarem ao tórax, o que provoca fortesdores e convulsões, que se assemelham a um ataque nervosoepilético. As exigências físicas associadas a intensidade do tra-balho são denunciadas pela expressão de cansaço dos traba-lhadores do corte de cana. O distanciamento da família e dosamigos agrava o quadro de desmotivação desses trabalhado-res. O homem do campo perde a sua identidade quando a suacultura é massacrada pelo ritmo constante da produção capita-

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lista do etanol. A sua religiosidade fica em segundo plano, osritos, as festas e datas comemorativas não são praticadas (CAR-VALHO, 2008, online).

Os locais em que os migrantes temporários ficam alojados sãoverdadeiros depósitos de pessoas, onde elas dormem amontoadas em poucoespaço, de maneira improvisada, em beliches, colchonetes, redes de dormir, eonde é comum no verão a temperatura atingir médias de 30 a 40°C. Essesalojamentos são oferecidos pelas usinas; nos últimos anos, tem crescido as casasalugadas pelos próprios cortadores.

Assim, pode-se dizer que as senzalas do século XVIII e os alojamentosdo século XXI não são tão diferentes no que diz respeito ao tratamentodispensado aos trabalhadores. A falta de higiene e de conforto torna esses locaisinabitáveis.

“Estima-se que um trabalhador produza um faturamento superior a R$9.000,00 para o usineiro no mês; no entanto, o piso médio da categoria registradoem 2008 foi de apenas R$ 420,00 por oito horas diárias de trabalho”(CARVALHO, 2008, online). O autor destaca a conveniência do Estado comprecariedade do trabalho, sobretudo, normatizando-a, cita a Medida Provisórian. 410, criada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e editada no dia 28 dedezembro de 2007, a qual, segundo Carvalho (2007) é o resultado de um acordoentre o Ministério do Trabalho e a Confederação dos Trabalhadores daAgricultura (Contag) que determinou o fim da obrigatoriedade do registro emcarteira dos trabalhadores temporários no campo.

A medida permite aos usineiros contratarem pessoas para otrabalho temporário, sem qualquer direito trabalhista durantetodo o período da safra. De acordo com a nova lei, os trabalha-dores contratados para colheitas de curto prazo, como o cortede cana-de-açúcar, não terão mais a garantia de carteira assi-nada. O chamado contrato de trabalho rural por pequeno pra-zo é um retrocesso diante das conquistas históricas dos traba-lhadores, e um suporte para a existência da exploração de tra-balho escravo pelo latifúndio, já que não há mais garantia dedireitos trabalhistas, apenas um contrato temporário que po-derá ser elaborado a qualquer tempo para burlar a fiscalizaçãoe interrompido a qualquer hora, quando o usineiro bem enten-der (CARVALHO, 2008, online).

Observa-se que os trabalhadores rurais, ainda são contratados poragenciadores, “gatos”, como comumente são denominados. Eles sãoresponsáveis pela vinda de trabalhadores oriundos de outros Estados, quemarcados pela inacessibilidade a políticas de apoio ao pequeno produtor rural,pela expropriação e pela miserabilidade social, são facilmente iludidos pelaesperança de conseguir um emprego e salário que lhes dê condições de continuar

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a sobreviver. Assim, transformados em trabalhadores migrantes percorrem longashoras, durante três, quatro, cinco dias de viagem para chegarem à “terraprometida”, em busca da sobrevivência. Contudo, como a “terra prometida” jáfoi ocupada e dominada por grupos que detém o poder, estes trabalhadoresmigrantes endividados pelos custos da viagem, da moradia, entre outros, sãocompelidos a aceitar as condições de trabalho que lhes são impostas por aquelesgrupos. O trabalho na lavoura é visto como sofrimento, sacrifício, castigo(IAMAMMOTO, 2001), em razão da submissão aos ritmos extenuantes detrabalho, do pagamento por produção feito sem qualquer controle dostrabalhadores (ALVES, 1991) do percurso não remunerado de duas horas oumais das residências até as lavouras (ALLESSI; NAVARRO, 1997), daalimentação inadequada e insuficiente, das péssimas condições de transporte ede moradia.

Somam-se a isso as péssimas condições de transporte, pois é comum otransporte de cortadores de cana em ônibus bastante precários. Isso prejudica asaúde dos trabalhadores, assim, ir trabalhar se torna um risco antes mesmo deiniciar o dia de trabalho, além de eles já chegarem cansados de tanto chacoalhar,balançar e muitas vezes ficarem expostos ao vento, já que muitos ônibus têmvidraças quebradas ou faltando. Ao concluírem a lida no canavial, no percursode volta para casa, têm que enfrentar tudo novamente. Além disso, podem sofreracidentes de trajeto, que vem aumentando nos últimos anos. Frisa-se que osacidentes de trânsito dizimam ou deixam sequela (física e mental) nostrabalhadores.

O Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) divulgou o aumentodos acidentes de trajeto em 31,21% em dois anos na região de Ribeirão Preto.“Enquanto em 2004 foram 1.275 acidentes desse tipo, em 2006 o total chegoua 1.673, o que significa 4,58 acidentes por dias trabalhados que se acidentaramantes mesmo de chegarem ao trabalho ou após a jornada diária...” a reportagemdestaca ainda o aumento nas dez maiores cidades, sendo que em sete houve altadesse tipo de acidente “[...] numa lista liderada por Ribeirão [Preto] (687),seguida por Franca”, (ACIDENTES..., 2008, p. C1).

A Empresa de Transporte e Trânsito Urbano de Ribeirão Preto(TRANSERP) realizou estudo que destaca aumento em 6,2% dos acidentes detrânsito naquele município “[...] saltaram de 13.395 em 2006 para 14.230 noano passado, o que dá uma média de 1,6 ocorrências por hora”, (ACIDENTES...,2008, p. C1).

Verifica-se a mudança no ritmo das pequenas cidades que têm tido assuas pacatas estradas invadidas pelo transito ininterrupto, no período da safra,de caminhões canavieiro, o que tem provocado, entre outros males, gravesacidentes. Por exemplo, na noite do dia 22 de junho de 2008 um trabalhadorrural de pouco mais de 50 anos, ao fazer o trecho que liga o pequeno núcleo

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urbano de município de Ribeirão Corrente/SP a um sítio próximo, onde morava,foi esmagado por um caminhão canavieiro carregado. Além desse grave acidente,destaca-se:

Dois acidentes, um na cidade e outro na rodovia, atrapalharamo trânsito ontem na região. O mais grave ocorreu na CândidoPortinari, próximo a Brodowski, por volta das 13:30: um ca-minhão com 50 toneladas de cana atingiu 6 veículos e tombouno KM 30 da rodovia, (CAMINHÃO..., 2007, p. C4).

Um acidente envolvendo um ônibus que transportava 48 tra-balhadores rurais e um caminhão canavieiro vazio deixou 27pessoas feridas, em Cristais Paulista/SP, (NOTÍCIAS..., 2007,p. 36)4.

O Ministério Público do Trabalho em fiscalização nas usinas da regiãode Ribeirão Preto destacou irregularidades nesse tipo de transporte e afirma“[...] a terceirização do transporte tem sido a responsável pela precarização,que coloca em risco a saúde e a segurança dos bóias-frias. Há duas semanas,uma pessoa morreu e 30 ficaram feridas em quatro acidentes com veículos naregião” (BLITZ, 2008, p. C4).

A condução de veículos em mau estado de conservação com-promete a segurança dos trabalhadores canavieiros, o que re-vela claramente o desrespeito pela vida dos lavradores por partedos usineiros. [...]

A precarização do trabalho nas lavouras de cana sempre exis-tiu e permanecerá enquanto não houver políticas eficazes paraproteger os trabalhadores e seus direitos, e medidas rígidas eeficazes de fiscalização e controle do emprego da força detrabalho no campo (CARVALHO, 2008, online).

As queimadas causam danos ao meio ambiente e problemas de saúde àspessoas. Estes problemas foram acentuados na contemporaneidade, mas têmvida longa, pois, iniciou-se na fase imperial. Além da poluição urbana provocadapela queima da cana de açúcar, outro problema que deve ser analisado é o usointensivo de agrotóxicos conhecidos como maturadores. Esses herbicidas,segundo Carvalho (2008, online) são utilizados para se antecipar a colheita.

Os pesticidas ou inseticidas são compostos tóxicos, utilizadospara eliminar pragas, que, entretanto, são substancias que con-taminam o meio ambiente e que podem causar problemas àsaúde quando presentes nos alimentos, na água e no ar, ouseja, nos elementos de sobrevivência do organismo. Ainda nãose tem prova cientifica dos efeitos negativo que os herbicidas

4 Cristais Paulista é um dos municípios que congrega a região administrativa da saúde de Franca esitua-se a aproximados 30Km2.

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podem causar no organismo humano. A preocupação maior ecom o trabalhador da cana, que tem um contato direto e per-manente com o vegetal contaminado com o produto aplicadoantes e depois da queimada. Os herbicidas que são aplicados,muitas vezes com a utilização de avião, prejudicam comuni-dades inteiras que ainda resistem ao avanço do agronegócio(CARVALHO, 2008, online).

Tradicionalmente, como enfatizado, o Estado por meio dos estímulosfinanceiros e ideológicos sustentou o desenvolvimento da agroindústriacanavieira, sem, contudo, se atentar para as relações sociais de trabalho. Então,a sociedade organizada não pode permitir que recursos públicos financiemcombustíveis baratos para os tanques às custas da depredação ambiental, dasuper-exploração do trabalho, da ampliação da concentração de terras e de rendapara poucos e da fome para a maioria.

Desde a fase das capitanias hereditárias até os latifúndios daatualidade, desde as plantations coloniais até a monoculturaextensiva do agronegócio contemporâneo, desde os escravosdos séculos XVI ao XIX até os assalariados super-exploradosdos séculos XX e XXI: até quando vamos permitir a continui-dade deste modelo? (PAIVA; PLASSAT, 2008, p. 2).

Referências

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EXPANSÃO DO SETOR SUCRO-ALCOOLEIRO ECONDIÇÕES DE TRABALHO E EMPREGO NOPERÍODO 2000/2006

Guilherme C. Delgado1

Raquel S. Sant’Ana2

ApresentaçãoNo Brasil, desde a mudança do regime cambial no início de 1999,

combinada com varias outras políticas e incentivos à agroindústria e à rendafundiária, o chamado complexo sucro-alcooleiro vem crescendo ràpidamente –à frente do conjunto da economia, com claro viés de dinamismo econômicopuxado pelo setor externo. A quantidade produzida de açúcar e álcool - de 2000a 2006, cresceu respectivamente 87,5% e 67,4%, mas as exportações no períodocrescem em valor 505%, ou 35% em média anualmente (BRASIL, 2007b).

Observe-se que a produção do açúcar e do álcool, originários da cana-de-açúcar, não obstante o rápido crescimento das exportações, ainda éessencialmente puxada pela demanda interna, que corresponde a cerca de 80%da produção física do álcool em 2006 e cerca de 50% da produção do açúcar.

Por outro lado, se o País vislumbrar participação relevante nasubstituição do consumo automotivo norte-americano ou mundial – como pareceser o projeto do agronegócio brasileiro, estaremos caminhando para um projetode inserção econômica interna-externa, qualitativamente distinta da que fora oPROACOOL em 1976.

Um PROALCOOL mundial, com especialização brasileira na funçãode grande produtor e mega exportador, ancorado nos pressupostos da escassezdo petróleo e da substituição de fontes de energias não poluentes (relativamenteao chamado efeito estufa), têm conseqüências comerciais, ambientais produtivase sociais sobre a economia e a sociedade brasileira, completamente distintasdos seus efeitos mercantis setoriais, sobre o chamado complexo sucro-alcooleiro.Esta proposição também é válida para os outros principais complexos doagronegócio, fortemente envolvidos no setor externo – “Soja”, “Carnes”,“Produtos Florestais”, “Couros e Produtos Derivados” etc.

Este texto pretende abordar um dos aspectos da dinâmica recente do setorsucro-alcooleiro – algumas conseqüências sobre o mercado de trabalho. Conquantonão desconheçamos várias outras implicações recentes dessa nova inserção brasileirano comércio internacional – a concentração fundiária, os impactos sobre recursoshídricos, biodiversidade e manejo ecológico e ainda os efeitos internos e externos,

CAPITULO 14

Falta Rodapé dos autores

1

2

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principalmente sobre o preço dos alimentos, tais questões não são aqui analisadas.A abordagem do mercado de trabalho é aqui aprofundada com base em diferentesenfoques e fontes empíricas: dados secundários do mercado de trabalho, dadosprimários de uma pesquisa sobre morbidade no setor; e por último - estudos de casode condições de trabalho em oito regiões administrativas do Estado de São Paulo.

A seqüência analítica do texto aborda na seção 2 as tendências da produçãofísica do açúcar e do álcool na década de 1995-2005, vis-à-vis à evolução do empregototal da força de trabalho. A seção 3 mostra a evolução dos “auxílios-doença”concedidos no setor suco-alcooleiro entre 2000-2005, revelado verdadeira explosãode morbidade, estatisticamente demonstrada. A seção 4 revela, com base emdepoimentos pessoais - um outro enfoque das condições de trabalho – agora comrecurso à entrevistas e depoimentos pessoais em várias regiões administrativas doEstado de São Paulo. A seção 5 – “conclusões”, sintetiza e interpreta esse movimentode expansão produtiva com reprodução da relações de trabalho perversas.

Tendências da Produção e do Mercado de Trabalho do Setor Sucro-alcooleiro

Desde 2000 até a presente data, a produção do setor sucroalcooleirotem crescido anualmente. No período aqui analisado a produção vai de 303,6milhões de toneladas em 2000 para 475,0 milhões em 2007 (conforme mostra aTabela 1), com paralela redução em termos absolutos do número de empregadostotais (permanentes e temporários) neste período (Tabela 2).

Tabela 1 – Produção Física e Área Colhida de Cana-de-açúcar – 1995/2006

Fontes: IBGE - Levantamento Sistemático da Produção Agrícola – até 2006. CONAB - Previsão de safra 2006/2007. BRASIL. MAPA, 2007a.

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Na verdade os dados e tendências do mercado de trabalho indicamtrês distintos movimentos, que são objeto de corroboração empírica, análisee interpretação neste texto: 1) uma correlação negativa entre os índices decrescimento físico da produção da cana-de-açúcar e do número total deempregados no setor; 2) aumento relativo e absoluto dos empregos formais,principalmente temporários no setor, relacionado à forte redução do “graude informalidade”, e não pela elevação da demanda total por mão-de-obra;3) elevação significativa (ou reconhecimento) do “grau de morbidade” dapopulação empregada no setor, medido pela demanda exercida por auxílio-doença dos empregados formalizados do setor sucro-alcooleiro.Aparentemente esse grau de morbidade já era elevado, antes mesmo que sedesse a elevação do emprego formal no setor, mas não era reconhecido,nem atestado pela perícia médica do Instituto Nacional do Seguro Social(INSS), porque os trabalhadores não eram segurados do Regime Geral dePrevidência Social (RGPS).

Crescimento da ProduçãoOs indicadores de produção física do setor sucroalcooleiro no período

entre 1995-2007 revelam expansão da produção da cana e da respectiva áreaplantada, no ritmo médio de 4,0% ao ano, enquanto a produção física de açúcarse expande muito mais rapidamente (7,5% a. a.), puxada por uma política maisagressiva de exportações a partir de 20013, que praticamente triplica o “quantum”exportado entre 2000 e 2006.

Observe-se que no período considerado (Tabela 1), a produção físicado álcool também está se expandindo, mas a um taxa média substancialmentemais baixa que a do açúcar (2,7% a.a.) e está atendendo basicamente o mercadointerno4. Somente a partir de 2004 o “quantum” das exportações do álcool seeleva para o patamar de 2,5 a 3,5 bilhões de litros por ano, algo que já representacerca de 1/5 da produção interna, puxada por uma nova vertente do comércioexterior.

Parece que a escassez mundial do petróleo, aliada às característicassubstancialmente menos poluentes do álcool automotivo, estariam provocandoesses deslocamento de comércio, que, contudo, somente se reflete em preçosmédios de exportação em ascensão a partir de 2005.

O que se depreende dessa breve análise das tendências da produção e3 As exportações de açúcar bruto cresceram fortemente entre 2000 e 2006, do volume físico de 4,3milhões de toneladas para 12,8 em 2006, enquanto que os preços médios em dólar ficaram estáveis,ao redor de 160,0 dólares e somente se elevaram fortemente entre 2005 e 2006 para o patamar de300,00 dólares. (BRASIL, 2007a, p. 20).4 Até 2004 (entre 1995 e 2003) as exportações físicas do álcool situam-se ao redor de 500 milhões dem3 ano, representando no mínimo 0,7% (1998) e no máximo 5,0% (2003) da produção nacional decada ano. (BRASIL, 2007a, p. 51).

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da demanda do setor sucroalcooleiro é um crescimento forte da produção doaçúcar voltado ao setor externo, provavelmente impelido pela mudança no regimecambial pós-1999; e um muito recente ciclo exportador de álcool, impelidopela escassez (conjuntural) do petróleo. Ainda que esta tendência não se confirmenos anos subseqüentes, o marketing da energia limpa e renovável continuasustentando os investimentos para o crescimento do setor.

Mercado de TrabalhoDuas informações preliminares são captadas nos dados sobre produção

física e emprego no mercado de trabalho da cana-de-açúcar. Entre elas há umaclara correlação negativa no período examinado (1995-2005) - entre o Índicede Produção Física (Tabela 1) que cresce 38% e o índice de emprego total(segundo PNAD) que decresce 17 % até 2005 (Tabela 2). Este movimento éem grande parte devido à forte mecanização da colheita da cana, que ocorre empraticamente todas as novas usinas que se instalaram no período nas novaszonas canavieiras do Paraná, São Paulo, Mato Grosso, Goiás e TriânguloMineiro.

Tabela 2 – Cana-de-açúcar Brasil: Evolução do Nº de Empregados Permanentese Temporários 1995-2005 (mil)

Fonte: IBGE - PNAD – vários anos.

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Tabela 3 - Cana-de-açúcar: Evolução do Nº de Empregados Formais e Informaisno Brasil (mil)

Fonte: PNAD e RAISNota* - Total RAIS inclui os empregados em 31-12 e aqueles que tiveram algum emprego

ao longo do ano, estando ou não empregados em 31-12 (todos formais).

Outra informação relevante, que de diferentes fontes se obtém, é ocrescimento do emprego formal (carteira assinada e/ou outro vínculoprevidenciário), que ocorreu no setor, fruto do aumento do “grau deformalização” e não propriamente do aumento do emprego total.

Cotejando-se as duas fontes autônomas de mensuração de empregoagrícola – Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD/IBGE) eRelatório Anual de Informações Sociais (RAIS), a informação do incrementodo emprego formal é confirmada. No primeiro caso, os dados das PNADsrevelam (Tabela 3) - que a expansão do emprego formal ocorreu em paralelo àdestruição de postos de trabalho no setor e se explica basicamente pela elevaçãoda proporção de trabalhadores com carteira assinada – que cresce de 63,35 %em 1995 para 72,80% em 2005). O número absoluto, contudo, decrescelevemente.

Por sua vez, a fonte RAIS – um registro estatístico específico para oemprego formal do Ministério do Trabalho - revela em números absolutos dadosmais modestos sobre formalização da força de trabalho da cana-de-açúcar. Aíos postos de trabalho cresceram cumulativamente entre 1995-2005 - 5,5%, oque corresponderia a uma taxa média anual de 0,5%. Desconsiderando asdiferenças metodológicas entre as PNADs e o RAIS, refletidas nas distintas“performances” do emprego formal, o que parece válido no período às duasfontes é a elevação do “grau de formalização” no setor. Isto está a merecer

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explicação qualitativa, até para que se possa entender seu significado nas atuaisrelações de trabalho neste setor.

Tabela 4 – Índice de Produção Física e Emprego – 1995-2005

Fontes: Tabelas 1, 2 e 3

Em princípio a revelação de que houve queda do emprego total até2005 (segundo as PNADs) e elevação do grau de formalização, particularmentea partir de 2001, com aumento absoluto do emprego protegido pelo seguro socialprevidenciário – (formalização aqui significa vínculo ao seguro social), poderiaser interpretado ao estilo - “uma notícia ruim e outra boa” para os trabalhadores.Isto porque, inserir o trabalhador no seguro social significa protegê-lo contraalguns riscos incapacitantes para o trabalho (idade, invalidez, acidentes, doenças,mortalidade, reclusão, etc).

Aparentemente o setor sucroalcooleiro teria aderido a legislaçãotrabalhista-previdenciária, vigente há várias décadas, que em grande parte foradescumprida pelos patrões, tolerada e aceita pelo Estado – cuja tutela sobre osetor patronal se dera por cerca de 63 anos (1933-1996), sob o albergue doextinto Instituto do Açúcar e do Álcool. Mas a significação concreta desserecente movimento de formalização provavelmente reflete uma estratégicaprivada de desoneração de custos e riscos, relativamente às precárias condiçõesde trabalho que coexistem nessas atividades, e que se caracterizam por um altograu de morbidade aos trabalhadores.

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Condições de Morbidade ReveladasRecente pesquisa conduzida pelo Instituto de Pesquisa Econômica

Aplicada (IPEA) em interação com o Ministério da Previdência Social5 avaliaas causas do movimento recente de virtual “explosão” do auxílio-doença nosistema de benefícios previdenciários do INSS, para o que concorrem váriosfatores em vários setores de atividade. No que diz respeito especificamente aosetor sucro-alcooleiro, os dados dessa pesquisa revelam um afluxo quaseepidêmico dos auxílios doença concedidos (após prévia e difícil marcação deperícia médica) aos segurados das atividades agrícolas e industriais ai exercidas.Contudo, como houve na atividade agrícola aumento no “grau de formalização”,era de se esperar simetria na concessão de benefícios com baixas carências,6

pelo INSS. Mas os dados da pesquisa, que cruzam informações de concessãopelo INSS por “ramo de atividade”, segundo a classificação ClassificaçãoNacional de Atividade Econômica (CNAE), utilizada simultaneamente peloINSS e pelo Relatório Anual de Informações Sociais (RAIS) do Ministério doTrabalho, revelam informação significativamente mais alta.

Tabela 5 – Todos os trabalhadores empregados em alguma atividade relacionadaà cana-de-açúcar que receberam auxílio-doença (fluxo anual em2000 e 2005)

Fonte: Relatório sobre Benefícios por Incapacidade na Previdência Social: 1998-2005(Versão Preliminar não publicada).

Nota* - Esse código envolve várias atividades de manutenção, plantio, beneficiamentoe serviços agrícolas, várias delas em atividades não relacionadas à cana deaçúcar.Contudo, como parte desta classe CNAE contém os serviços de colheitada cana, mantivemo-la no total da tabela. Se excluirmos essa atividade, ostotais respectivos passam a ser 4.065 auxílios- doença concedidos em 2.000 e14.638 em 2005.

5 Esta pesquisa avalia as causas da elevação significativa na demanda por auxílios-doença, auxílios-acidente de trabalho e aposentadorias por invalidez na Previdência Social, cuja concessão entre 2000e 2005 cresceu respectivamente 143,0% e 79,0%, respectivamente para o auxílio-doença e para aaposentadoria por invalidez- (PIOLA; SERVO, 2007).6 O auxílio-doença é benefício concedido a partir do 12º mês de carência do segurado, quando entãointerrompe o contrato de trabalho e o segurado passa a ser pago pelo INSS, de acordo com uma médiado salário de contribuição, corrigido monetariamente.

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Como se observa pelos dados da Tabela 4, os “auxílios-doenças”concedidos aos trabalhadores com carteira assinada na cana-de-açúcar (códigosCNAE 01139), saltaram do nível de 2300 no ano de 2000, pra 6.2577, aumentode 172%%, enquanto que no trabalho industrial do açúcar e do álcool (códigosCNAE 05610 e 23400) a elevação foi de 1755 para 8.381, ou seja, de 377%%em cinco anos.

Observe-se que no período, o trabalho formal na cana-de-açúcar está seampliando em termos proporcionais (ver tabela 4), moderadamente segundo afonte PNAD, e mais acentuadamente segundo a fonte, RAIS. Mas em quaisquerdas duas fontes o “emprego com carteira assinada” estará crescendo no máximo5,0..% ao ano no período 1999-2005, segundo o RAIS. Já o auxílio-doençacresce de forma quase epidêmica no segmento agrícola, e de maneira aindamais grave no segmento industrial.

A explicação relativamente aos aspectos de “morbidade declarada” nasperícias médicas, constantes do referido Relatório de Avaliação, revelamindicadores gerais, que provavelmente se aplicam feito “mão à luva” para osetor sucroalcooleiro.

Analisando os dados primários do INSS de todo o auxílio-doençaconcedido, ano a ano, a pesquisadora Piola e Servo (2007), responsável peloreferido relatório conclui:

Na análise mais agregada, por capítulos de CID (Código Inter-nacional de Doenças), é possível observar que as doençasosteomusculares aumentaram significativamente sua partici-pação no período relativamente aos benefícios totais concedi-dos – de 19,2% em 1999 para 31% em 2005. (PIOLA; SER-VO, 2007, p. 24).

Neste referido Cap. XIII do CID, onde se concentra praticamente 1/3de toda a morbidade referida para o auxílio-doença, objeto de perícias econcessão pelo INSS, as dez principais doenças osteomusculares respondempor 78% das morbidades que neste grupo (doenças osteomusculares)demandaram auxílio-doença, destacando-se um subgrupo – “dorsalgias, outrostranstornos de discos intervertebrais”, “sinovites” e “tecnosinovites”, com 55%do total do capítulo. Conquanto, esse dados reflitam a situação geral, é muitoprovável que reflitam com maior concentração a situação do setorsucroalcooleiro, em razão das características das jornadas de trabalho aíprevalecentes..7 Não estão computados neste total os auxílios doenças concedidos a trabalhadores autônomos,desempregados, segurados especiais e outras condições de segurados, por impossibilidade decruzamento da informação do INSS com as respectivas classificações CNAE (RAIS). Isto significauma subestimação aproximada de 50% do total de auxílios doença concedidos nesta atividade, vistoque não é possível também computar os auxílios- doença concedidos às outras condições de seguradosda “atividade cana-de-açúcar”.

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Não é novidade que o ritmo e as jornadas agrícolas de trabalho impostasaos trabalhadores da cana, pelas metas de produção que se lhes impõe – 10,0 a12,0 toneladas de corte de cana ao dia - importam em milhares de movimentosindividuais diários de flexão, aplicação de força física no corte e ajuntamentoda cana, que resultam em última instância em doenças osteomuscularespraticamente certas com o passar do tempo.

Observe-se que o aumento do “grau de formalização” no setor sucro-alcooleiro, que em outras circunstâncias poderia ser visto como um dado positivode modernidade das nossas relações de trabalho agrárias, esconde na verdadeoutras coisas, que precisam vir á luz. O “grau de morbidade” das relações detrabalho em cana-de-açúcar estivera em grande medida escamoteado àscondições de forte informalidade no emprego e, portanto, não apareciam comoproblema de política social. Quando a formalidade avança, é possível detectarexplicitamente o avanço (ou o reconhecimento) do grau de morbidade que essasrelações de trabalho contém.

Mas chama a atenção no relatório do IPEA, que não é apenas alta amorbidade no emprego agrícola, também o é no emprego industrial. Neste último,nas atividades de fabricação do açúcar e do álcool, que são independentes dacolheita da cana, a expansão do auxílio-doença é mais do que o dobro,relativamente à atividade agrícola. O tamanho do problema que esse Relatóriode Avaliação revela, clama por explicações setoriais mais acuradas. No geral,apontam para um problema grave de reprodução de relações sociais iníquas nosetor sucroalcooleiro, não obstante fortes indicadores de aumento da produçãoe da produtividade do trabalho.

As Condições do Trabalho a partir dos relatos dos trabalhadoresAs condições de vida e do trabalho dos trabalhadores rurais assalariados

que estão na cadeia produtiva do etanol afastam qualquer possibilidade deassociar aumento da produção deste ramo de atividade com desenvolvimentosocial.

Numa pesquisa realizada por Sant’Ana8 (2007) nas quatro regiõesadministrativas do estado de São Paulo, envolvendo 16 municípios de até 10mil habitantes9 que tem como principal atividade econômica a cana de açúcar,foi possível constatar a gravidade do quadro social e, consequentemente, osproblemas oriundos deste modelo de desenvolvimento agrário.

Nesta pesquisa foram ouvidos 16 profissionais de Serviço Social queatuam nos plantões sociais dos municípios e que participam da elaboração do

8 Esta pesquisa foi Raquel Santos Sant’Ana e sua equipe, vinculada à Faculdade de Ciências Humanase Sociais de Franca, UNESP.9 Segundo a Política Nacional de Assistência Social 4.018 municípios caracterizam-se como de pequenoporte de nível 1, desses 45% da população encontra-se na zona rural.

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Plano Municipal de Assistência, documento responsável por fornecer asdiretrizes e ações para o planejamento e execução da política pública deassistência social nos municípios. A pesquisa envolveu ainda 32 trabalhadores(um cortador e um ex cortador de cana) com idade acima de 35 anos, querelataram suas condições de vida, de trabalho e saúde. (SANT’ANA, 2007).

A partir das entrevistas10 realizadas com as profissionais de ServiçoSocial e com os trabalhadores é possível obter elementos para problematizar arealidade social destes municípios e as condições de trabalho neste setor;elementos estes que precisam ser discutidos pela sociedade.

Os posicionamentos das profissionais com relação à atividade canavieiranão são unânimes: cinco assistentes sociais destacaram que ela é importante,pois gera emprego. Dois que atuam em municípios que têm Usina em seuterritório, destacaram que aumenta a arrecadação de impostos para a Prefeiturae, portanto mostraram-se favoráveis ao desenvolvimento das atividades do setor;a maioria (nove), no entanto, destacaram que estas atividades mais têm trazidomalefícios do que benefícios.Apesar dos posicionamentos diferenciados, todas as profissionais afirmaramque os principais usuários dos programas sociais são os trabalhadores rurais eenvolvem tanto aqueles que perderam o trabalho devido à monocultura dacana, quanto os migrantes que, muitas vezes, chegam e precisam daassistência social para viabilizar sua permanência ou transferir benefíciossociais que recebiam nas cidades de origem.

[...] a safra teve início agora, e essa semana o estoque que nóstínhamos de cestas básica para o mês, tínhamos 40, já acaba-ram. Os migrantes vêem e acabam com tudo (Rafaela).

E a própria demanda da assistência, que aumenta muito né...eles procuram muito o Bolsa Família... porque vêm de lá e jáestão cadastrados, chegam aqui querem receber...então tem quefazer a transferência.... (Rute).

A maioria dos nossos usuários aqui (a gente tem mais ou me-nos 800 famílias referenciadas), a grande maioria são traba-lhadores rurais que perderam, porque não tem mais onde tra-balhar e que não tem qualificação exigida pra trabalhar nasindústrias (Sabrina).

Muitas vezes, o profissional, renunciando a um posicionamento quepermita uma visão de totalidade, faz uma análise da realidade social que nãodesvenda seus reais determinantes. Em algumas falas, os migrantes sãoresponsabilizados por ocupar os postos de trabalho disponíveis ou usufruir dos10 Todos os sujeitos desta pesquisa (assistentes sociais e trabalhadores) e das outras citadas na sequência(CARVALHO, 2007 e SANTOS, 2007) estão com pseudônimos para que sua identidade sejaresguardada.

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equipamentos sociais existentes no município, reproduzindo os estigmas epreconceitos como constatado por Silva (2006).

Em um dos municípios da região de Barretos, uma assistente socialdescreveu todos os “incentivos” dados pela Prefeitura para que a Usina seinstalasse no município; afirma que esta dinamizou as atividades econômicas eque a Prefeitura tem oferecido cursos para capacitar força de trabalho para aUsina. Neste mesmo município, a profissional afirma que os problemas sociaisdo município se agravaram:

[...] tem os pontos positivos, que o município cresce, fica co-nhecido, aumenta as vendas aí, mas cresce muito a nossa pre-ocupação também no sentido da prostituição. Nas drogas, naviolência aumentou também (Cora).

O desemprego figura como um dos principais problemas, senão oprincipal, na maioria dos planos municipais de Assistência social. Osprofissionais de Serviço Social por estarem em contato direto, principalmentecom os moradores da cidade, tem claro o agravamento da situação decorrentedo aumento das atividades da cana, que absorve, principalmente, a força detrabalho do trabalhador migrante. As Usinas não são responsabilizadas, mas ostrabalhadores migrantes novamente aparecem como “vilões:”

São precárias as condições de vida, porque os migrantes queestão no município absorvem o emprego dos trabalhadoresdaqui e esses acabam vivendo em condições paupérrimas. Eujá fiz visita em casa que eram 2 cômodos, 1 banheiro e o outrocômodo o resto da casa” ( Maria).

Na região de entrada mais intensiva da cana em período recente, comoé o caso de Franca, a intensificação dos problemas sociais e o aumento dodesemprego dos assalariados rurais moradores é mais evidente. As assistentessociais mencionam o aumento do desemprego, da pobreza, da gravidez precocee das demandas aos equipamentos sociais do município. Os acidentes de trabalhotambém se acentuam:

Aí, por exemplo, no Pronto-Socorro, eu tenho essa clareza,mesmo como eles não passam aqui, assim... mas urgência eemergência são muitas. Acho que a maior parte mesmo é as-sim, picadas de insetos, igual cobra, essas coisas. Daí não vemaqui n/é, vai chegar direto lá, então a gente não tem muitoisso, mas é uma ocorrência. A questão de corta os olhos, atin-ge muito os olhos, porque eles não usam proteção, nos olhosnão, vocês já viram como eles trabalham? (Micheli).

Por outro lado, os trabalhadores migrantes que vem para o trabalhosazonal no corte da cana são extremamente explorados. Na região de Ituverava,a assistente social Diana relata:

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Então é uma exploração fora do comum, ... tem comerciantesque tem uma certa parceria com os empreiteiros que fala...‘olha você vai vir pra cá, vai ser contratado por esse empreitei-ro e você só vai comprar naquele supermercado’. Ai o arroz dacesta básica que era 1 real passa a ser 2 reais...têmpessoas...comerciantes aqui que sobrevivem de migrantes...éuma exploração (Diana).

Os dados da Pastoral do Migrante de Ribeirão Preto, mostram adegradação do trabalho na cana que já provocou nos últimos dois anos a mortede 21 trabalhadores por exaustão no estado de São Paulo. E nestes dados estãocomputados aqueles que efetivamente vieram a óbito, porém muitos estãoadoecendo ou ficando incapacitados para o trabalho.

Os dados sobre a morbidade do trabalho apresentados no início desteartigo é algo que faz parte da realidade dos trabalhadores deste ramo de atividade,de uma forma tão intensa e tão cotidiana que impressiona - não ter visibilidadesocial. Em diversas pesquisas, relatórios sociais elaborados pelo MinistérioPúblico, pelo Pastoral do Migrante, os dados sobre a perniciosidade do trabalhono corte da cana são evidenciados11.

Na seqüência serão mostrados alguns depoimentos colhidos porpesquisadores da região de Ribeirão Preto, participantes12 do Núcleo AgrárioTerra e Raiz (NATRA) que trazem a fala do próprio trabalhador sobre o condiçõesde trabalho ou o adoecimento neste ramo de atividade.

Sant’Ana (2007) ouviu trabalhadores de quatro regiões administrativasde São Paulo e os depoimentos dos trabalhadores trazem muitos dados sobre osmalefícios do trabalho no corte da cana de açúcar. Um casal de trabalhadoresque há 16 anos corta cana na região de Araraquara relata que ambos já possuemseqüelas deste tipo de trabalho. Ela possui uma lesão muscular no braço, masdestaca em sua fala o mal estar súbito depois de um dia de trabalho e, ele asdores na coluna vertebral.

Fiquei tão variada que fui no mercado, do mercado... quaseque eu morro de verdade...fui vomitando de lá, ninguém nemsabia por onde eu andava..num sei nem como que cheguei láno posto!.. De trabaia, aquele dia foi de trabaiá, n/ é?(Jaqueline).

Eu tenho 36 ano! Eu machuquei cortando cana... e depois,plantando cana. Foi em 92..Travou, ficou engessado... Fiquei,precisei por um ...coloquei colete de gesso., fiquei 30

11 A este respeito conferir diversos artigos e trabalhos publicados por Maria Aparecida Moraes e Silva(2006), em especial o artigo “A morte ronda nos canaviais paulistas”.12 Sant’Ana é a pesquisadora que é líder do grupo e que na pesquisa mencionada atua com bolsistasde iniciação científica e de mestrado, todas vinculadas ao grupo de pesquisa; Carvalho é assistentesocial Silva mestre em Serviço Social e membro do grupo de pesquisa.

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dias..Geralmente.. eu quase trinquei a coluna sim...É que semachuquei e continuei trabaiando n/é?...O sangue tava quentee num sentiu a dor...Daí foi depois que parei de trabalha, quecheguei em casa e ...fiquei paralisado... minha boca secou enum consiga mudar os passos...fiquei parado! Foi, aí de lá pracá.. passo uns tempos e tornei a prejudica... Num chegou atravar não...fiquei com o corpo meio duro...fiquei um mês epouco aí... [...] Que nem eu to te falando doer, dói n/é?, masvoce tem que esquecer daquilo.. voce tem que conviver, n/é!

Aquela pessoa que nunca fez... num é fácil não...acontece atédele chora cortando cana... Ai,voce olha e dá até uma dó...daaté dó... mas se vai ta precisando, n/é...

Com certeza! Num é moleza não, n/é.

Carvalho (2007), ao estudar as condições de vida e trabalho dostrabalhadores de Altinópolis, traz dados sobre a as dificuldades vivenciadaspelos cortadores na região mais moderna do agronegócio brasileiro.

O corte de cana realmente, se pega lá, da 5 rua pra cada pes-soa, n/é, e você pega essas 5 rua e vai cortando, tirano as pontae vai indo, num é fácil não! O serviço é bruto! Inclusive, on-tem mesmo, eu passei mal no serviço e nem fui hoje. Eu pas-sei mal no serviço, foi um esgotamento mesmo que me deunos nervo, me deu câimbra a reviria, então, inclusive, eu nãofui mesmo hoje trabaiá, de fraqueza no corpo (Ivaldo apudCARVALHO, 2007, p. 62).

Os trabalhadores que cortam cana hoje, são muito jovens, estão na faixaetária de 18 a 40 anos. Com o passar do tempo, devido ao desgaste físico, nãoconseguem cortar o mesmo tanto de cana e, com as metas de produtividadeinstituídas pelas Usinas, vão sendo descartados no trabalho.

Outro trabalhador, entrevistado por Carvalho, 2007, fala sobre o desgasteno processo de trabalhador:

... eu tirava treze, doze, eu já cheguei a tirá até quinze toneladade cana por dia. Eu tirava na verdade, mais chegava em casatambém, já chegava pro chão e deitava, se a mulher não mechamasse eu não acordava pra ir trabalhá no otro dia. Tinhadia que eu trabalhá lá pras dez hora, enquanto o corpo nãomelhorasse. Eu me lembro um dia mesmo, que eu estava tra-balhando assim, eu tava muito cansado, um dia lá, tinha queacabá uma cana lá; exigia pra terminá essa cana, que ia mudáde setor era longe, n/é? E tinha que acabá aquele setor de cana,aquele taião que eles fala, n/é? Aí eu dibuiei mesmo, eu estavacansado, sentado. “Ou, vamo aí, dá uma força aí pra nóis aca-bar.” Rapaiz, eu não guento, eu tô com câimbra no braço”.“Não, vamo lá, pega só um pedacinho, lá, desse jeito não dá

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não, eu dô trabalho pra você, você vem aqui e faiz uma disfeitadessa.” Aí, eu fui, né, sem aguentá, e cheguei o foião mesmo,fui trabalhando, trabalhando, quando eu acabei o eito eu caidismaiado também. Acabo o eito eu fui pará no chão, dandocâimbra e tudo (Ricardo apud CARVALHO, 2007, p. 73).

Santos (2007), estudando os trabalhadores rurais do município dePitangueiras, região de Jaboticabal e onde as atividades ligadas ao setorcanavieiro são a principal atividade econômica, traz diversos dados sobre ascondições de vida dos trabalhadores que cortam cana e de suas famílias. Aautora mostra a relação dos seus sujeitos com a política de assistência social e,para isto entrevista trabalhadores que ou são naturais do município ou queresidem há mais de dois anos no local. Aqui serão apresentadas algumas falasde trabalhadores que se reportaram as condições de trabalho no corte da cana.Um trabalhador que está de licença médica assim se coloca:

[...] eu achei meio difícil, que acaba com a saúde da gente,acaba, liquida, esse problema de coluna meu veio da cana. Eunão fiz cirurgia porque com criança em casa cê não pode táabusando, fazer uma cirurgia que fica em dúvida, n/é? Até te-nho problema nessa perna aqui, ela é atrofiada, tudo resultadoda cana. Da coluna passou para nervo ciático, e veio e agoraprecisou fazer cirurgia na mesma perna, com esses problemas.Agora não sei se vai afastar, se o INSS vai afastar eu definiti-vo, se vai continuar, ou aposentar n/é? (Carlos apud SANTOS,2007, p. 72).

No trabalho realizado por Santos (2007), destacam-se algumas falas,nas quais os trabalhadores dizem que trabalham nesta atividade porque não têmopções de emprego. Um trabalhador, com seu depoimento deixa claro suapercepção da exploração vivenciada.

É o que eu estô falando: a cana dá dinheiro pra quem? Prodono da usina, pro situante, então pro dono, fornecedor dacana ela dá muito dinheiro; agora pra quem corta! [...] O quemenos se esforça é o que mais ganha, mais pode perceber quan-to mais o serviço é pesado menos a pessoa ganha [...]. Aqui émuito desigual, tem mesmo desigualdade hoje em dia. O quenós ganha muito é exigência no serviço cada dia que passa [...](Clemente).

Um depoimento coletado por Sant’Ana (2005) também tratou do nívelde exploração:

[...] até muitos fala que acabou a escravidão, mas a escravidãonão acabou... nós somos um escravo. Se você não tem um es-tudo você é um escravo... você trabalha por 25 conto... E agente trabalha na safra. Na entressafra a gente fica desempre-

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gado-e as vezes até na safra mesmo fica desempregado-e aítrabalha avulso (Seu Antônio).

Os dados sobre a morbidade do trabalho podem ser melhor visualizadosquando ouvimos os relatos dos trabalhadores sobre suas condições de trabalhoe a precarização que este tipo de atividade, traz para a saúde do trabalhador.

Ao sofrimento cotidiano dos trabalhadores nos milhares de hectaresplantados com cana, soma-se o aumento das demandas sobre os recursossociais do município. De quem é a responsabilidade sobre o aumento dosgastos sociais? Dos trabalhadores que estão adoecendo no eito de tantotrabalhar, ou dos usineiros e do Estado que continuam a lucrar com esteramo de atividade? Uma análise mais acurada deste ramo de atividade deixaclaro que estes são custos sociais do agronegócio.

E a mídia traz o depoimento de Antonio Cabrera dizendo: “Osproblemas e as dificuldades apontadas são o preço do progresso, mas sabemosque o pessimismo jamais ganhou uma batalha”. Será que o preço do que se estáchamando de progresso não é o preço da subordinação aos grandes capitais eaos grandes grupos econômicos nacionais e internacionais? Realismo oupessimismo? A sociedade terá que optar!

Considerações FinaisAs discussões na linha do relançamento do PROALCOOL brasileiro,

agora com características de PROALCOOL mundial, fortemente voltado àsexportações e ao atendimento de uma nova demanda mundial por substituiçãoenergética no consumo automotivo – etanol em lugar da gasolina - requercontextualização. Este texto faz uma incursão neste sentido, destacando, emespecial, algumas conseqüências do crescimento recente do setor sucroalcooleirosobre o mercado de trabalho formal.

A análise das tendências recentes da produção e da demanda do setorsucroalcooleiro revela uma trajetória de crescimento, à frente do conjunto daeconomia, impelida a partir dos anos 2000 por uma maior participação no setorexterno. Esta é exercida em primeiro lugar, pela elevação do “quantum” exportadodo açúcar bruto; e, muito recentemente, por uma aparente estratégia da exportaçãomaciça do álcool. Esse crescimento – principalmente das exportações do açúcar– reflete avanço de exportações de baixo valor agregado – (açúcar bruto), emgrande medida recuperando posições perdidas nos anos de 1990.

As conseqüências desse crescimento produtivo sobre as relações detrabalho e o emprego evidenciam situações ambíguas, sob vários aspectos: 1)provocam redução no emprego total da força de trabalho, 2) elevam o “grau deformalização” da força de trabalho envolvida no processo produtivo – o queimplica no crescimento do “emprego formal” (com vínculo ao seguro socialprevidenciário); 3) revelam um quadro dramático de crescimento do “grau de

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morbidade” das relações formais de trabalho, medido por um movimento quaseepidêmico de elevação do “auxílio-doença”, correlacionada fortemente àsdoenças osteomusculares. Estas situações de morbidade e as condições detrabalho sobre as quais elas se geram, ocorrem marcadamente no estado de SãoPaulo, como a pesquisa demonstra mediante entrevistas e certamente tambémno Brasil como um todo, pelo que se depreende da análise empírica.

Projetar essas tendências recentes a um futuro de aceleração docrescimento do setor produtivo, puxado pela demanda do álcool; e ademaisreproduzir as relações de trabalho previamente identificadas, parece ser aestratégia do agro negócio brasileiro – associado às políticas macroeconômicas,setorial e também externa do governo federal.

É preciso, contudo, alertar para os riscos econômicos e sociais dessepadrão de crescimento econômico. Ele realiza uma especialização no comérciointernacional, de baixa densidade de valor agregado, ao custo de uma enormedeterioração das condições de vida e de ocupação no mercado de trabalho.

Os efeitos distributivos desse crescimento, não analisados diretamenteneste texto, parecem ser negativos, a julgar pelas relações de trabalho que geram;as relações de equidade não melhoram com o aumento de formalização, mastransferem à política social o ônus do quadro de morbidade presente nas atuaisrelações de trabalho.

Há, certamente efeitos alocativos sobre os preços dos alimentos, econseqüências fundiárias e ambientais – não analisadas neste texto, que têmalgo em comum com as conseqüências analisadas sobre o mercado de trabalho:uma profunda discrepância entre os custos privados e os custos sociais desseestilo de expansão produtiva.

Referências

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BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Intercambiocomercial do agronegócio: trinta principais parceiros comerciais. Brasília,DF, 2007b.

CARVALHO, M. A. Moendo vidas: uma análise sobre as condições detrabalho e vida dos trabalhadores rurais no corte de cana de açúcar na cidadede Altinópolis/SP. 2007. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação emServiço Social) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social,Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2007.

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IBGE. População: PNDA: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2009/default.shtm>. Acesso em: 2010.

PIOLA, S.; SERVO, L. M. Estudos sobre políticas e programasprevidenciários: avaliação dos benefícios por incapacidade: Relatório Final.Brasília, DF: IPEA, 2007.

SANT’ANA, R. S. O desejo de ter terra para plantar: um pequeno estudosobre os cortadores de cana da micro-região de Jaboticabal. In: ENCONTRODE PESQUISA NA ÁREA DE SERVIÇO SOCIAL DA PUC-CAMPINAS EUNICAMP, 6., 2005, Campinas. Caderno de Resumos. Campinas: Ed.Unicamp, 2005.

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SANTOS, M. C. S. Açúcar amargo: condições de vida e trabalho dasfamílias de cortadores de cana, atendidas pela Política Pública de AssistênciaSocial no município de Pitangueiras-SP. 2007. Dissertação (Mestrado emServiço Social) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social,Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2007.

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A EXPANSÃO DAS AGROINDÚSTRIAS CANAVIEIRASNA REGIÃO DO PONTAL DO PARANAPANEMA E ODISCURSO DO EMPREGO

Maria Joseli Barreto1

Antonio Thomaz Júnior2

IntroduçãoO presente texto tem como objetivo trazer alguns apontamentos a

respeito da pesquisa que está sendo desenvolvida em nível de mestrado sobre aterritorialização da cana-de-açúcar na região do Pontal do Paranapanema.

No entanto, antes de discutir, a territorialização da cana-de-açúcar naregião do Pontal do Paranapanema, se faz importante ponderarmos a respeitodo seu processo de ocupação, que foi historicamente marcado pela violênciajunto à população nativa. Sua vegetação natural foi destruída quase que natotalidade para ser inicialmente substituída pelos cafezais e depois pelaspastagens extensivas (LEITE, 1998). Trata-se de um processo de ocupaçãocaracterizado por um histórico predatório, assinalado por massacres de indígenas,posseiros e meeiros que faziam parte da região.

A grilagem das terras na região do Pontal do Pontal do Paranapanema,desde sua gênese foi marcada por conflitos e massacres, tiveram o mesmoobjetivo, a saber: descartar todas as possibilidades dos trabalhadores e doscamponeses de terem acesso a terra, viabilizando de maneira audaciosa aconstituição dos grandes latifúndios, especialmente nessa porção do estado deSão Paulo.

Leite (1998, p. 53) salienta os fundamentos da dinâmica territorial deocupação do Pontal do Paranapanema, destacando a violência no processo deocupação e grilagem destas. O mesmo autor ainda ressalta neste cenário, alendária figura do “quebra milho”, capanga contratado por grandes grileirospara expulsar outros grileiros e portadores de falsos títulos de domínio, bemcomo os posseiros e meeiros.

Hoje, a região do Pontal do Paranapanema é constituída por grandeslatifúndios, cuja posse foi obtida por meio da violência e grilagem, uma açãoilegal e corriqueira na região no período de sua ocupação. Tais fatos fizeram daregião palco dos maiores conflitos pela posse da terra liderados pelo Movimentodos Trabalhadores Sem Terra (MST). Os conflitos evidenciam-se de diversasformas, seja por meio de ocupações de terras, reintegração de posse, formação

1 Mestranda do curso Pós-graduação em Geografia da FCT/UNESP. [email protected] Professor dos Cursos de Graduação e de Pós-Graduação da FCT/ UNESP E-mail:[email protected]

CAPITULO 15

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de acampamentos /assentamentos rurais, latifúndios, terras devolutas entre outrasquestões latentes na região (FELICIANO, 2007, p. 49).

No contexto de luta pela terra envolvendo os movimentos sociais(MST, MAST3, e outros) e a União Democrática Ruralista (UDR), observa-se a expansão da monocultura da cana-de-açúcar. Assim, enquanto o primeirobusca a oportunidade de possuir uma porção de terra, a qual subsidiará suasobrevivência, o segundo visa a regularização das mesmas (hoje em condiçãoilegal) e para isso conta com um forte aliado, o Governo do Estado. Oposicionamento do Estado a esse respeito revela que suas atitudes tende abeneficiar empresários do setor canavieiro e latifundiários (THOMAZJÚNIOR, 2007a), haja vista, por exemplo, o Projeto de Lei 578/07 que estána Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo desde o ano de 2007 coma finalidade de regulamentar as terras devolutas com mais de 500 hectaressituadas na 10ª Região Administrativa de Presidente Prudente.

Tais fatos demonstram que o avanço do capital canavieiro no Oestedo estado de São Paulo, e de modo particular na região do Pontal doParanapanema, reveste-se de forte conteúdo político. Desse modo, acredita-se que por trás dessas leis e/ou decretos que visam a legalização/regularizaçãodas terras ilegais do Pontal do Paranapanema há um interesse velado decoibir as ações dos movimentos sociais de luta pela terra e, portanto, deuma Reforma Agrária que prime pela garantia da sobrevivência dostrabalhadores e suas famílias na terra e pela soberania alimentar (OLIVEIRA2003; THOMAZ JÚNIOR, 2007b).

Ainda buscando caracterizar a região do Pontal do Paranapanemasalientamos a problemática do emprego/desemprego, assunto muito utilizado/discutido pelo setor canavieiro em seus discursos de expansão, já que adisponibilidade de empregos nos municípios da região em estudo, de modogeral é inferior ante suas reais necessidades, como se destaca no quadro a seguir.

3 Movimento dos Agricultores Sem-Terra

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Quadro 1 – Empregos Formais nos municípios da Região do Pontal doParanapanema4

Fonte: Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)/ Cadastro Geral de Empregados eDesempregados (CAGED) Organização: Maria Joseli Barreto.

4 Os dados municipais do MTE / CAGED correspondem até 31 de dezembro de 2009.

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De acordo com os dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)os empregos formais estão classificados com as seguintes atividades: extraçãomineral, indústria de transformação5, serviços industriais e utilidade pública,construção civil, comércio, serviços, administração pública e agropecuária. Aindatrabalhando os dados do MTE, quinze, entre os trinta municípios da região doPontal do Paranapanema contavam em 2009 com menos de mil empregos formal,no total conforme se observa no Quadro 1.

Entre esses quinze municípios, o setor que mais emprega é aadministração pública municipal. O município de Ribeirão dos Índios se destacacom menor número de emprego formal enquanto o município de PresidentePrudente com maior número de empregos registrados. Com relação à cidade/município de Presidente Prudente, trata-se de uma cidade de porte médio, comnível populacional acima de duzentos mil. Esta cidade também se destaca porconcentrar serviços especializados na área da saúde, educação em nível superior(universidades públicas e privadas), indústrias de transformação e comércioque atende toda a região.

No que se refere aos municípios que abrigam em seus territórios unidadesagroindustriais não é diferente. Observa-se que Marabá Paulista, Sandovalina,Mirante do Paranapanema, Narandiba, Martinópolis, Santo Anastácio, TeodoroSampaio, Regente Feijó contam com menos de cinco mil empregos com carteiraassinada, evidenciando uma carência de empregos na região6.

Nesse cenário, e se utilizando dessas constatações, comparece em cenao discurso do capital canavieiro que a expansão da monocultura da cana-de-açúcar e das unidades agroprocessadoras trará para os municípios novos postosde trabalho e desenvolvimento sócio-econômico. Ou seja, o setor canavieiroutiliza-se das fragilidades empregatícias existente na região do PontalParanapanema para se territorializar.

A expansão do capital agroindustrial canavieiro na região do Pontal doParanapanema e o discurso do emprego

Ao discutir o processo de expansão do capital canavieiro na região doPontal do Paranapanema, apontamos de imediato às transformações que vemocorrendo na paisagem regional. Espaços anteriormente tomados por pastagense culturas como o milho, algodão, feijão, entre outras vêm sendo substituídosgradativamente pelos extensos canaviais, matéria-prima utilizada pelasagroindústrias canavieiras.

Esse processo de territorialização da cana-de-açúcar no estado de São

5 No campo indústrias de transformação, destacado pelo Ministério do Trabalho e Emprego inclui-seas unidades canavieiras.6 É importante considerar que em 31 de dezembro de 2009, todas as unidades canavieiras da Regiãodo Pontal do Paranapanema já estavam produzindo.

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Paulo e, conseqüentemente na região do Pontal do Paranapanema, pode serjustificado pela expansão do mercado interno do álcool, que consequentementeé desencadeado pelo aumento do consumo de veículos bicombustíveis, osmodelos flexíveis. Também se insere nesse contexto a presença do mercadoexterno, potencializado pela perspectiva de conquistas de mercado nos EUA,Europa e Ásia, especialmente na China e Japão (OLIVEIRA; THOMAZJÚNIOR, 2005, p. 8).

Os Gráficos 1 e 2 (que trazem a evolução da produção de cana-de-açúcar no Estado de São Paulo em toneladas e a evolução da produção de cana-de-açúcar na região do pontal do Paranapanema em hectares) evidenciamrespectivamente essa tendência no crescimento da produção de cana-de-açúcar.O Pontal do Paranapanema que mantinha outras características agrícolas(pecuária e lavouras de milho, feijão e outras), vem passando por umatransformação na paisagem ao entrar no circuito do etanol.

Gráfico 1 - Evolução da Produção da Cana-de-Açúcar no Estado de SãoPaulo em toneladas safras (1999/00 a 2008/09)

Fonte: ÚNICA

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Gráfico 2 – Evolução da produção de cana-de-açúcar na região do Pontaldo Paranapanema (2000 a 2010)

Fonte: Instituto Econômico Agrícola (IEA)

O governo do Estado, em conjunto com o setor canavieiro e indústriasautomobilísticas vêm trabalhando de forma precisa o marketing dos veículosbicombustíveis. Uma das estratégias do capital canavieiro é trabalhar na perspectivaambientalista, ou seja, fabricar e comercializar automóveis pensando na proteçãodo meio ambiente, além de vender carros econômicos acessíveis a toda população.A estratégia é vender uma possível solução para a diminuição da emissão de CO2na atmosfera. Nesse sentido, Thomaz Júnior (2007a) ressalta que:

A produção e venda dos automóveis bicombustíveis foi o prin-cipal estímulo a retomada da produção de álcool hidratado eanidro, sendo que o estado tem tido papel preponderante nes-se processo. Os veículos Flex fuel7, capazes de rodar com ál-cool, gasolina ou com a mistura dos dois, estão mantendo osprimeiros lugares no ranking dos mais vendidos desde 2004(THOMAZ JÚNIOR, 2007a, p. 02).

O gráfico abaixo evidencia a evolução do consumo dos carros flex apartir do ano de 2003, apresentando também o consequentemente decréscimodo consumo dos carros exclusivos a gasolina ou álcool. Esses números fazemparte de estratégias econômicas tanto do Estado quanto do setor canavieiropara expandir cada vez mais sua produção. Para alcançar tais objetivos o setorestá sempre inovando. Entre as novidades destacadas recentemente pelo setorestimulando ainda mais o consumo do etanol, estão as motos flex e os ônibus

7 A tecnologia flex fuel (combustível flexível) foi desenvolvida pela Bosch e pela Magneti Marelli,fabricantes de injeção eletrônica, em parceria com as montadoras. Dentre as montadoras instaladasno país, apenas as japonesas Honda e Toyota não oferecem carros bicombustíveis.

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movidos a etanol. No discurso para a incorporação dos ônibus movido a etanolna frota do transporte público da cidade de São Paulo, está a idéia que o uso doetanol pode solucionar problemas gerados pela poluição nas grandes cidades,como o efeito estufa8.

Gráfico 3 - Vendas de carros no Brasil (1995 a 2009)

Fonte: ANFAVEA (2010). Elaboração: UNICA (2010). Organização deMaria Joseli Barreto (2011)

Além disso, faz-se importante destacar que a territorialização do capitalcanavieiro no Pontal do Paranapanema consubstancia-se no discurso depromoção do desenvolvimento local/regional, e encontrar-se sob o aval do poderpúblico. Desse modo utiliza seu poder e aproveita-se das fraquezas regionais,como alto índice de desemprego, disparidades sociais, elevado contingente depobreza, entre outros. Sempre amparados no discurso da geração de empregose renda, especialmente nos pequenos municípios, visando justificar a implantaçãode novas unidades agroprocessadoras e a ampliação dos canaviais nesta porçãodo estado de São Paulo.

Quanto a força e poder que o capital canavieiro tem sobre o Estadonacional destacam-se as inúmeras políticas públicas que foram e ainda sãocriadas visando à permanência e expansão da cultura da cana-de-açúcar naeconomia nacional ao longo da história.

Entre os programas e leis firmados pelo Estado brasileiro para incentivara economia canavieira no século XX, está à criação do Instituto do Açúcar e doÁlcool (IAA) na década de 1930, iniciando uma fase de planejamento da

8 O ônibus está sendo trazido para testes na cidade de São Paulo pelo então Governador GeraldoAlckmin. A notícia foi veiculada no site oficial da UNICA no dia 11 de março de 2011. Maioresinformações ver o site da UNICA.

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agroindústria canavieira nacional. Na década de 1940, o governo de Vargas,instituiu o “Estatuto da Lavoura Canavieira” com o objetivo de regulamentar asrelações entre os fornecedores de cana-de-açúcar e usineiros, além de estabelecerum salário mínimo ao trabalhador rural canavieiro. Contudo, um dos marcosfortes deste intervencionismo estatal surgiu em 1975, com a criação do ProgramaNacional do Álcool (PROÁLCOOL) pelo Governo Federal, cujo objetivoprincipal foi o de oferecer condições e recursos para que os empresáriosobtivessem alternativas para seus negócios em vista da crise que os abatia, eficando para segundo lugar a produção de álcool combustível em substituição àgasolina, em virtude das crises petrolíferas em escala mundial (THOMAZJÚNIOR, 2002, p. 77).

Estas são apenas algumas das inúmeras possibilidades que o governofederal trouxe a fim de viabilizar a expansão do setor canavieiro no territórionacional. Ainda relacionando o apoio estatal a política canavieira, destacamosque, a expansão do setor canavieiro no país, assim como a produção de etanol eaçúcar, recebeu do então Ex-Presidente da República – Luis Inácio Lula da Silva,todo apoio necessário para prosseguir em seu fortalecimento e expansão, seja pormeio de benefícios econômicos vindos do governo, como por meio de defesaspúblicas ao setor, quando se coloca em pauta à questão da expansão da cana-de-açúcar e os impactos que esta pode trazer para a segurança alimentar e outros.

Nesse contexto, faz-se necessário salientar que o Pontal doParanapanema possui grandes extensões de terras devolutas, constituindo-seem uma região de conflitos latentes, que envolvem movimentos sociais de lutapela terra e pela Reforma Agrária e, latifundiários/grileiros. Assim o avanço doagronegócio da cana-de-açúcar na região adquire forte conotação política, tendoem vista que tanto para o Estado como para os empresários rurais é interessantelegitimar a posse da terra ou o grilo e, assim, tornar verossímil o título depropriedade da terra.

Perante a tais fatos, evidencia-se o estabelecimento de uma aliança entreempresários rurais e o Estado no sentido de fortalecer o discurso dodesenvolvimento pautado no agronegócio, desmobilizando o movimento de lutapela terra e subestimando propostas de desenvolvimento que primem peladiversificação da produção, pela Reforma Agrária e pela Soberania Alimentar.Oliveira e Thomaz Júnior (2005, p. 5) ressalta que a “[...] expansão da cana-de-açúcar apresenta-se como forma de ‘regularizar’ o território ilegal e ilegítimodas terras griladas, que formam os latifúndios nesta porção do estado, barrandoentão, a realização da Reforma Agrária.”

Dessa forma, o capital canavieiro se expande para a região do Pontaldo Paranapanema e, conseqüentemente, diminui as possibilidades de repartiçãodas terras entre os integrantes dos movimentos sociais de luta pela terra, assimcomo, as possibilidades de cultivo de alimentos em tais áreas.

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Atualmente a região do Pontal do Paranapanema conta com dezagroindústrias, distribuídas em nove municípios da região, quais sejam:Presidente Prudente (Distrito de Ameliópolis)/Grupo Junqueira/Figueiredo;Santo Anastácio/Grupo Marques-Bebedouro-MG, Mirante do Paranapanema eTeodoro Sampaio com o Grupo Odebrecht; Narandiba/Grupo Cocal e UMOE –Bioenergy ASA; Sandovalina também o Grupo UMOE – Bioenergy ASA;Martinópolis/Grupo Egreja (Us. Diana/Avanhadava); Caiuá/Grupo OlivalTenório (AL) e Regente Feijó/Jaques Samuel Blinder (Figura 1).

Figura 1 – Localização das Agroindústrias Canavieiras no Pontal doParanapanema (SP)

A territorialização das agroindústrias canavieiras na região em estudoaconteceu em diferentes temporalidades. As primeiras empresas foram instaladasdurante o PROÁLCOOL nas décadas de 1970 e 1980 e as unidades mais recentes,a partir de 2000. Assim sendo, evidencia-se a força com que o capitalagroindustrial canavieiro (nacional e internacional) vem auferindo na região, econseqüentemente, transformando a paisagem e as formas de uso das terras no

Fonte: União dos Produtores de Bioenergia [2010]; Thomaz Júnior (2009).

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Pontal do Paranapanema, como se tem constatado por meio de pesquisasanteriores9 (Quadro 2).

Quadro 2 – Agroindústrias/grupos canavieiros instalados no Pontal doParanapanema entre os períodos de (1974 a 2009)

9 No ano de 2008 realizou-se uma pesquisa em nível de Iniciação Cientifica, momento que estudamosduas unidades especifica na região (Usina Alvorada do Oeste/Santo Anastácio e destilaria Decasa/Marabá Paulista).

Fonte: União dos Produtores de Bioenergia [2010]; Organização de Maria Joseli Barreto

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Nesse cenário de expansão do capital canavieiro, entra uma das principaisestratégias utilizadas pelo setor, o discurso do emprego. Promessas de empregosão trazidas de diversas formas e atendendo todas as classes de trabalhadores.Nos canaviais, para os trabalhadores que vieram do campo; na unidade fabril,para a mão-de-obra especializada e no comércio local, para os trabalhadores daárea urbana, por meio do aumento das vendas em geral (ALVES, 2009).

No que diz respeito os trabalhadores do campo, trata-se de uma realidademais complexa. Quando se atinge a situação de desempregado e deixam à zonarural, de modo geral, migram para as periferias dos núcleos urbanos da região.Juntam-se aos demais desempregados, e incluem-se em busca de um novoemprego. Diante da conjuntura, com possibilidades restritas, a alternativa évoltar para o campo atuando na maioria das vezes no corte da cana-de-açúcarcomo (bóias-frias) na busca diária pela sobrevivência.

Com os trabalhadores assentados, não é muito diferente. Passaram peloprocesso de êxodo rural, mas (re) conquistaram a terra, por meio do envolvimentocom a luta pela Reforma Agrária. No entanto, o esquecimento por parte dosgovernos federal, estadual e municipal, fragiliza-os frente a uma série de fatoresque os impedem viabilizarem a produção da terra. Diante disso, o trabalho nasagroindústrias canavieiras, se apresenta também como a quase única alternativa.Nesse sentido Thomaz Junior (2009) salienta que:

[...] esse pacto de classes está redesenhando as formas de usoe exploração do território, no Pontal do Paranapanema, medi-ante nova divisão do espaço produtivo, apresentando novosdesafios para os trabalhadores. De um lado, absorvendo oscamponeses assentados para o trabalho no corte, por conta datotal ausência de políticas públicas para mantê-los em condi-ções de produção nos lotes, e, de outro, pela via da incorpora-ção de parte dos lotes ao cultivo da cana-de-açúcar, na quali-dade de “fornecedores” à base do expediente da política definanciamento do Banco do Brasil BB-Convir. Essa clara in-versão de objetivos da agricultura camponesa é, na realidade,uma prática deliberada para desmontar e desestruturar sua exis-tência, mesmo havendo interesses em mantê-los, todavia su-bordinados, controlados e subsumidos ao capital [...](THOMAZ JUNIOR, 2009, p. 205).

Dessa forma, distinguem-se as contradições inerentes ao sistemametabólico do capital expressando-se no setor agroindustrial canavieiro, aosustentar o discurso da geração de empregos, como forma de conseguir o avaldo Estado, bem como a opinião pública para a implantação das novas unidadesagroindustriais, e assim viabilizar seus negócios. Trata-se de mais uma estratégiado capital personificado no agronegócio canavieiro que na ânsia de acumulaçãoutiliza-se de inúmeros artifícios (MESZÁROS, 2007).

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No que tange a questão do desemprego a região do Pontal doParanapanema e de todo o país, emerge de uma ordem estrutural e não decorreapenas de uma crise econômica passageira ou de uma característica peculiar dolugar, mas ampara-se em características inerentes ao próprio sistema capitalista.Neste sentido, Antunes (2001, p. 120) argumenta que o aumento dostrabalhadores que vivenciam as condições de desemprego faz parte constitutivado desemprego estrutural que atinge o mundo do trabalho.

Assim, observa-se a proliferação de novas agroindústriascanavieiras, bem como a reformulação das unidades já existentes nessa fase deexpansão do capital canavieiro na região do Pontal do Paranapanema, salientandoque, o setor ampara-se da expropriação dos trabalhadores rurais, promovidapelo capital e pela fragilidade empregatícia estabelecida na região, para promovero discurso da geração de novos empregos.

Dessa forma, verifica-se as contradições inerentes ao sistema metabólicodo capital no discurso do capital canavieiro. Trata-se de uma estratégia a fim dearraigar o aval do Estado nacional, bem como da opinião pública estadual emunicipal para a implantação de suas novas unidades agroindustriais, e assimviabilizar seus negócios. Pois, “o capital só pode crescer, só pode se reproduzir,à custa do trabalho, porque só o trabalho é capaz de criar riqueza” (ANTUNES,2004, p. 125).

Dentro da perspectiva do discurso do capital agroindustrial canavieiroe o crescente avanço da cultura da cana-de-açúcar para a região do Pontal doParanapanema, a imagem que se visualiza para os próximos é que a regiãotransformar-se-á num deserto de cana.

Algumas considerações A realidade da região do Pontal do Paranapanema foi e ainda é marcada

pela forte presença dos conflitos em torno da posse da terra. Recentementeessas disputas que envolvem trabalhadores, movimentos sociais defensores daReforma Agrária, grileiros/latifundiários foi fortificado pela forte presença dosgrandes empresários canavieiros. Eles disputam as terras de modo mais incisivo,aliando-se aos latifundiários via arrendamento, constroem grandes patrimôniose cultivam as terras dando a elas um caráter de “altamente produtivos”.

Com isso assinala-se que a expansão da atividade canavieira, e nãosomente dos canaviais, no Pontal do Paranapanema, contém muitos elementosque não podem ser entendidos somente no âmbito da atividade econômica emsi. Plantar cana-de-açúcar, produzir álcool, açúcar, energia elétrica e outrossubprodutos que, para muitos são os elementos essenciais desse processodenominado genericamente de expansão da cana-de-açúcar no Pontal doParanapanema, só podem ser entendidos se considerar os aspectos estratégicose de interesses de classe e do capital.

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A região, em virtude de uma política nacional, estadual e regionaldesigual permaneceu e permanece nas mãos de poucos, com muitas áreasimprodutivas, griladas, e grandes extensões de terras recobertas por pastagensdesgastadas. Na atual conjuntura de expansão do setor canavieiro pelo país, aregião do Pontal do Paranapanema passou a figurar como a principal frente deexpansão dessa monocultura no território paulista. A cada dia municípios daregião estão sendo transformados pelas extensas lavouras de cana-de-açúcarsob o argumento “adocicado” dos agro-empresários de que por meio da expansãoda lavoura canavieira e agroindústrias haverá mais empregos e oportunidadespara trabalhadores e trabalhadoras, bem como o desenvolvimento econômico esocial para a região.

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O MAL ESTAR DO TRABALHO NO CORTE DACANA-DE-AÇÚCAR: SUPEREXPLORAÇÃO DOSTRABALHADORES MIGRANTES NO PONTAL DOPARANAPANEMA-SP

Gérson de Souza Oliveira1

IntroduçãoA proposição desse título é uma alusão ao quadro de profunda indisposição

e perturbação orgânica pelo qual vem passando o mundo do trabalho nessaviragem do segundo milênio. A saber os apologistas do fim do trabalho, nuncase trabalhou tanto e com igual intensidade na face da terra como nos últimosanos.

O avanço da territorialização do projeto do capital pelos quatro cantosdo globo terrestre tem imprimido de formas desiguais, mas sempre combinadas,as marcas destrutivas da civilização da barbárie nos diferentes lugares.

No meio rural brasileiro o agronegócio tem se encarregado de capitaneara hegemonização desse modelo, alastrando o monocultivo, destruindo florestas,contaminando rios, nascentes, e reservatórios, desterritorializando o campesinatojuntamente com suas práticas tradicionais e também mutilando e invalidandotrabalhadores. É a partir desses referenciais que colocamos em relevo osprocessos recentes de exploração, controle e dominação de classe no territóriodo Pontal do Paranapanema, empregada por aqueles que foram denominadosvergonhosamente de “heróis do agronegócio”.

A trama de relações e alianças que envolvem os vários agentes da classehegemônica (capital canavieiro, grileiros e políticos) tem sua sustentação tambémno interesse em garantir a dominação de classe e minar qualquer possibilidadede efetivação da Reforma Agrária na região oeste do estado paulista; encampadapelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e outrosmovimentos sociais, dado que, está em jogo não somente a disputa por terras,mas uma disputa de projetos de sociedade antagônicos.

Os elementos apresentados nesse trabalho se caracterizam por um esforçode nossa parte em esboçar alguns apontamentos que tangenciam questõesreferentes à saúde dos trabalhadores envolvidos no corte da cana-de-açúcar,entendendo as relações de trabalho precarizadas e a forma de organização dotrabalho como causa dos adoecimentos, acidentes/mutilações, dos agravos esofrimentos “fora” e “dentro” do ambiente de trabalho.

Desvendar as artimanhas inerentes à organização do trabalho no âmbitodas empresas é algo muito importante quando se quer analisar os impactos dotrabalho sobre a saúde dos trabalhadores. Todavia, bem situadas nossas limitações1 Graduando em Geografia – FCT/UNESP – Presidente Prudente. E-mail: [email protected]: Prof. Dr. Antonio Thomaz Júnior. E-mail: [email protected]

CAPÍTULO 16

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teóricas e disciplinares no que tange ao assunto referente à saúde do trabalhador2,do ponto de vista da geografia do trabalho consideramos de suma importância(e necessária) a abordagem inter-transdisciplinar sobre a realidade do mundodo trabalho.

Metodologicamente, os estudos que temos empreendido, têm tido uma ênfasemuito forte nas entrevistas qualitativas com base nos relatos orais narrados pelostrabalhadores, apesar de não prescindirmos de informações quantitativas comolevantamento de dados nos postos de saúde, Banco de Dados do DataSUS, junto asindicalistas e Ministério Público do Trabalho. Faz-se necessário dizer que muitosdos casos de óbitos, dores, inflamações e/ou modificações estruturais e funcionaisdo organismo, [provavelmente] produzidas por doenças decorrentes do trabalho,não comparecem nos prontuários e fichas dos postos de saúde da região. Isto sedeve tanto por motivos do medo de represálias das empresas - demissão oudesligamento e afastamento compulsório - que faz com que o trabalhador não procureo atendimento; ou porque o adoecimento e/ou prejuízo à saúde só se manifesta apóso fim da safra e retorno do trabalhador ao seu estado de origem.

O grau de risco à saúde no trabalho tende a piorar no quadro atual com oaumento da composição orgânica do capital, ou seja, da tecnificação do processoprodutivo, como os investimentos na colheita mecanizada que ampliam o graude nocividade e perigos ao organismo do trabalhador. Seja pela intensificaçãodo trabalho manual, ditado pelo ritmo das máquinas, ou porque as colheitadeirasmecânicas são projetadas para solos regulares com poucas declividades, ondese encontra a cana em pé, destinando aos trabalhadores as áreas irregulares comcana “deitada”, “emaranhada” ou “pé-de-rolo” como a denominam. O corte dacana pé-de-rolo exige, ergonomicamente, maior destreza e esforço físico daspernas, mãos e principalmente da coluna cervical (estruturas osteomusculares),para o corte, limpeza, desponta e transporte da gramínea até a leira.

O desenvolvimento (destrutivo) capitalista no Brasil e a superexploraçãodos trabalhadores migrantes no Pontal do Paranapanema-SP

Desvelar o caráter específico da formação e dinâmica do capital no casobrasileiro se faz importante, haja vista as peculiaridades da “modernização” burguesaoperada nesse país estar subordinada ao processo de dominação e exploraçãodeterminado por sua hierarquizada posição na divisão internacional do trabalho.

Esses apontamentos se justificam pelo fato de indicar sobre a forma deser e a natureza do capital no Brasil, visto que, as calamidades e sofrimentos, aexploração e opressão incomparavelmente maiores das grandes massas decamponeses e, por conseguinte, do proletariado, são peculiaridades da dinâmicado capital no país. Desse modo, por um lado é apresentado um moderno discurso

2 Não está em questão os casos clínicos e outras dimensões que envolvem a medicina do trabalho.

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do desenvolvimento e do avanço tecnológico, mas, em contrapartida, o capital/agronegócio se reproduz pelo constante revigoramento de práticas arcaicas[como o trabalho escravo], se nutrindo por formas regressivas de relações detrabalho. Invariavelmente, a reprodução e acumulação de capital no Brasil,impulsionadas aos saltos durante alguns momentos áureos da economia, nãorompeu com o que era considerado “atrasado”, sendo assim, sua própria dinâmicainterna de funcionamento necessita recriar constantemente as práticas ditasarcaicas para se reproduzir.

É mister compreender que existe um antagonismo fundamental entre ocapital social total e a totalidade do trabalho, pois, de acordo com Mészáros(1987, p. 64) esse antagonismo, essencial para se compreender a reprodução da“commodity society”, bem como os múltiplos e agudos problemas do trabalho,se modifica em função de: a) circunstâncias socioeconômicas locais; b) a posiçãorelativa de cada país na estrutura global da produção do capital; e c) a maturidaderelativa do desenvolvimento sócio-histórico global.

Sem dúvida, ao encontro dessa formulação, os estudos de José Chasin(1978) sobre as particularidades de objetivação do capital no Brasil, alinhavadosno designativo de via colonial, são extremamente relevantes para estudarmos ocaráter atípico e particular da reprodução hiper-tardia desse metabolismo socialno caso brasileiro. Seguindo essas indicações vemos que, o desenvolvimentodo capitalismo neste país se deu (se dá) de forma atrasada ou retardatária emrelação aos “países centrais”, processo caracterizado pela definição de um tipode capitalismo hipertardio3. Esta formulação se estrutura no entendimento deque o processo de entificação do capitalismo no Brasil e nos outros paísescapitalisticamente “menos desenvolvido”, sempre esteve [e está] subordinadoao progresso técnico/organizacional e desenvolvimento das forças produtivasdos países “centrais”. Mesmo cientes de que “o capital não tem pátria” e quesua lógica é incontrolável, avaliamos que os países ditos “avançados” atravésdos vários órgãos multilaterais, atuam na defesa da auto-reprodução do capitalsocial total. Por isso impõem os ritmos e definem as regulações da “taxa médiade lucro” [ou taxa de exploração], da expansão e concentração do capital dentroda divisão internacional do trabalho (MÉSZÁROS, 1987).

A reprodução capitalista no território brasileiro, por não romperabruptamente com o que era considerado “atrasado” pelos entusiastas dessesistema, atua combinando a assimilação de técnicas as mais modernas com amanutenção crônica e estrutural de relações de trabalho arcaicas – e esse processonão lhes retira a condição de economias dependentes e exploradas (PAULONETTO; BRAZ 2008, p. 186).3 Esta expressão é defendida por José Chasin em sua tese doutoral condensada no livro: “O integralismode Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo hípertardio”. São Paulo: Livraria EditoraCiências Humanas, 1978.

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O trabalho no setor agroindustrial canavieiro vem passando por diversasreestruturações nos últimos anos. O brutal avanço do desenvolvimento das forçasprodutivas capitalistas no campo, impulsionado pelo afamado agronegócio,determina a expulsão da terra para as famílias camponesas, a destruição dadiversidade produtiva com as monoculturas, degradação do meio ambiente e asuperexploração dos trabalhadores, contando inclusive, com vários casos depráticas de trabalho assemelhadas ao escravo4.

Com a ampliação territorial do circuito produtivo e mesmo com o altonível de mecanização de algumas empresas, expande-se também a demandapor trabalho vivo no mercado de trabalho agrícola. Contudo, o ritmoimpulsionado pela maquinaria requer “corpos” treinados e ágeis para darrespostas ao novo padrão produtivo e patamares de produtividade, assim, parasuprir essa necessidade, os contratantes ultrapassam não só os limites municipaise regionais, mas também estaduais (THOMAZ JÚNIOR, 2002, p. 208) paraarregimentar a força de trabalho e convertê-la em capital, pois:

Um fornecimento de trabalho vivo e adequado às necessida-des do capital que o movimenta constitui, portanto, uma dascondições básicas de acumulação. Na medida em que as cir-cunstâncias o permitem, parte da ampliação dessa quantidadede trabalho pode ser obtida pelo prolongamento da jornada detrabalho, ou pela intensificação do trabalho (LUXEMBURGO,1985, p. 247).

Como consequência do vai-e-vem interno desse fluxo, que interliga eintegra novos territórios [ou pontos] às redes constituídas pela dinâmicamigratória, têm-se a redefinição de uma nova geografia do trabalho migranteno Brasil (OLIVEIRA, 2007, v. 3). É por esse viés que se insere, com maisintensidade nos anos recentes, o conflituoso território do Pontal do Paranapanemaà fúria expansionista da cultura canavieira e do agronegócio alcoolizado(THOMAZ JÚNIOR, 2009, p. 273).

Os desdobramentos das ações recentes do agronegócio da cana na regiãotêm fortalecido o referencial do modelo que se propõe moderno e modernizante,porém, concomitantemente, revitaliza antigas (e novas) práticas organizativasdo trabalho que identificam a realidade do trabalho ou da precarização dasrelações de trabalho sob os auspícios da reestruturação produtiva do capital nocampo, como: pagamento por produção e exigência de alto patamar deprodutividade por trabalhador, arregimentação e/ou contratação terceirizada,adoção de práticas degradantes e formas assemelhadas de superexploração dotrabalho e trabalho escravo, evidências do total descumprimento da legislação

4 A esse respeito consultar o site da ONG Repórter Brasil onde constam as ocorrências flagradas peloGrupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho e inclusive a “Lista Suja” das empresas ondehouve as ocorrências.

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trabalhista, sem citar a dimensão da insustentabilidade e destrutividade dessalógica sobre o meio ambiente.

Apesar de lastreado pelo ideologizado discurso da energia limpa, pura edo “compromisso ético” dos “biocombustíveis” (que preferimos chamar deagrocombustíveis por entendermos o emprego do termo “bio” como sinônimo devida, somente como um recurso de marketing), o que a dinâmica do agronegócioprocura ocultar, são os expedientes regressivos e sofisticados das diversas formasde expropriação do sobretrabalho na jornada laboral dos trabalhadores,especialmente os migrantes. Estes, desde o primeiro momento em que “pisam opé” dentro do ônibus, geralmente fretados pelos gatos/agenciadores em seusmunicípios de origem para se empregarem no Centro-Sul, passam a ser submetidosao circuito da dominação e exploração do capital agroindustrial canavieiro.

O migrante é um trabalhador extremamente produtivo se comparado aosoutros trabalhadores. Por conta de questões históricas - culturais, econômicas,sociais ou mesmo religiosas – e uma trajetória de experiências de trabalho oude uma sociabilidade laborativa marcada por altos níveis de precariedade,dificilmente recusam o “trabalho duro”.

Não podemos desconsiderar dessa análise que dentro da divisão sociale sexual do trabalho colocada pela sociedade capitalista e reforçada pelo ideárioburguês/cristão, o homem tem um papel bem definido como o pai-provedor echefe da família. No cotidiano dos trabalhadores o medo de falhar nocumprimento desse papel [como em outros] é decisivo para a construção de suasubjetividade e representação social, por isso há certa rigidez noautodisciplinamento para suportar “mais trabalho” sob piores condições. O pavordo desemprego é determinante para o trabalhador experienciar essas situaçõesansiogênicas5 e com isso intensificar a atividade produtiva.

As empresas sabem de modo eficiente aproveitar essas características,se apropriando da subjetividade para, constantemente impor e controlar o ritmodo trabalho voltado ao aumento da produtividade, extorquindo e se apropriandodo trabalho não pago. Dessa forma, “[...] a manutenção da produtividade estádiretamente articulada com a manutenção de um quadro geral de saúde quesuporte a efetivação desta imposição organizacional nos limites corporais”(PEREIRA; RUMIN, 2011, online).

Os trabalhadores no processo de trabalho são lesados de formasvariadas, seja no valor pago pelo metro da cana6 sobre o qual não têm o mínimo5 É uma ansiedade superposta na medida em que a supervisão tem por encargo específico manter estaansiedade com relação ao rendimento de cada trabalhador (DEJOURS, 1992 apud PEREIRA; RUMIN,2011, online).6 O valor pago ao trabalhador do corte de cana-de-açúcar é convertido, a partir de uma regra de trêssimples, de peso em metro com base no valor da tonelada de cana-de-açúcar. O problema é que ostrabalhadores não participam do processo de definição do valor do metro e, tão pouco, conseguemfazer algum tipo de fiscalização.

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controle, na distribuição (em alguns casos, inexistente) dos Equipamentos deProteção Individual (EPI) já desgastados e/ou sem condições de uso ou, ainda,na negação em cumprir as normas trabalhistas e outros direitos (FGTS, segurodesemprego, FAT, NR-31 etc)7.

Ao realizar trabalhos de campo nos municípios [nas pensões e hotéisem péssimas condições, casas alugadas nas periferias, barracões etc.] e visitaralguns locais de trabalho nos canaviais da região com presença de migrantes8,pudemos acompanhar e observar suas rotinas de trabalho, realizar entrevistas ecoletar informações importantes junto a estes trabalhadores e também com osmoradores locais.

Isso nos qualifica a argumentar que no ambiente de trabalho (o talhão9),são impostas/estabelecidas as relações fundamentais para garantir a “eficiência”e o “sucesso” na realização das tarefas de corte, plantio, capina, etc. É nesseespaço, onde se aplica direta e objetivamente as práticas de coerção física epsicológica, o “disciplinamento” e monitoramento dos indivíduos (corpos ementes), o assédio moral e várias outras formas de pressão e controle socialsobre os trabalhadores pelos fiscais ou feitores10. Isso não anula o fato de queestas práticas sejam semelhantemente reproduzidas em outros ambientes, comono ônibus, dentro da parte fabril, nos alojamentos etc.

Nesse espaço disciplinador, empregando a formulação cunhada porMichel Foucault (1983 apud SILVA, 2006, p. 80), a aplicação da disciplina nãose apresenta somente nas variações institucionais/formais, mas também pelasdimensões “microfísicas” que permeiam as relações de poder entre os indivíduose grupos sociais.

A situação de vulnerabilidade dos migrantes é criada propositadamentepelo modo de organizar o trabalho, estruturado para que não ocorram problemasde interrupções no circuito da dominação e exploração, o que afetaria a baseda dinâmica reprodutiva do metabolismo do capital no setor canavieiro. Asituação de afastamento da família, de inferiorização frente às hierarquizações11

7 Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS); Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT); NormaRegulamentadora (NR).8 No desenvolver dessa pesquisa conseguimos verificar a presença de migrantes em pelo menos 15municípios da região: Caiabu, Emilianópolis, Indiana, Marabá Paulista, Martinópolis, Narandiba,Pirapozinho, Presidente Prudente, Presidente Venceslau, Regente Feijó, Sandovalina, Santo Anastácio,Santo Expedito, Taciba e Tarabai.9 De acordo com o dicionário Houaiss (2001), talhão é a porção de terreno, mais ou menos distinta eseparada, com qualquer cultura; ou seja, é a porção mais ou menos extensa geralmente em formatoretangular onde um grupo ou grupos de trabalhadores executam as atividades.10 Denominação dada pelos trabalhadores numa alusão ao feitor do período do regime escravocratano Brasil.11 A socióloga Maria Aparecida de Moraes Silva (2007) assevera ainda que, esses estranhamentos sãoondicionantes de subjetividades dissimuladoras e levam a uma divisão entre os trabalhadores ou umasegmentação fragmentária entre migrantes e não-migrantes, os de fora e os do lugar, etc.

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colocadas pelos estigmas sociais a partir das definições (toponímicas) que osdiferenciam quanto à cor e origem (SILVA, 1999; 2007), além da insegurançana garantia do emprego e o medo de deixar faltar o provimento dos dependentes,são fatores que influenciam no condicionamento de uma subjetividade, ou naforma como os indivíduos se comportam perante determinada realidade.Acreditamos que é justamente sobre essas condições [estranhas] de reproduçãoda alienação, externa e internamente ao espaço de trabalho, que se processa aexpropriação/apropriação da mais-valia e a (des)-realização do trabalhador.

Diante dessas “positivações” do estranhamento, vivenciadas nãosomente na atividade produtiva, os migrantes convivem com situaçõescondicionantes da realidade que se assentam a partir das clivagens objetivascomo a propriedade privada e divisão hierárquica e técnica do trabalho. Objetivae subjetivamente as determinações do interior destas relações sociaisdissimuladas, também estruturadas pelas fetichizações da sociedade do capital,“impõe um tipo humano submetido às coisas ou ao poder das coisas, ou seja, ohomem alienado ou homem desefetivado como sujeito12”. Nas palavras de Silva(2008b, p. 2):

[...] o fenômeno das migrações sazonais contribui para o au-mento da vulnerabilidade dos trabalhadores em função doprocesso de desterritorialização em que se encontram, poisse acham distantes dos locais de origem, o que, conseqüente-mente, favorece o enfraquecimento dos laços sociais – sobre-tudo familiares – que solidificam o processo identitário e asrelações sociais de pertencimento;

Na pragmática das empresas agroindustriais canavieiras, a chamadaacumulação flexível tem sua materialidade nas diversas ocorrências deracionalização da produção, na descentralização e/ou re-localização das plantasagroindustriais e nas distintas ações de controle social, gestão e fragmentaçãodo conjunto dos trabalhadores (THOMAZ JÚNIOR, 2009, p. 258), mas também,na apropriação da subjetividade - dos conhecimentos e experiências dos mesmos- no processo produtivo. Percebe-se que na organização do trabalho, apesar dese ter reduzido o número de trabalhadores, houve um aumento significativo daprodutividade do trabalho, pois a ação combinada do ritmo ditado pelas máquinasparalelamente ao trabalho manual tem extorquido a mais-valia relativa e absolutados trabalhadores durante a atividade produtiva.

Nos eitos é visível, mesmo para não especialistas na área da saúde eergonomia, a postura, inclinação e atuação de forças no quadril totalmenteincorretas e inapropriadas, porém, necessárias para que o trabalhador consigarealizar o trabalho de corte, limpeza, desponta, transporte e empilhamento no12 Thomaz Júnior (2009) ocupando-se das formulações contidas em “A ideologia alemã” de Marx eEngels.

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menor tempo possível e garantir o maior aproveitamento no apanhar dos feixesde cana que pesa entre 10 a 12 quilos13.

Os esforços repetitivos sob o sol estafante exigem o dispêndio de enormecarga física dos trabalhadores no corte, deixando-os suscetíveis à hipertermia,causada pela realização de exercícios intensos com desidratação, ventilaçãoinadequada sob as pesadas roupas e a exposição a altas temperaturas no decorrerdo dia.

O desgaste físico dos cortadores de cana agravada pela carêncianutricional tem como principais sintomas inicialmente sede, fadiga e câimbrasintensas, na seqüência o mecanismo termorregulador corporal começa a entrarem falência e surgem problemas como náuseas, vômitos, irritabilidade, confusãomental, falta de coordenação motora, delírio e desmaio (SANTOS, 2009).

Nos postos de saúde dos municípios de Tarabai e Regente Feijó asenfermeiras confirmaram ser comum atender trabalhadores das agroindústriasvítimas de convulsões e desmaios, ou, como dizem os trabalhadores, os“borrados”. Este termo pejorativo é empregado em tom de chacota, geralmentepelos fiscais e chefes de turma para designar os trabalhadores que “nãoaguentam” o serviço vítimas de desmaios, câimbras ou convulsões, entretantomais do que uma banalização do sofrimento alheio (DEJOURS, 1999), representauma forma de assédio e coerção moral e psíquica que influencia, inclusive, nadecisão do trabalhador de retornar rapidamente ao trabalho e não pegar licençamédica para tratamento de saúde.

O sofrimento físico/biológico do organismo, determinado pela“mutilação” diária dos corpos nas frentes de corte, em conjunto com o sofrimentopsicológico presente, tanto pela distância de casa e família como pela pressãono ambiente de trabalho, produzem um profundo mal-estar durante a execuçãodo trabalho e após ele. As instalações precárias das moradias, sem corretaventilação e péssimas condições sanitárias podem contribuir para agravar acondição de saúde física e psicológica dos trabalhadores.

Nas cidades da região, maioria com população abaixo dos 20 milhabitantes, a pouca disponibilidade de casas para locação por conta do fluxomigratório e o constante encarecimento dos imóveis ainda disponíveis, faz comque os migrantes se alojem, às vezes, de 03 a 15 pessoas em um único quartocom beliche para 08 ou 10. Eles dividem esses espaços para cama, para penduraras roupas nos varais dentro de casa e, ainda, o fogão para poderem fazer a suacomida.

Os trabalhadores que migram sem a família levantam às quatro horasda manhã para prepararem a sua comida e cinco horas eles vão para o ponto deônibus; à tarde quando retornam, novamente têm que fazer a janta, indo dormir13 Em um dos trabalhos de campo foi possível realizar a pesagem do feixe com diferentes tipos decana.

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por volta das nove horas, para, no dia seguinte, retomar a jornada. Dormindopouco, se alimentando mal (sobretudo no calor quando perdem o apetite),realizando 17 flexões de tronco e aplicando 54 golpes de facão por minuto, como joelho semi-flexionado e a cervical estendida, perdem assim oito litros deágua ao final de cada dia14 para cortar em média 12 toneladas. Algunstrabalhadores dizem que chegam a emagrecer aproximadamente oito quilosdurante o período de uma safra.

Nas visitas às casas e alojamentos não são poucas as queixas de doresno corpo e de uma constante sensação de cansaço por parte dos trabalhadores,mesmo estando um ou dois dias sem trabalhar. Os vários casos de invalidezparcial e permanente, em ocorrências já registradas levam a óbito váriostrabalhadores, sem contar a maioria dos casos que não são divulgados, osprontuários velados, a validade da desassistência das empresas etc.

A ocorrência de patologias relacionadas ao trabalho pode não se darsomente no período das safras, contudo, mesmo após o passar dos anos, talvezaté em outros empregos ou afastado do trabalho, o individuo pode apresentar edesenvolver sintomas de doenças decorrentes do tipo de atividade e/ou ambienteno qual trabalhava. Por exemplo, câncer na faringe em decorrência do períodoem que esteve aspirando fuligem ou ar com presença de gases e partículasestranhas ao aparelho respiratório oriundos da queima da cana-de-açúcar.

Não é muito difícil de pressupor a futura incidência da patologiarelacionada ao trabalho ou mesmo do óbito imediato quando analisamos osnúmeros diários da superexploração. Conforme estudos sintetizados napublicação “Vozes do Eito” (FACIOLI, 2009, p. 9), organizado pelo ServiçoPastoral dos Migrantes de Guariba (SPM), em 10 minutos um trabalhador derruba400 quilos de cana, desfere 131 golpes de podão, faz 138 flexões de coluna,num ciclo médio de 5,6 segundos cada ação. Trabalhando sob temperaturasacima de 27 ºC, podendo chegar a 38º na região de Presidente Prudente, erespirando muita fuligem no ar ao final do dia terá ingerido mais de 7,8 litros deágua, em média, desferido 3.792 golpes de podão e feito 3.994 flexões comrotação da coluna. A carga cardiovascular nesse ritmo de trabalho é alta, acimade 40%, e, em momentos de pico, os batimentos cardíacos chegam a 200 porminuto, já a temperatura do cérebro após as 13 horas, em dias de muito calorpode chegar a 44 graus15! Estes são os desdobramentos objetivos da voracidadedestrutiva do projeto societário metabolizado pelo sistema do capital e seusimperativos manipulatórios no âmbito da agroindústria canavieira.

14 Estudo realizado pela Secretaria de Saúde de São Paulo. Informações disponíveis na página daPastoral do Migrante. (ARAÚJO, 2011, online).15 Neste ano um estudo realizado pela Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo confirma estesdados, chegando a valores ainda mais alarmantes, reconhece as condições precárias de trabalho noscanaviais e se apresenta como um subsídio para nortear ações de melhorias das condições de trabalhono setor (ARAÚJO, 2011, online).

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No ano de 2008 pelo que temos registro, ocorreu a primeira morte detrabalhador rural no corte da cana na região de Presidente Prudente(EDITORIAL..., 2008, online). Mesmo as declarações veiculadas pela imprensalocal sobre o laudo médico não comprovar ter sido a morte causada pela exaustão,acreditamos que Mariano Baader (53 anos), radicado no município de Tarabai,foi mais uma vítima da fúria desmedida do capital agroindustrial canavieiro naânsia de reprodução dos seus patamares de lucro, o que impõe a intensidade eexcesso de trabalho como prerrogativas.

As câimbras, dores de cabeça, escolioses, tonturas, vômitos, náuseas,mutilações de pernas, braços, dedos, são somente as marcas de uma realidade“convulsionada” pela barbárie alastrada pela territorialização do projetosocietário do capital nesse setor do agronegócio.

O processo de trabalho na parte agrícola das empresas canavieiras sob aforma de pagamento por produção impõe o desgaste físico e psicológicocompatível com o ritmo da exploração. Sob “fogo cruzado” os migrantestrabalham submetidos ao crivo de relações que impactam diretamente nascondições degradantes e insalubres no ambiente de trabalho, não obstante, comrebatimentos diretos na deteriorização da qualidade de vida de suas famílias.

Diante do fulcro da reestruturação produtiva, o capital re-estabeleceu eredimensionou os patamares da precarização do trabalho. Em se tratando deuma atividade historicamente degradante, como o corte manual da cana-de-açúcar, o conjunto das práticas que deterioram o trabalho como, as formas dearregimentação, pagamento por produção, descumprimento de cláusulastrabalhistas e dos próprios contratos, são exemplos nocivos e alarmantes, nossetores de ponta do agronegócio, da superexploração e da precarização dotrabalho no século XXI.

Considerações FinaisO movimento de realização do capital nos mostra que não somente se

mantém a desigualdade social, mas a incrementa mediante a intensificação daconcentração da propriedade terra e da renda. Os mecanismos de sujeição/dominação/controle e dos desmandos em relação às condições de trabalho queatingem os sujeitos e as lutas protagonizadas pelos movimentos sociaisenvolvidos na luta pela Reforma Agrária, pela posse da terra e,conseqüentemente, põem em risco a soberania alimentar do conjunto dasociedade. Com isso, tem-se o transbordamento de novos elementos para aquestão cidade-campo, tanto no âmbito dos desafios teóricos quanto da lutas deresistência e da luta de classes16.

Dito de outra forma, os rearranjos territoriais trazem em si o conteúdocontraditório da luta de classes, denotando a materialidade da reestruturaçãoprodutiva nos lugares, tendo como seus reflexos diretos a contínua expropriação

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do mundo do trabalho e a “[...] polissemia resultante que impacta direta eprofundamente o universo simbólico e a subjetividade do trabalho em geral e omovimento operário em particular” (THOMAZ JÚNIOR, 2009, p. 36).

Nesse contexto, as estratégias de exploração e subsunção do trabalhocolocam o exercício do controle social noutro patamar, a degradação intensadas relações de trabalho, as formas e mecanismos de arregimentação esubcontratação atrelados à desarticulação sindical, fragilizam ainda mais aorganização da resistência ao capital.

Surpreendentemente, mesmo diante de todas as clivagens e barreirascolocadas para não haver questionamentos e subversão da ordem estabelecida,constantemente ressurgem e se insurgem movimentos que colocam em chequeas precarizadas relações de trabalho17 no setor canavieiro. Foi marcante, porexemplo, em 2008 quando vários casos de greves, piquetes e pequenos paradeiroseclodiram em várias regiões do estado de São Paulo, tendo alguma ou nenhumarepercussão pela imprensa. Na região isso não foi diferente, tendo os migrantes,sobretudo os oriundos do Ceará e Pernambuco a frente desses movimentos,conforme relatamos e acompanhamos18.

Mesmo sendo na maioria das vezes pontual e localizada, as ações deconfrontação e insatisfação com a situação de injustiça social, quanto àremuneração, às condições dos alojamentos, da alimentação e o cumprimentodos contratos de modo geral, são momentos raros em que a partir da unificaçãodos interesses da turma ou coletivo de trabalhadores, se cria espaços dequestionamento da exploração no trabalho. Mais do que isso, até a possibilidadede se pensar formas mais justas de relações de trabalho e inclusive, como jáocorreu na história do setor, romper com a organização do trabalho vigente epropor novas práticas organizativas19.

16 A esse respeito Thomaz Júnior (2009), apresenta reflexões que nos remetem a um profundo repensardos novos desafios que se põem em cena diante do metabolismo do capital no século XXI para oconjunto dos trabalhadores, ou seja: homens e mulheres que não somente vivem da venda da força detrabalho, mas aqueles que também estão inseridos no arco de realização do capital, que estão submetidosao seu controle metabólico e que também resistem ao seu subjugo. Em essência, esses novos desafiosnos remetem a uma nova composição da classe trabalhadora e, consequentemente, dos instrumentosteórico-metodológicos para um profundo repensar do tecido social nessa viragem do século XXI.17 Temos visto na imprensa neste início de ano, sobretudo alternativa à grande mídia, alguns casos derevoltas e manifestações de trabalhadores contra a situação de exploração e subversão dos direitostrabalhistas em grandes obras, inclusive, que recebem recursos do BNDES para sua execução.18 Cf. Relatório de iniciação científica citado na bibliografia.19 Greves como a de Guariba em 1984 foram marcantes sobre essa questão, mas há outras experiências,pelo menos que temos notícias, como a conquista do sistema de “quadra fechada” pelo sindicato dostrabalhadores de Cosmópolis-SP.

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PARTICULARIDADES DA AGROINDÚSTRIACANAVIEIRA DE ALAGOAS E AS SEQUELAS DASUPEREXPLORAÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO

Lúcio Vasconcellos de Verçoza1

IntroduçãoImportantes estudos têm demonstrado que o mais recente processo de

reestruturação produtiva da agroindústria canavieira brasileira caminha atreladoa intensificação da exploração da força de trabalho (SILVA, 1999; NOVAES,2007; ALVES, 2007). No tocante ao mundo do trabalho nos canaviais alagoanos,no início da década de 1990, entrou em curso um processo de reestruturaçãoprodutiva (CARVALHO, 2009) que alterou profundamente a forma derecrutamento dos trabalhadores, o processo de trabalho e a gestão do mesmo(PADRÃO, 1997; MELLO, 2002). Essas mudanças nos métodos de exploraçãoda força de trabalho, além de acarretarem grande diminuição no número deempregos, resultaram em intensificação do ritmo de trabalho e elevação de suaprodutividade.

Revelar os métodos de exploração da força de trabalho empregadospelo capital agroindustrial canavieiro e captar a lógica subjacente aos mesmos,são algumas das tarefas imprescindíveis quando nos propomos a responder:“Por que o trabalho no corte manual da cana encontra-se entre os trabalhosmais degradantes e superexplorados no Brasil contemporâneo?” Essa linha deinvestigação implica descobrir como (de que forma) os trabalhadores sãosuperexplorados e por que (qual a causa) são empregados tais métodos.

Entretanto, analisar as causas que movem os métodos de exploraçãonão é uma tarefa simples, pois, detrás desses métodos existe uma série de fatoresque os impulsiona. A dificuldade maior está em descobrir quais são os principaisfatores que determinam os métodos de exploração do trabalho vigente naagroindústria canavieira. Em outras palavras, a questão é: Por que naagroindústria canavieira encontramos uma intensidade de exploração do trabalhotão elevada? E como corolário dessa pergunta surge outra inquietante questão:esse trabalho superexplorado degrada a saúde do trabalhador? São essas asquestões que movem o presente artigo.

Delineando as particularidades da agroindústria canavieiraAs agroindústrias, como o próprio nome já indica, têm como principal

característica a industrialização de produtos agrícolas. Com o advento das

1 Graduado em licenciatura e bacharelado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Alagoas(UFAL); mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos(PPGS-UFSCar); membro do Grupo de Pesquisa /CNPq Trabalho e Capitalismo Contemporâneo e doGrupo de Pesquisa /CNPq Terra, Trabalho, Memória e Migrações. E-mail: [email protected]

CAPÍTULO 17

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agroindústrias, os processos de produção e trabalho da fase agrícola sofreramalterações, pois os produtos agrícolas destinados à agroindústria são produzidosem função das exigências oriundas do rendimento da fase industrial. Aindustrialização torna-se cada vez mais presente na agricultura, não somentepelo fato de a indústria ser o destino da maioria dos produtos agrícolas, mastambém por meio da crescente utilização de maquinários, fertilizantes e de outrosprodutos industrializados que objetivam elevar a produtividade agrícola(AUBERT, 1977).

Existe uma dependência mútua entre a agricultura e a indústria nasagroindústrias. Essa dependência não é restrita apenas à relação entre aagricultura, que fornece o produto que será processado na indústria e vice-versa; a dependência mútua inclui ainda as indústrias especializadas emfabricação de maquinários para a parte industrial da agroindústria e as indústriasque produzem máquinas e insumos para a parte agrícola. As agroindústrias têmcomo principal particularidade essa complexa relação dialética entre a agriculturae a indústria. A agricultura tenta modelar-se às exigências da indústria que iráprocessar seus produtos e a indústria de processamento deve modelar-se àslimitações impostas pelo produto agrícola.2

Além das especificidades gerais das agroindústrias, existemparticularidades nos distintos tipos de agroindústria que produzem derivadosde diferentes produtos agrícolas. Sobre as particularidades da agroindústriacanavieira, Lessa (2006, p. 4) faz a seguinte análise:

O caráter extremamente perecível que a cana-de-açúcar ad-quire após o corte impede a existência de um comércio mun-dial desta matéria-prima. [...]

A inexistência de um mercado mundial de cana para abastecerininterruptamente as unidades fabris e a impossibilidade daconstituição de estoques desta matéria-prima que tivesse omesmo objetivo impõem à parte industrial do setor uma gran-de diminuição na velocidade de rotação do capital, o que de-terminará uma tendência de baixa significativa na massa delucro. Sabe-se que dois capitais de igual grandeza e iguais ta-xas de mais-valia e de lucro produzem diferentes massas demais-valia e de lucro, se tiverem tempos de rotação diferentes.Ou seja, pressupondo duas empresas de mesmo capital, é maisrentável a empresa que fabrica e vende mercadorias todos osdias do que uma empresa que gasta um tempo mais longo en-tre a preparação e a venda de seus produtos. A primeira empre-sa faz girar o seu capital circulante (matéria-prima e gastos

2 Existe uma relação contraditória nesse processo: a parte agrícola de uma agroindústria é subordinadaàs exigências da indústria que busca maior rendimento industrial, todavia, a própria parte industrialé ainda mais subordinada ao produto agrícola, pois esse é a matéria-prima de todo processo industrialnuma agroindústria.

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com mão-de-obra) mais rapidamente e, portanto, mais vezes,o que determina uma maior absorção de mais-valia, uma mai-or massa de lucro, um menor tempo de amortização do capitale uma maior disponibilidade de liquidez.

Para Lessa, as principais particularidades da agroindústria canavieiradecorrem do caráter altamente perecível da cana-de-açúcar. Como a matéria-prima dessa agroindústria é a cana-de-açúcar, desse fator deriva uma série deconsequências que caracterizam a agroindústria canavieira. Essa singularidadeda cana, que impossibilita estoque e mercados mundiais dessa matéria-prima,obriga a usina (parte industrial) a produzir apenas durante seis a sete meses emum ano, acarretando baixa rotatividade de capital e tendência de queda da massade lucro. Diante dessa singularidade adversa, que dificulta a sobrevivência desseempreendimento num mercado capitalista, segundo o mesmo autor, para aagroindústria canavieira aumentar sua taxa de lucro e continuar acumulandocapital, têm sido utilizados os seguintes expedientes:

1) ampliação das áreas de “cana própria” com o objetivo deamealhar as rendas absoluta e relativa da terra e para tornar frá-gil a posição dos fornecedores de cana no mercado dessa maté-ria-prima; 2) aumento contínuo das escalas de produção, com ointento de diminuir o impacto financeiro negativo da baixa ab-sorção de valor por unidade de cana e de produto final, o queimplica a multiplicação dos latifúndios e a imposição damonocultura; 3) efetivação de altas taxas de sonegação de im-postos estaduais e federais, bem como de retenção ilícita dascontribuições para a previdência social; 4) descumprimento devários artigos fundamentais da legislação trabalhista, com gra-ves prejuízos para a vida profissional dos trabalhadorescanavieiros; 5) combinação do uso da mais-valia relativa com amais-valia absoluta, adquirindo esta última contornos realmen-te trágicos, expressos nos baixíssimos salários e na alta intensi-dade do trabalho, com impactos corrosivos para os sindicatos eoutras organizações preocupadas com a organização dos traba-lhadores agrícolas; 6) descumprimento da legislação ambiental,com o intuito de diminuir os custos de produção, com trágicosresultados para o equilíbrio ecológico; e 7) radicalização da cap-tura das instâncias estadual e municipal da máquina pública eda cultura patrimonialista (LESSA, 2006, p. 6).

Dentre os pontos supracitados, gostaríamos de destacar a necessidade deo capital agroindustrial canavieiro elevar a taxa de mais-valia a níveis extremos.Mas, antes de adentrarmos esse aspecto, cabe investigar se a premissa propostapor Lessa está correta. Ou seja: o caráter extremamente perecível da matéria-prima da agroindústria canavieira é algo singular ou se repete em outrasagroindústrias? O grande número de meses de paralisia da usina não é comum

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a todas as outras agroindústrias por estas também dependerem de matérias-primas agrícolas que são produzidas sazonalmente? O que Lessa destaca comosingular na agroindústria canavieira, não seria algo universal nas agroindústrias?

A apreensão das particularidades da agroindústria canavieira só é possívelse investigarmos outras agroindústrias. Mas será que isso não resulta num estudolongo e exaustivo que foge do objetivo do nosso trabalho? Não necessariamente.Se investigarmos somente pontos-chave como a sazonalidade, o caráter perecívelda matéria-prima e a questão de longas paralisias na área industrial em algumasgrandes agroindústrias, poderemos brevemente analisar essa questão sem fugirdo principal foco de nosso estudo.

O aspecto da sazonalidade é comum a praticamente todas as grandesagroindústrias, pois, todas dependem de produtos agrícolas. Existem exceçõescomo a da agroindústria do coco que, além da matéria-prima ser produzidadurante o ano todo numa mesma região, ainda existe um mercado internacionaldesse produto que possibilita realizar o processamento industrial, sem a paralisiaque atinge as usinas de cana-de-açúcar.

O café é produzido sazonalmente, todavia, existe a possibilidade detransporte em longas distâncias e de estoques sem prejudicar a produtividadeindustrial. Um exemplo que ilustra bem essa característica do café é a empresaIndústria Reunidas Coringas Ltda. Segundo dados obtidos no site da AssociaçãoBrasileira da Indústria de Café (ABIC, 2009), a referida empresa está entre ascem maiores do setor no Brasil, mais precisamente na posição cinquenta e oitodo ranking. Porém, o que nos chama atenção é o fato dessa empresa estar situadaem Alagoas, local em que não se planta café.

Outros exemplos de matérias-primas sazonais que permitem transporteem longa distância e estocagem são a soja e o trigo. Com o trigo, encontramosoutro exemplo ilustrativo e relevante com o moinho Motrisa, da empresa Sarandi,que fica localizado em Maceió, apesar da ausência de cultivo de trigo em soloalagoano. A possibilidade de estoques dessas matérias-primas e o transporte emlongas distâncias permitem que a produção industrial não sofra a paralisia queocorre no setor canavieiro.

Das grandes agroindústrias, a citrícola talvez seja a que tem característicasmais próximas da agroindústria canavieira. A parte industrial é concentradapróxima da agrícola, tanto para diminuir o custo com o transporte(MARGARIDO, 1996), quanto porque a laranja é uma matéria-prima perecível.Mesmo que a laranja não possa ser estocada como a soja, o café e o trigo,produtos que resistem por longos períodos, seu caráter perecível é muito maislento do que o da cana, que vai perdendo rapidamente rendimento industrialapós ser cortada. A produção de laranja também é sazonal; esse fator, aliado aoseu caráter perecível, aparentemente, levaria a uma paralisia longa da parteindustrial, assim como ocorre com a cana. Entretanto, obtivemos informações

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no site da empresa Citrosuco (CITROSUCO, 2009), localizada no Estado de SãoPaulo, Estado onde está concentrada a maior parte da agroindústria citrícola dopaís (MARGARIDO, 1996), que comprovam a existência de quatro principaisvariedades de laranjas que, por não terem períodos de safras idênticos, possibilitamuma ampliação no tempo total da safra. Assim, na pior das hipóteses para essesetor, a safra tem uma duração de nove meses (de maio até janeiro). Nãoconseguimos descobrir qual é o tempo limite de estocagem da laranja, o quedificulta calcular o tempo de paralisia da indústria, caso ele exista. Mas, aindaassim foi evidenciado que, se existe paralisia industrial na agroindústria citrícola,ela será por um período menor quando comparada à agroindústria canavieira.

As agroindústrias de cítricos, trigo, soja e café representam uma parcelasignificativa das grandes agroindústrias do país. Vimos que a sazonalidade éum fator presente nas quatro culturas, porém diferentemente da cana-de-açúcar,a sazonalidade desses produtos não causam uma paralisia tão longa na parteindustrial quanto a que ocorre nas usinas de cana-de-açúcar. O caso daagroindústria citrícola é, provavelmente, o que mais se aproxima da agroindústriacanavieira, mesmo considerando que os indícios que apontam, no mínimo, novemeses de processamento industrial signifiquem uma diferença relevante quandocomparada aos seis a sete meses de moagem das usinas de cana. Em suma, essabreve análise tende a confirmar os apontamentos de Lessa (2006) sobre asingularidade da cana-de-açúcar e as particularidades do setor canavieiro.

Esboçando as particularidades da agroindústria canavieira de AlagoasRetornando ao ponto da necessidade existente na agroindústria

canavieira em elevar a taxa de mais-valia a níveis extremos, ou seja, desuperexplorar o trabalho em virtude de sua massa de lucro ter a tendência de sermenor em decorrência da grande paralisia industrial, no caso da agroindústriacanavieira de Alagoas existem fatores adversos que tendem a amplificar aindamais essa necessidade de superexploração do trabalho.

Essa hipótese que levantamos é apoiada em dois fatores desfavoráveispara o setor em Alagoas, sendo relevantes no bojo da concorrênciaintercapitalista. O primeiro e mais importante é a produtividade agrícola dosolo alagoano, pois, esta é muito baixa quando comparada à produtividade dosgrandes centros produtores do sudeste do país. A segunda desvantagem para aagroindústria canavieira de Alagoas está na capacidade de expansão, pois, opredomínio de relevos acidentados na zona da mata alagoana limita a capacidadede expansão horizontal do setor.

Ao compararmos a produtividade agrícola da cana de Alagoas com as deSão Paulo e Mina Gerais3, notamos uma significativa diferença. Tomando como3 São Paulo e Minas Gerais foram os Estados brasileiros com maior produção de cana-de-açúcar nasafra 2008 (CONAB, 2008).

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referência a safra 2008, enquanto em São Paulo a média de produtividade agrícolafoi de 84.100 quilos por hectare (kg/ha), e em Minas Gerais foi de 78.550 kg/ha, em Alagoas chegou a apenas 69.800 kg/ha (CONAB, 2008, p. 16). Issorepresenta uma diferença de 14.300 kg/ha entre a produtividade paulista e aalagoana. Como a produtividade é um dos fatores que determinam a taxa delucro, a agroindústria canavieira de Alagoas precisa compensar, de alguma forma,essa desvantagem em relação às agroindústrias canavieiras que têm produtividadeagrícola mais alta. Dentre as várias estratégias que a agroindústria canavieirade Alagoas pode adotar para driblar essa desvantagem,4 encontra-se a busca deelevar a taxa de exploração da força de trabalho em níveis superiores aos dasconcorrentes.

Sobre a tendência do grau de exploração da força de trabalho ser, emmédia, maior nas usinas de Alagoas do que nas de Estados com maiorprodutividade agrícola, um trabalhador que entrevistamos na entressafra de 20095

aponta evidências que indicam a efetivação dessa tendência. Segue abaixo otrecho da entrevista sobre essa questão:

Pesquisador (P): Tem como o senhor dizer aonde trabalhoudepois da usina Seresta6?

Entrevistado (E): Tem a usina Seresta que foi a primeira. Asegunda... comecei a trabalhar numa usina chamada Triálcool,em Minas Gerais.

P- E por que o senhor foi para lá?

E- Porque quando chega a safra pro lado de lá, pro lado deMinas, o povo vem buscar a gente aqui. E como eu achavaque lá ganhava mais melhor do que aqui, como ainda hoje é,aí nós todo ano viajava.

P- E depois da Triálcool?

E- Depois da Triálcool eu fui para outra em Mato Grosso doSul que se chama usina Santa Fé.

P- E valia a pena ir para...

E- Valia a pena.

P- Ganhava mais lá?

E- Ganhava muito mais do que aqui.

4 A radicalização da captura do Estado é uma das estratégias marcantes da agroindústria canavieirade Alagoas. O “acordo dos usineiros” é um exemplo emblemático disso. Para mais informações sobreo “acordo dos usineiros”, ver o terceiro capítulo da dissertação de mestrado de Lima (LIMA, 2001).5 Essa entrevista foi realizada no dia 20 de julho de 2009, no conjunto Denisson Menezes, localizadoem Maceió.6 A usina Seresta está localizada no município de Teotônio Vilela, em Alagoas.

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P- Por que? O preço da tonelada lá era mais...

E- É porque lá o preço da tonelada é muito mais melhor doque aqui. E lá o trabalhador tem muito [mais] valor do queaqui. Porque aqui o trabalhador rural não tem ninguém porele. Não sei como é isso aqui. O preço da tonelada aqui nãorecompensa para o trabalhador ganhar bem.

P- O senhor tem ideia de quanto custa uma tonelada de canaqueimada aqui, e uma tonelada de cana queimada lá?

E- Agora mesmo não posso dizer não, porque houve uma que-da na tonelada de cana-de-açúcar que eu vejo passando dire-to na televisão...Mas eu só sei dizer isso aqui, que a toneladade lá vale por duas vezes a daqui para o trabalhador, né.

Em outras palavras, o entrevistado afirma que mesmo que o trabalhadorproduza em Alagoas um quantum igual ao de toneladas cortadas nas usinassupracitadas de Minas Gerais e Mato Grosso do Sul, ainda assim este receberásomente a metade do salário que receberia nas últimas usinas. Ou seja, nasusinas de Minas Gerais e do Mato Grosso do Sul, o salário tende a ser o dobrodo que é pago em Alagoas. Segundo o entrevistado, os motivos são as diferençasnos preços da tonelada e o baixo valor do trabalhador em Alagoas. Mesmo queo entrevistado tenha exagerado ao falar da diferença do preço formal pago portonelada7, como vimos em estudos anteriores, ainda existem algumas variaçõesnos métodos de exploração do trabalho que podem reduzir o preço da força detrabalho e ampliar a taxa de mais-valia, mantendo o mesmo preço formal pagopor tonelada8. Assim, dependendo dos métodos de exploração aplicados, o preçoformal pago por tonelada de cana cortada pode ser o mesmo em duas usinas,mas, numa delas a tonelada pode ter muito mais trabalho incorporado o que,neste caso, acarreta redução dos salários e ampliação do trabalho excedente.

Afirmamos que o grau de exploração da força de trabalho tende a serainda mais elevado em agroindústrias canavieiras com baixa produtividadeagrícola, entretanto, a baixa produtividade industrial também é fator que tendea intensificar a exploração da força de trabalho, isto porque, como no caso dabaixa produtividade agrícola, é preciso compensar essas desvantagens parasobreviver no concorrente mercado capitalista. Porém, afirmar essa tendêncianão implica afirmar que não possam existir agroindústrias canavieiras com altaprodutividade agrícola e industrial, que intensificam a exploração da força detrabalho em níveis superiores aos de usinas com produtividade agrícola e7 Não encontramos dados sobre as médias estaduais do preço pago por tonelada, entretanto, nosparece que uma diferença de duas vezes maior é muito desproporcional.8 Ver o capítulo III da Monografia de Conclusão de Curso intitulada Métodos contemporâneos deexploração da força de trabalho na agroindústria canavieira de Alagoas (VERÇOZA, 2009); no qualdemonstramos como o processo de trabalho em Alagoas tem nuances (maior número de ruas que compõeo eito) quando comparado ao do canavial paulista, que tende a elevar o grau de trabalho não pago.

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industrial mais baixa. Isto porque, para o capitalista, não existe uma ética queestabelece fronteiras diferentes na taxa de mais-valia em função das diferentesprodutividades. Ou seja, tanto para a agroindústria canavieira com altaprodutividade, quanto para a com baixa produtividade, interessa explorar a forçade trabalho no maior grau que seja possível. Entretanto, aquela com baixosíndices de produtividade terá que ser mais eficiente nesta tarefa, caso queiracontinuar acumulando capital. Portanto, afirmamos apenas uma tendência que,para se concretizar, depende de variados fatores, dentre estes, a luta de classesque, como foi demonstrado na histórica greve de Guariba9, pode forçar a reduçãoda taxa de mais-valia.

Trabalho Degradante e Saúde DegradadaNo corte da cana existem duas grandezas proporcionais: quanto maior

o grau de exploração da força de trabalho, maior será a sequela física e mentalno trabalhador. A safra acaba, mas as sequelas ficam. Diante do desgaste físicointrínseco ao corte manual da cana, Alves (2007, p. 33) chega a comparar opreparo físico exigido nesta atividade ao do exigido aos atletas de maratona.Segundo o autor:

O conjunto das atividades realizadas por um cortador de canaexige desgaste de energia que pode ser comparado ao desgastede um atleta corredor fundista. O corredor de longas distânci-as tem desgastes e necessidades de energia diferentes de umcorredor velocista, que necessita de explosão. Os cortadoresde cana com maior produtividade não são necessariamente osque têm maior massa muscular, tão necessária aos velocistas.Predominam trabalhadores de pouca massa muscular, corposeco, com pouca gordura e muita resistência física, que sãocaracterísticas corporais de corredores fundistas. Para oscortadores de cana é fundamental a resistência física, necessá-ria para a realização daquele conjunto de atividades repetitivase exaustivas, realizadas a céu aberto, sob o sol, na presença defuligem, poeira e fumaça, por um período que varia de 8 a 12horas de trabalho diário.

Essa descrição evidencia a insalubridade e o alto nível de desgaste físicorequerido no corte da cana. Vejamos agora um trecho da entrevista10 querealizamos com um pequeno agricultor ,dono de uma pequena propriedade ruralem Major Izidoro, município do sertão de Alagoas que, algumas vezes durantea safra da cana, migrou para a zona da mata alagoana para trabalhar no corte da

9 Ver Alves (1991) e Graziano (2007) quando abordam as alterações no processo de trabalho conquistadasem São Paulo pela histórica greve de Guariba e a sua relação com a redução da mais-valia.10 A referida entrevista foi realizada no dia 11 de julho de 2009, na zona rural no município de MajorIzidoro/AL.

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cana. Por meio desse trecho da seguinte entrevista podemos continuar o paraleloque Alves fez entre o cortador de cana e o atleta.

Pesquisador (P): O senhor tinha alguma doença quando foi?

Entrevistado (E): Não. Tinha doença não.

P: Não tem nenhuma também hoje?

E: Bem... até aqui eu não “seio”, né. Mas graças a Deus atéaqui eu não tenho não.

P: Quando o senhor estava lá cortando cana, sentia algumamoléstia... tontura?

E: Não. O que eu sentia às vezes era escurecimento de vista.Mas isso aí era besteira, era comum né. (um pequeno riso)

P: Não era dos agrotóxicos?

E:Não sei. Mas não dava pra cair não, né. Dava só aqueleescurecimento de vista.

P: Ou o sol quente?

É.

[...]

P: Quando o senhor tinha escurecimento da vista, o que osenhor fazia?

E:Eu ficava parado um pouquinho e passava, né. Depois quan-do passava eu continuava a trabalhar.

Será que um atleta de maratonas ou de outras provas de longa distânciaconsidera comum ter escurecimento de vista? Talvez isso possa ocorrer duranteuma competição que exija o limite do corpo, mas certamente o escurecimentode vista não faz parte do cotidiano do atleta. Os treinamentos não podem exigirdiariamente o limite máximo do corpo, pois isso levaria a um baixo rendimentodurante as provas. No caso do corte da cana, não existem treinos, todo dia detrabalho é dia de prova, ou melhor, de provação. O estresse físico que é evitadono atleta, através de um treinamento balanceado, no caso do corte da cana nãopode ser evitado. Para garantir o salário, que é determinado por produção, épreciso ultrapassar o limite do corpo todo dia. Nos canaviais é uma maratonapor dia de trabalho durante pelo menos seis meses ao ano. Como o corpo podepassar por isso sem marcas?

O trabalhador entrevistado, ao mesmo tempo em que afirma, com certoorgulho, que o escurecimento da vista era frequente, mas, que para ele isso era“besteira”, nega que o duro trabalho no canavial tenha deixado sequelas em seucorpo. Como explicar a saúde de ferro desse homem de trinta e oito anos que já

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foi safrista no corte da cana várias vezes, e que segundo ele, cortava uma médiaentre oito e doze toneladas diárias, dependendo da qualidade da cana? Será quenão havia sequer dores na coluna? Ou este trabalhador é um fenômeno daresistência física, ou omitiu alguma sequela física decorrente do “serviço pesado”(SANTOS, 2009). Por que o mesmo omitiria isto de nós? Não ter confiado emnós é um fator que não deve ser descartado, mas tudo indica que é o motivomais improvável no caso específico dessa omissão, pois, se o mesmo tinhamedo de sofrer algum tipo de retaliação por fornecer informações que depõemcontra a usina, por que diria que a vista escurecida é algo comum?

Talvez o melhor caminho para compreender esse orgulho que o faz revelara dureza do trabalho através da frase “é besteira escurecer a vista”, e que aomesmo tempo o faz esconder as sequelas que esse trabalho duro deixa no corpo,esteja no personagem Fabiano, de Vidas Secas11 (RAMOS, 2005). Se partirmosdessa perspectiva, veremos que o orgulho em mostrar que o trabalho é duro,somente existe porque o orgulho maior está em mostrar que ele é mais duro doque o trabalho. Dessa maneira, faz sentido esconder marcas que demonstram asuperioridade do trabalho alienado sobre o trabalhador.

Outros trabalhadores que entrevistamos foram mais francos em relaçãoàs sequelas deixadas pelos métodos de exploração da força de trabalho. Forammuitos os que falaram de dores na coluna, nos braços e de outras sequelas nocorpo. Porém, o que mais nos chamou atenção foi o “canguru”. O fato do“canguru” ser uma palavra consolidada no vocabulário dos trabalhadorescanavieiros de Alagoas indica que o mesmo ocorre com frequência. Ela é umapalavra ressignificada: o “canguru” dos trabalhadores canavieiros não significao animal australiano, porém, uma sequela do excesso de trabalho12. Nas usinaspaulistas ele também é comum, entretanto, lá tem outro nome, os trabalhadoreso conhecem como “birôla” (SILVA, 2006). O “canguru” ou “birôla” foi descritopor um médico de Jaboticabal, entrevistado por Novaes (2007, p. 107-108), daseguinte forma:

Quando o trabalhador é submetido a uma carga de trabalho eseu físico não está acostumado, e se ele estiver debilitado ouse for portador de uma doença preexistente, uma cardiopatia,ele pode ter morte súbita se submetido a trabalho excessivocom sudorese. A transpiração excessiva provoca perda deeletrólitos, de sais do organismo. Se você pegar a camisa deum trabalhador ela chega a estar branca por causa da perda desais. A cãibra é o primeiro sintoma de quando você tem distúr-bios hidroeletrolítico. A cãibra é o acúmulo de ácido lático na

11 Para ilustrar, achamos pertinente transcrever um pequeno trecho que revela um dos polos dacontradição na auto-imagem que Fabiano constrói: — Você é um bicho, Fabiano. Isto para ele eramotivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades. (RAMOS, 2005, p. 19).12 Para ver o que é o “canguru” canavieiro, descrito na forma de conto literário.

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musculatura. Ele fica todo contorcido, parece um possuído.Pra você ter uma idéia, é quase como uma convulsão. E dói,dói muito aquilo. Um jogador de futebol, um atleta preparadoquando tem cãibra ele é substituído. Imagine um trabalhadorrural que se submete a uma rotina dura de trabalho. O trata-mento correto é a hidratação com soro fisiológico. Existemusinas agora que fornecem um pó para misturar na comidapara algumas perdas de vitaminas e proteínas. Eu nunca pre-senciei uma morte súbita por decorrência de distúrbiohidroeletrolítico, de cãibra. Geralmente, a pessoa chega mortano pronto socorro.

Esse processo de cãibras que domina todo o corpo e que pode levar até amorte, foi descrito pelo médico de forma técnica, mas, ao mesmo tempo,compreensível para um leigo, foi exposta por um dos trabalhadoresentrevistados13 da seguinte forma:

Pesquisador (P): O senhor já viu alguém desmaiar, ou ir parao hospital e morrer?

Entrevistado (E): Oxe, já vi muito!

P: Já viu falecer também? Em decorrência do esforço?

E: Dos tempos em que eu trabalhei só vi um.

P: Faleceu?

E: Faleceu, ele...

P: Caiu no corte?

E: Deu um negócio lá no serviço e levaram ele para o hospi-tal. Quando ele chegou lá morreu.

P: Foi aonde isso?

E: Isso aí foi na usina Seresta.

P: Em que ano? Há quanto tempo atrás mais ou menos?

E: Tá com a faixa de uns dezoito anos. Por aí assim. Só foiquando eu vi. Agora gente desmaiar assim, já vi um bocado.

P: Como é que chama quando desmaia?

E: Aí quando desmaia diz: “chega que o ‘canguru’ pegou alio rapaz”. Já deu em mim esse tal de “canguru”.

P: Já deu “canguru”?

E: É um tipo de fraqueza que dá na gente, e chega cãibra por

13 Entrevista realizada no dia 20 de julho de 2009, no conjunto Denisson Menezes, em Maceió.

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todos os cantos. As usinas não fornecem ao cara um “suqui-nho”, é... potente assim de limão. Um negócio assim e outro.Eles não querem saber de nada, eles só querem a safra deleterminada.

P: Quando deu o “canguru”, o senhor fez o que?

E: Fica lá no chão caído e pronto.

P: Não foi para o posto não?

E: Não. Eu não fui para o posto não. Porque às vezes fica emum canto meio longe da usina, aí às vezes o rádio não chega,não tem ninguém ali para avisar.

P: Nem mandaram ambulância?

E: É. Aí o “canguru’ ali, ele dá e depois vai saindo de novo.

P: Aí o senhor se recuperou lá mesmo?

E: É, me recuperei no serviço mesmo.

P: Mas voltou a trabalhar depois do “canguru” no mesmodia?

E: Não. Voltei mais não. Porque não aguentava mais não.Passei dois dias sem trabalhar.

Podemos inferir desse depoimento que o “canguru” ocorre com frequêncianos canaviais de Alagoas. Ele é consequência do excesso de trabalho ocasionadopelos métodos de exploração da força de trabalho, que induzem o trabalhador aimprimir um ritmo de trabalho muito intenso. O “canguru” é um exemplo dassequelas da superexploração do trabalho. Caso o trabalhador sobreviva ao“canguru”, ainda terá que enfrentar outras sequelas que permanecem no corpoe na mente.

ConclusãoEntrevistamos um trabalhador desempregado no município de

Branquinha/AL14 que, aos 52 anos de idade já não servia mais para os usineiros.No tempo em que ele foi útil ao capital agroindustrial canavieiro, fazia umamédia de sete a nove toneladas diárias em solo alagoano. No Mato Grosso,chegava a fazer 12 toneladas em média, pois, segundo ele próprio, o terreno e aqualidade da cana eram melhores. Começou a trabalhar com oito anos de idadeainda no sistema de feixes. Sua trajetória é marcada por ser “permanentementetemporário” (PLANCHEREL; ALBUQUERQUE; MELO, no prelo) e commuitos momentos em que havia uma “permanente migração temporária” (SILVA,2004, p. 59). Chegou a trabalhar como safrista em Pernambuco, Bahia, Espírito

14 Realizamos essa entrevista no dia 21 de maio de 2009.

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Santo, Mato Grosso e São Paulo, podendo ser comparado com um caminhoneiroque “mora no mundo e passeia em casa” (SANTOS, 2004 p. 285). Durantealguns anos cortava cana na safra de Alagoas e migrava, no mesmo ano, paracortar em outros Estados. Esse entrevistado já trabalhou em dez usinas do Estadode Alagoas, tanto com carteira assinada, quanto como clandestino.

Atualmente, esse trabalhador encontra-se desempregado “por conta dodesmantelo”. Mostrou-me a cicatriz do corte do facão acima do joelho, mas nãofoi esse o referido “desmantelo”, posto estar sarado há muito tempo. O motivode estar “encostado” (desempregado), afirma o entrevistado, era a hérnia dedisco. Esse trabalhador que já cortou cana das cinco horas da manhã às 21horas, iluminado por farol de trator e caminhão no término da moagem, concluisua entrevista dizendo: “hoje o que eu tenho é doença”.

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O PAGAMENTO POR PRODUÇÃO E ADEGENERAÇÃO FÍSICA DOS CORTADORES DECANA: uma íntima conexão

Juliana Biondi Guanais1

IntroduçãoPartindo do pressuposto de que o pagamento por produção é um dos

principais responsáveis pelos acidentes, mutilações, perda precoce da capacidadelaboral e até mesmo pelas mortes dos cortadores de cana (ALVES, 2006; 2008),o presente trabalho tem como objetivo principal analisar essa forma específica depagamento, intentado deixar claro sua íntima relação com o aumento daprodutividade e da intensidade de trabalho e com os vários processos deadoecimento que acometem milhares de trabalhadores e trabalhadoras rurais. Paraconsecução de tal propósito, a presente análise tomou como suporte a pesquisa demestrado realizada junto à Usina Açucareira Ester S. A. (localizada em Cosmópolis-SP) e seus cortadores de cana durante o período de 2008 e 20102.

DesenvolvimentoAntes de iniciar a análise, faz-se necessário explicar o que é o pagamento

por produção, para que então possa ser demonstrada sua conexão com o aumentoda intensidade e da produtividade do trabalho, com os acidentes e mutilações, etambém com as mortes ocorridas nos canaviais.

O pagamento por produção é uma forma específica de remuneraçãoque está presente não só no mundo rural como também no urbano, e tem amplabase legal, sendo previsto no artigo 457, § 1º da Consolidação das Leis deTrabalho (CLT), bem como incontroversa aceitação doutrinária e jurisprudencial.De acordo com sua lógica, a remuneração de um trabalhador é equivalente àquantidade de mercadorias produzida pelo mesmo. Isto é, o salário a ser recebidonão terá como base as horas por ele trabalhadas, mas sim a quantidade demercadorias que serão produzidas no decorrer de sua jornada de trabalho. Nocaso específico dos cortadores de cana, o ganho por produção pode ser resumidoe explicado pela seguinte lógica “quanto mais se corta, mais se ganha”.

Não é difícil perceber que é extremamente interessante para as usinasde açúcar e álcool utilizar o salário por produção como a forma de remuneraçãopredominante dos cortadores de cana, já que por intermédio deste tipo de salárioas empresas conseguem impedir que os trabalhadores rurais adquiram o controle1 Mestre em Sociologia pela UNICAMP. Doutoranda em Sociologia pela UNICAMP e pesquisadorado Centro de Estudos Rurais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP.E-mail:[email protected] A pesquisa supracitada deu origem à dissertação No eito da cana, a quadra é fechada: estratégias dedominação e resistência entre patrões e cortadores de cana em Cosmópolis/SP. Dissertação de mestrado.Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Estadual de Campinas, 2010. Vale mencionarque a referida pesquisa contou com o financiamento da FAPESP entre os anos de 2008 e 2010.

CAPÍTULO 18

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do seu processo de trabalho e do seu pagamento (ALVES, 2008). Isso faz sentidose lembrarmos que como cada trabalhador recebe um salário condizente com oque produz, a quantidade produzida por ele tem que ser auferida para que sepossa saber quanto será sua remuneração. Entretanto, no caso específico doscortadores de cana, não são eles próprios que calculam a quantidade de canaque cortaram num dia de trabalho, já que tal cálculo será feito por um funcionárioda usina. Assim, pelo fato de desconhecerem e/ou não poderem acompanhar osmétodos e os critérios utilizados para auferir a quantidade de cana cortada,muitos trabalhadores sempre se queixaram de receber menos do que de fatodeveriam. É por isto que a utilização de tal forma de remuneração é muitoimportante para as usinas, já que, a um só tempo, impede que os cortadores decana adquiram o controle de seu processo de trabalho, e, conseqüentemente, deseu pagamento, bem como permite que as empresas tenham a noção exata daprodutividade e da intensidade de trabalho de cada um de seus empregados.

Além desta primeira razão, por detrás da instituição do pagamento porprodução pelas usinas está também o interesse por parte das últimas em selecionaraqueles trabalhadores que mais lhe interessam, aqueles que são os mais produtivose que conseguem obter índices de produtividade mais altos que os demais. Como jános demonstrou Marx (1980; 2006)3, o salário por peça4 é a forma de remuneraçãomais apropriada quando se deseja obter um maior investimento dos trabalhadoresem sua atividade; neste sentido, ao atrelar o pagamento dos cortadores de cana àquantidade cortada por eles, o setor sucroalcooleiro objetiva obter como consequênciaum “aumento natural” dos índices individuais de produtividade de seus empregados.

A necessidade de selecionar os trabalhadores mais produtivos estádiretamente associada ao seu oposto, isto é, a demissão daqueles que nãoconseguem atingir certo índice de produtividade. “Se o trabalhador não possuia capacidade média de produção, não pode ele realizar certo mínimo de trabalhodurante a jornada, ele é despedido” (MARX, 1980, p. 639). Mas como estipulareste certo mínimo de trabalho que deve ser produzido por cada trabalhador?

No caso do setor sucroalcooleiro, o pagamento por produção – que porsi só proporciona ao capitalista uma noção precisa da intensidade do trabalhode cada empregado (MARX, 1980) - passou a ser utilizado juntamente comoutras estratégias desenvolvidas pelos representantes deste setor, as quaispermitem que se obtenha um controle extremamente rígido dos cortadores decana e dos resultados de sua produção. Um exemplo de tal estratégia é a3 Marx (1980) primeira edição publicada em 1867; (2006) primeira edição publicada em 1847.4 É importante dizer que todo o raciocínio desenvolvido no presente artigo toma como pressuposto a ideiade que o salário por produção deve ser considerado como uma modalidade do salário por peça, estudadopor Karl Marx na Sexta Parte de O Capital e em outros escritos, tais como Trabalho assalariado e capital& Salário, preço e lucro. Da mesma forma que os trabalhadores estudados pelo pesquisador alemão noséculo XIX, os cortadores de cana brasileiros também recebem de acordo com sua produtividade individuale acabam arcando com quase todas as conseqüências apontadas pelo autor há mais de um século.

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imposição da média, isto é, de uma produtividade diária mínima (medida emtoneladas de cana) que deve ser atingida pelos trabalhadores caso desejemmanterem-se em seus postos de trabalho. Ao não conseguirem atingir a médiadiária estipulada pela usina para qual trabalham, os cortadores de cana sãodemitidos. É importante dizer que com o passar do tempo a média teve umaumento considerável, como nos mostra Silva (2006b). De acordo com a autora,

As condições de trabalho são marcadas pela altíssima intensi-dade de produtividade exigida. Na década de 1980, a média(produtividade) exigida era de 5 a 8 toneladas de cana cortada/dia; em 1990, passa para 8 a 9; em 2000 para 10 e em 2004para 12 a 15 toneladas! (SILVA, 2006b, p. 126).

Esse aumento cada vez maior da média teve que ser acompanhado peloaumento da produtividade dos cortadores de cana, os quais se sentiram obrigados aaumentar a quantidade de cana cortada por dia para que pudessem permanecer nausina para qual trabalhavam. Esse fato fez com que alguns pesquisadores, tais comoFrancisco Alves (2006; 2008) e José Roberto Pereira Novaes (2007b), defendessema idéia de que o pagamento por produção deve ser visto como uma das formas decontrole do trabalho no corte da cana em um contexto de modernização eintensificação da produção, e isso porque essa forma específica de remuneração, aomesmo tempo em que incentiva a intensificação do trabalho e a extensão da jornadade trabalho (MARX, 1980) – funcionando, assim, como um acicate ao trabalhoexcessivo dos cortadores de cana – funciona também como um engenhoso métodode introversão da disciplina e do autocontrole do trabalhador.

Esse maior investimento por parte dos trabalhadores em seu trabalhoestimulado pelo pagamento por produção pôde ser comprovado pela minhapesquisa de campo realizada com os cortadores de cana da Usina Ester. Mesmotendo asseguradas a pausa de uma hora para o almoço (que se dá entre 10 e 11horas da manhã), e as duas pausas de dez minutos para descanso (que devemser feitas de manhã e de tarde)5, pude observar que a grande maioria dostrabalhadores da Ester não obedecia esses momentos de descanso. Especialmenteno que se refere ao almoço, muitos cortadores de cana optavam por almoçar de péno local onde se encontram nos canaviais, não fazendo questão de retornar ao5 É importante ressaltar que tanto a pausa para almoço, quanto as duas pausas para descanso a que têmdireito todos os cortadores de cana da Usina Ester foram somente asseguradas e remuneradas pela mesma,depois que a empresa em questão foi multada no final de 2008 pelo Ministério Público do Trabalho pelofato de não estar fazendo valer tal direito aos trabalhadores. Na ocasião, a Usina Ester justificou-se afirmandoque não era a empresa que não instruía os cortadores de cana a fazerem as pausas, mas eles mesmos quenão tinham interessem em cumpri-la, porque ao pararem de trabalhar estariam prejudicando sua remuneração(informação obtida em entrevista realizada com um dos coordenadores da Usina Ester em Maio de 2009).Para maiores informações sobre a regulamentação das pausas (GARCIA, 2007). Para Garcia (2007, p.10), “Cabe frisar que o empregador também deve conceder aos trabalhadores, sejam urbanos ou rurais, ointervalo para descanso e refeição (intrajornada) e o intervalo interjornada, sendo este último de 11 horasconsecutivas, conforme art. 66 da CLT e art. 5º, parte final, da Lei 5.889/73.”

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ônibus para fazer sua refeição sentados em mesas e sob os toldos, como o previstopor uma recente exigência por parte do Ministério Público do Trabalho. De acordocom Osvaldo6, um cortador de cana de sessenta anos isso se dá porque:

Hoje você trabalha de empreita7 e hoje tem regra, você tem horade almoço e de descanso, mas ninguém tira hora de almoço...sevocê tirar você não ganha dinheiro, né, e o que acontece? O caraacaba de comer e já vai trabalhar...uns já come de manhã cedo efica o dia inteiro sem comer, né, toma só um cafezinho. Osturmeiros tá ali e eles fica com vergonha, e eles sempre tá lá, né,e os trabalhador não vai abrir a boca pra falar na vista de turmeiro,de fiscal, né [...] (Osvaldo) [grifo meu].

Em sua fala, Osvaldo afirma que pelo fato de receberem por produção,muitos trabalhadores não fazem as pausas que lhe são garantidas, já que aopararem de trabalhar, de cortar cana, diminuem sua produtividade, econseqüentemente, seu salário. Isso faz com que muitos cortadores de canacomam o mais rápido possível para não perder muito tempo de trabalho, ou atémesmo deixem de almoçar. Mas a fala de Osvaldo também nos deixa clarooutra razão para o descumprimento das pausas pelos trabalhadores. De acordocom ele, muitas vezes os cortadores de cana não se sentem à vontade parasuspender seu trabalho pelo fato de estarem sendo constantemente vigiadospelos fiscais e turmeiros, os quais são os encarregados de supervisionar efiscalizar os trabalhadores, assegurando, dessa forma, que os mesmos fiquemparados o menos tempo possível.

A fala de Maria, uma das poucas mulheres entrevistadas, também seguiu amesma direção da de Osvaldo. Em seu depoimento a trabalhadora ressaltou muitasvezes as cobranças diárias advindas dos fiscais para que os trabalhadores aumentemcada vez mais sua produção. “Eles só fica falando ‘produção, gente, produção, temque render, tem que render’”. De acordo com Maria, essa cobrança constante peloaumento de produtividade acaba fazendo com que os trabalhadores sintam-seobrigados a aumentar cada vez mais seu ritmo de trabalho.

Eu mesma entrei nessa cobrança deles e já no primeiro mês detrabalho tive que pegar atestado porque machuquei o pulso.Porque você sabe, né, tem uns cara que mais parece um bando deleão que já é acostumado a cortar cana então não tão nem aí...eeles vão, querem mais é cortar cana, porque quanto mais elescortar cana melhor né...Mas tem gente que tá começando agora,né... eu mesmo estourei o pulso...fui tentar acompanhar osoutros e estourei o pulso. E o trabalho é pesado, cada

6 É importante ressaltar que em função do compromisso de que nenhuma informação passível de identificaros sujeitos fosse divulgada, os nomes dos participantes referidos neste estudo foram alterados e substituídospor nomes fictícios, assim como os de todas as pessoas às quais eles se referiram nas entrevistas.7 “Trabalhar de empreita” é sinônimo de trabalhar por produção.

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podãozada que eu dava era uma fisgada debaixo do braço...aíeu fui lá na usina e eles me mandaram lá para Cosmópolis e omédico me deu onze dias de afastamento (Maria) [grifo meu].

Ao analisarmos o depoimento da trabalhadora, ficam nítidas as cobrançasde produtividade que recaem sobre os cortadores de cana. A própria entrevistadaafirma ter se machucado logo no início da safra em função de ter tentadoacompanhar o intenso ritmo de trabalho dos cortadores mais produtivos. Aolongo de sua entrevista, busquei também saber de Maria se existia algum outromotivo - além das cobranças dos fiscais – que a havia levado a tentar igualar-seao ritmo e à produtividade dos trabalhadores que mais cortavam cana. Atrabalhadora justificou seu comportamento com a seguinte resposta:

A Usina Ester não dá nada...e se ela puder arrancar seu pêlo emoer e fazer álcool ela faz. Ela não é justa de jeito nenhum,aquilo lá não é dinheiro para a gente receber numasemana...oitenta, setenta reais... Eu acho que eles deviam darmais valor para a gente porque o serviço que a gente faz...elestêm que reparar o tanto que eles ganham a mais do quenós...porque tira o que eles pagam para nós e não passa nemperto do que eles ganham, né, porque eles fabricam álcool eaçúcar, né!! E eles vêm falando pra gente que a coisa tá ruimporque a crise já chegou no Brasil. Mas o que a gente tem a vercom essa crise, meu Deus?! Porque quando sobe o álcool elesganham mais, mas mesmo assim o preço da cana não sobe! Elesnão têm consciência do que nóis tá fazendo na roça...a gentenão tá brincando.Um dia de trabalho não dá nem para pagar acomida! O mais impressionante é que tem cana que você corta odia inteirinho batido e quando você chega em casa e que vocêvai somar não dá nem dez reais. Aquela cana embolada lá, nos-sa, eu acho que é a que devia valer mais, devia valer uns cincoreais a tonelada8 porque é pesada, viu. Essa cana faz tipo um‘c’, onde ela nasceu ela termina, ela enrola toda, e aí quandovocê vai puxar você tem que fazer uma força que repuxa to-dos os nervos...E com o dinheiro que a gente ganha, principal-mente as mulher9, esse dinheiro é tão pouco que se você quiserir para Minas não dá para pagar nem a passagem! Agora com oseguro10 já ajudava, né (Maria) [grifo meu].

8 A cana a que se refere Maria é a cana bisada, um tipo de cana mais velha, isto é, que está há maistempo nos canaviais, e que por isso é muito mais difícil de ser cortada. No caso especifico da UsinaEster, em 2009 a tonelada desta cana estava avaliada em aproximadamente R$3,85.9 Neste ponto específico Maria está fazendo uma comparação entre os índices de produtividade doshomens e das mulheres. De acordo com a trabalhadora, em geral as mulheres cortam menos cana doque os homens, fato que pôde ser comprovado também por intermédio da pesquisa de campo.10 O seguro a que Maria se refere diz respeito ao Seguro Desemprego. É importante dizer que ostrabalhadores que são contratados por tempo determinado de serviço (os chamados “safristas”) nãotêm direito a esse benefício, que atualmente só é assegurado aos cortadores de cana que são contratadospor tempo indeterminado de serviço, os “efetivos” da usina.

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A fala de Maria deixa bem claro que os baixos salários pagos pela UsinaEster são o outro motivo que a levou tentar aumentar sua produtividade diária. Deacordo com a cortadora de cana, os salários semanais pagos pela empresa sãoextremamente baixos, muitas vezes chegando a não serem suficientes para pagartodas as contas e gastos dos trabalhadores. A despeito de trabalharem pesadodiariamente, não são raras as ocasiões em que o montante recebido peloscanavieiros “não dá nem para pagar a comida!”. Em função disto, a grande maioriados cortadores de cana – em geral os provedores de sua família - se vê obrigada acortar cada vez mais cana, para que assim, consiga aumentar sua remuneração11.

Além de ser o principal responsável pelo aumento da intensidade e daprodutividade do trabalho, recentemente muitos estudiosos12 de diversas áreastêm identificado o pagamento por produção como uma das principais causasdas doenças ocupacionais, das mutilações, dos acidentes de trabalho e até mesmodas mortes de trabalhadores rurais. De acordo com Francisco José da CostaAlves, “Todas as evidências colhidas a partir de relatos de trabalhadores e apartir da verificação das condições de trabalho apontam que as mortes sãodecorrentes do esforço exigido durante o corte de cana” (ALVES, 2008, p. 34).

Pelo fato de receberem de acordo com sua produtividade individual edesconhecerem ao certo a quantidade de cana que cortam por dia, ostrabalhadores rurais convivem diariamente com a insegurança de não saberpreviamente o valor que irão receber por um dia de trabalho. Neste contexto,não são raras as ocasiões em que muitos trabalhadores se empenham mais doque o suportável para cortar uma quantidade cada vez maior de cana (para queseja possível ter sua remuneração aumentada), podendo, assim, vir a se machucare a se lesionar seriamente. Segundo o Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM),entre as safras de 2003/04 e 2007/2008, vinte e um cortadores de cana morreramem decorrência de excesso de trabalho nos canaviais paulistas13. Em seus estudosmais recentes, Alves (2006) tem procurado demonstrar a íntima relação entre o11 Uma das notas de rodapé citadas por Marx (1980, p. 641, grifo meu) serve para ilustrar essarealidade. “‘Esse sistema de salário por peça, tão vantajoso para o capitalista [...] incentiva fortementeo jovem oleiro a trabalhar excessivamente, durante 4 ou 5 anos em que é pago por peça, mas a baixosalário. Esta é uma das principais causas da degeneração física dos oleiros’ (Child. Empl. Comm. I.Rep., p. XIII).“12 Maria Aparecida de Moraes Silva (2005; 2006a), Francisco Alves (2006; 2008) e José RobertoPereira Novaes (2007a) são alguns dos pesquisadores que têm procurado demonstrar a forte relaçãoentre o salário por produção e os acidentes, doenças e mortes de trabalhadores cortadores de cana.13 De acordo com Alves (2008), tanto o pagamento por produção dos cortadores de cana, como ocrescimento da intensidade do trabalho dos mesmos “[...] ganharam espaço de discussão a partir domomento em que a equipe da Pastoral dos Migrantes de Guariba passou a divulgar a importante,porém funesta, contagem sobre as mortes de trabalhadores cortadores de cana. A divulgação dacontagem dessas mortes gerou um amplo debate, além da realização de várias audiências públicas,nas quais as entidades sindicais dos trabalhadores, as ONGs e alguns pesquisadores da temática dotrabalho rural atribuíam essas mortes ao excesso de trabalho realizado pelos cortadores de cana.“(ALVES, 2008, p. 22, grifo meu).

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salário por produção e os acidentes, doenças e mortes de trabalhadores cortadoresde cana. De acordo com o autor,

O objetivo deste trabalho é demonstrar que a morte dos traba-lhadores assalariados rurais, cortadores de cana, advém dopagamento por produção. Os processos de produção e de tra-balho vigentes no Complexo Agroindustrial Canavieiro foramconcebidos objetivando a produtividade crescente do trabalhoe, combinados ao trabalho por produção, provocam a necessi-dade de os trabalhadores aumentarem o esforço despendidono trabalho. O crescimento do dispêndio de energia e do es-forço para cortar mais cana provoca ou a morte dos trabalha-dores ou a perda precoce de capacidade de trabalho (ALVES,2006, p. 90, grifo meu).

Em sua argumentação, Alves (2006) procura demonstrar que opagamento por produção praticado na cana-de-açúcar é diferente do praticadoem outras culturas, já que o cortador de cana não tem conhecimento do valorque será pago pela “peça” que produzirá. Em função desta forma específica deremuneração, os cortadores de cana se vêem obrigados a se esforçar cada vezmais com vistas a obter um acréscimo em sua remuneração (que em geral éextremamente baixa)14. Para esse tipo de trabalho, mais do que força, é necessáriomuita resistência física, já que ao longo de sua jornada de trabalho, os cortadoresde cana realizarão várias atividades repetitivas, exaustivas e a céu aberto, napresença de fuligem, poeira, fumaça e calor, e por um período que pode variarentre oito a doze horas diárias.

Para que fosse possível entender melhor todas as atividades que sãorequeridas de um cortador de cana ao longo de um dia de trabalho, Alves (2008)descreve e calcula minuciosamente todos os movimentos e deslocamentos queesse tipo de trabalhador faz durante um dado espaço de tempo. De acordo como autor, admitindo-se que haja em média, quatorze pés (de cana) em um metrode cana, para um trabalhador cortar um metro de cana terá de depender atéquatorze golpes de podão (e isso porque geralmente é necessário se dar umgolpe em cada uma das varas de cana para cortá-la). Como um trabalhador temque cortar cinco ruas de cana (cinco fileiras), ele terá que despender até setentagolpes por metro. Além de dar até setenta golpes, um trabalhador fará até setentaflexões de pernas e costas por metro nas cinco ruas, o que corresponde a 14.000golpes e flexões de pernas e costas num eito de 200 metros. Considerando-seque há necessidade de caminhar (fazer deslocamentos laterais e diagonais) para

14 Em seus escritos, Marx (1980) já havia alertado sobre esta possibilidade. De acordo com o autor,por sua própria natureza, o salário por peça incentiva os trabalhadores a trabalhar excessivamente,mas a baixo salário. Quando somados, trabalho excessivo, baixos salários, prolongamento da jornadade trabalho e condições insalubres de trabalho acabam por resultar na degeneração física dostrabalhadores.

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realizar todas as tarefas, um cortador de cana percorrerá aproximadamente 5.500metros num eito de 200 metros (ALVES, 2008).

O corte da cana realizado com toda essa vestimenta e equi-pamentos, sob o sol e sendo remunerado por produção, levaa que os trabalhadores suem abundantemente e percam mui-ta água e junto com o suor percam sais minerais. A perda deágua e de sais minerais leva à desidratação e à freqüente ocor-rência de câimbras. As câimbras começam, em geral, pelasmãos e pés, avançam pelas pernas e chegam ao tórax, quan-do são chamadas de ‘birola’ ou ‘canguri’, pelos trabalhado-res. Este tipo de câimbras provoca fortes dores e parece queo trabalhador está sendo acometido por convulsões (ALVES,2008, p. 33, grifo meu).

A carência nutricional, agravada pelo esforço físico excessivo, contribuipara o aumento dos acidentes de trabalho, além de doenças das vias respiratórias,dores na coluna, tendinites, câimbras, etc. Isso sem contar a fuligem da canaqueimada que contém gases extremamente venenosos e nocivos à saúde e que éinalada diariamente pelos cortadores de cana. Inseridos neste contextocaracterizado por condições insalubres de trabalho e enormes exigências no quese refere à qualidade do serviço desempenhado, muitos trabalhadores rurais acabamvindo a falecer até mesmo no próprio canavial, durante sua jornada de trabalho15.

As mortes cada vez mais freqüentes de cortadores de cana de várias regiõesdo país também chamaram a atenção de Silva (2006b). Em sua pesquisa, a autorabuscou ouvir alguns médicos para descobrir as causas que levaram os trabalhadoresrurais a óbito. Os especialistas argumentaram que a sudorese excessiva (provocadapela perda de potássio) pode conduzir à parada cardiorrespiratória. Também hácasos que são provocados por aneurisma, em função do rompimento de veiascerebrais. Entretanto, na grande maioria dos casos, nos atestados de óbito a causamortis desses trabalhadores ainda são muito vagas, e não permitem uma análiseconclusiva a respeito do que causou as mortes. Nos atestados consta apenas que ostrabalhadores morreram ou por parada cardíaca, ou insuficiência respiratória, ouacidente vascular cerebral.

Mas, como diria Silva (2006b), as mortes dos cortadores de cana são aponta do iceberg de um processo gigantesco de exploração, no qual não só aforça de trabalho é consumida, mas também a própria vida dos trabalhadores.Aqueles que não chegam a falecer têm sua capacidade laboral reduzida de umasafra para outra, têm seus corpos mutilados, e consideram-se inválidos para otrabalho. Mesmo assim, na grande maioria dos casos, os cortadores de canasentem-se obrigados a continuar trabalhando.

15 Sobre a contabilização das mortes de cortadores de cana, ver: (FACIOLI, 2008), autora do artigo euma das coordenadoras da Pastoral do Migrante de Guariba-SP.

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De acordo com Alves (2008), as dores no corpo são a principal causa deabsenteísmo no trabalho. Quando acometidos por tais dores, os trabalhadores têmduas opções: faltam ao serviço para atendimento médico, ou vão trabalhar, mascorrem o risco de não atingir a produtividade mínima exigida. Caso faltem, as faltasserão abonadas desde que justificadas pelo atestado médico e pelo recibo da comprados medicamentos receitados. O custo de tais medicamentos consome praticamentetodo o dinheiro ganho no dia – pois quando faltam os trabalhadores são remuneradospela diária16 - desta forma, faltar ao trabalho para tratamento médico é muito caro.

Caso os trabalhadores decidam ir trabalhar mesmo com dor, podem vir anão atingir a produtividade mínima, ou podem ter que parar de cortar cana porquenão estão suportando a dor. Nestes casos, tais trabalhadores ficam sob a mira dosfiscais de turma, que não só os apelidam de forma pejorativa, como tambémcomunicam a baixa produtividade a seus superiores.

Os trabalhadores ficam, desta forma, sob o seguinte dilema:se resolvem ir trabalhar com dores, têm sua produtividade re-duzida e correm o risco de perda do emprego. Por outro lado,se ficam em casa para tratamento de saúde e compram os me-dicamentos, consomem todo o valor da diária. A alternativa aesta contradição é a auto-medicação (ALVES, 2008, p. 34).

Pensando em aliviar as dores no corpo, na grande maioria das vezesprovocadas por excesso de trabalho, os cortadores de cana buscam por contaprópria os antiinflamatórios, medicamentos que lhes asseguram um rápidoreingresso ao trabalho sem prejuízo de sua produtividade e sem necessitar deafastamento do serviço, expediente condenado pelas usinas e desinteressantepara os trabalhadores. Desta forma, percebemos que a auto-medicação servecomo uma forma adotada pelos próprios trabalhadores para garantir um ritmode trabalho que vai além da capacidade física de muitos. Como diria Novaes(2007a, p. 173), “Soros e remédios podem ser vistos como expressão do paradoxode um tipo de modernização e expansão da lavoura canavieira que dilapida amão-de-obra que a faz florescer.”

Em sua fala, Osvaldo, um dos trabalhadores entrevistados, relatou ocaso de seu filho, um cortador de cana que largou o serviço porque tinhaconstantes mal estares durante seu trabalho. De acordo com Osvaldo,

O: Eu e meus filhos saímo de Minas e viemo para cá cortarcana. Mas meu menino mais novo pegou e deu baixa...tinhaproblema, desmaiava na roça, e foi indo, foi indo, ele pediupara ser mandado embora, e não quiseram mandar, e aí ele ia

16 Receber por diária é diferente de receber por produção. Quando recebem por diária, os trabalhadoresrecebem um valor fixo por dia, independente da produtividade atingida no dia. A diária não está atrelada,portanto, a quantidade de toneladas cortada por cada trabalhador. De acordo com a presidente do Sindicatodos Empregados Rurais de Cosmópolis, em 2009 a diária paga pela Usina Ester estava em R$22.

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no médico e não afastava, aí ele pegou e deu baixa...hoje eletá lá no Sem Terra, lá em Pradópolis.

P: Mas ele passava mal cortando cana?

O: Passava, ele desmaiava na roça.

P: Por quê?

O: Não sei, acho que desgastava muito...ele trabalhava bem,né, ele cortava bastante cana. Aí ele pegou e deu baixa, deubaixa e aí arrumou essa terra lá, a mulher dele era daqui masos parentes dela morava lá, e aí ele foi pra lá e tá lá até hoje.E não quer mais saber de cortar cana. (Osvaldo) [grifos meus].

De acordo com o entrevistado, por ser um “bom cortador de cana”, istoé, um trabalhador que cortava muitas toneladas por dia, seu filho desgastava-sedemais ao longo de seu expediente, e esse desgaste excessivo levava-o a sentirconstantes mal estares, que o levava até mesmo a desmaiar no canavial. Devidoa isso, o jovem procurou um médico e pediu para ser afastado do serviço, masnão conseguiu. Procurou a usina para solicitar que o demitissem, e também nãoobteve êxito. Vendo-se sem alternativa, o filho de Osvaldo pediu demissão, efoi juntar-se à família de sua esposa em um assentamento ligado ao Movimentodos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), na cidade de Pradópolis. De acordocom Osvaldo, seu filho está no assentamento até hoje, e não pensa mais emvoltar a cortar cana. E conclui: “Esse trabalho judia mesmo da gente...”.

José, outro depoente, também relatou um caso relacionando o trabalhono corte da cana com o desgaste excessivo que recai sobre os trabalhadores rurais.

Eu dei uma baixada no ritmo, agora eu tô cortando menoscana do que naquela época, né, porque dependendo do jeitoque você tá esforçando ali, você causa um problema nas cos-tas, né... Um colega meu, o Padilha, ele cortava cana desdedois mil e quatro e o médico proibiu ele de cortar cana, omédico falou para ele que se ele quisesse viver um pouco maisele tinha que parar de cortar cana...aí ele parou, né, parounaquela semana mesmo (José) [grifo meu].

Ao atentarmos melhor para a fala de José, percebemos que o trabalhadorjustifica a diminuição no seu ritmo de trabalho por ter percebido que ao despenderum esforço excessivo para cortar uma quantidade maior de cana, existe apossibilidade dos trabalhadores se machucarem seriamente. Para ilustrar melhoro que queria dizer, José também cita o caso de um colega de trabalho que foiaconselhado por um médico a deixar o serviço na cana para que pudesse “viverum pouco mais”.

A partir dos depoimentos de José e de Osvaldo, e de outros que fui colhendoem conversas informais com outros cortadores de cana, pude perceber que na

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realidade os trabalhadores rurais associam o trabalho que desempenham (suapenosidade, sua dificuldade e as exigências que estão relacionadas a esse tipoespecífico de serviço) às doenças, mutilações, e até mesmo às mortes que acometemos cortadores de cana. “É esse trabalho que judia e acaba com a gente!” (Maria).Para eles, é o trabalho (e tudo o que ele implica) – e não somente o pagamento porprodução – que é o maior responsável pelos altos índices de invalidez e de mutilações.Nesse contexto, o pagamento produção é somente mais um fator agravante.

As enormes e variadas cobranças sobre a qualidade do serviço a serexecutado, os baixos salários recebidos (que são mínimos quando comparadosao tipo de atividade que desempenham), as condições precárias de moradia e dealimentação, o tratamento ríspido que recebem de seus superiores, e também aimposição de altos índices de produtividade a serem atingidos, todos esses fatoressomados contribuem para a perda precoce da capacidade laboral, para osacidentes, e até mesmo para as mortes.

Mas e os representantes do setor sucroalcooleiro, relacionam ou não opagamento por produção com as mortes de cortadores de cana?

É importante ressaltar que a despeito de todas as investigações,audiências públicas e estudos científicos que vêm sido desenvolvidos nessaárea, até o presente momento tal impasse não foi resolvido, e isto porque osusineiros continuam alegando que não há como comprovar cientificamente oelo existente entre as mortes e a forma de remuneração dos trabalhadores rurais.“Do lado dos empresários, essa conclusão era contestada sob a alegação de quefaltava o estabelecimento do nexo causal entre as mortes dos cortadores decana e o trabalho por eles realizado.” (ALVES, 2008, p. 22).

Conclusão: Uma luz no fim do túnel?Como dito várias vezes anteriormente, nos dias de hoje muitos

pesquisadores têm procurado demonstrar a íntima ligação do pagamento porprodução com a degeneração física e com os processos de adoecimento queacometem milhares de trabalhadores e trabalhadoras rurais. Mesmo com asinúmeras comprovações científicas feitas por esses pesquisadores, a maioriados representantes do setor sucroalcooleiro desconversa quando o assunto é asubstituição desta forma de remuneração por outra, já que para eles, não háqualquer relação entre o salário recebido pelos cortadores de cana e os acidentesocorridos nos canaviais.

As falas citadas abaixo são exemplos de respostas dadas por doisrepresentantes da Usina Ester. Quando interrogados sobre o que pensam dapossível relação entre o pagamento por produção e as mortes de trabalhadoresrurais, ambos os entrevistados desconversaram.

P: Você acredita que quando os trabalhadores ganham porprodução eles acabam competindo entre si?

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J: Não, eu não vejo assim. Eu vejo que nas turmas eles sãomuito unidos, né, às vezes um vem sem almoço e um ajuda ooutro, entendeu, então o pessoal trabalha bem unido.

P: Existem pessoas atualmente que estão relacionando o pa-gamento por produção com as mortes dos cortadores de cana,o que você acha disso?

J: Eu não acredito nisso, não, aqui na nossa empresa eu nãovi nada disto daí...eu não posso dizer de outras usinas, masaqui não...

P: Você acha que o pagamento por produção pode levar ostrabalhadores a querer cortar muito mais do que eles agüen-tam e aí se machucar?

J: Não, é aquilo que eu falei para você: o esforço de um tra-balhador é mais ou menos aquilo mesmo, cada um já sabe olimite dele, eles não passam. Ele pode querer aproveitar quan-do a cana é um pouquinho melhor, né! Também tem vezes quechega aquela hora que o trabalhador acaba até parando an-tes do fim do expediente e a gente nem fala nada porque ele táde empreita e a gente nem pode...(João) [grifo meu].

P: Algumas pessoas acham que o pagamento por produçãoleva o cortador de cana a trabalhar além da conta, pondo emrisco a sua saúde, causando doenças e acidentes. Você con-corda com isso?

A: Olha, se tiver que acontecer o acidente no corte de cana,tanto faz se for por produção ou se for na diária, vai aconte-cer do mesmo jeito porque a metodologia do trabalho é amesma.

P: Você acha que os cortadores de cana competem entre siquando estão trabalhando por produção?

A: Hum, não...não. Eu acho que os trabalhadores em si eles seesforçam para ganhar um pouco mais, mas a competição entreeles eu não, eu não consigo enxergar. (André) [grifo meu]

Mas se os representantes das usinas de açúcar e álcool continuam negandoqualquer relação entre o salário por produção e o adoecimento de vários trabalhadoresrurais, e os sindicatos de trabalhadores não sabem se posicionar17 neste contexto, oque é possível se fazer para evitar que mais cortadores de cana se machuquem, semutilem e morram nos canaviais?17 De acordo com Novaes (2007a) e Alves (2008), a grande maioria dos sindicatos encontra dificuldadepara se posicionar sobre a possível substituição do pagamento por produção por um salário fixoporque a categoria que representa– no caso os trabalhadores assalariados rurais, os cortadores de cana– defende a permanência desta forma específica de remuneração.

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A melhor saída para tal impasse é erradicar essa forma específica deremuneração e substituí-la por outra, como por exemplo, o salário fixo. Emseus trabalhos mais recentes, Francisco Alves (2008) defende a seguinte idéia,com a qual simpatizo: pelo fato de o pagamento por produção ser um sistemaprejudicial aos trabalhadores rurais, o mesmo deve ser abolido e ceder lugar aoutra forma de pagamento, baseada no princípio universal da jornada de trabalhofixada em horas de trabalho.

Uma proposta de pagamento por salário fixo deveria ter comoindicador as horas trabalhadas e não a quantidade de cana cor-tada. Portanto, deveria se atribuir um valor para a hora traba-lhada e este não poderia estar atrelado à obrigação do corte deuma determinada quantidade de cana. Isto porque, a quantida-de média de cana cortada por trabalhador vem-se alterandoem decorrência das estratégias empresariais para aumento daintensidade e da produtividade do trabalho [...] Atrelar o salá-rio fixo à média ora praticada seria o mesmo que condenar osatuais trabalhadores à morte (ALVES, 2008, p. 44-45).

Na atual conjuntura, a idéia de substituir o pagamento por produção porum salário fixo parece estar ainda muito longe de se tornar realidade, entretanto,não podemos negar que alguns passos importantes já foram dados nesta direção.A necessidade de se analisar de forma mais pormenorizada o pagamento porprodução tem sido repetidamente enfatizada até mesmo por alguns promotoresdo trabalho18 ligados ao Ministério Público do Trabalho da 15ª Região19, queestão empenhados em combater tal forma de remuneração, e, para tanto, buscamformular novas medidas que venham impedir que os cortadores de cana continuemtendo seu salário atrelado a sua produtividade individual.

O projeto de lei do Deputado João Dado (2007), que acrescenta Art.13-A na Lei nº 5.889 (de 8 de junho de 1973) é um exemplo dos que foramrecentemente elaborados com vistas a abolir o pagamento por produção no corteda cana. De acordo com ele,

A causa mais direta relacionada a essa fadiga, é a forma deremuneração, que não é fixa, mas por produção: quanto maiso trabalhador corta, mais ele recebe. E para ter condições desustentabilidade, o trabalhador tem que ter uma produtividadebastante elevada, tendo em vista o aviltante preço pago pela

18 Na avaliação do Dr. Mário Gomes, promotor do trabalho de Campinas, a origem das mortes noscanaviais também residiria neste sistema de remuneração por produção: “É nele que reside o problema.O trabalhador só ganha um valor suficiente, cerca de R$ 900 a R$ 1,2 mil, se cortar mais cana. Comoa remuneração básica de R$ 400 não consegue atender às necessidades, cortar volumes de 10 a 20toneladas de cana por dia é o único jeito de o trabalhador alcançar uma remuneração melhor.” (BRITO,2007, online).19 O Ministério Público do Trabalho da 15ª Região fica localizado na cidade de Campinas, interior deSão Paulo.

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tonelada [...] Tal situação requer, pois, que a média de produ-tividade dos trabalhadores, na região de São Paulo, varie entrenove e quinze toneladas por dia (DADO, 2007, p. 3, grifo meu).

E o documento conclui da seguinte forma:Trata-se de grave problema social, cuja complexidade exigeexaustivo debate com a participação, inclusive, de toda a soci-edade. Como ponto de partida, sugerimos o presente texto,propondo, basicamente, a constatação jurídica do inegável fato:o reconhecimento da atividade como penosa e insalubre. Comomedida de efetividade do reconhecimento de tais condições,propugna-se pelo estabelecimento de adicional e de limitaçãode jornada e pela proibição do salário por produção (DADO,2007, p. 5, grifo meu).

Para que seja possível formular medidas como essa, os promotores da15ª Região vêm apoiando-se e incentivado fortemente a produção de estudos20

que tratem desta temática, sobretudo aqueles que defendem a idéia de que opagamento por produção é o maior responsável pelos acidentes e mortes decortadores de cana. O surgimento e a proliferação de pesquisas que voltem suaatenção para as condições de vida e de trabalho dos cortadores de cana, e quede alguma forma tentam deixar claro a inegável relação entre o salário porprodução e o adoecimento dos trabalhadores rurais pode representar, no atualcontexto, uma luz no fim do túnel e um importante instrumento de luta a favordo bem estar físico dos cortadores de cana. Cabe, portanto, não somente aospesquisadores acadêmicos, mas sim a qualquer pessoa compromissada com aclasse trabalhadora, se envolver com esta importante questão social e procurartrazê-la à tona sempre que possível.

Referências

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20 Um destes estudos (LAAT et al, 2008, p. 44). De acordo com os autores, “No caso do corte manualda cana-de-açúcar, o aspecto da organização do trabalho que determina e condiciona a carga e odesgaste dos trabalhadores é o pagamento por produção. Sob o estímulo financeiro na corrida peloaumento dos seus ganhos diários, os trabalhadores tendem a ultrapassar seus limites fisiológicos , ouseja, eles perdem a referência dos sinais do próprio corpo [...]. Os trabalhadores são, então empurradospor uma mão invisível – o pagamento por produção – a ignorar estes avisos, colocando em risco suasaúde. Cabe destacar que o pagamento por produção adotado no setor contraria a legislação vigente[...]. Portanto este estudo já indica a necessidade de alteração desta forma de remuneração.”

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CAPITULO 19 MODERNIZAÇÃO PERVERSA E DEGRADAÇÃOAMBIENTAL ATRAVÉS DA PROIBIÇÃOGRADATIVA DA QUEIMA DA CANA-DE-AÇÚCAR:diferenças e convergência entre mecanização da colheita dacana e eliminação da queima

José Roberto Porto de Andrade Júnior1

Elisabete Maniglia2

IntroduçãoO Estado, durante o processo de expansão canavieira, convenientemente

administrou os conflitos que surgiram em benefício de suas elites, fazendo de qualquertentativa de transição um episódio de modernização conservadora. A expressãomodernização conservadora designa a síntese de um processo sócio-econômico epolítico viabilizado e sustentado pelo Estado, através do qual ocorria modernizaçãodo instrumental de produção sem modificação da estrutura interna do complexosucroalcooleiro, numa transição sem rupturas, de modo a assegurar o poderpreestabelecido (RAMOS, 1999).

Longe de constituir uma marca de um único período da história canavieira,a modernização conservadora manifestou-se sempre que se fizeram presentes ascontradições entre o desenvolvimento das forças produtivas e as transformações naestrutura social que deveriam se processar enquanto exigência daqueledesenvolvimento. Para o setor canavieiro, assim, a solução para as crises sempreenvolveu engajar o Estado em ações para manutenção do status quo do setor,reforçando as estruturas vigentes sem nunca colocar a questão em termos de ascensãosocial ou diminuição da desigualdade (RAMOS, 1999). Modernizava-se semmodificar.

Essa dinâmica de modernização conservadora e sua lógica reacionária retornamao palco da reestruturação canavieira no período atual, num novo episódio da sagasucroalcooleira pela manutenção de seus densos privilégios e de seu vasto podereconômico e social. Agora, o novo é o tema entorno do qual as forças que almejam atransição e a reestruturação se aglutinam, sendo a ele dado pela elite canavieira e porum Estado cooptado os velhos contornos que lhes agradam. Assim tem sido naregulamentação ambiental da produção canavieira, especificamente no que concerne1 Pesquisador / Estagiário prorrogado do Ministério Público do Estado de São Paulo, lotado no Grupode Atuação Especial em Defesa do Meio Ambiente (GAEMA), Núcleo Regional do Pardo. Mestrandoem direito pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de MesquitaFilho” (UNESP). Graduado em direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”(UNESP). E-mail: [email protected] Livre-docente pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Doutoraem Direito pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Mestre em Direito pela Universidade deSão Paulo (USP). Graduada em Direito pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Graduada emComunicação Social - Jornalismo pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail:[email protected].

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à eliminação na queima da cana-de-açúcar3, tema que será abordado nesse artigo.A demanda socioambiental pela eliminação na queima surge no final dos

anos 1980 e início dos anos 1990, ganhando traçados normativos através da atuaçãodo Ministério Público no ajuizamento de ações civis públicas demandando a proibiçãoimediata da queima. Como resposta a essa demanda, o setor canavieiro articula-secom seus alicerces Estatais e promove a promulgação de textos normativos que prevêemuma eliminação gradativa da queima, permissão para queimar cuidadosamentemascarada de proibição. Através dessa articulação, o setor canavieiro obtém êxito navinculação, tanto em textos normativos ou decisões judiciais quanto no imagináriosocial, de duas temáticas que passam a ser entendidas como portadoras de uma relaçãocausal: eliminação da queima da cana-de-açúcar e mecanização da colheita.

Alguns setores da Sociedade, particularmente o senso comum, passam aentender a eliminação da queima da cana-de-açúcar como causa da mecanização dacolheita da cana e, portanto, como causa da geração de desemprego estrutural pelaeliminação de postos de trabalho. A relação que se estabelece entre essas temáticas,todavia, é mais complexa do que esta útil vinculação causal tenta fazer crer, havendo,em especial, a mediação dos interesses financeiros do setor sucroalcooleiro entreessas escolhas político-econômicas diversas. Esclarecer o conteúdo concreto dessarelação é uma demanda importante para o entendimento do setor sucroalcooleiro ede seu momento histórico atual.

Em vista disso, o objetivo desse artigo é desmistificar o conteúdo da relaçãoque estabelecem entre si eliminação da queima da cana-de-açúcar e mecanizaçãoda colheita canavieira, identificando fundamentadamente, com base em análisessociológicas, econômicas e históricas, os elementos concretos que pautam a relaçãoentre essas escolhas produtivas. Busca-se demonstrar, assim, que a convergênciaentre essas temáticas através da proibição gradativa da queima da cana-de-açúcaratende exclusivamente aos interesses do patronato canavieiro, que concretiza atravésdela mais uma etapa de modernização conservadora, complementada com intensadegradação ambiental. Ao final, procura-se contextualizar esse novo episódio demodernização conservadora com os fatos econômicos atuais que pautam as relaçõesno setor e influenciam tanto a eliminação da queima quanto a mecanização agrícola.

A falsa interdependência entre mecanização da colheita da cana e eliminaçãoda queima: desfazendo mitos

Inicialmente, é importante desconstruir a hipótese amplamente aceita, segundoa qual a eliminação da queima da cana-de-açúcar obriga o produtor canavieiro amecanizar a colheita do vegetal e, em vista disso, gera desemprego. Não há vinculação3 A queima da cana-de-açúcar é uma prática agrícola adotada anteriormente à colheita do vegetal,visando eliminar a parcela da biomassa não aproveitada no processamento industrial que dá origemao açúcar e ao álcool (composta predominantemente de folhas e palha) e, assim, facilitar o corte dacana, diminuindo seus custos de produção e aumentando sua produtividade. Através dessa prática,todo o canavial é queimado.

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causal necessária entre o fim da queima da cana-de-açúcar e a mecanização dacolheita, sendo tais escolhas produtivas duas decisões político-econômicas distintasa serem potencialmente tomadas no ambiente de produção canavieiro. A cana podeser colhida manualmente se estiver ou não queimada, da mesma forma que a canapode ser colhida mecanicamente queimada ou não. Deixar de queimar a cana nãoobriga o produtor a mecanizar a colheita.

Na realidade, a cana foi colhida sem queima prévia durante a maior parte doperíodo em que foi cultivada no Brasil, sendo a adoção desse expediente produtivorelativamente recente no país, datando de cerca de 50 anos atrás. A cana, por suavez, é cultivada há séculos no Brasil, tendo operado por todo esse tempo mediantecolheita manual sem queima prévia. Somente a partir da década de 1960, num períodode grande expansão produtiva e após a mecanização do carregamento do vegetal, éque a cana passou a ser sistematicamente queimada, numa decisão produtiva quelevou em conta estritamente interesses de rentabilidade imediata e ignorou asconsequências socioambientais que a prática traria para a Sociedade e para o meioambiente (GONÇALVES, 2005, p. 99-100).

Não sendo pressuposto indispensável para a colheita, a prática tem comofundamento aumentar a produtividade do corte por torná-lo mais ágil ao eliminarparcela significativa da biomassa do vegetal (cerca de 30%) e, desse modo, diminuiros custos da produção sucroalcooleira. A diminuição de custos ocorre tanto no sistemade colheita manual quanto no sistema de colheita mecanizada.4 Para o produtorcanavieiro é sempre mais barato queimar a cana, independente da forma que adotepara colhê-la. Esclarecidos esses pressupostos (a possibilidade da colheita manualda cana sem queima prévia e a racionalidade financeira como motivação principalda adoção da queima), cumpre agora discorrer sobre a mecanização da colheita.

Processo de inovação tecnológica poupador de gastos com mão-de-obra, amecanização agrícola é habitual no direcionamento de qualquer sistema de produçãocapitalista. Pela diminuição de custos que gera, ela é inexorável ao movimentoeconômico capitalista, sendo a mecanização da colheita da cana-de-açúcar apenasmais uma etapa da mecanização do sistema agrícola como um todo. Conformeexplica Francisco Alves, as primeiras atividades na lavoura canavieira a seremmecanizadas foram o transporte, preparo do solo e plantio, ainda que parcialmente.No final de década de 1960 mecanizou-se o carregamento da cana através dasubstituição de trabalhadores braçais por guinchos mecânicos (apud GONÇALVES,2005, p. 99). Reunidas as condições econômicas, mecanizar-se-ia também a colheitada cana.4 Gilberto Vieira demonstra, mediante comparação de custos entre a colheita mecanizada e a colheitamanual nos sistemas de corte com queima prévia e sem queima prévia de duas usinas paulistas, que,quando há queima prévia, a colheita mecanizada chega a ser 14,86% mais econômica que a colheitamanual, enquanto no sistema de corte sem queima prévia a colheita mecanizada chega a ser 53,85%mais econômica. O autor demonstra, também, que os menores custos absolutos são obtidos nos sistemade colheita mecanizada da cana queimada (VIEIRA, 2003, p. 76).

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De fato, a decisão pela mecanização da colheita da cana já vinha sendopaulatinamente tomada por alguns produtores do setor canavieiro desde o início dadécada de 1980, sendo continuação de um processo estrutural que objetiva adiminuição dos custos de produção.5 Conforme explica Daniel Gonçalves, na prática,a opção pela colheita mecanizada não depende de ser a cana queimada ou não queimadaantes da colheita, uma vez que a mecanização já vinha sendo feita no setor anteriormenteao amadurecimento das discussões sobre a eliminação da queima da cana, num períodoem que só se colhia cana queimada (GONÇALVES, 2005, p. 128).

No final da década de 1980 e, portanto, anteriormente ao início daregulamentação proibitiva da queima da cana, a mecanização da colheita já eraestatisticamente percebida, por ser uma mudança operacional já iniciada pelo setorsucroalcooleiro. Veiga Filho demonstra que na safra de 1988/89, substanciais 8% dototal de área plantada no estado de São Paulo já eram colhidos mecanicamente.Posteriormente, na safra 1997/1998, data em que os efeitos da regulamentação proibitivaainda se consolidavam, a área com corte mecânico no estado já atingia 172,8 milhectares, representativos, naquele momento, de 18% do total de área plantada (apudGONÇAVES, 2005, p. 115). A implantação e o crescimento da mecanização da colheitaderam-se, assim, independentemente da regulamentação proibitiva da queima,demonstrando não haver correlação histórica de causalidade entre as temáticas.

O entrave que impossibilitou que essa etapa ocorresse antes foi o alto custoinicial para adoção dessa tecnologia, que Alceu Filho ponderou como equivalente aum valor situado entre 30% e 66% do volume total de recursos movimentados pelosetor sucroalcooleiro em São Paulo na safra 1993/1994 para mecanização completada colheita paulista (VEIGA FILHO, 1998, p. 18) e que Osakabe, em 1999, calculoucomo algo entorno de US$ 250.000,00 para cada unidade de colheita (apudGONÇALVES, 2005, p. 107). Francisco Alves explica, assim, que a substituição damão-de-obra empregada na colheita canavieira era, como de fato ainda é, uma questãode tempo e dinheiro, não tendo sido jamais uma questão de se queimar ou não oscanaviais (apud GONÇALVES, 2005, p. 151).

Na realidade, em virtude de serem decisões produtivas que geram reduçãode custos e, caso acumuladas, intensificarem ainda mais a diminuição dos gastoscom a colheita da cana, utilização da queima prévia e mecanização da colheitaforam costumeiramente adotadas em conjunto. Colhia-se (e colhe-se) a canaqueimada através de máquinas. Para Gonçalves, em 2005, dos 36% da área total de

5 Alceu Filho aponta como razões que incentivaram a mecanização no setor canavieiro, além dadiminuição de custos, a busca por maior controle sobre a mão-de-obra canavieira, uma vez que estahavia passado por um período de maior organização interna e mobilização, com o fortalecimento daação dos sindicatos num movimento que significou a perda do controle político da massa detrabalhadores pelo patronato, ao mesmo tempo que encareceu a mão-de-obra. Exemplo significativoe marco dessa perda de controle político é a greve de Guariba (SP), em 1984, que consolidou o papelativo dos trabalhadores ao paralisar completamente as usinas de açúcar na discussão sobre suasdemandas trabalhistas (VEIGA FILHO, 1998, p. 22).

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cana plantada em São Paulo que foram, naquele ano, colhidos mecanicamente,somente em 25% a colheita se deu sem a utilização da prática agrícola, enquantonos outros 75% a cana foi colhida com máquinas e com queima (GONÇALVES,2005, p. 115).

Assim, além de não haver vinculação causal entre eliminação da queima emecanização, esta foi predominantemente associada à prática agrícola de queimaprévia, numa adoção conjunta de dois procedimentos com consequenciassocioambientais danosas, movida estritamente por interesses financeiros. Ao setorcanavieiro não importa o dano ambiental gerado pela queima da cana-de-açúcar, talqual não importa o dano social gerado pela mecanização da colheita. Ao setorcanavieiro importa somente o lucro.

O avanço da mecanização da colheita da cana, por sua vez, teve comoconsequência a proliferação do desemprego no meio rural. Márcia de Moraes, combase em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) realizadapelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revela que entre 1992 e2005 houve uma redução no número total de empregados (permanentes etemporários) do setor sucroalcooleiro de 23% (eram 670.099 empregados em 1992,passando em 2005 a somente 519.197), a despeito do crescimento da produção naordem de 54,6% no mesmo período (MORAES, 2007, p. 896-897).6 Isso ocorreporque, embora a colheita mecanizada empregue alguns indivíduos em sua estruturade produção, o número total de postos de trabalho oferecidos é significativamenteinferior àqueles oferecidos no sistema de colheita manual, sendo conseqüência dessatransição produtiva a acentuação dos problemas sociais nas regiões sucroalcooleirasatravés da geração de desemprego estrutural.

Fica claro, desse modo, que o desemprego é conseqüência da mecanizaçãoagrícola, que, por sua vez, além de não possuir relação de causalidade histórica oufuncional com a eliminação da queima da cana-de-açúcar é, em parcela significativados canaviais, associada a ela. Sendo assim, qual a motivação e a origem da associaçãoentre fim da queima da cana e mecanização da colheita? Quem nos explica é FranciscoAlves, para quem a iniciativa de vincular as temáticas é do patronato canavieiro,uma vez que, na perspectiva unilateral dos usineiros, só é possível o fim da queimada cana-de-açúcar se for adotada a mecanização concomitantemente, como alternativaao aumento de custos ocasionado pela necessidade de pagamento de maiores saláriosaos cortadores de cana (ALVES, 2009, p. 161-162).

6 Esses dados do PNAD revelam, embora com oscilações significativas, que a diminuição do númerototal de trabalhadores no setor canavieiro acompanhou o crescimento da mecanização da colheita dacana, sendo anterior, portanto, à efetivação da regulamentação proibitiva da queima da cana-de-açúcar.Em 1992 o número total de trabalhadores era 674.630, tendo esse número diminuído para 618.896 em1995 e para 559.711 em 1997 (apud MORAES, 2997, p. 896). No mesmo período, segundo dados daUnião da Indústria de Cana-de-açúcar (ÚNICA) e do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento(MAPA), a produção sucroalcooleira cresceu de 229.222.243 toneladas de cana-de-açúcar na safra1991/1992, para 240.712.907 toneladas na safra 1994/1995 (UNICA, [2010], online).

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Não utilizar a prática agrícola de queima prévia diminui a produtividade dacolheita manual, segundo informações de Alceu Filho, na faixa de 32% a 50%,tornando necessário o aumento do valor remunerado ao trabalhador por hectarecolhido na faixa de 60% a 68% em relação aos valores recebidos pela colheita dacana queimada, como forma de manter-se a média de ganhos dos trabalhadoresrurais (VEIGA FILHO, 1998, p. 22). Eliminar a queima gera, desse modo, aumentode custos para o patronato sucroalcooleiro, sendo opção produtiva a eles desagradável,embora benéfica e necessária ao bem-estar das regiões canavieiras. Em vista disso,como resposta à demanda social pela eliminação da queima da cana-de-açúcar, opatronato canavieiro entendeu necessário condicionar o ritmo da eliminação daqueima ao ritmo da mecanização da colheita, visando compensar o aumento decustos que a eliminação da queima gera com a diminuição de custos que amecanização ocasiona.

Para o setor sucroalcooleiro, se a cana tivesse de ser colhida “crua” (semqueima), ela deveria ser colhida por máquinas, e não por pessoas, uma vez que acolheita dessa cana “crua” por pessoas implicaria em diminuição dos seus ganhosfinanceiros pelo aumento dos custos de produção. Nessa época, todavia, amecanização já era um processo em curso, iniciado anteriormente ao início dadiscussão sobre a eliminação da queima da cana e era, ademais, uma decisão produtivajá tomada, apenas aguardando as condições econômicas que possibilitassem suaimplementação. Surgida a demanda social pela eliminação da queima, o patronatocuidou de omitir essa realidade econômica e histórica e passou a defender ainviabilidade financeira da colheita “crua” manual (ou, até mesmo, a inviabilidadefuncional dessa colheita), defendendo a necessidade de condicionamento daeliminação da queima à mecanização da colheita, em benefício de uma racionalidadeduplamente danosa.

O corte manual da cana sem queima é viável, embora implique na necessidadede contratação de novos trabalhadores e no aumento nos custos totais com a colheita,em virtude da diminuição da capacidade individual de corte.7 Exclusivamente poraumentar seus custos de produção é que o setor sucroalcooleiro rejeita a alternativaprodutiva de corte manual da cana “crua”, embora essa alternativa político-econômicaapareça dissimulada na assertiva de ser a colheita manual inviável (fática oueconomicamente) sem a queima da cana-de-açúcar. Bastaria ao patronato abrir mãode parcela de seus lucros para pagamento de salários e ter-se-ia uma alternativasocialmente interessante para o sistema de colheita de cana.

A relação entre mecanização da colheita e eliminação da queima prévia dacana dá-se, assim, mediada pelo interesse econômico unilateral do patronato7 Desde o início da década de 1990 há manifestações de setores do movimento sindical dostrabalhadores canavieiros pela não oposição ao fim das queimadas, garantindo que cortariam a canacolhida sem queima mediante a discussão de novos parâmetros remuneratórios para tal atividade.Entre as entidades que assim se manifestaram, destaca-se a Federação dos Empregados RuraisAssociados do Estado de São Paulo (FERAESP).

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sucroalcooleiro, embora essa mediação seja cuidadosamente ocultada. Esclarecidoisso e desfeito o mito da vinculação causal, passemos agora a entender melhorcomo se desenvolveu a útil convergência entre eliminação da queima prévia emecanização da colheita e quais são suas consequências.

Modernização perversa e degradação ambiental através da proibição gradativa:a útil convergência entre mecanização da colheita e eliminação da queima

O patronato canavieiro já havia indicado a tomada de decisão pelamecanização da colheita, a ser feita no momento mais oportuno. Um elemento externoaos interesses do setor, entretanto, amadurece durante o final da década de 1980 e,em especial, durante o início da década de 1990: a demanda pela eliminação daqueima da cana-de-açúcar. Essa demanda passa, então, a agregar novos atores nadinâmica decisória sobre os rumos da produção canavieira, em particular o MinistérioPúblico e o Poder Judiciário, contrariando os interesses do patronato sucroalcooleiro,acostumado a decisões unilaterais em seu favor.

Conforme explica Marcelo Goulart, primeiro promotor de justiça a proporações civis públicas demandando a proibição imediata da queima da cana-de-açúcar,os empresários do setor canavieiro buscavam resistir ao pleito do movimentoecológico e às ações do Ministério Público com o objetivo de concentrarexclusivamente em suas mãos as decisões concernentes ao tempo e modo deimplantação da mecanização, no intuito de subtrair dos trabalhadores rurais e daSociedade a possibilidade de debater e apresentar alternativas a essa transiçãoprodutiva que atendam ao interesse social (GOULART, 1997, p. 69).

Ao setor sucroalcooleiro interessava mecanizar a colheita a seu tempo e aseu gosto, e é nesse contexto histórico que se insere a demanda sociopolítica pelaproibição da queima da cana-de-açúcar. Como resposta a tal demanda, e como produtoda cooptação do Estado para atendimento dos interesses do patronato canavieiro,constrói-se a normatização de proibição gradativa da queima da cana-de-açúcar,inicialmente com a promulgação de textos normativos que foram, depois,concretizados por meio de decisões judiciais e de políticas públicas. A proibiçãogradativa da queima da cana foi, dessa forma, o instrumento que unificou as temáticasda eliminação da queima e mecanização da colheita, permitindo a perpetuação deum modelo de produção ambientalmente degradante por três décadas e autorizandoo setor sucroalcooleiro a conduzir mais uma etapa de modernização conservadora.

Ao quadro de grave poluição ambiental caracterizado pelas consequenciasda queima da cana, somaram-se, assim, contornos sérios de crise social em virtudedo desemprego gerado pela mecanização, conseqüência dessa modificação produtivadesinteressadamente tratada pela normatização efetivada. Esta é a proibição gradativada queima da cana.

Um primeiro texto normativo a dar contornos jurídicos à estratégia dopatronato sucroalcooleiro em São Paulo foi o Decreto Estadual n. 42.056/1997, que

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trazia expressamente em seus “considerandos” as motivações econômicas dessaescolha normativa, num lapso de sinceridade que viria posteriormente a ser desfeito.8Esse documento previa que a queima da cana seria totalmente eliminada em áreasmecanizáveis (onde a colheita mecânica é tecnicamente viável) ao fim de 8 anosapós sua edição (ou seja, 2005) e em áreas não mecanizáveis (nas quais a colheitamecânica é tecnicamente inviável pelos padrões atuais) ao fim de 15 anos após suaedição (2012). Ao deparar-se com a expiração dos primeiros prazos estabelecidos, osetor canavieiro fez pressão para reformulação dessa normatização, e o texto foidescartado e substituído em 1999. Ainda não havia condições econômicas paradesvincular-se da queima...

Um novo texto regulamentador, mais brando e permissivo, veio em 2000,sendo novamente modificado em 2002, através da Lei Estadual nº 11.241, que definiuos contornos normativos que regem a temática até os dias atuais. Através dessaconvulsão legiferante, o patronato sucroalcooleiro obteve junto ao Estado o adiamentodos prazos legais e o direcionamento de políticas públicas segundo seus interesses,remodelando o ambiente institucional sempre que os prazos estabelecidoscomeçavam a incomodar-lhe. A regulamentação atual prevê, por sua vez, que, emáreas mecanizáveis, a queima deverá ser gradualmente eliminada, com extinçãototal prevista para 2021. Em áreas não mecanizáveis, a queima tem como data previstapara seu final o ano de 2031.9

O intuito dessa regulamentação é fornecer ao setor sucroalcooleiro um lapsotemporal suficientemente longo, no qual é permitida a utilização da queima da cana-de-açúcar, de modo a possibilitar que nesse ínterim o setor complete o processo de8 Nos “considerandos” do Decreto Estadual nº 42.056/1997 consta: “Considerando que a queima doscanaviais como prática auxiliar de sua colheita produz emissões que alteram desfavoravelmente aqualidade do ar; [...] Considerando que a mecanização da colheita será a tecnológica adotada paraeliminar a despalha por queima sem comprometer a competitividade internacional do setor; [...]Considerando que não existem condições objetivas para adoção abrupta e imediata da colheita mecânicada cana-de-açúcar, tais com o disponibilidade de colhedeiras, disponibilidade de capital para aquisiçãode colhedeiras, disponibilidade de canaviais adaptados à colheita mecânica [...]”. Além desse lapsode sinceridade na motivação da proibição gradativa pela proteção expressa do setor canavieiro, otexto traz as falaciosas motivações “sociais” da proibição gradativa: “[...] Considerando que a colheitamanual de cana-de-açúcar emprega a maior quantidade de força de trabalho rural no Estado de SãoPaulo. Considerando que a mecanização da colheita, adotada de maneira abrupta, causaria imensoproblema de ordem social; já que centenas de milhares de empregos seriam imediatamente eliminados,sem tempo para absorção dessa mão de obra por outros setores da economia regional; [...]” (SÃOPAULO, 1997, online).9 Em contraposição à dinâmica de proibição gradativa, setores da Sociedade e do Estado, em especial oMinistério Público, mantém a luta político-jurídica pela proibição imediata da queima da cana-de-açúcar viva através do ajuizamento de ações civis públicas que possuem na proibição imediata daqueima o seu pedido. O êxito dessas ações civis públicas tem sido relativo, havendo uma infinidade dedecisões favoráveis à proibição imediata da queima (embora minoritárias) e outra infinidade de decisõescontrárias a tal demanda (majoritárias). Um importante tribunal do país – Superior Tribunal de Justiça(STJ) – tem consolidado a jurisprudência no sentido da proibição imediata da queima, em oposição àsegunda instância do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), que, por sua vez, através da CâmaraReservada ao Meio Ambiente, vem decidindo predominantemente pela improcedência dessas ações.

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mecanização de sua colheita. Em áreas não mecanizáveis, o prazo é significativamentesuperior para permitir que o setor migre dessas áreas para outras mecanizáveis (fatoque já vem sendo observado) ou que simplesmente estenda por outra década aexploração tranquila desses locais. Uma vez mecanizada a colheita e diminuídossignificativamente os custos de produção, o setor canavieiro permitirá à Sociedade eao meio ambiente respirar um ar mais puro. Somente aí. Até lá usufruirá dos benefíciosfinanceiros dessa prática danosa, a um custo demasiadamente alto para todos.

No que concerne ao desemprego estrutural a ser gerado pela mecanização dacolheita canavieira, os textos normativos aparentemente não são alheios ao problema.A Lei Estadual 11.241/2002 prevê, por exemplo, em seu artigo 10, que o PoderExecutivo deverá criar programas visando à requalificação profissional dostrabalhadores canavieiros. A concretização desses textos, todavia, é nesses pontosparca ou nula, sendo amplamente insuficientes os trabalhos de requalificaçãodesenvolvidos. Falta vontade política em modificar a situação vivida pelos trabalhadoressucroalcooleiros, mantendo-se inerte o Estado no cumprimento de seus deveres.

O que se vê, de fato, na realidade canavieira, é que a proibição gradativacorrobora, por um lado, o processo de modernização perversa da produçãosucroalcooleira, por permitir uma mecanização descontrolada e carente de políticaspúblicas compensatórias, e promove, por outro, a perpetuação por três décadas deum sistema produtivo ambientalmente degradante, apoiado numa prática agrícolaextremamente danosa. Modernização perversa e degradação ambiental são, assim,as duas faces da útil convergência entre mecanização da colheita e eliminação gradualda queima da cana-de-açúcar.

Explica Francisco Alves que a atual fase de transição produtiva do setorcanavieiro, caracterizada pela substituição da colheita manual pela colheitamecanizada, é corretamente caracterizada como modernização perversa por modificara base técnica da produção sem alterar o essencial das relações de trabalho (ALVES,2009, p. 159). Estas, como têm sido historicamente no setor canavieiro, continuama ser permeadas por uma posição de extrema debilidade dos trabalhadoressucroalcooleiros frente ao patronato, por condições subumanas de exercício laborale por remunerações precárias. Vivencia-se, assim, mais uma etapa de modernizaçãoconservadora a serviço dos interesses das elites econômicas.

Nessa etapa, o ingrediente extra é a poluição, a estragar dolorosamente ogosto da vida no nordeste paulista. Embora esteja absolutamente comprovado nosfóruns científicos a amplitude da danosidade advinda da queima da cana-de-açúcar– emissão para a atmosfera de uma infinidade de poluentes; geração e agravamentode problemas respiratórios pelo contato humano com esses poluentes10; degradaçãodo solo, da flora e da fauna; entre outros – e haja uma alternativa acessível e viável10 Os principais prejudicados em virtude do contato com os poluentes são os próprios trabalhadorescanavieiros, por possuírem contato mais direto e constante com a fuligem e com a poluição gerada.Diversos estudos científicos caracterizam a intensa prejudicial idade da queima da cana para ostrabalhadores canavieiros.

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para a colheita sem essa prática agrícola (uma vez que basta colher a cana semqueima prévia, manual ou mecanicamente), o interesse do poder econômicoprevalece, e um Estado cooptado prevê e promove a perpetuação da degradaçãoambiental.

Nem é inédito nem é estranho esse comportamento promíscuo do Estadocom relação à elite canavieira, uma vez que o modelo de produçãopredominantemente adotado pelo setor foi historicamente construído com o auxíliotécnico e financeiro estatal, provocando como conseqüência a concentração fundiária,o desmatamento, a poluição e o desemprego. É um modelo insustentável sob aperspectiva social e ambiental, mas que conta, mesmo assim, com a proteção estatal.Encontrou o patronato sucroalcooleiro, na conivência e na ineficácia do Estado, umespaço a mais para seus negócios, construindo seus lucros sobre um conjunto detécnicas e métodos ambientalmente degradantes e socialmente iníquos, componentesdo sistema de produção da cana-de-açúcar (GONÇALVES, 2005, p. 234-238).

Esse nefasto quadro necessita de uma modificação estrutural urgente, mas,apesar disso, as perspectivas não são animadoras, em especial para o proletariadocanavieiro. Se, por um lado, no cenário mais recente, solidifica-se a tendência deaceleração na eliminação na queima, em benefício da melhoria das condiçõesatmosféricas da região, por outro, acena-se que essa aceleração dar-se-á em sacrifíciodos postos de trabalho na colheita rural. Para o patronato canavieiro, os custosdevem sempre diminuir, a qualquer custo.

Aceleração da mecanização e da geração de desemprego estrutural: o cenárioatual

O setor canavieiro vive, sob a perspectiva da lucratividade econômica, umadécada de euforia. Entre 2000 e 2007 o crescimento da produção sucroalcooleiraem terras paulistas foi de 56%, tornando a produção do estado responsável por 60%da produção nacional de cana e concentrando aqui mais de um terço do númerototal de usinas e destilarias do país. Em São Paulo, a lavoura canavieira já ocupamais de 65% da área total de lavoura disponível (GONÇALVES; SZMRECSANYI,2009, p. 2-6).

Esse crescimento significativo é principalmente explicado pelo aumento dademanda nacional e internacional pelo etanol, em particular por conta da publicidadeque se formou entorno do papel dos biocombustíveis como solução para a criseenergética e para os desafios do aquecimento global e das mudanças climáticas(GONÇALVES; SZMRECSANYI, 2009, p. 2). O já significativo quadro decrescimento econômico torna-se ainda mais promissor para o setor em virtude daperspectiva de ingresso em prestigiados mercados internacionais, entre os quais oda União Européia (UE), que em 2003 fixou como meta a incorporação obrigatóriade 20% de energias renováveis em sua matriz energética até 2020, sendo metadedesse montante direcionado ao setor de transportes (CAVALCANTI, 2010, p. 17).

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O consumo de etanol brasileiro pela UE, já existente, é ainda incipiente, emvirtude da imposição de barreiras não-tarifárias à entrada do etanol no mercadoeuropeu, fundamentadas na alegação de dumping social e ambiental praticados pelosprodutores brasileiros através das precárias condições de trabalho impostas aoscortadores de cana e devido ao uso de práticas não conservacionistas no que tangea sua relação com o meio ambiente, dentre as quais é a queima da cana-de-açúcar amais danosa e divulgada delas (FONSECA; PAIXÃO, 2008, p. 2-5). Tais barreirastarifárias obstaculizam o ingresso do produto brasileiro no mercado europeu,condicionando-o à certificação socioambiental e, assim, traduzem-se em obstáculoao aumento da lucratividade do setor sucroalcooleiro.

A superexploração do proletariado rural e a degradação desenfreada danatureza, fundamentos históricos da lucratividade canavieira, tornam-se agora,paradoxalmente, óbices aparentes ao aumento dessa lucratividade.11 Qual a soluçãoencontrada pelo patronato sucroalcooleiro para esse problema? Mais uma vez elaenvolve engajar o Estado na defesa dos interesses do patronato, promovendo aaceleração da etapa atual de modernização conservadora sob um viés de“esverdeamento” da produção canavieira com a eliminação da queima da cana,paralela à conclusão do processo de mecanização da colheita da cana-de-açúcar.Sob uma perspectiva capitalista, nada mais lógico: se as condições precárias detrabalho são um problema, elimina-se o posto de trabalho e, assim, resolve-se oproblema.

Tragicamente, o que acenam os indicadores econômicos é que o setor reúne,agora, condições economicamente favoráveis para concretizar a mecanizaçãopretendida, uma vez que vive um momento de intensa capitalização, com entrada deinvestidores estrangeiros, e de significativo aumento da produção. Somado a isso, éconsistente o desejo de ingresso em mercados protegidos, o que se obterá somenteatravés da certificação. Dessa forma, atualmente, é interessante ao setor canavieiromecanizar-se plenamente e abster-se de utilizar a queima da cana-de-açúcar comoresposta às demandas econômicas que envolvem sua produção, pois é necessário aosetor “esverdear-se” e eliminar suas práticas trabalhistas ilegais para deslegitimaras barreiras impostas. Ao chamado do patronato, responde o Estado prontamente.

A formalização dessa resposta veio, principalmente, através de doisdocumentos e do respectivo direcionamento de políticas públicas que essesdocumentos simbolizam. Na perspectiva ambiental, um gentil Protocolo deCooperação de vinculação não obrigatória (sem o estabelecimento de sanções parao caso de descumprimento) denominado “Protocolo Agro-Ambiental do Setor

11 É ingenuidade que não praticamos crer que a UE impõe barreiras não-tarifárias movida pelo anseiode proteção socioambiental do planeta, embora esse discurso seja extremamente útil. A razão primordialda imposição dessas barreiras é financeira: proteger os produtores locais e fomentar o seudesenvolvimento. Ainda assim, deslegitimadas essas barreiras pela eliminação de sua causa formal,sua sustentação torna-se bastante difícil.

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Sucroalcooleiro Paulista” foi firmado com o governo estadual, prevendo umadiminuição dos prazos para eliminação da queima da cana-de-açúcar (de vinculaçãonão obrigatória) e outras práticas conservacionistas (de vinculação não obrigatória).Como “contra-partida”, o Estado certifica como ambientalmente correta a produçãocanavieira.

Na perspectiva trabalhista, o governo federal firmou com o setor canavieiroo “Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-açúcar”, que estabelece pouco (ou nada) além da obrigação do patronato canavieirode cumprir a legislação trabalhista pátria, como se para isso fosse necessária aformalização de um compromisso. Traduz-se, na realidade, em engodo para mascarara trágica situação vivida pelos cortadores de cana no país, enquanto o processo demecanização ainda não se encerrou e esses postos de trabalho não podem serdispensados. A atuação estatal, como um todo, visa e obtém somente o beneficiamentodo patronato canavieiro, submetendo-se a sua dinâmica financeira e apoiando-seem falsos argumentos de proteção socioambiental para legitimar sua ação.

Se a intenção fosse proteger os trabalhadores e evitar o desemprego teriamsido fixados índices máximos permitidos de colheita mecanizada, como forma degarantir a manutenção dos empregos, e não índices mínimos de colheita sem queimafixados sem imposição de sanção alguma. A mecanização já é um fenômeno emcurso desde a década de 1980, com redução do número total de empregos no setorperceptível desde o início da década de 1990 e, mesmo assim, pouco ou nada foifeito para alterar esse quadro de caos social que vem gradualmente manifestando-sena produção canavieira.

Conforme explica Daniel Gonçalves, sob a perspectiva de manutenção deempregos os prazos de permissão da queima foram estendidos até 2031 numa açãolegislativa que desconsiderou o fato de o corte mecanizado da cana,predominantemente em área queimada, já ter eliminado mais de 60% dos postos detrabalho em todo o estado, o que derruba a justificativa de extensão dos prazos etorna evidente que o único beneficiário dessa mudança é o setor privado(GONÇALVES, 2005, p. 113). Da mesma forma, se a intenção fosse realmenteproteger os trabalhadores e evitar o desemprego, não teria havido certificação peloEstado dos planos de aceleração da mecanização canavieira formalizados peloProtocolo Agro-Ambiental, pois é evidente que a diminuição dos prazos previstospara eliminação da colheita da cana, feita em moldes pactuados consensualmentecom o setor sucroalcooleiro, dar-se-á pelo drástico aumento da área colhidamecanicamente.

A intenção exclusiva da regulamentação e da ação estatal é proteger o setora todo o momento e a qualquer custo, mesmo que isso implique em promover amodernização perversa. Nesse processo, o trabalhador canavieiro tem sido deixadoà margem da transição produtiva e, largado à própria sorte, vê suas perspectivas defuturo evadir-se num presente cruel, uma vez que não têm sido realizadas políticas

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públicas compensatórias de geração de empregos para aqueles que perdem seuspostos de trabalho. Modernização perversa e degradação ambiental são as duasmaléficas faces da proibição gradativa da queima da cana-de-açúcar e, em prejuízoda Sociedade, minimizar os efeitos da degradação ambiental significa intensificaras consequencias da modernização perversa, de modo a atender os interessesfinanceiros do patronato sucroalcooleiro.

Considerações FinaisMecanização da colheita canavieira e eliminação da queima da cana-de-açúcar

não estabelecem entre si relação causal (funcional ou histórica), sendo a associaçãode tais distintas decisões político-econômicas subordinada aos interesses do patronatocanavieiro, que vê nela a resposta adequada à demanda social pela eliminação daqueima da cana, objetivando compensar o aumento de custos gerado pela nãoutilização da prática de queima prévia com a diminuição de custos ocasionada pelamecanização. A mecanização agrícola, geradora de desemprego estrutural, éinexorável à evolução da produção capitalista, não tendo sido plenamente realizadana colheita canavieira, ainda, estritamente por razões financeiras.

A útil convergência entre eliminação da queima e mecanização da colheitaganhou contornos normativos através da proibição gradativa da queima da cana-de-açúcar, regulamentação que vincula as temáticas atendendo ao interesse do patronatosucroalcooleiro. Ela promove, por uma via, perpetuação da degradação ambientalao permitir que o setor utilize a queima da cana-de-açúcar por três décadas, e, poroutra via, modernização perversa, por permitir que o setor conduza a mecanizaçãoda colheita a seu tempo e a seu gosto, sem a realização de políticas públicascompensatórias para o desemprego estrutural gerado. A proibição gradativa corroboraoutra etapa de modernização conservadora da produção canavieira.

O cenário atual do setor sucroalcooleiro, por sua vez, indica que haveráaceleração da mecanização da colheita da cana-de-açúcar e, possivelmente,aceleração da eliminação da queima da cana-de-açúcar, em virtude da capitalizaçãodo setor, do bom momento econômico vivenciado e da perspectiva de ingresso emmercados protegidos, a obter-se somente pela deslegitimação das barreiras não-tarifárias impostas com base na alegação de dumping social (pelas precárias práticastrabalhistas) e dumping ambiental (pela queima da cana-de-açúcar e outras fontesde degradação ambiental). A regularização socioambiental, desse modo, sob aracionalidade do mercado, dar-se-á pela eliminação estrutural de postos de trabalho.

Referências

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AGRAVOS À SAÚDE DOS TRABALHADORES DAAGROINDUSTRIA CANAVIEIRA: o fel da cana de açúcar

Edvânia Ângela de Souza Lourenço1

Onilda Alves do Carmo2

A doçura do açúcar, num instante não émais.Basta que se recue um pouco na atmosfera dotrabalho,na finalidade dada a terra e ao sacrifício queo labor exige, para sentir o fel do seu sabor.

IntroduçãoUm enorme paredão verde foi levantado nas estradas interioranas que

se ligam à capital. As iniciativas do real desenvolvimento sustentável foramempanadas e o horizonte da agricultura familiar em terrenos férteis foi destinadoà vegetação invariável da agroindústria canavieira. Premidos pelas dificuldades,homens e mulheres vão e vêm em busca de trabalho. Humildes, imersos numverdadeiro estado de miséria, os homens, em geral nordestinos, são capturados,como no regime pastoril dos dias coloniais. No corte de cana, no interior doestado de São Paulo, encontram muito trabalho, mas a um salário que mal dápara comer. Ou para ganhar um pouco mais submetem ao flagelar da rapidez eda repetição constante dos golpes de facão. Despontam-se os que cortam mais,numa espécie de escravidão da alma, ganham mais os que mais se aproximamda reprodução maquinal. Internalizam a competição, batalhas entre os iguais ostornam desiguais. O corpo humano não é máquina e pode não suportar tamanhasujeição. A vida dos menos resistentes são interceptadas e a saúde dos quesobrevivem degradada, além disso, as máquinas expulsam cada vez mais ostrabalhadores do campo.

Este texto3 discute as relações sociais de trabalho e saúde na agroindústriacanavieira, especificamente, a partir de um estudo de caso, considerando osregistros de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho na micro-região Alta1 Docente do Departamento de Serviço Social UNESP- Franca/SP. É pesquisadora do grupo deestudos e pesquisas Teoria Social de Marx, responsável pela linha de pesquisa: Mundo do Trabalho:Serviço Social e Saúde do Trabalhador (GEMTSSS) e pesquisadora do QUAVISSS- UNESP-Franca/SP.2 Docente do Departamento de Serviço Social UNESP-Franca. Coordenadora do Conselho de Cursode Serviço Social da UNESP-Franca. Pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa Teoria social deMarx e Serviço Social e líder da linha de Pesquisa Gênero e Educação Popular denominado MargaridaAlves e Vice- Coordenadora do Núcleo Agrário Terra e Raiz (NATRA).3 Este texto foi apresentado, inicialmente, no VI Simpósio da Questão Agrária e I Fórum de Saúde doTrabalhador da Agroindústria Canavieira, realizado no período de 26 a 28 de abril de 2011, naFaculdade de Ciências Humanas e Sociais, UNESP- Franca. Após este Seminário, o texto passou poralterações e foi apresentado como capitulo ao livro: Diálogos em Psicologia: práticas profissionais eprodução do conhecimento, organizado por Sabrina Martins Barroso e Fabio Scorsolini-Comin, daUniversidade Federal do Triangulo Mineiro (UFTM). Os dados contidos neste estudo, concernentes

CAPÍTULO 20

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Anhangüera4, onde se situam três importantes usinas sucroalcooleiras. Os dadosora expostos são resultantes de entrevistas realizadas com trabalhadores, naforma de pré-teste, para o projeto de pesquisa “Processo de trabalho e saúde naagroindústria canavieira: os desafios para o Sistema Único de Saúde (SUS) esindicatos dos trabalhadores”5, o qual vem sendo realizado juntamente com asProfessoras Onilda Alves do Carmo e Raquel Santos Sant’Ana, da UNESP-Franca. O contato com estes trabalhadores se deu a partir das notificações dosacidentes e doenças relacionadas ao trabalho, Comunicação de Acidente deTrabalho (CAT) e Relatório de Atendimento ao Acidentado do Trabalho (RAAT).Estes documentos foram fornecidos pelos fiscais sanitários e interlocutores emsaúde do trabalhador6 dos municípios que compõem a microrregião AltaAnhanguera, a partir daí procedeu-se ao contato e ao agendamento da entrevista.Ao todo foram realizadas cinco entrevistas, especificamente com doistrabalhadores rurais (um do sexo masculino e outro do sexo feminino) residentesno município de Morro Agudo, que trabalham como cortadores de cana; umOperador de Fabrica de Açúcar do município de São Joaquim da Barra e umEncanador, residente do município de Orlândia e durante a análise utilizou-setambém de fragmentos de uma entrevista realizada com um mecânico do setor,residente no município de Patrocínio Paulista, que apesar de não fazer parte damicrorregião Alta Anhangüera é um município canavieiro da região de Franca.

Assim, valendo-se destas entrevistas com trabalhadores rurais e internosda usina e do estudo das notificações dos acidentes e doenças relacionadas aotrabalho fornecidas pelos municípios em foco, foi construída a análise dosagravos à saúde destes trabalhadores. Os seis municípios somaram um total de2.550 notificações, referentes ao período de 2005 e 2006, ao selecionar dessetotal, apenas aquelas ocorrências registradas pelos serviços de saúde, que tiveramusinas de açúcar e álcool como empresas empregadoras, obtiveram-se 1.196registros ou 46,90% daquele total. O estudo destes documentos implica em

as entrevistas realizadas com trabalhadores, também vem sendo alvo de debate com o “Núcleo deEstudos em Saúde e Trabalho” NEST(UFRGS-Porto Alegre/RS, sobretudo, com a coordenadora doNEST: Jussara Maria Rosa Mendes, cujo enfoque tem sido para as possibilidades da política desaúde do trabalhador capturar os elementos nocivos à saúde, mas menos visíveis, como são as relaçõessociais de trabalho. Portanto, o texto que o autor tem em mãos, apesar das modificações que vemsofrendo, contém os dados outrora já apresentados. Sendo que na versão atual, novas modificaçõesforam realizadas, sobretudo, a partir das discussões feitas com a Profa. Dra. Onilda Alves do Carmo,mas dever ser dito que a matéria prima é a mesma, ou seja, as entrevistas com os trabalhadores, querevelam informações importantes a respeito das relações sociais de trabalho na agroindústria canavieira.4 A região de Franca no que diz respeito administração da saúde abrange 22 municípios, divididos em3 micro-regiões: Três Colinas, Alta Mogiana e Alta Anhangüera. Essa ultima compõe-se de seiscidades: Ipuã, Morro Agudo, Nuporanga, Orlândia, Sales Oliveira e São Joaquim da Barra. Conta emmédia com 140 mil habitantes (IBGE, 2006).5 Pesquisa financiada pelo CNPq e devidamente aprovada pelo Comitê de ética da UNESP-Franca/SP.6 Por Interlocutores denomina-se os trabalhadores da saúde responsáveis pela implantação da políticade saúde do trabalhador no seu respectivo município.

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desenhar um perfil do trabalhador quanto ao sexo, idade, ocupação, renda; e doagravo, na busca de indicar o que, onde e como ocorreu; a parte do corpo atingida,o horário da ocorrência, o tempo de afastamento etc. Contudo, para este texto,foram selecionados apenas os dados pertinentes as ocupações que mais sofreramagravos na agroindústria canavieira. Assim, o objetivo principal deste texto édestacar alguns elementos das relações sociais de trabalho vivenciadas poralgumas ocupações deste ramo da economia que refletem na saúde dostrabalhadores. Observa-se que anteriormente discutiu-se os acidentes de trabalhoneste setor (LOURENÇO; BERTANI, 2010).

Destaca-se que inúmeros estudos vêm destacando as condições de vidae saúde dos trabalhadores rurais, que no âmbito da agroindústria canavieira,destacam- se Alves (1991; 2006); Silva, (1999; 2005), entre outros Sant’Ana;Carmo (2010). Neste sentido, também tem se buscado compreender as relaçõessociais de trabalho na agroindústria canavieira, voltando-se, especificamente,para os seus reflexos à saúde de quem trabalha (LOURENÇO; BERTANI, 2010).Portanto, o esforço é tentar organizar os dados de acidentes e doençasrelacionadas ao trabalho, na maioria das vezes, dispersos e espalhados nos váriosserviços de saúde, para oferecer, na medida, do possível, um quadro dinâmicoda realidade vivenciada pelos trabalhadores, portanto, mescla-se à analise dosdocumentos, que registram os agravos, as falas dos trabalhadores.

Relações Sociais de Trabalho e os Agravos à Saúde dos TrabalhadoresEm época de financeirização e globalização da economia, pode soar

estranho os estudos que versam a respeito da saúde dos trabalhadores rurais,tamanha a dependência econômica dos países capitalistas das relações comerciaisfinanceiras, assentadas em novas relações, se distanciando do padrão econômicoque dividia as atividades econômicas em: primária, secundária e terciária. Hoje,essa subdivisão se mantém, porém, em novas condições, uma vez que oselementos de um setor estão inclusos em outro e vice versa, um exemplo, é quea produção da cana de açúcar é associada ao seu processamento industrial,cujas usinas, assim como os antigos Engenhos, localizam-se o mais próximopossível das lavouras. Embora, no contexto atual, apesar de se manteremlocalizadas no campo, elas se destacam enquanto complexos produtivosmodernos. Contudo, a organização do trabalho ainda se mantém não apenassob os ardis da exploração do trabalho, mas, muitas vezes, sob condições adversasque podem afetar a vida e a saúde de quem trabalha. As características do cultivoda cana em grandes extensões de terra e do caráter monocultor também semantém, como nos tempos áureos da produção açucareira do Brasil Colônia. Anovidade é que houve uma ampliação, jamais imaginada pelos Senhores deEngenho, da extensão do domínio da terra. Hoje, a cana tornou-se commodity,comercializada na bolsa de valores, os proprietários de outrora foram se

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metamorfoseando em investidores. Assim, há uma desterritorialização,claramente, observada pelo domínio das usinas por grupos econômicosinvestidores, por exemplo, na microrregião pesquisada, duas usinas de antigosproprietários locais passaram em 2009, para o domínio do grupo LDC Serv,Louis Dreyfus um grupo francês de bioenergia, hoje com 13 usinassucroalcooleiras no país7. Os recursos tecnológicos, sobretudo, informatizadospermitem a supervisão e controle da produção feita aqui por técnicos e gerentesdo outro lado do mundo. Como já colocado por Fernandes (1975), no BrasilColônia e também no Imperial o cultivo da cana de açúcar e a produção doaçúcar estiveram voltadas eminentemente para o exterior para atender anecessidade do mercado europeu. Hoje, estas características de dependênciacom o mercado externo se acentuam, mas não se trata apenas de atender asnecessidades comerciais, mas os seus interesses financeiros de domínio econtrole da riqueza dos recursos naturais, neste caso, a terra brasileira.

Assim, pode ser dito que o fato das empresas serem geridas pelosestrangeiros, no senso comum, tem gerado posições que indicam que ascondições de trabalho melhoraram, uma vez que comentários8 dos técnicos dasaúde frisam que os proprietários europeus têm maior preocupação com a saúdedos trabalhadores e suas respectivas condições de vida. Embora, os saláriosnão aumentaram, a jornada de trabalho permanece e a cadência da turbina, dacaldeira, da moenda, entre outros, dos homens que se sujeitam a essas maquinase ao ritmo intenso do trabalho, se mantém. A novidade, ao que parece, tem sidoa exigência mais rígida do uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPI).Investem o trabalhador com botina, que protege, mas esconde os pés inchadose esmagados pelo esforço, suor e peso; de luvas que evitam cortes, muito embora,escondam os calos e as deformações das mãos e dedos devido ao trabalho pesado,além de lhes tirar a agilidade; óculos que protegem os olhos das faíscas, fuligeme corpo estranho, mas que embaçam e dificultam a visão. Trabalhadoresassalariados, antes excluídos do mundo dos direitos do trabalho, hoje a partirda igualdade e da liberdade, vivenciam algumas garantias, mas não deixaramde se subordinar ao Capital. O lucro das empresas e os ganhos dos investidoresinternacionais estão acima de qualquer coisa. A redução da força de trabalhotem sido visível e a mortificação dada pelo pagamento por produção vem sendodenunciada como causa mortis dos cortadores de cana. O fato do capitalestrangeiro definir a produção da cana e como a produz não mexeu na estrutura7 O crescimento de açúcar e álcool nos negócios da francesa Louis Dreyfrus faz parte da busca damultinacional por uma espécie de “reinvenção” do negocio no âmbito mundial. A associação com ogrupo Santa Elisa Vale foi feita em 26 de outubro de 2009, a qual é uma empresa da área sucroalcooleirabrasileira, da região de Ribeirão Preto8 Observação feita partir das discussões realizadas com os Interlocutores em Saúde do Trabalhador eFiscais Sanitários dos municípios que compõem a região de Franca, durante Oficinas de pesquisasrealizadas em 01 e 02 de setembro de 2011 e 06 de outubro de 2011.

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e nas relações sociais de trabalho. Na realidade, manteve a histórica transferênciada causa mortis das relações sociais de trabalho para o corpo de quem trabalha.Assim, o corpo parece amputado de sua autonomia, debilitado e agora pesadocom todo o ornamento de segurança do trabalho, tido como protegido, quandonão descartado. Vertiginoso desatino no mundo excludente, que nada se fala daexploração do trabalho e do retorno do domínio histórico das terras brasileirasem “mãos” de estrangeiros.

A opção por um modelo agrário que garanta as necessidades dosinvestidores externos e não dos pequenos agricultores e da classe trabalhadora,tem feito emergir antigos problemas, tais como o trabalho escravo e o êxodorural.

As relações sociais de trabalho no Brasil se assentam, desde os finaisdo século XIX, nos princípios jurídicos da liberdade e da igualdade, ou seja, otrabalhador é livre para vender a sua força de trabalho e o proprietário dosmeios de produção para comprá-la. Essa igualdade é um conceito provenientedo Iluminismo que supõe a garantia destes direitos na forma da lei. Mas é precisoconsiderar as correlações de força que favorecem ou não a efetividade daigualdade e da liberdade. Então, em determinados períodos, as condiçõeshistóricas atuam a favor da classe trabalhadora, em outros lhe são desfavoráveis.Mas, considerando que o valor (mais dinheiro) se faz por meio do trabalho(abstrato), mesmo nos períodos, em que a classe trabalhadora consegue algumasgarantias, como melhores salários, condições e direitos do trabalho, via de regra,quem ganha é o capitalista. Ou seja, Marx (2006) explicita o porquê da criaçãodo mais valor, no qual o dinheiro (D) investido em meios de produção(considerando também a força de trabalho) ao produzir determinado produto(M), volta ao mercado acrescido de mais valor (D’), continua valendo. O trabalhoproduz mais valor, mas não é qualquer trabalho. Trata-se do trabalho abstrato,realizado por meio da divisão sociotecnica do trabalho e da extração da maisvalia relativa e absoluta, mas nem sempre é visto e reconhecido dessa forma,porque a exploração do trabalho aparece como algo dado e naturalizado. Asuperação da servidão se deu a partir da expropriação, daí a necessidadeimperiosa da venda da força de trabalho – trocada por salário. Assim, o trabalhoassalariado subordina o trabalhador, objetiva e subjetivamente, a uma ordemalheia, que divide as pessoas, segundo as necessidades das mercadorias e impõeum ritmo de trabalho que subjuga o ser social.

Na atualidade, vem sendo denunciado o retorno de praticas quecaracterizam a condição de escravidão do trabalho, isso pelo seu uso forçado,que se dá sob ameaças ou por dívidas (OIT, 2007). Os trabalhadores, salvoraras exceções, não estão presos a correntes como no tempo da escravidão doBrasil Colonial ou Imperial, mas, nos dias atuais, são aliciados por contratadores,conhecidos como “gatos” que intermedia a relação de compra e venda da força

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de trabalho, criando ilusões de bons salários e boas condições de trabalho, oque atrai aqueles que vivem em estado de desamparo financeiro e social, que mesmoao constatar as precárias situações de trabalho e vida (considerando as péssimascondições dos alojamentos coletivos ou moradias individuais, a falta de alimentosetc.), além de extensivas jornadas de trabalho e ausência de contrato formal, nãopodem deixar o local de trabalho ou porque estão sob forte vigilância ou porquecontraíram dividas devido a compra de parcos alimentos, colchões etc..

No geral, o que se observa, ao visitar as residências dos trabalhadores9,é que as suas condições de vida refletem as suas condições de trabalho, ou seja,os baixos salários percebidos são claramente verificados na falta de confortomínimo das moradias, que nestes municípios, não são mais caracterizadas pelosalojamentos coletivos de responsabilidade das usinas. Na realidade, são imóveisalugados pelos próprios trabalhadores ou via aliciadores, “gatos”. Esses ao falardas boas condições de trabalho, já dão indicações das supostas moradias ou jáassociam a vinda dos trabalhadores para tal usina a determinado local deresidencia, assim, os trabalhadores ficam devendo o aliciador, em geral, o valordo aluguel é alto e as condições das residências extremamente precárias.

Em 2008, segundo os fiscais sanitários das Vigilâncias Sanitárias deSão Joaquim da Barra e de Morro Agudo, o Ministério Público do Trabalhosolicitou às Vigilâncias que realizassem visitas em todas as moradias dostrabalhadores rurais. Para tanto, foi solicitado às usinas o fornecimento dosendereços dos respectivos trabalhadores, a partir daí, eles realizaram visitasdetalhando as condições de moradia. Segundo os fiscais, muitos acordos foramrealizados para que estas moradias fossem adequadas para as condições mínimasexigidas, mas em geral, esses acordos envolveram os donos dos imóveis e nãoos usineiros, que aparecem como se não tivessem nenhuma relação com ascondições de vida dos seus trabalhadores.

Assim, a moradia dos trabalhadores rurais é vistas comoresponsabilidade pessoal, quando muito do proprietário da residência.

Uma característica atual da composição destas moradias tem sido avisível redução dos trabalhadores migrantes nestes municípios. O desempregoassola os cortadores de cana, que com o corte mecânico são obrigados a migrarempara outros lugares ou para outras atividades, quando as encontram. Tambémtem ocorrido a permanência do ex-migrante, que conseguiu trazer seus parentesou conterrâneos, tornando-se trabalhador residente, mas ainda denominado poralcunhas que lembram o seu estado de origem como Paraíba, Pernambucano,Piauiense, entre outros. Com a redução brusca do corte manual da cana deaçúcar estes trabalhadores têm ficado a mercê da política de assistência socialcomo já tratado por Sant’Ana e Carmo (2010).9 Visitas realizadas no município de São Joaquim da Barra e em Morro Agudo, juntamente com osfiscais sanitários destes municípios no inicio de 2011.

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Assim, é forçoso dizer que as mais diversas experiências deexpropriação, exploração e exclusão vivenciadas pelos sujeitos que constituema classe trabalhadora contribuíram para a formação do trabalhador migrante10.A criação de uma matriz enérgica renovável a partir da cana de açúcar foi (e é)acompanhada de um processo de “modernização” da produção que inclui inovaçãotecnológica, especialização das sementes e plantas, utilização de agrotóxicos nocontrole de pragas e na maturação do produto, além do seu melhoramento genético,destaca também a ampliação da área plantada, os investimentos (sobretudo, apartir de subsídios públicos) para a mecanização da colheita, as operaçõescomerciais por meio de complexas transações financeiras e grandes complexosindustriais no âmbito internacional e o aumento da produtividade com visívelredução dos postos de trabalho (POCHMANN, 2009).

Dessa forma, verifica-se que houve um ampliado aumento daprodutividade, que de 1989 à 2005, esse aumento foi de 64,3%, comoabordado por Pochmann (2009), mas esta melhora na produção ocorreuparalelamente ao decréscimo do emprego. O trabalho no meio agrícola temse tornado mais protegido pela legislação, mas por outro lado, tornou-setambém mais escasso. “No setor agrícola, houve a redução de 2,8 milhõesde vagas entre 1993 e 2007, o que significou a perda média anual de 200 milpostos de trabalho” (POCHMANN, 2009, p. 91). O autor sublinha que aregião Sudeste foi responsável por 40% da totalidade da perda destes postosde trabalho.

Ianni (1977) esclarece que desde o início da “modernização” daagricultura, o Estado em acordo com os fazendeiros e grandes produtores decana-de-açúcar, entre outros, estabeleceu as legislações que eliminaram com ocolonato, porque essa modalidade de trabalho agrícola passou a ser vista comoonerosa para os agricultores e assim, o meeiro e pequeno produtor tornaramtrabalhadores volantes. Ao expulsar os moradores para as cidades estes passaram(e passam) a compor um contingente de trabalhadores, com tradição no trabalhoagrícola e, portanto, com maiores dificuldades de se ingressarem nas indústrias,dessa maneira, por questões de sobrevivência, se sujeitam a maior exploração,conforme o ciclo sazonal da produção.Perfil dos trabalhadores acidentados

10 Verifica-se que importante estudo indica que os trabalhadores migrantes da região de RibeirãoPreto têm o Vale do Jequitinhonha como um dos grandes celeiros dessa mão-de-obra. “Além dessaregião, cabe mencionar o norte do Paraná, onde se deu a expulsão de milhares de pequenos proprietários,parceiros e colonos em virtude do processo vertiginoso da modernização da agricultura, especialmentea partir dos anos 70... De acordo com os dados do Censo Demográfico, no Estado do Paraná, houvea diminuição da população rural residente de 4. 425.490 pessoas para 3. 156. 831no período de 1970-19780, o que significa um decréssimo em torno de quase 1.300.000 pessoas. Em 1995, esta populaçãoera de 2. 400.000 pessoas. Em relação ao período de 1970-1995, houve um declínio de 45%, portanto,quase a metade da população rural” (SILVA, 1999, p. 68-69).

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Do total de 1.196 notificações sobressaíram 92,04% que afetaram osexo masculino e 7,96% as mulheres, o que corrobora para a exclusão cada vezmaior das mulheres nesse ramo de trabalho. É relevante também observar quealém da predominância do sexo masculino, sobressaem no “perfil” do trabalhadordeste setor, as idades que constituem o grupo etário dos 21 aos 30 anos comaproximados 40%, seguidos de 30,94% na faixa etária de 31 aos 40 anos eapós, os que têm entre 41 e 50 anos, aparecem com 14,39%, como já discutidoanteriormente (LOURENÇO; BERTANI, 2010).

O vínculo celetista é o referente para 95,32% das notificações estudas, eno oposto apenas 0,59% se classificam como “sem registro” e 4,10% não trazemessa informação. Isso pode estar relacionado a equiparação dos direitos trabalhistasentre aqueles da área rural e urbana garantidos na Constituição Federal de 1988.

O avanço da indústria de açúcar no meio rural, a formação dosmovimentos de trabalhadores, por exemplo, as Ligas camponesas e o própriocontexto econômico e político dos anos de 1940 e 1950 provocaram também agradativa implantação de leis que regulamentaram as relações sociais de trabalhono campo. Ianni (1977, p. 45) destaca que já na década de 1940 houve a criaçãodo Estatuto da Lavoura Canavieira11, que se limitou as relações dos usineiros efornecedores (sitiantes), “[...] seu artigo 3 estabelece que o Estatuto não seaplica aos assalariados.” Mudanças começaram a ser definidas em 194412, quandose estabeleceu direitos aos operários da área agrícola e industrial do setorcanavieiro. Após, considerou-se que o trabalhador que prestasse serviço a usinaestaria protegido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Contudo, aefetividade prática foi ocorrendo de modo gradual, “Somente em 1959reconheceu-se que o operário da usina estava amparado pela CLT” (IANNI,1977, p. 45), a partir daí novos elementos se puseram no cotidiano dostrabalhadores deste setor, a organização política e, por outro lado, o investimentoem capital fixo (máquinas) em detrimento da força de trabalho, por parte dosproprietários. Ianni (1977) lembra ainda que o Estatuto do Trabalhador Rural13

ao impor as medidas de proteção social teria criado barreiras à acumulação naagricultura e levado os proprietários a criarem alternativas para burlar as leis emanterem as taxas de lucro sobre a força de trabalho. Assim, apenas a partir de1988 que os trabalhadores rurais passaram a ter as suas garantias de trabalhosemelhantes aos trabalhadores urbanos.

Apesar de se ter constatado, neste estudo, o predomínio do vínculoceletista, verificou-se que além dos desvios de função e das denominaçõesgenéricas que co-existem formas variadas de contratação. Sendo que otrabalhador interno da usina é contratado diretamente pela usina. Já o trabalhador11 Decreto-lei No. 3.855, de 21 de setembro de 1941 (IANNI, 1977, p. 45).12 Decreto-lei No. 6.969, de 19 de outubro de 1944 (IANNI, 1977, p. 45).13 Lei no. 4.214, de 2 de março de 1963 (IANNI, 1977, p. 46).

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rural ou é contratado via “gato”, agenciador desta força de trabalho, ou porempresas constituídas pelas próprias usinas para a contratação do trabalhadorrural, assim, raramente, ele é contratado diretamente pela usina.

Portanto, quando se fala em migração do trabalho na agroindústriacanavieira, se fala de trabalhadores que atuam na lavoura e não no interior dausina. Mas, pode acontecer, em alguns casos, do trabalhador rural cambiar paraalguma função no interior da usina, contudo, via de regra, esse vem ao interiordo estado de São Paulo para cortar cana e, só muito raramente, consegue algumposto no interior da usina e ao se fixar ele acaba ficando no município.

Acredita-se que para entender a saúde destes trabalhadores é precisocompreender as relações sociais de trabalho e as condições em que ocorre avenda da sua força de trabalho, que historicamente, se dá num contexto deextrema desigualdade e, portanto de exploração, sendo que a preferência pelosmigrantes torna o solo mais fértil para a depreciação do valor da força de trabalho,e para o seu descarte com mais facilidade. O fato de serem (os trabalhadores)de “fora” isenta as usinas de maiores responsabilidades sociais, pois eles vêm eem no máximo em oito meses vão embora, então não há compromisso comesses trabalhadores, com as suas condições de vida e tampouco com a sua saúde.Fato comprovado pelas condições de moradia.

Além disso, frisa-se, mais uma vez, que o processo de trabalho nosetor canavieiro é determinado pela lógica global (econômica e política). Sãograndes grupos (oligopólios) que instalam seu poderio nas lavouras, seja pormeio da dominação de extensas áreas, seja por meio das grandes estruturasindustriais e tecnológicas que não se fazem sem inferir diretamente nas relaçõessociais e de trabalho.

Os agravos segundo as ocupaçõesA força de trabalho rural produzida pelas relações capitalistas afeitas a

particularidade histórica brasileira, verificada na exploração dos escravos,colonos, meeiros e agora assalariados14 se reproduzem neste século, e pode seridentificada no trabalho rural de um modo geral e, específico, do corte de cana.Assim a denominação da sua ocupação é sempre muito genérica e, por vezes,representativa do grau de não reconhecimento social que sempre lhe é atribuído,talvez pelo fato de serem sazonais, volantes15, serviços gerais, entre outros.Essas denominações genéricas às funções foram constatadas na pesquisa orarealizada, como destacado no Gráfico 1.

14 “Enfim um campesinato expropriado da roça, da morada, da posse, da terra, dos meios e instrumentosde trabalho” (SILVA, 1999, p. 71).15 “Volante, que voa ou pode voar. Flutuante, ondulante. Que se pode mudar facilmente, móvel.Errante, nômade, vagabundo, passageiro, transitório, efêmero (Novo Dicionário Aurélio da LínguaPortuguesa apud SILVA, 1999, p. 83).

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Gráfico 1 - Predomínio das Ocupações que mais sofreram agravos á Saúde

Fonte: Estudo de RAAT e CAT, referentes aos anos de 2005 e 2006, na microrregiãoAlta Anhangüera.

O Gráfico 1 mostra que ao fazer a adição das ocupações similares(Lavrador, Rurícola, Trabalhador Rural e Cortador de Cana) obteve o total de68, 97% das notificações. Frisa-se, que esse número pode não representar arealidade, uma vez que historicamente há subnotificação dos agravos à saúde,além disso, para este estudo considerou-se apenas os documentos que tinhamusinas como empresas empregadoras, excluindo, os registros em nomes depessoas físicas ou sitiantes e fazendeiros.

Outro fator relevante é que apesar de haver o uso de nomes variadospara denominar Trabalhador Rural, verifica-se, ao ler a descrição dos agravosnos documentos estudados, que esses ocorreram quase que absolutamentedurante o corte de cana, como descrito nos documentos estudados:

Ao pegar a ferramenta de trabalho [facão] irregularmente, ocolaborador veio a sofrer corte contuso em sua mão esquerda.Diagnóstico: ferimento em mão; CID: E. S619; Ocupação:Rurícola Lavoura. (CAT, 02/06/2006).

Caminhava no local de trabalho, escorregou vindo a atingir os5ª, 4ª e 3ª dedos da mão esquerda na lamina do facão, causan-do ferimento corto-contuso; CID: S 61.0; Ocupação: Rurícola;(RAAT, 08/111/2005).

Estava cortando cana quando o podão bateu na cana e voltoucortando a sua cabeça; Diagnóstico corte contuso couro cabe-ludo; CID: não informado; Ocupação: Lavrador; Local: lavoura(RAAT, 03/03/2006).

Foi pegar o feixe de cana que estava no chão, sentiu picada nasua mão esquerda por uma cobra. Diagnóstico: picado por cobra(animal peçonhento); CID: W59; Ocupação: Rurícola; Local:Fazenda (CAT, 2006, dia e mês ilegível).

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Estava cortando cana e sentiu dores no seu braço D; Diagnós-tico: Dor Punho Lesão Por Esforço Repetitivo: CID: Não In-formado; Ocupação: cortador de cana; Local: Fazenda; (RAAT,02/08/2006).

Observa-se que as notificações trazem a tradição de transferir a culpado ocorrido para o trabalhador, por exemplo, “ao pegar o facão irregularmente”,“caminhava no local de trabalho”, essa linguagem minimiza o ritmo e intensidadede trabalho do cortador de cana. Pois não é possível dizer que em uma atividadeque exige esforço e muita rapidez, devido ao pagamento por produção, otrabalhador “caminhava” ou que pegava o facão de “modo irregular”. Lembra-se que com o aumento das exigências de produtividade o Cortador desfere umamédia de dez mil golpes de podão, diariamente. Do mesmo modo, deve-se atentarpara o fato que essa atividade é no campo, chão de terra desconforme, às vezes,de terra fofa, o que exige mais esforço no ato de deambular e talvez seja prudentepensar se esse “escorregou” não estaria relacionado a um mal estar provocadopelo excesso de uso de força física, perda de sais minerais, alimentação e repousodeficientes, que propriamente um escorregão (LOURENÇO; BERTANI, 2010).

Na sequência as atividades de “Operador” geralmente, realizadas dentroda usina, foram as que mais apresentaram agravos, com 5,27%. Cabe dizer queos registros pertinentes ao operador de colheitadeiras ou máquinas agrícolasforam incluídos nas categorias Motorista e Tratorista, e a categoria Operadorficou restrita para o processamento industrial, para o qual se teve o percentualde 5, 27%.

Eu trabalho na parte de cozimento, o serviço é tranqüilo, souregistrado como Operador de Fábrica de Açúcar III. Só queeu também faço a função de Caldereiro. Então, no mesmomomento que a indústria está rodando se quebrar alguma coisaeu tenho que parar a minha função para fazer o serviço demanutenção, entendeu? Até a gente briga um pouco por cau-sa disso porque a manutenção tem um salário e a gente temoutro. E na mesma hora que a gente está no processo a genteestá na manutenção ao mesmo tempo. [Você poderia me dizero que é ser Caldereiro?] Ah, Caldereiro é quem faz a monta-gem de tubulação de chaparia, por exemplo, uma tubulaçãoestá estragada eu vou lá e troco (Entrevista com OperadorFábrica de Açúcar).

É importante registrar a complexidade da organização do trabalho,compreendendo a hierarquia, a divisão sócio-técnica e o controle. Ou seja, asfunções são dinâmicas e, especialmente a partir das mudanças do mundo dotrabalho, verifica-se o acúmulo de tarefas, daí que o trabalhador aponta que éOperador, mas quando precisa é também Caldereiro. Trata-se dos reflexos dalean producion, à medida que se reduz o número de funcionários introduz-se a

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polivalência, constatando-se inclusive acidentes como, por exemplo, trabalhadorna função de tratorista trabalhava na moenda, operador de açúcar na manutençãoetc. São novas exigências impostas pela polivalência profissional que no estágioatual da globalização tem correspondência direta para o mundo do trabalhorural e indústrias de açúcar e álcool.

A ocupação de Serviços Gerais aparece com 5,27%, mas não expressaexatamente a atividade exercida, além disso, também é difícil precisar o postode trabalho da ocorrência, pois muitos documentos não dizem exatamente oque e onde ocorreu, a exemplo cita-se as informações de um dos documentosestudados (Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT)), que descreve oacidente como: impacto sofrido por pessoa com objeto que cai: local: transporte;ocupação: motorista de veículo pesado; diagnóstico: fratura rádio D; CID S525, tempo de afastamento: 90 dias (CAT, 08/02/2006). Embora informaçõesvaliosas como diagnóstico, tempo de afastamento, CID e ocupação sejamreveladas a descrição do acidente e o local da ocorrência comportam inúmerasinterpretações e indagações, pois teria ocorrido tombamento do automóvel? Oacidente seria em razão de algum problema mecânico e ao dar a manutenção otrabalhador teria se machucado? O problema teria ocorrido durante ocarregamento do caminhão na usina, na lavoura ou durante o transporte, narodovia? Etc., etc. Esse limite de resumidas especificações nos documentosdeve considerado.

A categoria Mecânico, que congrega também as funções similares comoAjudante de Mecânico e Mecânico I, II ou III tanto da área industrial quanto osautomotivos, uma vez que esses últimos apareceram em menor número, dessemodo, se obteve 3,85% em relação às ocorrências estudadas.

Os Mecânicos e Auxiliares, muitas vezes, têm que fazer manutençãoem máquinas em funcionamento, no caso das usinas, devido ao funcionamentoininterrupto, é comum o trabalho noturno, se bem que, atualmente, os operadoresde máquinas agrícolas, bem como aqueles envolvidos no processo de queimadastambém desenvolvem suas funções no turno noturno e, por vezes, podem precisardo mecânico.

Deve-se considerar que o sistema de máquinas necessita de reparosconstantes e as reparações podem ocorrer com as máquinas em movimento,pois a sua paralisação, mesmo que momentânea, significa perda ou ociosidadeprodutiva. Contudo, lembra-se que o ser humano, quando desgastado édescartado.

Eu acho que o pior do mecânico é o estresse porque a usinanão pode parar um minuto, se parar é prejuízo, se você falarque em 15 minutos o serviço está feito, então tem que ser, masaí você pode ficar nervoso porque tem peça que não dá certo,às vezes, você vai fazer uma coisa e descobre outra a ser feita

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e o serviço pode ser mais demorado que o previsto. Outracoisa, é muito barulho, aí eles dão aquele protetor para usar,mas tem hora que você não agüenta e tira um pouco e vocêestá sempre com as mãos muito sujas porque você mexe comgraxa, com produtos que suja e isso aí complica um pouco.Tem também a esteira que, às vezes, você vai ter que entrardentro e sempre que entra dentro de uma máquina é meio pe-rigoso. Para falar a verdade, na usina se você for ver é tudomuito perigoso, você tem que subir escada para arrumar al-guma coisa lá no alto, fica dependurado, outra hora você en-tra dentro ou debaixo de uma máquina e fica ali agachado,encurvado, um tempão... (Entrevista com Mecânico)16.

Além das condições em que a manutenção é feita com a máquina emmovimento, em altura e em ambiente ruidoso, deve se atentar para a organizaçãodo trabalho e o seu conteúdo, prazos para a entrega da máquina pronta,ferramentas e recursos disponíveis para que a reparação e a questão do tempo,já que dependendo do tipo de conserto, pode-se extrapolar a carga horária detrabalho, o que leva ao sacrifício do tempo destinado às pausas e às refeições,além da ampliação da jornada de trabalho, como destacado pelo trabalhador.

Apesar de todos os fatores relatados presentes no processo de trabalhodo mecânico, verifica-se, mais uma vez, nos documentos, a tradição em colocara culpa do acidente no trabalhador, como a descrição da CAT que diz: “Ocolaborador colocou os seus dedos no interior de uma conexão tubular eimprudentemente foi passá-la na escova do esmeril, quando a mesma giroucortando a ponta de seus dois dedos” (Diagnóstico: Amputação das falangesindicador e bilateral; CID: S 68.2; Ocupação Torneiro Mecânico; Local: Oficina,CAT, 09/04/2005, grifo nosso). Observa-se que esse acidente ocorreu após setehoras e trinta minutos de trabalho. Outro exemplo, que ajuda a compreender osagravos que os mecânicos estão submetidos e que também destaca a limitaçãode informações contidas nos documentos pode estar representado na descriçãode acidentes de uma CAT que informa: “Queda de pessoa com diferença denível” (Diagnóstico: Fratura cotovelo esquerdo; CID: S 52 1; Ocupação: AuxiliarMecânico de Manutenção; Local: usina; CAT; 20/06/2005), esse ocorreu após16 Nome fictício. Ilustra-se que esse trabalhador sofreu um acidente de trabalho grave em 20 desetembro de 2005, um Curtume, localizado em Patrocínio Paulista, quando quatro trabalhadoresadentraram em um reservatório subterrâneo para limpeza e se intoxicaram devido aos gasesprovenientes de resíduos químicos resultantes do processo de tratamento do couro. Desse modo, doistrabalhadores foram a óbito devido à intoxicação e ele (trabalhador entrevistado) e outro companheiroforam resgatados com vida e depois de quinze dias hospitalizados em estado grave (inclusive emcoma), ele conseguiu se recuperar. Assim, a entrevista com este trabalhador segue aos objetivos destapesquisa. A partir do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido optou-se por descrever parte daentrevista, neste estudo. Isso em decorrência do trabalhador ter atuado durante dez anos, como mecânicoindustrial, em uma usina alcooleira, em Patrocínio Paulista (este município compõe a regiãoadministrativa da saúde em Franca/SP).

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oito horas de trabalho. Não há especificação do que realmente era feito ou emqual setor da usina o trabalhador realizava o seu trabalho, se em altura.

Lopes (1976) ao discutir o trabalho no setor canavieiro no Nordestemostra que os trabalhadores diferenciavam as ocupações entre “artistas” e“profissionistas”, sendo a primeira categoria referente às ocupações melhorpercebidas, especialmente pela capacidade de criar e colocar as engenhocas emfuncionamento, já a segunda é caracterizada mais pela subordinação e falta deautonomia. Mas, mesmo os trabalhadores considerados artistas percebiam otrabalho como “cativeiro” porque eram chamados para trabalhar independentedo dia e do horário, se uma máquina quebrasse ou se desse qualquer problema,eles eram chamados, daí a expressão “cativeiro”, “[...] pois desaparece o tempolivre, com submissão de todos os aspectos da vida do trabalhador à administraçãoda usina” (LOPES, 1976, p. 28).

Outra coisa ruim, é que na usina você tem que trabalhar a noi-te, é sempre três turmas, fazendo revezamento, então a primei-ra coisa que eu percebi foi o nervoso, eu dormia pouco, pareceque nem descansava, porque se você trabalhou a noite, vocêprecisa dormir durante o dia, mas aí todo mundo na sua casa,os vizinhos eles dormiram a noite e estão descansados duranteo dia, aí qualquer barulho era motivo de briga. Para te falar averdade, dos dez anos que eu trabalhei na usina [sempre comomecânico industrial] eu acho que não fui pai assim, eu punhaas coisas em casa, não faltava nada, mas eu não vi os meusfilhos crescerem, porque no revezamento nem sempre você fol-ga no domingo, às vezes, uma vez no mês coincide de você des-cansar no domingo, a gente pára, os amigos são aqueles queestão lá com você na hora do trabalho, mas você perde muitacoisa. Eu vim conviver com os meus filhos agora, depois que eusaí de lá (Entrevista com Mecânico).

Observa-se que o trabalho em turno e noturno não é uma característicaapenas do mecânico, mas de um rol de trabalhadores, cada vez maior, que temque se submeter a esse tipo de organização do trabalho. No caso, o trabalhadorrefere que fazia rodízio de horário e destaca além do estresse, o trabalho noturnoe aos domingos como fatores favorecedores da fadiga física e mental de quemtrabalha não apenas no ambiente laboral, mas, sobretudo, na relações familiarese sociais.

Lembra-se também que a usina funciona de sete a oito mesesininterruptos durante o processo de moagem da cana, ou seja, nos outros quatromeses, é realizada a desmontagem, reforma, ampliação, trocas, enfim, nesseperíodo, é usual a realização de horas extras, especialmente porque toda amanutenção da entressafra tem que estar pronta nos quatro meses, geralmentede meados de dezembro ao mês de abril do ano subsequente.

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Num índice muito próximo a dos Mecânicos aparece à categoriaMotorista, a qual também tem graduações como I, II e III e diferenciações demotorista e motorista de veículo pesado, porém considerou-se, apenas a titulode analise neste estudo, tudo na categoria Motorista, para a qual se obteve opercentual de 3,34%. Os motoristas são operadores de máquinas automotivas,às vezes, caminhões, colheitadeiras, entre outros. Os acidentes que afetaram osmotoristas também se relacionam a questão do horário, como se pode observarna descrição da CAT que se segue: “O colaborador dirigia o caminhão 1208, edormiu ao volante, vindo a acidentar, tombando o caminhão ao sair da estrada,ocorrendo luxação no joelho esquerdo e escoriações na região lombar”(Diagnóstico: Contusão lombar e joelho esquerdo; CID: S 30; Ocupação:Motorista; Local: Fazenda, CAT, 30/09/2005). Este acidente ocorreu às trêshoras e cinqüenta minutos (madrugada).

Fischer e Lieber (2005, p. 827) destacam que o trabalho em turno,considerando os turnos fixos ou rodiziantes, somente à noite, ou em horáriosirregulares, influencia os ritmos biológicos dos envolvidos, bem como afetam asrelações sociofamiliares. “Os limites entre o dia e a noite não são mais respeitadospara a vigília e o descanso dos trabalhadores – que são organismos diurnos”. Osautores explicam que a legislação brasileira17 considera o trabalho em turno enoturno “como agente etiológico ou fator de risco de natureza ocupacional, sendodescrito como má adaptação à organização do horário de trabalho – trabalho emturnos e trabalho noturno (Z 56.6 da CID 10 apud FISCHER; LIEBER, 2005, p.832). Destacam a fadiga provocada pelo cansaço, a questão da iluminação, muitasvezes precária, do ambiente, do horário e, entre outros, os riscos biológicos quedeterminadas ocupações expõem os trabalhadores.

Nesse sentido, reforça que o trabalho noturno não é uma especificidadeapenas dos motoristas, que sofrem com as repercussões negativas do trabalhonoturno18, mas também os operários do processamento industrial e da lavourada cana-de-açúcar, carregamento e transporte. Na usina prevalece o horário detrabalho organizado em três turnos, divididos em oito horas cada, o que se estendepara algumas funções exercidas na lavoura.

Embora o lavrador (o que mais sofreu acidente neste estudo), em geral,não trabalhe a noite, lembra-se que o percurso de trabalho é, algumas vezes,marcado por até duas horas ou mais de trajeto, o que faz com que o trabalhador

17 E m maio de 1999 foi publicado no Diário Oficial da União a nova regulamentação acerca dasdoenças profissionais e doenças relacionadas ao trabalho (Anexo II Decreto nº. 3.048) regulamentandoa Lei nº. 8.213/91 apud FISCHER; LIEBER, 2005, p. 832).18 No Brasil, o trabalhador noturno tem hora de trabalho reduzida igual a 52 minutos e 30 segundose tem remuneração 20% superior à diurna. Pela legislação brasileira (Consolidação das Leis doTrabalho, Seção IV, Do trabalho Noturno é considerado trabalho noturno aquele realizado entre 22h00.de um dia até 05h00. do seguinte (CAMPANHOLE; CAMPANHOLE, 1994 apud FISCHER; LIEBER,2005, p. 831).

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saia antes do dia amanhecer e retorne quando já esta escuro, e isso tambémprejudica tanto as condições de repouso quanto as relações socioafetivas.

No conjunto das ocupações analisadas 2,09% referem-se à ocupação deAuxiliar também graduada de I a III. Ao que se pode observar essas dizem respeitomais as funções realizadas dentro da usina, muitos acidentes parecem estarassociados à limpeza de máquinas. Por exemplo: “Ao efetuar a limpeza na caixaevaporadora nº. 08, foi atingido pelo bico da mangueira, ocasionando corte contusoem sua cabeça” (Diagnóstico: Traumatismo de Crânio; CID: S060.0; Ocupação:Auxiliar; Local: Evaporação, CAT, 06/12/2006). Ou, ainda, “O colaboradorexecutava serviços de desencabelamento do rolo da moenda, utilizando-se deágua pressurizada, quando sofreu corte em seu pé esquerdo” (Diagnóstico:Ferimento Halux E; CID: S91. 1; Ocupação: Auxiliar; Local: Moenda; CAT, 11/08/2006). As notificações também indicaram a presença do Auxiliar no armazémde açúcar “O colaborador estava em cima da primeira camada de big bag noArmazém 3 para retirar os big bag da segunda camada e por distração enfiou asua perna esquerda no vão que é formado entre os big bag nas pilhas; lesionandoo joelho esquerdo e região” (Diagnóstico: Entorse Joelho E, CID: S 83.6;Ocupação: Auxiliar; Local: Armazém de Açúcar; CAT, 29/03/2006, grifo nosso).

Verifica-se em um Programa de Controle Médico Ocupacional (PCMSO)de uma usina da região Alta Anhangüera, que a função de Auxiliar Operacionalé descrita como aquela que realiza a “limpeza das caixa evaporadoras, pré-evaporadoras, reiboillers, aquecedores de caldo dosado, clarificado e xarope,utilizando motor com mangote e rosetas para retirar incrustações contidas nostubos, como também a limpeza na parte interna no separador de arraste”, segundoum dos operadores entrevistados o auxiliar é aquele que atua onde precisa,onde falta um trabalhador ou ainda onde “aperta” de serviço.

Eu entrei como Auxiliar Operacional, ajudante na parte decozimento e depois eu fiquei como coringa da fábrica o queprecisasse de mim dentro da fábrica eu estaria suprindo, asfaltas, aí fui subindo. Na época, eu passei para Auxiliar deFábrica de Açúcar I, Auxiliar de Fábrica de Açúcar II aí eufui para Operador II e depois para Operador III (Entrevistacom Operador Fábrica de Açúcar).

O Auxiliar ao desenvolve atividades em várias áreas, muitas vezes, demodo concomitante e acredita-se que isso pode ser um complicador do pontode vista da saúde. O trabalho na usina, como já ilustrado por Lopes (1976, p.27) é desenvolvido a partir de uma organização e estrutura já pronta “[...]materializadas na gigantesca estrutura metálicas de máquinas parcelaresencadeadas.” Os trabalhadores ficam subordinados ao funcionamento própriode cada seção. “Neste perpetuum móbile, o produto se encontra constantementenos diferentes graus de sua fabricação e na transição de uma fase para outra,

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articuladas entre si, por uma cooperação complexa das máquinas parcelares”(LOPES, 1976, p. 27). As notificações de acidentes com os Auxiliares revelamas ocorrências na evaporação, na moenda e no armazém de açúcar.

Eu entrei como Ajudante. [o que é ser ajudante] Ajudante é vocêpega os canos levar para lá e para cá, corta, e tudo mais que oMontador ou o Encanador mandar, porque o Ajudante recebeordens deles. Ajudante é o que faz coisa pior, trabalha mais.Até no primeiro dia de trabalho eu pensei em ir embora, por-que eu pensei, nossa, eu não agüento isso aqui não. Acho quemandrilhar é pior, você tem que ficar segurando a máquinapara cima. Puxa! Aquilo lá é a pior coisa, você tem que ficarcom o braço o dia inteirinho para cima, eles não te trocam não,também não tem outro é só o Ajudante. Não tem jeito, alguémtem que fazer o serviço, você vê, lá na Usina é mais de cinco milcanos e em todos você tem que passar a máquina dentro delespara vedar e aí é o Ajudante que fica horas e horas segurandoessa máquina, você fica com o corpo que não agüenta, ficarsegurando aquela máquina pesada, nossa é pesado mesmo.[Você já presenciou algum acidente de trabalho nessa função?]Ichi! Tem um que foi com um vizinho, ele também era Ajudantee estava com essa máquina de passar nos canos para vedar, elaera de rodar, então eu não sei o que aconteceu, se ela travou, sedeu algum problema, acho que ela travou e rodou e bateu noqueixo dele assim, quebrou a boca dele. Ele ficou cinco mesescom aparelho nos dentes travado sem poder falar, ele só engo-lia no canudinho, ele não era funcionário da Usina, era igual amim, era terceirizado, só que eu era pela firma de Orlândia eele era uma de Sertãozinho (Entrevista com Encanador).

O trabalhador destaca as condições e organização do trabalho mostraque o Ajudante tem uma sobrecarga de trabalho e que realiza atividades queimpõem posições ergonômicas, carga física e mecânica e jornada ampliada detrabalho que podem atingir diretamente a saúde, inclusive cita uma situação deum colega que se acidentou. A descrição de um acidente constatado em umadas CAT estudadas pode ilustrar um pouco tal situação:

O colaborador utilizava uma lixadeira para obter uma reduçãode um tubo. Durante a execução da atividade, o disco da lixadeiratravou no corte feito no tubo, fazendo com que o cabo daquelaferramenta atingisse a sua boca, provocando ferimentos; Diag-nóstico: Ferimento Lábio Inferior; CID: S 015; Ocupação: Ope-rador de Fabricação; Local: Ensaque/Usina; CAT; 17/02/2006.

Destaca-se também a categoria Tratorista, com 2,51% das notificações,nesta não se observou diferenciações quanto a graduação de cargos (I, II e III).Mas, verificou-se o desvio de função do tratorista nos documentos estudados,

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como por exemplo: “O colaborador realizava o lixamento dos pentes inferioresda moenda utilizando lixadeira, quando foi realizar a limpeza do local de trabalho,sentiu irritado o olho esquerdo, devido a fagulha metálica proveniente dolixamento”; local: Moenda; ocupação: tratorista; diagnóstico: corpo estranho noolho; CID: H 18.9; tempo de afastamento: não informado (CAT, 02/03/2006).Além do desvio de função, verifica-se também a intensidade da jornada de trabalho,pois a ocorrência se deu após nove horas de trabalho, esses são fatores importantesa serem considerados na análise dos agravos à saúde dos trabalhadores.

Outras funções que apesar de não se destacarem quantitativamentechamam a atenção por serem responsáveis pelo controle dos trabalhadores,especialmente por meio da vigilância exercida, é o caso de duas notificações nafunção de Feitor que somadas com aquelas similares (encarregado, chefe defrente, fiscal, líder) se obtém o total de sete casos. Esses dados auxiliam acompreensão das formas de controle vivenciada pelos trabalhadores do setorcanavieiro, especialmente, do campo (LOURENÇO; BERTANI, 2010).

Silva (1999) mostra que é por meio da divisão da área agrícola emtalhão que é possível compreender a extensão do controle da fábrica ao campo.É lá, no talhão, que a idéia do trabalho livre e autônomo se contrasta com a suaredução em força de trabalho abstrato. Os trabalhadores separados tanto dosmeios de produção, do seu produto final como da concepção e organização dotrabalho, são submetidos às regras do trabalho coletivo fabril, ao mesmo tempoem que esta lhe é exterior. Nesse mesmo espaço, o talhão, reúne os trabalhadorescoletivos, mas também segrega e controla.

A autora expõe que o fiscal (ou o feitor como ainda é denominado emalgumas usinas) é o responsável em fazer o controle dos trabalhadores, da divisãosocial e sexual do trabalho. “É necessário um “olhar” minucioso controlandocada gesto, cada ritmo, cada conduta. Quando a rua de cana está fechada, ofeitor instala-se no final delas, no carreador, para anotar a produção e realizar olevantamento nos experimentos” (SILVA, 1999, p.151). Para os trabalhadoresrurais entrevistados o feitor é quem fiscaliza seu trabalho.

Ele tem o direito dar advertência. Ele tem direito de me man-dar embora do serviço. Então, eu tô ali para fazer o que elepede, entendeu? Se o serviço tá ruim ele tem o direito de pedirpara arrumar e se eu não quiser arrumar ele tem direito deme dá uma advertência, me dá um intervalo [ou seja,] mandaeu para ônibus o resto do dia ou pode me dá um gancho. Ogancho é três dias de suspensão, aí eles me dão esse ganchoeu fico em casa três dias. Na segunda veis que eu sair dalinha de novo, não obedecer ele pode me dar seis dias e naterceira veis ele pode me dar nove dias e aí pode me mandarembora sem direito a nada, se ele quiser, né? (Entrevista comTrabalhador Rural, cortador de cana).

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Ele não pode ter parentes na sua turma porque ele pode privi-legiar. Só que, eu já vi muita injustiça, tem caso do feitor não ircom jeito de trabalhador, de gente boa, que não enrola não eele manda pro ônibus e não traiz mais. Ele é o responsável emvigiar a turma, mas tem isso aí, ele faiz o que ele quer, os pa-trões dão ouvidos só para ele, na modo do outro, eles [patrões]nem sabe quem nóis é. Vê a gente na rua e não sabe nada dagente (Entrevista com Trabalhadora Rural, cortadora de cana).

Verifica-se as dificuldades postas no corte de cana e na lavoura emgeral. A liberdade é corroída pelo trabalho abstrato que para atingir seusobjetivos, geração de mais valor, necessita impor forte controle e vigilânciasobre os trabalhadores. O trabalho, enquanto possibilidades de criação ehumanização do homem, acaba se transformando em meio de sobrevivênciados trabalhadores e a sua ausência significa a exclusão das condições necessáriaspara manter, mesmo que minimamente, a vida. O fato de o trabalho no corte dacana ser sazonal e temporário agrava o quadro de miserabilidade dessestrabalhadores que passam meses sem ter trabalho, portanto, quando o tem sesubordina mais facilmente às suas condições.

Considerações FinaisAssim, volta-se a afirmar que a saúde do trabalhador não pode omitir as

questões que envolvem as mudanças no mundo do trabalho, as novas tecnologias,a terceirização, o controle e a remuneração, caso contrário as análises serãoresumidas aos riscos tradicionais (físico, químico, mecânico) com prejuízo deignorar os novos modos de adoecimento, como as doenças cardiovasculares,distúrbios mentais, estresse, lesão por esforço repetitivo (LER), entre outros. Éimportante desvendar as relações sociais de trabalho para trazer a tona oselementos que atuam na complexidade dos agravos à saúde e que de certo nãose prendem ao que é evidente. É preciso avançar nas análises que se restringema quem abriu a válvula, por que abriu, etc. etc. etc. que transferem a nocividadedo trabalho para o trabalhador (RIBEIRO, 2007).

Portanto, é necessário conhecer o movimento do capital paracompreender a conexão das doenças e adoecimentos com o processo do trabalho.A doutrina dos riscos deve ser precedida pela doutrina que faz a conexão comas leis gerais dessa sociedade, na qual os agravos não são acidentais, masconseqüências desse modo de produção. Ou seja, é necessário conhecer adesvalorização do homem e todo estranhamento social instaurado pelo capital(MARX, 2004). Claro, que os elementos que dispõem a condição dos agravosnão são apenas abstratos e se fazem também e, especialmente na concretude dotrabalho, no seu processo, na atividade produtiva, mas não se restringem arealidade periférica.

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Estranhamento no eito

Cana de açúcar,De longe, atraiu os meus olhos brejeirospara esse eito alcançarOlho-te e assusto-me com a tua imensidãoTudo que o que os meus olhos alcançam é igualSinto-me pequeno, cheio de solidãoMas, aos poucos, a arte laboralembala-me, na mais profunda consolação,como as ondas em alto mar, que convulsionam e tranqüilizam

Em plena luz do dia estás coberta de mistério,das chamas da noite anteriorficou o seu véu nevoento que me consome por inteiroEscuro, criado para lenta tortura interior,mas num gesto de resistência,os meus pensamentos revoam como fumaça,ou fuligem carregada de melaço e química,mas nutrem-se de esperança

Abraçado a vós, movo-me pelo caminho incertoCom o facão afiado em punhoBanho-me com o teu licorque lentamente entranha a minha pele,como a maré que aos poucos vai subindo,vais penetrando em mim.Cortar-te, cortar-te e cortar-tefaz de mim, herdeiro da miséria,ser liberto, cujas horas radiosas são para ti

A tua grandeza, fracionada em pequenos feixes,faz de mim ser triunfante,Aprisiona –me num ritmo candenteA vagar em terra estranhaAtrás da aurora, que refaz o gozo da vidaTe aconchego em meus braçosEnquanto me atrofiasE torna-me imprestável para o trabalhoAté mesmo o mais ardente

Edvânia, ENPESS, Rio de Janeiro, 08/12/2010.

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PARTE 4Questão Agrária, Gênero e Políticas Públicas Sociais

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LINHAS DE TRAJETÓRIAS: experiências laboraisfemininas no campo e na cidade

Juliana Dourado Bueno1

Maria Aparecida de Moraes SilvaApresentação

Cida, Cleusa e Andréia3: são estas as três personagens que emprestamsuas trajetórias de vida para suscitar a reflexão que aqui se pretende apresentar,qual seja, a de mostrar um contexto social marcado por relações decomplementaridade entre os espaços sociais do campo e da cidade. Todas têmem comum o fato de terem o início de suas vidas marcado pelo campesinato,entre outros marcos biográficos, como a mudança para a cidade, o trabalho noassalariamento rural e o trabalho como operárias de um abatedouro de frangosem São Carlos/SP. Essa trajetória compartilhada por elas nos mostra ainterligação entre os referidos espaços, não só em seu aspecto geográfico, mastambém tomando o seu caráter sócio-econômico.

As experiências femininas aqui contidas nos foram narradas para aelaboração da Dissertação de Mestrado intitulada De camponesas a operárias– Experiências do transitar feminino, na qual se procurou apontar as trajetóriaslaborais de mulheres que compartilham o ponto de partida de suas trajetórias devida: a vida no campo com a família.

Na ocasião da elaboração da dissertação, conversamos com mulheresque trabalhavam em um abatedouro de frangos na região de São Carlos-SP esuas narrativas apontaram para um novo “ponto de encontro”: a experiência noassalariamento rural, exercendo atividades na colheita da laranja e corte decana. Para evidenciar a transitoriedade entre os espaços do campo e da cidadeelaboramos, a partir das narrativas de doze mulheres residentes em Ibaté-SP eSão Carlos-SP, as linhas da trajetória de vida de cada uma delas. As linhas seconstituem enquanto instrumentais metodológicos que demonstram de formabreve a diversidade de experiências, principalmente no que diz respeito à esferado trabalho.

No texto aqui presente, tomaremos as linhas de trajetórias de três dessaspersonagens, que evidenciam em consonância com os marcos biográficos atransitoriedade entre os referidos espaços. Com isso, pretendemos mostrar queexiste uma forte relação de complementaridade entre o campo e a cidade, nãosó porque as mulheres transitam entre os trabalhos exercidos no chão de fábricae nos extensos canaviais, mas também por carregarem consigo, muitas vezes,os modos de vida pertinentes a cada esfera.1 Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos. MARIA APARECIDA DE MORAESSILVA – Orientadora. Apoio financeiro: FAPESP. E-mail: [email protected] Os nomes das personagens aqui apresentados são fictícios.

CAPITULO 21

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Sendo assim, dividimos a exposição do debate em dois momentos: aapresentação da metodologia e os instrumentais que foram lançados mão para aelaboração das linhas de trajetória; e a reflexão acerca dos processos sociaisque marcam as trajetórias femininas ao percorrerem esses espaços.

As linhas de trajetóriaAs linhas de trajetória só podem ser elaboradas e compreendidas à luz

da metodologia da História Oral, na medida em que as informações necessáriaspara a elaboração das linhas de trajetória são obtidas por meio das narrativasdas mulheres. O emprego da referida metodologia permite que os dizeres e aspráticas que se apresentam nos relatos, em momentos de entrevistas, conversase observação ao campo empírico revelem uma história que nem sempre éapresentada pela “História Oficial”. Ao descrever atividades humanas até entãoconsideradas sem valor, dá-se visibilidade aos grupos cuja história foi apagadaou esquecida (SCOTT, 1999, p. 24). Essa visibilidade é ainda mais relevantepor se tratar de mulheres trabalhadoras, algumas das quais migrantes e negras,que têm suas identidades apresentadas de forma estigmatizante.

Por permitir que se estabeleça um diálogo entre a entrevistadora e aspessoas entrevistadas e uma situação de valorização dos entendimentos do grupoacerca de suas práticas, as narrativas apresentam novos elementos para acompreensão das formas identitárias do grupo, possibilitando verificar, paraalém da transitoriedade de tarefas no campo e na cidade, as subjetividades quese apresentam nas trajetórias.

A análise realizada a partir das experiências femininas revela tambémuma busca pelo exercício da imaginação sociológica, que “[...] nos permiteapreender história e biografia e as relações entre as duas na sociedade” (MILLS,2009, p. 84). No caso aqui apresentado, significa olhar atentamente para ocontexto e estrutura em que se encontram os dizeres de Cida, Cleusa e Andréia.Ou seja, estabelece-se uma complementaridade entre as condições objetivas eestruturais, e aquelas referentes às ações individuais. Em termos metodológicos,significa um entrecruzamento dos relatos orais e das fontes escritas.

Bourdieu (1998) faz uma metáfora bastante pertinente que demonstratambém a relevância da análise que estabelece uma complementaridade entre oparticular e o geral. Ele mostra que:

[...] tentar compreender uma vida como uma série única e por sisuficiente de acontecimentos sucessivos, sem outro vínculo quenão a associação a um ‘sujeito’ cuja constância certamente nãoé senão aquela de um nome próprio, é quase tão absurdo quantotentar explicar a razão de um trajeto no metrô sem levar emconta a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivasentre as diferentes estações (BOURDIEU, 1998, p. 189-190).

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Tal metáfora é bastante elucidativa para apresentar a proposta das linhasde trajetória: a despeito de apresentarem experiências laborais individuais, aslinhas de trajetória só podem ser compreendidas e analisadas quando inseridasem um contexto social mais amplo, evidenciando, por exemplo, processos sociaistais como a exploração do trabalho feminino que faz com que as mulherestransitem, em um curto período de tempo, pelos espaços do campo e da cidade.

Para melhor definir o emprego desse instrumental metodológicodenominado como linha de trajetória, podemos afirmar que elas representamnum traço cronológico as diferentes atividades desenvolvidas pelas mulheresao longo de suas vidas. Para cada tipo de atividade foi destacada uma determinadacor. Depois de realizadas as entrevistas, feitas as transcrições e sistematizaçõesdos dados referentes às histórias de vida, notamos que o início de vida de Andréia,Cida e Cleusa é marcado pela experiência camponesa. Tal vivência é registradana linha de trajetória pela cor verde. A cor amarela mostra o exercício do trabalhodoméstico não remunerado. O trabalho assalariado rural é expressado pela corlaranja; e a cor azul representa o trabalho assalariado e/ou a residência na cidade.

A espessura de cada cor na linha é proporcional ao tempo despendidoem cada atividade. Além dos trabalhos realizados, destacamos na linhacronológica os marcos biográficos, como o casamento, a mudança para a cidade,a separação. A linha amarela contínua, que representa o trabalho doméstico nãoremunerado, demonstra a dupla jornada de trabalho feminina ao longo da vida.

Não se pretende registrar, com as linhas, uma exatidão de dadostemporais, a despeito de as linhas serem apresentadas linearmente, seguindo acronologia. Isso porque as experiências de vida narradas a partir do exercícioda memória não são apresentadas cronologicamente, e sim a partir de associaçõeslivres. Assim, mais importante que mostrar o tempo exato despendido em cadaatividade, é apresentar de forma sintetizada os movimentos de idas e vindaspelos espaços do campo e da cidade.

Para encerrar este tópico apresentamos as linhas de trajetória de Cida,Cleusa e Andréia, posteriormente, trazemos à leitora/ao leitor algumasinformações mais detalhadas sobre os marcos biográficos dessas trajetórias,apontando os processos sociais que envolvem a multiplicidade de tarefasexercidas pelas mulheres.

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Figura 1 – Linhas de trajetórias

Fonte: Juliana Dourado Bueno

Trajetória de CidaIdade: 40 anos

Trajetória de AndréiaIdade: 32 anos

Trajetória de CleusaIdade – 37 anos

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Entrecruzamento das trajetóriasConforme anunciado na apresentação deste texto, as trajetórias de vida

de Cida, Cleusa e Andréia se entrecruzam em muitos momentos: o primeirodeles é o início da vida marcado pelo campesinato.Cida e Andréia nasceram epassaram os primeiros anos de suas vidas com seus familiares em colônias nointerior do Estado de São Paulo. Cleusa, por sua vez, nasceu no Estado dePernambuco e naquele estado permaneceu com seus familiares até completar17 anos, quando realizou seu primeiro movimento migratório até o municípiode Ibaté/SP.

Destacaremos, por meio das narrativas femininas, o contexto sócio-histórico que permeia a transitoriedade de tarefas executadas pelas mulheres,que buscamos apresentar nas páginas anteriores por meio das linhas de trajetória.O primeiro processo social que merece ser destacado é a expulsão das famíliasdo campo, neste caso, famílias de moradores de colônias na região de Araraquarae São Paulo.

O sistema de colonato como regime de trabalho se iniciou noEstado de São Paulo no século XIX, permanecendo até o iní-cio da década de 1960 nas grandes fazendas de café e cana-de-açúcar do interior do Estado. A implantação do colonato foi“[...] fundamental para a formação de uma força de trabalholivre e assalariada” (CAÍRES, 2008, v. 1, p. 163).

Utilizando o trabalho de imigrantes, sobretudo italianos, es-panhóis e portugueses, entre outros, o regime de trabalho per-mitiu a constituição de um campesinato tutelado necessário àsubstituição do escravismo que, desde os primeiros anos doséculo XIX, já se mostrava decadente, tendo sua crise se acir-rado a partir de 1850, com a proibição do tráfico negreiro (CA-ÍRES, 2008, v. 1, p. 163).

Para os moradores da colônia, a terra, o trabalho e a família secompletavam, apresentando um valor essencial para a vida, por isso a terra nãoera vista como mercadoria, mas como um elemento de desenvolvimento deseus modos de vida.

O depoimento que segue evidencia o emprego familiar no colonato e apossibilidade de realizar a roça de subsistência:

Cida – Meu pai trabalhava na diária na época [que a famíliaresidia na colônia] que... não tinha safra, né? Aí quando co-meçava a safra ele trabalhava no corte de cana.

Juliana – E dava tempo de fazer uma rocinha, assim, para afamília?

Cida – Ainda fazia roça, pescava.

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Juliana – Quem ajudava na roça?C – Ah, era tudo nós, né? Fazia plantação de milho, deabóbora, de tudo quanto é coisa. Ai, como chama, meu Deus?Mandioca... um monte de coisa. E a gente ajudava, que eralonge de casa, né? Aí a gente ajudava ele, ajudar a carpir,ajudar a trazer as coisas para casa, o milho, o feijão, tinhaplantação... Vassoura, ele fazia muita vassoura lá e vendia,ele mesmo amarrava e vendia aqui.J – Vinha para onde?C – Ele vinha aqui para Ibaté para vender. Ele vinha debicicleta, chegava aqui no supermercado que a gente gastava,aí eles compravam. No mercado que ele gastava, nos outrossupermercados. (Cida)

Os colonos e seus familiares encontravam-se sob uma situação em quese viam favorecidos por alguns privilégios, como o fato de receber a moradiana propriedade em que trabalhavam e de ter um espaço para o plantio de umaroça de subsistência familiar. No entanto, visto sob um aspecto mais profundo,essa possibilidade da roça de subsistência familiar era limitada (STOLCKE,1986), uma vez que o pequeno roçado geralmente era insuficiente para aalimentação de todo o grupo familiar, assim o trabalhador tinha que passar umtempo trabalhando para o senhor no intuito de receber alguma forma depagamento que o permitisse comprar alimentos ou recebê-los em espécie.

O fragmento da entrevista com Cida citado na página anterior demonstraque a quantia monetária de sua unidade familiar advinha do trabalho realizadopelo pai no corte de cana durante a safra e também na venda/troca das vassourasna cidade por produtos nos mercados.

Em outro momento da entrevista, Cida mostra a valorização do tempoda colônia ao destacar a tranquilidade, a diversão e a segurança como elementospeculiares a este espaço, e que não são encontrados no ambiente da cidade,onde vive atualmente.

Cida passou sua infância em uma das seções da Usina Tamoio, grandepropriedade que abrigava famílias de colonos, localizada no município deAraraquara/SP. Esta Usina, durante o regime de colonato, teve uma forteexpressão no cenário da indústria sucroalcooleira do Estado de São Paulo e atémesmo do Brasil. Caíres (2008, v. 1), em estudo realizado sobre o regime decolonato nesta Usina, mostrou que para viver sua fase áurea de produção decana-de-açúcar, a Usina chegou a abrigar mais de 12 mil pessoas entretrabalhadores e moradores. No entanto, o modelo de organização administrativada Usina, as formas habituais de trabalho e as relações sociais até então vigentesvão sendo transformados com a inserção de um novo plano de racionalizaçãodo trabalho baseado no processo modernizador da agricultura. O plano, de acordocom Caíres (2008, v. 1, p. 179):

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Não apenas expulsou as famílias colonas para glebas menorese de qualidade de solo inferior à das terras até então cultiva-das, interferindo diretamente em seus rendimentos, como tam-bém, ao ocupar todos os espaços disponíveis com plantaçõesde cana da usina, eliminou toda a área de pasto e reduziu oterreno para as culturas de subsistência.

Cida demonstra esse processo de expulsão gradual dos moradores dascolônias em sua narrativa:

Juliana – E como que foi quando a Usina faliu?Cida – É... a gente ficou lá, meu pai começou a trabalhar comoempreiteiro de uma fazenda, para fora. Ele e mais meus doisirmãos mais velhos, minha mãe e meu irmão. Aí a gente viuque não tinha mais jeito, mesmo, como ele era aposentado, aínós viemos para Ibaté, até sair o acerto de lá. Quando saiu oacerto de lá ele comprou a casa daqui.J – Ele comprou... ele veio sozinho primeiro?C – Não, nós já viemos tudo nós. Aí meu tio, o irmão daminha mãe que mora aqui, aí ele arrumou a casa, a gente veiopagando aluguel. E assim que eles penhoraram bastante coisada Usina, venderam o que penhorou, aí venderam, pagaramele do tempo de serviço que ele trabalhou, aí a gente comproucasa aqui (Cida).

É assim que os municípios da região de Ibaté/SP, Araraquara/SP e SãoCarlos/SP surgem como alternativa de residência para tantas famílias de colonosexpulsos das terras, e para migrantes vindos dos Estados da região Nordeste dopaís para trabalharem nos canaviais e laranjais do interior paulista.

A principal diferença dos modos de vida dos sítios e roçados na regiãoNordeste em relação ao regime de colonato está no fato de que aqueles ainda seencontram presentes num espaço físico. Ou seja, muitas pessoas que migraramrecentemente para as cidades do interior do Estado de São Paulo ainda têmalgum vínculo com as regiões de origem: além dos valores culturais presentesnas formas linguísticas, certos costumes, formas de pensar e agir, as mulheres eos homens mantêm ligações com aqueles locais porque em alguns casos ospais, parentes, amigos e até mesmo as terras e casas ficaram para trás. Assim, oretorno apresenta-se na maioria das vezes como uma possibilidade constante.

As narrativas de mulheres que viveram nos roçados e terras na regiãoNordeste apontam para a prática de “colocar roça” e “colocar negócio” nasfeiras. Essas vivências também permitiam o emprego do trabalho familiar, assimcomo nas colônias. A narrativa de Cleusa, especificamente, nos mostra a situaçãode escassez de terras e da baixa produtividade das mesmas. Ela morava etrabalhava com a família nas terras que eram de seu pai e de sua mãe. Em razão

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da pouca quantidade de terras cultiváveis disponíveis, a família e ela arrendavama terra de outras pessoas. Havia uma variedade de cultivos nas terras da famíliae nas terras arrendadas.

Cleusa – A gente plantava feijão, mandioca, milho. Verdura...quando assim, no baixo, a gente plantava verdura. Tinha caju,a gente cultivava café. Essas coisas... gado, que eles criam lá,porco, galinha, essas coisas, assim.Juliana – E na terra dos outros também tinha?Cleusa – Também. Na terra dos outros a gente plantava maisassim, mandioca, feijão, milho para cultivar... Dois anos,arrendava dois anos. Aí depois que a gente cultivava, aíplantava capim para os fazendeiros, era assim. (Cleusa)

Além das atividades relacionadas ao cultivo da terra e criação deanimais, a família também botava negócio na feira:

Cleusa – Eu, mesma, eu e minha irmã, a gente vendia verdurana feira. A gente trabalhava na roça do meu pai até numaquinta-feira. Aí na sexta a gente colhia as verduras que agente... verdura, farinha que fazia, aí a gente levava no sábadopara a feira. A gente vendia na feira todo sábado. A gente saíade casa duas horas da manhã.Juliana – Era muito longe, a feira?Cleusa – Não que era longe, é que, por exemplo, até era decaminhão, aí em cada sítio, o caminhão passava para pegar agente. Aí tinha que estar lá pelo menos quatro horas da manhãporque algumas coisas que não tinha, aí tinha que comprar noCeasa para revender. Aí demorava. A gente saía de casa duashoras... até passar em cada lugar, aí demorava, que era umsítio, a estrada é ruim, cheia de buraco, aí, vixe! (Cleusa)

As dificuldades encontradas na comercialização do produto não seencerram na questão da precarização das formas de transporte dos alimentos.Para Cleusa, a maior dificuldade está, mesmo, na baixa quantidade de rendaobtida a partir da venda:

Cleusa – Lá em Pernambuco, o que a gente cultivava nãocompensava porque tinha que vender tudo barato. Uma vezmeu pai vendeu 18 sacos de feijão para comprar uma televisão,na época.Juliana – Daqueles grandões?Cleusa – Daqueles de 50 quilos. 58... 60 quilos. Para compraruma televisão. Olha, quanto que a gente trabalhou! Em que?Em seis pessoas, em um ano. O que a gente trabalhou em umano para comprar uma televisão. Imagina! Em seis pessoas, o

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quanto que a gente trabalhou! O que desanimava lá era issoporque a gente trabalhava tanto. Igual, fazer farinha – a gentefazia, assim... [pausa para reflexão] para fazer um saco defarinha em cinco, seis pessoas vai dois dias para fazer umsaco de 60 quilos de farinha, 50, 60 quilos de farinha, demoradois dias. Então, a gente perdia todo esse tempo para que?Agora, há dois meses atrás eu fui lá, eles vendiam a 20 reais.[...] Não compensa. (Cleusa)

Essa dificuldade na comercialização trata-se, também, da representaçãofeita por Cleusa acerca da relação atual que ela estabelece com o fruto de seutrabalho, no caso – a renda. São novas formas de valorização do trabalho e dasatividades realizadas nas terras de plantio e cultivo que vão ganhando força.Enquanto isso, perde-se parte da condição camponesa, que era a representaçãoda terra enquanto um valor-de-uso, e não enquanto um valor-de-troca. Nanarrativa de Cleusa, fica evidente que a forma com que ela representa a terra eos produtos daí advindos passam pelo valor-de-troca: o produto de um ano todoque lhes rendeu somente o valor de uma televisão, ou a terra que poderia servendida para a compra de uma casa.

No seguinte trecho é possível observar a atual percepção sobre osusos da terra:

Quer dizer, se eu morasse lá eu não teria nem uma casa! Eutinha, assim, uma casa dos projetos que o Governo deu, e só.Hoje em dia, eu acho, que pelo tempo que eu estou aqui, pelopouco tempo, quer dizer, com pouco tempo que eles estão lá,eu tenho mais coisas do que ele, mais valorizados que elesque moram lá porque terra lá não tem valor, também. Terralá não é valorizada. A terra que meu pai tem lá, se derpara comprar uma casa aqui é muito. Se der! Porque é muitobarato a terra lá. É, pode até ser, até dá, dá, mas só. Tem tantaterra, mas não serve para nada. É por isso que eu falo paraeles que eu não quero nada de lá. Não por orgulho porque...Eu falo assim, a parte que era para eles me darem, deixa parameus irmãos, para eles lá. Eu tenho trabalho, eu trabalho(Cleusa).

Destacamos em negrito os fragmentos que demonstram a representaçãoda terra como um valor-de-troca, como um distanciamento que leva à negaçãodo significado simbólico da terra. Estes novos significados são construídos apartir da vivência atual de Cleusa, qual seja: a forma do trabalho inserido naprodução capitalista, na qual as relações são mediadas pelo dinheiro. Portanto,é assim que ela mede a terra e os produtos daí advindos, em termos do valor queestes podem gerar para si e seus familiares.

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Para além das idas e vindas nos espaços físicos, há transformações nosmodos de vida quando consideramos esse movimento realizado pelostrabalhadores e famílias – seja no caso dos antigos moradores das colônias, oupara aqueles que realizaram o movimento migratório. Os modos de vida dacolônia, terras e roçados não são abandonados tão facilmente ou deixados paratrás. Muitas famílias tentam revivê-los, seja por meio de falas, hábitos, ou aindade gestos e práticas cotidianas.

Outra vivência que une as trajetórias de Cleusa, Cida e Andréia é oassalariamento rural. Esse processo evidencia a transformação nas formas detrabalho, já não mais familiares, agora, individualizadas. No interior de SãoPaulo tal mudança é um dos aspectos relacionados à transição da “civilizaçãocafeeira” para a “civilização da usina” que se deu no interior do Estado de SãoPaulo (SILVA, 1999). Silva nos mostra que a reestruturação não se deu apenasna esfera econômica, mas também nas relações sociais e culturais no campo ena cidade, produzindo uma nova “leitura do espaço”:

O traço mais marcante desta nova ‘leitura do espaço’, no to-cante ao campo, foi o desaparecimento da paisagem e do habitatda civilização cafeeira. Percorrendo os milhares de hectarescobertos por canaviais nesta região, percebe-se, tão-somente,a uniformidade e homogeneidade da mesma paisagem. Mui-tas das antigas sedes de fazendas desapareceram. Outras trans-formaram-se em alojamentos para os trabalhadores, proveni-entes de outras regiões (SILVA, 1999, p. 222).

Esta nova paisagem formada pelos imensos canaviais do Estado de SãoPaulo é o cenário que esconde as distintas temporalidades e espacialidadesrepresentadas pelas experiências de trabalhadoras e trabalhadores responsáveispelo corte de cana-de-açúcar no Estado responsável por aproximadamente 60%do total de cana produzida no país.

Em razão das alterações na forma de remuneração dos trabalhadores, quecomeçam a receber de acordo com a produtividade do dia, criam-se formas deregulação do trabalho, uma delas é manifestada na figura do feitor, o fiscal quevigia a turma, geralmente a mesma pessoa que leva os trabalhadores até o eito eque mede a produção de cada um. Além da vigilância do fiscal, o novo processoprodutivo que impõe regras e normas que fazem com que o trabalhador não seaproprie do produto de sua tarefa, também cria formas de controlar a produtividadee cada trabalhador (SILVA, 1999, p. 110). A hierarquia constituída pelo trabalhador-fiscal-patrão produz e reproduz os mecanismos de dominação que fazem comque a intensidade das atividades no corte de cana seja cada vez mais profunda.

O mecanismo de controle externo acaba sendo introjetado pelopróprio trabalhador, de tal forma que ele se transforma emautocontrole, deixando de ser um controle de atos para ser do

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próprio indivíduo. Isto é conseguido por intermédio da formade pagamento (por tonelada) e também pela concorrência ve-lada que se estabelece entre os trabalhadores, diferenciando-os, hierarquizando-os. Produz-se, assim, a figura do “bomcortador de cana” (SILVA, 1999, p. 202).

Esse processo em que o trabalhador é despersonalizado e apagado frenteao processo de produção tem como consequência o sofrimento diário dotrabalhador que tem suas condições de trabalho violadas. Antes de ser apagadodiante do trabalho, no entanto, o trabalhador tem sua experiência utilizada emproveito da empresa. Ou seja, muitas vezes a vivência como trabalhador agrícola– seja aqueles que viveram em colônias e trabalharam nas roças de subsistênciae colheita de café, ou aqueles sitiantes com experiência no tratar com a terra,todas essas disposições culturais incorporadas pelos trabalhadores etrabalhadoras eram vantajosas economicamente para os empregadores, namedida em que se eliminavam os gastos com o treinamento e adaptação àsatividades nas áreas rurais (CAÍRES, 2008, v. 1, p. 169-170).

Notamos que a mesma experiência é aproveitada quando as mulheresprocuram emprego no abatedouro de frangos, que exige um intenso uso da forçafísica. Durante a entrevista de admissão na empresa, um ponto “positivo” paraser aceita no trabalho de abate é ter exercido atividade no corte da cana e colheitada laranja, pois o trabalho no interior do abatedouro é apresentado como umatarefa “muito puxada”.

Entendemos que a experiência em atividades realizadas nos espaços docampo4 é usada em proveito do serviço realizado no interior do abatedouro. Aspráticas corporais e psíquicas adquiridas, por exemplo, nas jornadas estafantesnos eitos dos canaviais são “aproveitadas” para o serviço na linha de produçãodo abatedouro, que requer tanta rapidez e força como a realização do corte decana. Recorremos ao conceito de habitus proposto por Bourdieu (2007, p. 191)para elucidar a questão e compreender o modo pelo qual essas práticas vãosendo incorporadas. O autor nos mostra que habitus se refere a um

Sistema das disposições socialmente constituídas que, enquantoestruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princípiogerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologiascaracterísticas de um grupo de agentes. Tais práticas e ideolo-gias poderão atualizar-se em ocasiões mais ou menos favorá-veis que lhes propiciam uma posição e uma trajetória determi-nadas no interior de um campo.

Tais práticas se atualizam e entram em jogo quando as mulheresprocuram o emprego no abatedouro de frangos. Podemos pensar ainda no

4 Atividades como o corte de cana-de-açúcar, colheita da laranja, plantio de eucalipto, colheita da“bituca” da cana.

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esquema de autocontrole (ELIAS, 1990, v. 2) para compreender a interiorizaçãodas formas de dominação e exploração das mulheres trabalhadoras nos diferentesambientes de trabalho. Norbert Elias (1990, v. 2, p. 259) nos mostra que existemesquemas de comportamento “[...] inculcados no indivíduo desde a infância,como uma espécie de segunda natureza, e [...] nele são mantidos alerta por umpoderoso controle social com uma organização cada vez mais estrita.” Oautocontrole é estabelecido por meio de um sistema de modelação social peloqual o indivíduo é habituado a uma constante contenção. Com isso, forma-seum sistema estável de autocontrole que passa a operar, na maioria das vezes, deforma automática. Percebe-se, então, que os corpos e a estrutura psíquica dasmulheres trabalhadoras vão sendo moldados socialmente para que suportem aintensidade das tarefas realizadas. O “treinamento” desenvolvido ao desferiremmilhares de golpes de facão no eito do canavial é “aproveitado” quando sãocontratadas pelo abatedouro de frangos e precisam executar a atividade no ritmointenso das máquinas na linha de produção.

Notamos, com isso, a dupla passagem que se realiza na trajetória laboraldas mulheres: primeiramente, a experiência do trabalho familiar nas colônias enas pequenas propriedades é aproveitada para a realização do corte de cana; nomomento posterior, as práticas e estruturas psíquicas desenvolvidas no corte decana são utilizadas como um saber para a realização das atividades no interiordo abatedouro.

Nesse percurso de realização de uma variedade de tarefas percebe-se, então,a transitoriedade de atividades realizadas pelas mulheres entre os espaços rurais eurbanos: elas passam do trabalho no corte de cana e colheita da laranja para o interiordas fábricas em um curto período de tempo. Para adentrar o espaço do abatedouro defrangos, a qualificação exigida não diz respeito ao nível de escolarização, mas à“aptidão” adquirida nas intensivas jornadas nos canaviais ou laranjais. Assim, doponto de vista dos empregadores do abatedouro, a experiência das mulheres nasatividades rurais não é vista como uma limitação ou depreciação, mas antes de tudocomo uma forma de perceber se as trabalhadoras estão prontas para enfrentar avelocidade da máquina e a intensidade da tarefa realizada no abatedouro.

Considerações FinaisProcuramos apresentar, por meio de instrumental metodológico (as linhas

de trajetória), trajetórias laborais femininas que evidenciam uma diversidadede experiências, como o processo de expulsão das famílias do campo, oassalariamento rural e a mudança para a cidade, e a precarização de atividadesque marcam as tarefas realizadas pelas mulheres no campo e na cidade.

Tais considerações também nos fazem refletir sobre a não dicotomia entreos espaços do campo e da cidade, no sentido de que os modos de vida ligados aesses espaços físicos e sociais se entremeiam.

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AS CONDIÇÕES DE VIDA E TRABALHO DASTRABALHADORAS RURAIS USUÁRIAS DAPOLÍTICA MUNICIPAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL DEALTINÓPOLIS/SP

Cassiana Araújo Cutódio1

IntroduçãoEste estudo objetiva analisar a influência das questões de gênero e da

questão agrária nas condições vivenciadas pelas mulheres trabalhadoras ruraisusuárias da Política Municipal de Assistência Social no município deAltinópolis/SP.

O interesse pelo tema está relacionado ao estágio realizado, no períodoentre março de 2009 e dezembro de 2010, no Centro de Referência de AssistênciaSocial (CRAS) de Altinópolis/SP, onde foi possível perceber que a grande demandada Assistência Social do município é constituída por mulheres trabalhadoras rurais.Foi perceptível que a demanda pela Assistência Social aumenta entre os meses deoutubro e março, ou seja, o período da entressafra, quando grande parte dostrabalhadores rurais do município encontram-se desempregados.

A importância deste estudo é que ele permitirá relacionar gênero eclasse e destacar para o serviço social a importância desta correlação naformatação daquilo que se configura como questão social em seu cotidianode trabalho. A economia, do município estudado, é essencialmente agrícola,por isso, faz-se necessária uma análise por parte dos profissionais de ServiçoSocial voltada para a questão agrária como sendo também parte de seucotidiano profissional. A questão agrária determina a demanda recorrente aoServiço Social, devido à contradição posta pelo modelo de desenvolvimentoagrário (SANT’ANA, 2005).

Através de uma apreensão da realidade numa perspectiva de totalidade porparte dos profissionais de Serviço Social, ou seja, perceber os usuários não comoexcluídos, mas percebê-los enquanto sujeitos, trabalhadores, inseridos em umcontexto social, será possível ao Serviço Social se comprometer com a liberdadedos sujeitos, com a garantia dos direitos sociais e com a construção de uma novaordem societária sem dominação de classe/ gênero ou etnia.

Para a compreensão da realidade singular da temática estudada,apresentar-se-á brevemente o processo de modernização da agricultura quedesencadeou a expropriação dos trabalhadores na sua condição humana e detrabalho, assim como, a inserção das mulheres no campo de trabalho para agarantia da subsistência familiar.

No desenvolvimento deste estudo será apresentada a pesquisa de camporealizada, com seis trabalhadoras rurais usuárias da Política Municipal de1 Assistente Social. E-mail: [email protected]

CAPITULO 22

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Assistência Social, residentes no município de Altinópolis, com o objetivo deapreender as condições que são vivenciadas por estas mulheres e o impacto daPolítica Municipal de Assistência Social em suas vidas.

Os sujeitos da pesquisa são beneficiarias do Programa Estadual RendaCidadã, visando a compreensão do impacto da Política de Assistência Social navida das trabalhadoras rurais. O local da pesquisa, foi definido a partir de umaconsulta aos cadastros para inserção no Renda Cidadã, onde foi possívelconstatar que a maioria das beneficiárias residiam na área de abrangência daUnidade Básica de Saúde (UBS) Santa Cruz, sendo assim, esta definida comolocal da presente pesquisa.

As entrevistas com as trabalhadoras rurais foram realizadas em suasresidências e gravadas em aparelho de áudio, mediante a autorização destas. Napesquisa foram analisadas questões relativas ao trabalho, lazer, saúde, gênero,sonhos e assistência social.

O processo de modernização da agricultura e as questões de gêneroA modernização da agricultura desenvolve-se em função do mercado

exterior e dos complexos agroindustriais. Este se resume basicamente na inserçãode tecnologias, visando o aumento da produtividade, e conseqüentemente oaumento dos lucros.

A partir da década de 1960, ocorreram modificações no modelo fundiárioe nas relações de trabalho. Alguns fatores foram determinantes para estasmudanças: o processo de modernização da agricultura no Estado de São Paulo,a implantação do Estatuto do Trabalhador Rural (ETR), em 1963; o Estatuto daTerra (ET), em 1964; a Lei n.5.889, em 1973; a Lei n.6.019, em 1978 e oProálcool em 1975, foram determinantes para as modificações no modelofundiário e nas relações de trabalho.

No processo de modernização da produção agrícola os trabalhadoresrurais se vêem ameaçados, pois as máquinas por serem consideradas maisprodutivas e menos onerosas passam a exercer as funções que antes eramdesignadas a estes trabalhadores.

Através deste processo não só os trabalhadores se viram ameaçados,também os pequenos produtores rurais sofreram com este processo, pois nãopossuíam capital para adquirir as máquinas para acompanharem o processo demodernização da agricultura. Estes passam a se endividar para a obtenção demaquinário, porém não conseguindo arcar com estas dívidas, pois os juros eramaltíssimos e não podendo fazer frente aos grandes latifundiários, grande partedesses produtores acabam por perder suas propriedades, tendo que sesubmeterem também ao trabalho assalariado.

A partir do processo de transformação do modelo fundiário brasileiro,os trabalhadores rurais que eram antes essencialmente moradores das fazendas

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e tinham um vínculo com a terra, agora se encontram em uma situação ondeeram obrigados a deixarem o campo e migrarem para as cidades.

No município de Altinópolis a situação não foi diferente: ostrabalhadores que antes eram acostumados, ao sistema de colonato nas fazendasde café, agora são obrigados a se submeterem ao trabalho informal e a deixar asfazendas para migrarem para a cidade, a qual não possuía estrutura para recebertoda a demanda de migrantes.

Os trabalhadores rurais ao migrarem para as cidades encontram umarealidade totalmente diferente da que eram acostumados, provocando umestranhamento social e cultural. As famílias agora teriam que arcar com gastos maisonerosos com alimentação, pois não possuíam mais a roça de subsistência, além degastos com aluguel, água, luz. Estes não foram expropriados apenas enquantotrabalhadores, mas também na sua condição humana, pois estavam lhe sendo“roubadas” as possibilidades de prover as condições mínimas para sua subsistência.

A nova realidade, que lhes era apresentada fazia com que as famílias tivessemque ir se modificando. O trabalho que antes possuía como referência a figuramasculina de provedor, apesar de ser realizado por toda a família no sistema decolonato, passa a ser responsabilidade de todos.

De acordo com Saffioti (1987, p. 8) assim como são atribuídos papéisao homem, estes também o são às mulheres. Enquanto esta tem que exercer seupapel de mãe e esposa, ao homem cabe o papel de provedor do sustento familiar:“A identidade social da mulher, assim como a do homem, é construída atravésda atribuição de distintos papéis, que a sociedade espera ver cumpridos pelasdiferentes categorias de sexo.”

Através das características socialmente construídas, que foram sendoembutidas nos papéis de homens e mulheres, como se fossem da sua próprianatureza, cria-se um estereótipo do que seria o ideal, ou seja, o homem ideal ea mulher ideal. O homem ideal seria aquele que prove o sustento familiar,exemplo de força e virilidade, já a mulher para atingir o tipo ideal teria queassumir o seu papel de mãe, educando os filhos, cuidando do lar e sendo sempresubmissa ao esposo.

Por toda a representação que existe dos esteriótipos feminino emasculino para a sociedade, torna-se tão complicada a inserção da mulher,enquanto ser individual e não mais aclopada a figura do marido e do pai, nomercado de trabalho. A mulher já estava socialmente caracterizada pela ideologiada “inferioridade”.

Ao peso de toda esta ideologia, juntou-se o fato de que a mulher por tersido absorvida pelo ambiente doméstico, por não ter tido oportunidades, nãoobtia a habilitação para o exercício de outras funções.

Algumas mulheres, pertencentes a classe trabalhadora, conseguiramemprego como domésticas, enquanto grande parte foi obrigada a recorrer ao

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trabalho rural informal para complementar e garantir meio de subsistênciafamiliar.

De acordo com Saffioti (1987, p. 15): “Na mera qualidade de ‘ajudante’,à mulher se oferece um salário menor, ainda que ela desempenhe as mesmasfunções que o homem.” Mesmo conseguindo trabalho no meio rural as mulherese exercendo as mesmas atividades que os homens, são consideradas comoinferiores, frágeis. Esta inferioridade e o fato de estas estariam trabalhandopara ajudarem seus maridos ou pais, justificaria os baixos salários.

Nas novas condições impostas pelo assalariamento, a atividade ruralque se tornou precária para o homem, porém tornou-se ainda mais árdua eesporádica para a mulher, pois, seu trabalho era carregado de preconceitos ediscriminação.

Neste contexto, as mulheres convivem intensamente com as diversasmanifestações da questão social, como: pobreza, desemprego, violência,preconceito, falta de moradia, dentre muitas outras.

Desde o processo forçado de migração do campo para a cidade, até aatualidade, os trabalhadores, assim como as trabalhadoras rurais, continuam sofrendocom a precarização das relações de trabalho e com as condições, por muitas vezesindignas, de sobrevivência nas cidades.

A situação feminina, enquanto trabalhadoras rurais agrava-se, quandoo trabalho é sazonal, pois na entressafra, ou seja, entre os meses de outubro emarço, que estas e seus familiares, trabalhadores informais, param de realizaros serviços rurais e perdem os meios de garantir a subsistência familiar, tendoentão que recorrer aos recursos oferecidos pela Política de Assistência Social.

A pesquisaEssa pesquisa com as trabalhadoras rurais2 constitui-se, a partir do método

do materialismo histórico dialético, pois, por meio dessa perspectiva entende-seque é preciso compreender a realidade para além da impressão imediata, porquantoas situações e as relações sociais apresentam-se na sua imediaticidade, de modo anão apresentar sua essência. O materialismo histórico dialético, entende a realidadecomo uma construção, ou seja, um processo e se compõe de movimento. Portanto,a busca pela essência, pressupõe acompanhar o movimento da realidade. E poressa realidade estar em permanente construção e movimento é então passível detransformação. Como ressalta Kosic (1976, p. 16-17):

2 A presente pesquisa foi apresentada no Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado à Faculdadede Ciências Humanas e Sociais, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, sob otítulo “ A influência das questões de gênero na vida das trabalhadoras rurais usuárias da PolíticaMunicipal de Assistência social de Altinópolis/SP, sob a orientação da Profa. Dra. Raquel dos SantosSant’Ana.

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[...] o homem, já antes de iniciar qualquer investigação, devepossuir uma segura consciência do fato de que existe algo sus-ceptível de ser definido como estrutura da coisa, essência dacoisa, “coisa em si”, e de que existe uma oculta verdade da coi-sa, distinta dos fenômenos que se manifestam imediatamente.

Na perspectiva de totalidade que o materialismo histórico dialéticoproporciona, compreende-se que é necessário conhecer os elementos quecompõem essa realidade, afinal, um fenômeno não pode ser explicado a partirde uma única variável, quando se pretende responder ao questionamento doque é a realidade concreta.

O local da pesquisa é a área de abrangência da Unidade Básica Saúde(UBS) Santa Cruz, no município de Altinópolis, que abrange três bairros: MoradaGabriela, Residencial Figueiredo Walter e Residencial Ulisses Guimarães.

A escolha do local deu-se pelo fato de que em 2009 iniciou-seatendimentos multidisciplinares (assistente social, estagiária de serviço social,psicóloga, médico, enfermeira, terapeuta ocupacional, fonoaudióloga,fisioterapeuta e educador físico)3, nas cinco Unidades Básica de Saúde domunicípio, e a partir desses atendimentos constatou-se que na área de abrangênciada UBS Santa Cruz reside grande concentração de trabalhadores ruraismunicipais. Anteriormente ao projeto multidisciplinar todas as famílias eramreferenciadas apenas no Centro de Referencia de Assistência Social (CRAS).

Em consonância com o objetivo geral da pesquisa, que se designa,analisar influência das questões de gênero nas condições vivenciadas pelasmulheres trabalhadoras rurais usuárias da Política Municipal de AssistênciaSocial no município de Altinópolis/SP, são sujeitos desta, mulheres trabalhadorasrurais e beneficiárias do Programa Estadual Renda Cidadã residentes nos bairrosabrangidos pela UBS Santa Cruz.

A escolha do Programa Renda Cidadã como auxiliar na delimitaçãodos sujeitos da pesquisa fez-se por ser objetivo específico da presente pesquisa,entender o impacto da Política Municipal de Assistência Social nas vidas dasmulheres trabalhadoras rurais de Altinópolis/SP.

Em uma primeira etapa foi realizada uma consulta, CRAS, aos 120cadastros das beneficiárias do Programa Renda Cidadã. A partir desseprocedimento foi possível contabilizar a presença de 36 beneficiárias residentesna área de abrangência da UBS Santa Cruz.

As beneficiárias foram contactadas por meio de correspondência,solicitando o comparecimento destas na UBS para a realização de umaatualização dos dados cadastrais. Das beneficiárias contactadas 24compareceram para a atualização e destas 11 se declararam trabalhadoras rurais.3 A autora deste trabalho, no período referente a pesquisa era a estagiária de Serviço Social quecompunha a equipe.

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Dentre as que compareceram e se declararam trabalhadoras, foramselecionadas, aleatoriamente, 6 beneficiárias para a realização da pesquisaqualitativa com o objetivo de apreender as condições que são vivenciadas porestas mulheres. Para esta etapa foi escolhida a pesquisa qualitativa, pois comonos mostra Gil (2006), esta tem por finalidade desenvolver, esclarecer e modificarconceitos e idéias, visando à formulação de problemas mais precisos para estudosposteriores.

Apresentação dos sujeitosA seguir, apresentar-se-á dados de caracterização dos sujeitos da

pesquisa, cuja as identidades serão mantidas em sigilo, sendo trocados seusnomes por um fictício.

Maria Aparecida, 38 anos, natural de Jardinópolis, estado de São Paulo,reside no município de Altinópolis há 20 anos, cursou até a 5ª série do ensinofundamental, reside em casa cedida com o companheiro, sua sogra, seu cunhado,com a filha e a enteada. Maria exerce atividades rurais desde os 12 anos,atualmente está trabalhando como safrista em lavouras de café, sem vínculoempregatício ou contrato.

Francisca, 44 anos, solteira, cursou até a 1ª série do ensino fundamental,natural de Centenário do Sul, estado do Paraná, reside no município há 10 anos.Francisca, nesta safra, está trabalhando em lavouras de café sem nenhum tipode vínculo empregatício; exerce atividades rurais desde os 12 anos. Esta reside,em casa financiada, com a nora e com a neta, o filho atualmente está cumprindomedida sócio-educativa na Fundação Casa.

Izaura, 56 anos, cursou até a 4ª série do ensino fundamental, reside nomunicípio de Altinópolis há 30 anos, sendo natural do município de Guardinha,estado de Minas Gerais. Izaura reside em casa própria com o companheiro etrês filhos, sendo que esta e o filho mais velho estão trabalhando, sem vínculo,como safristas em lavouras de café. Desde os 11 anos, Izaura, exerce atividadesrurais.

Ana Rosa, 33 anos, solteira, natural de Chapada do Norte, estado deMinas Gerais, reside no município há 7 anos. Reside em casa própria, com doisfilhos, a cunhada e o sobrinho. Ana, cursou até a 5ª série do ensino fundamental,exerce trabalhos rurais desde os 18 anos, atualmente trabalha registrada comosafrista, na lavoura de laranja.

Maura, 38 anos, casada, cursou até a 3ª série do ensino fundamental,natural de Cacolé, estado da Bahia, sendo que reside no município há 14 anos.Maura exerce trabalhos rurais desde os 7 anos, está trabalhando na lavoura decafé como safrista sem vínculo empregatício. Esta reside em casa própria como esposo e dois filhos.

Irene, 28 anos, casada, natural de Rondônia, cursou até a 4ª série do

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ensino fundamental, reside no município a 12 anos. Irene mora com o marido edois filhos, exerce trabalhos rurais desde os 13 anos; está trabalhando comosafrista na lavoura de café sem vínculo empregatício.

Das mulheres entrevistadas, apenas uma é natural do estado de SãoPaulo, mas não de Altinópolis. O tempo de moradia município está entre 7 e 30anos, exemplificando assim, o que nos mostra Silva (1999, p. 226): “Altinópolisnão é uma cidade dormitório [...]”.

As entrevistadas estão na faixa etária entre 28 e 44 anos, ou seja, emfase reprodutiva, com exceção de uma com idade superior a 50 anos.

TrabalhoSegundo Marx (2004), o trabalho tem um papel central na sociedade.

Através da relação proporcionada pelo trabalho, entre o homem e natureza, seproduz a cultura e se funda a história. Por meio do trabalho o homem exerce suacapacidade teleológica, ou seja, a capacidade de premeditar o produto final aser obtido através do seu trabalho.

Por meio da perspectiva dialética apreende-se, porém a existência deduas formas de trabalho: o trabalho concreto, ou seja, aquele que proporciona odesenvolvimento do ser social e o trabalho abstrato, aquele com valor de troca,produtor de mercadorias, marcado pela alienação4. Nos depoimentos de todasas entrevistadas tornou-se evidente o caráter alienante do trabalho rural.

De modo geral, as mulheres entrevistadas relataram que tiveram queparar os estudos para trabalhar, a fim de ajudar a família, tendo assim quecomeçar a trabalhar ainda na infância, ou, logo no início da adolescência, sendoque nenhuma das entrevistadas conseguiu concluir o ensino fundamental.

Maria Aparecida, uma das entrevistadas que concluiu a 5ª série relataque isso só foi possível na idade adulta e mesmo assim não pode continuardevido ao cansaço do trabalho rural e ao fato de ter que cuidar da filha pequena.

[...] ó eu fiz até a 5ª série completa, ai depois eu comecei fazero supletivo, como ela (Mariana) era pequena eu tive que sai, aieu terminei. Quando foi pra sexta série eu parei, tive que pa-rar! Porque tinha que trabalha, né. Então tinha que cuidar delatambém, que era pequenininha, então parei de estudar. E euestudava a noite também, chegava do serviço meio cansada(MARIA APARECIDA)

Assim, por terem pouca escolaridade, estas só conseguem atividadesremuneradas rurais, pois, devido ao fato de Altinópolis ser um município pequeno

4 A alienação deriva da apropriação do excedente (produzido pelos trabalhadores) por aqueles quedetêm os meios de produção, pela divisão social do trabalho e separação do produto dos seus produtores,mas, sobretudo, das relações sociais, político- institucionais e culturais, estabelecidas pelo sistemacapitalista. (LOURENÇO, 2009, p. 36).

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não apresenta grande demanda para trabalhos domésticos5. A dificuldade deencontrarem outros trabalhos além do rural está presente no depoimento deFrancisca: “É muito difícil trabalho! Só agora na panha, tem que aproveitaagora!”.

O trabalho rural assalariado mesmo sendo desgastante, difícil,desumano, torna-se, em um município essencialmente agrícola, comoAltinópolis, a única forma de sobrevivência para estas trabalhadoras. A maioriados trabalhos rurais são ofertados apenas no período da safra, sendo assim, norestante do ano estas ficam, em grande parte, desempregadas.

As jornadas extensas de trabalho, a locomoção em veículos precários,o horário incerto de almoço incerto, sendo este de no máximo 30 minutos erealizado na sombra, ou até mesmo em exposição ao sol e os esforços subumanospara conseguirem o mínimo para a sobrevivência familiar devido o pagamentopor produção, tornam-se evidentes nos depoimentos:

Depende pra onde você vai, se você for pra muito longe, eu jáfui até pra lá de Paraíso panha café, chegava sete oito horasda noite em casa, tem vez que eu não via a minha filha, nãovia ela acordada eu chegava e ela tava dormindo. É longe,depende do quanto você tira. Tinha vez que contando com oônibus, eu saia seis da manhã e chegava às oito horas da noiteem casa. (MARIA APARECIDA)

Ônibus. Cheio de poera, enche de poera. Aqueles ônibus tudovelho, os bancos tudo estragado, aquele barulhão de lata. Vaigente em pé no ônibus, mas tem dia que falta muito, mais éna segunda-feira que o povo falta, mas vai lotado, vai cheiosim, mas não é direto lotado. (IRENE) (grifo meu)

A gente chega lá de manhã começa panha café. Ali pelas dezhoras a gente para pro almoço, né. O almoço, quando a gente tapanhando café, a gente num faz hora não, é no máximo trintaminutos. A gente almoça numa sombra ali mesmo e depois agente já volta a trabalha de novo. (IZAURA) (grifo meu)

Foi perceptível na pesquisa que o trabalho rural, enquanto trabalhoreificado, é carregado de muito sofrimento, desgaste físico. Assim como evidenciaLourenço (2009, p. 38):

O trabalho potencializador do ser genérico passa a ser instru-mento da aquisição de mais valia por parte daquele que com-pra a força de trabalho e fonte de sofrimento dos sujeitos quetêm que se subordinar às relações assimétricas, autoritárias e,por vezes, forçadas de trabalho.

5 As atividades domésticas é outro lócus de trabalho para quem tem pouca escolaridade.

7

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Exemplo claro, do sofrimento vivenciado pelas trabalhadoras, é odepoimento de Maria Aparecida: “Você sofre! Acaba com a gente! Envelhececedo, mulher que trabalha na roça envelhece cedo!”. (grifo meu)

GêneroAs questões de gênero são muito presentes nos depoimentos, mesmo

que por muitas vezes as entrevistadas não tenham a percepção disto.Todas as entrevistadas são as responsáveis pelos afazeres domésticos e

pelas refeições familiares, sendo assim, além de todo o desgaste do trabalhorural, estas mulheres ao chegarem em casa, continuam trabalhando.

Eu cozinho, só eu! Então eu não durmo depois, eu passo dascinco horas até as dez horas da noite eu to acordada. Eu nãotenho tempo pra mim. O tempo que eu tenho é pra cuidar dela[referindo-se a filha] e fazer o que eu tenho de fazer. A janta oalmoço essas coisas eu tenho de fazer (MARIA APARECIDA).

Além da dupla jornada de trabalho, ainda encontra-se presentes nosdepoimentos, as agressões e as discriminações referentes às questões de gênero:

Em um trabalho que eu tava, já tive sim. Só que eu levei prafrente, num deixei a batata assar não, eu briguei mesmo, va-mos dizer assim eu desci do salto. Um homem né, que era ofiscal, ele se achava que era o fiscal, porque trabalho de roça éum trabalho cansativo. Então, tem sempre um lugarzinho quea gente passa e não vê, às vezes tem um mato então, a gente tacansado passa e não vê, é na onde que vai chama a atenção dagente na frente da turma, pra mostra que ele é o fiscal, que elemanda. Então, o que eu fiz, eu cortei o barato, eu já desci dosalto, já comecei a xingar, xinguei mesmo. Como até hoje, doserviço que eu sai, todas as mulheres foram mandadas embo-ra, não quis mais nenhuma mulher trabalhando lá, é numa fa-zenda aqui perto, tirou todas as mulher (MARIAAPARECIDA).

Só uma vez, né! O cunhado da minha filha me deu um soco noolho. Eu fui lá chamar ela pra me ajuda a ir ver meu filhoporque eu num tenho leitura, ele não gosto e começou a brigarlá e acertou um soco em mim, desmaiei. (FRANCISCA).

Foi perceptível, através dos depoimentos das entrevistadas que asquestões de gênero estão presentes em suas vidas, através das discriminações,violências, da dupla jornada de trabalho, da falta de tempo pra si e para suafamília, dentre outras conseqüências que a vigência desta sociedade patriarcaltraz para suas vidas.

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SaúdeO trabalho rural, exaustivo e desgastante, no qual os trabalhadores

buscam ir além de seus limites físicos para garantirem o mínimo para asobrevivência, faz com que estes sejam vulneráveis a enfermidades. Assim comonos mostra Lourenço (2009, p.38): “O trabalho é o elemento central da nossavida, da organização social. Contudo, do modo como ele está organizado temsido o responsável por muitas enfermidades.”

Nossos sujeitos evidenciaram, em seus depoimentos, questõesrelacionadas ao prejuízo à saúde. Dentre os problemas mais citados estão: alergia,dores no corpo, depressão, hipertensão, varizes, enxaqueca.

Eu tive um problema de alergia, entrei em depressão, tive quetomar remédio controlado, ainda to tomando ainda, mas, ago-ra eu não to mais assim, já to mais controlada, mas eu tiveproblema, a pressão baixava, caia muito (MARIAAPARECIDA).

Eu tenho varizes, problema de rins também, quando ataca eufico ruim. Eu tenho enxaqueca também (ANA ROSA).

Minha pressão tava muito alta. Eu tinha muita dor de cabeça,bursite e dor nas pernas. Eu tenho muita dor na coluna(FRANCISCA).

Através dos depoimentos, foi possível constatar que apesar de todas asentrevistadas, terem problemas referentes à saúde, apenas uma realizavatratamento médico. As entrevistadas justificaram a falta de tratamento ao fatode não poderem faltar ao trabalho, com isso estas se auto-medicavam.

O trabalho rural, no qual os trabalhadores buscam ir além de seus limitesfísicos, ocasiona um processo de adoecimento. As mulheres entrevistadas, nãopossuem vínculo empregatício, ou seja, quando adoecem não possuem direitosgarantidos.

Os depoimentos das trabalhadoras nos mostram grande deterioração dasaúde provocada pelo trabalho desgastante, por irem além de seus limites físicospara garantirem a sobrevivência familiar.

Lazer e SonhosFoi perceptível, através dos depoimentos que as mulheres entrevistas

gozam de poucas opções no que diz respeito ao lazer. Foram citadas as seguintesatividades como sendo parte do lazer familiar: assistir televisão, visitar parentes,ficar em casa, conversar com vizinhos.

Quando eu to em casa com as meninas, a única coisa que agente vai fazer é assistir filme junto. Tem vez que nós vamosna casa da irmã dele que mora em Ribeirão, ou se não, eu vou

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na minha mãe, tem vez que a gente não quer sai, quer passar odomingo em casa, então a gente fica em casa (MARIAAPARECIDA).

Eu fico assistindo televisão, converso com as vizinhas, dis-traio um pouco (FRANCISCA).

De acordo com Sant’Ana (2009, p. 114) o tempo livre dos trabalhadoresrurais é utilizado para a reposição de forças para reiniciar os trabalhos:

O dia de descanso deste trabalhador é utilizado para repor suasenergias para que possa de novo voltar ao trabalho. Quandoindagados sobre o lazer, a maioria das falas aponta que o tem-po de lazer é o tempo de descanso do corpo e que não têmânimo para fazer quase nada, além disto.

Algumas relataram não terem tempo para o lazer, pois quando não estãotrabalhando “na roça” estão realizando os trabalhos domésticos.

Com relação aos sonhos e planos para o futuro, observa-se que asexpectativas das mulheres entrevistadas giram em torno dos filhos e de suas moradias:

O meu sonho em primeiro lugar, eu queria arrumar um serviçopro meu filho na cidade, porque ele fez o colegial tudo sabe?E de repente trabalha na roça é tão triste, né? Então é isso queeu quero, em primeiro lugar o meu sonho é esse, eu não queromuita coisa, só quero um emprego pra ele. Porque tendo umemprego pra ele, ele pode fazer as coisas dele, as coisas queele quer né? Coitadinho! Ele ficando dependente da gente elenão pode fazer muita coisa (IZAURA).

Vixe! Eu nem sei é difícil! Eu quero aumentar minha casa, euqueria aumentar a minha casa, mas nem sei quando vai dar.Meu sonho é aumentar, fazer uma cozinha. Quita ela também,porque paga também não é fácil, você ainda fica assim porqueé uma prestação do que é seu, é melhor que aluguel, mas éruim também,eu tenho vontade de quita pra não ter essa dívi-da (ANA ROSA).

No decorrer das entrevistas, foi perceptível, que a mulheres entrevistadasalmejam condições melhores de vida, sendo efetivados seus direitos sociais,como: a educação, a moradia, etc. Ou seja, estas mulheres almejam condiçõesdignas de sobrevivência para elas, para seus filhos e familiares.

Assistência SocialApesar dos avanços, que a Assistência Social obteve no campo dos

direitos, ainda, constantemente é entendida como filantropia, como caridade,refletindo o caráter assistencialista embutido ao seu processo histórico. Exemplodisto é a freqüência em que a palavra ajuda é citada nos depoimentos. Observe:

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Quando eu precisei, eu tive ajuda. Eu vim aqui, eu tive ajuda.Ninguém me virou à costa, porque eu achava que as pessoasiam me vira as costa. Então, eu num tenho do que reclama,daqui eu não tenho do que reclama, quando eu precisei, euvim aqui e me ajudaram, entendeu? Pra mim ta muito bom(MARIA APARECIDA) (grifo nosso).

A assistência ajuda em muita coisa, ajuda nas horas necessá-rias, nas horas que a gente precisa. A gente precisa de um re-médio, fralda, qualquer coisa que a gente precisa, alimenta-ção. Ajuda muito! (FRANCISCA) (grifo nosso).

No município de Altinópolis, por sua economia ser essencialmenteagrícola, no período da entressafra, entre os meses de outubro e março, a procurapela Assistência Social aumenta, pois é neste período que grande parte dosmembros do núcleo familiar ficam desempregados. Observe o relato de Maura:

Eu, meu marido e meu filho deve dar quase três mil. Na pa-rada quando aparece trabalho eu trabalho, se não é só meumarido, deve tira uns oitocentos, porque nessas paradas eletrabalha de pedreiro. (MAURA) (grifo nosso)

Apesar da Assistência Social, por muitas vezes ser vista como ajuda,torna-se o único meio de acesso aos direitos sociais.

A assistência ajuda em muita coisa, ajuda nas horas necessá-rias, nas horas que a gente precisa. A gente precisa de um re-médio, fralda, qualquer coisa que a gente precisa, alimentação(FRANCISCA).

A assistência, que por muitas vezes é a única maneira encontrada, pelasclasses trabalhadoras para terem acesso aos direitos sociais, é contraditória,pois, esta tanto pode contribuir para a emancipação dos sujeitos, como podereforçar sua condição de subordinação (YASBECK, 2007).

Pôde se perceber, por meio dos relatos dos sujeitos da pesquisa que aAssistência Social, devido ao seu processo histórico, ainda é vista como caridade,benevolência e não como direito. No município pela ausência de demanda paraoutros tipos de trabalhos, além do rural, esta se torna o meio de sobrevivênciano período da entressafra para o núcleo familiar das entrevistadas.

Considerações finaisEste estudo buscou analisar as influências das questões de gênero na

vida das trabalhadoras rurais usuárias da Política Municipal Assistência Socialde Altinópolis/ SP.

Para dar visibilidade à problemática estudada procurou-se mostrarquestões referentes ao modelo de desenvolvimento agrário e a particularidadedo gênero, de maneira a subsidiar a análise da realidade singular estudada.

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Nos depoimentos das trabalhadoras entrevistadas foi possível perceberque o trabalho rural, é exaustivo, desgastante para estas, pois buscam ir além deseus limites físicos para garantirem a subsistência familiar.

As trabalhadoras entrevistadas exercem uma dupla jornada de trabalho,sendo que, além do trabalho rural são responsáveis pelos afazeres domésticos,através do processo de “naturalização” das questões de gênero.

Devido ao trabalho exaustivo, as responsabilidades domésticas foipossível detectar nos depoimentos que as trabalhadoras entrevistadas possuempouco tempo para ficar com os filhos e que o tempo de lazer destas, quandoexistente, é utilizado para a reposição de energias para reiniciar o trabalho.

Foi perceptível, nos depoimentos, que as trabalhadoras estão em umprocesso de adoecimento e que raramente exercem tratamentos para seusproblemas de saúde. O fato de estarem adoecendo, é agravado, pois estas nãopossuem vínculo empregatício, sendo assim não tem direitos garantidos, sendoassim, estas quando se vêem impossibilitadas de exercerem ao trabalho ruralacabam por recorrer a Assistência Social.

A Assistência Social aparece, na fala das entrevistadas, como sendouma ajuda e não um direito, devido ao caráter assistencialista e benevolenteembutido em seu processo histórico, mesmo assim, por muitas vezes é a únicaalternativa encontrada para obterem acesso aos direitos sociais. Apesar de todosos avanços no campo dos direitos, a assistência social ainda enfrenta grandesdificuldades na efetividade dos mesmos.

Com relação à função do serviço social a Sant’Ana (2009, p. 132) afirma: “A função do serviço social na divisão do trabalho e intervir na questão social,ou seja, atuar junto ás diversas expressões do embate da relação de capital.”

Intervir na questão social, em um município estritamente agrícolasignifica relacionar-se diretamente com a questão agrária. Contudo, a intrínsecaligação entre questão agrária e questão social passa despercebida aos olhos doprofissional de serviço social, enxergando apenas as suas manifestações como:fome, pobreza, desemprego, doença. Aparta-se tais manifestações da suaverdadeira agente, a luta de classes.

Portanto, torna-se claro, a necessidade de uma visão de totalidade paraque a Assistência Social, realmente possa intervir de forma coerente com asnecessidades dos usuários e para que realmente seja efetivadora de direitos.

Referências

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TRABALHO ESCRAVO E POLÍTICAS PÚBLICAS:condições de vida e trabalho dos cortadores de cana noNorte Fluminense

Ana Paula Procopio da Silva1

Isis Coutinho2

Marilda Villela Iamamoto3

Priscila Jesus do Nascimento Fonseca4

Thalita Thomé dos Santos5

IntroduçãoO presente trabalho é parte do projeto de pesquisa Estado, classes

trabalhadoras e Serviço Social no Brasil. 2003-2012 (Condições de vida etrabalho dos migrantes sazonais na agroindústria canavieira fluminense)6 acercadas relações de trabalho e das condições de vida dos cortadores de cana nomunicípio de Campos de Goytacazes – Rio de Janeiro, no complexo produtorde agrocombustíveis.

O eixo de análise são as relações entre Estado, classes trabalhadoras eServiço Social no Brasil, buscando elucidar a radicalização da “questão social”,da qual a realidade de vida e de trabalho desses trabalhadores são parte eexpressão. O objeto de estudo são as condições de vida e trabalho dos cortadoresde cana, em que se busca atribuir visibilidade às suas vivências e à exploraçãoàs quais são submetidos no universo da agroindústria canavieira, na região NorteFluminense. As reflexões aqui registradas são frutos da revisão bibliográfica edocumental e da pesquisa de campo na região.

A leitura crítica da relação entre Estado e classe trabalhadora realiza-sesob a ótica das necessidades expressas pelo segmento dos trabalhadoresanalisados, obrigados a viverem na condição de superexplorados e à margemda efetivação dos direitos trabalhistas na maioria dos casos e no contexto dachamada “escravidão contemporânea”.1 Assistente social, mestre em Serviço Social (PPGSS/UERJ). Email:[email protected] Assistente social (FSS/UERJ). E-mail: [email protected] Orientadora. Professora Titular (FSS/UERJ), doutora em Ciências Sociais (PUC – SP). E-mail:[email protected] Assistente social (FSS/UERJ). E-mail: [email protected] graduanda(FSS/UERJ) e bolsista de iniciação científica (PIBIC CNPq). E-mail:[email protected] O projeto Estado, classes trabalhadoras e Serviço Social no Brasil. 2003-2012 (Condições de vidae trabalho dos migrantes sazonais na agroindústria canavieira fluminense) é coordenado pela profª.drª.Marilda V. Iamamoto recebe apoio e financiamento do Conselho Nacional de DesenvolvimentoTecnológico (Edital MCT/CNPq 14/2009, Edital MCT/CNPq 10/2010, Produtividade em Pesquisa -PQ) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (EDITAL FAPERJ Nº. 01/2010 – APQ 1– Apoio à pesquisa básica) e integra o Centro de Estudos Octavio Ianni, da Faculdade de ServiçoSocial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

CAPITULO 23

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No que tange ao pertencimento de classe, no período da safra da cana omigrante torna-se operário agrícola ou industrial, constituído como tal, a partirde relações sociais que com as distintas classes e segmentos de classes operantesnesse complexo – proprietários fundiários, usineiros empresários industriais,produtores agrícolas da pequena produção mercantil, assalariados permanentese trabalhadores por contratos clandestinos.

Considerando o panorama nacional do setor de agrocombustíveis emudanças operadas na agroindústria canavieira fluminense são objetivos dapresente comunicação:, a) descrever e analisar as condições de vida dos sujeitosno corte da cana e suas vivências; b) identificar as nomenclaturas utilizadasacerca do tema: trabalho escravo contemporâneo, trabalho degradante e trabalhoanálogo ao escravo; d) registrar as ações de fiscalização e combate ao “trabalhoescravo, tanto às iniciativas oficiais do Estado quanto de instituições eorganizações da sociedade civil, no período 2003-2010.

Panorama Nacional dos AgrocombustíveisA emergente questão dos agrocombustíveis na pauta econômica brasileira

tem colocado para a sociedade contemporânea a questão do desenvolvimento eda abertura do país para o capital externo.

O processo que tem gerado grande movimentação no setorsucroalcooleiro do país é caracterizado pelo esforço em consolidar um mercadointernacional de agrocombustíveis. A implementação dessa política no Brasillegitimada através do Plano Nacional de Agroenergia 2006-2011, tem provocadoimpactos latentes envolvendo a esfera do trabalho e a concentração de poderpolítico e econômico, promovendo simultaneamente a grande expansão doagronegócio e a superexploração da força-de-trabalho manifesta pelo chamado“trabalho escravo contemporâneo”.

Sob pretexto de adotar um modelo agroenergético como alternativasustentável para as matrizes energéticas, o incentivo à produção de etanol temsido veiculado no cenário mundial como solução para minimizar o supostoaquecimento global e reduzir combustíveis fósseis.

Verificamos que o panorama nacional no que se refere à emergência daquestão dos agrocombustíveis na pauta econômica brasileira tem colocado paraa sociedade contemporânea uma série de implicações econômicas e sociaisvoltadas para a questão do desenvolvimento e da abertura do país para o capitalexterno.

Segundo informações registradas no Relatório do Centro deMonitoramento de Agrocombustíveis (CMA) da ONG Repórter Brasil, o anode 2009 foi marcado por uma intensa movimentação no setor sucroalcooleiro,no qual grupos internacionais, estimulados pelo promissor mercado, adquiriramgrandes companhias nacionais e já são responsáveis pela moagem de 20% da

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cana-de-açúcar produzida no país. E após forte crise no ano de 2008, em que asusinas sofreram com a retração das linhas de crédito, as operações de váriasdelas voltaram a se reestruturar devido o aumento da demanda por etanol nomercado brasileiro.

Segundo Balsadi (2007) a conquista e ampliação de mercadosinternacionais para o açúcar, a recuperação dos preços internacionais dessacommodity, o aumento das exportações de álcool combustível após a assinaturado Protocolo de Kioto e, mais recentemente, o grande aumento das vendas deautomóveis com motores flex no mercado nacional são fatores que certamentecontribuíram para a forte expansão da atividade.

Analisando a realidade industrial sucroalcooleira da região de Campos,no Norte fluminense, Abreu (2008) afirma que o processo lento de mecanizaçãodo campo, a facilidade de se obter financiamento governamental, a existênciade “áreas virgens” e o aumento da capacidade de processamento das usinascontribuíram para que o setor agrosucroalcooleiro se mantivesse, até o final dadécada de 1980, como a atividade econômica mais importante do Norte e doNoroeste do estado do Rio de janeiro. No entanto, tal status não impediu que notranscorrer da segunda metade da década, a indústria sucroalcooleira se vissediante de uma forte depressão (ROMEU NETO, 2006).

Contudo, segundo Iamamoto (2009) a região Norte fluminense do Rio deJaneiro viveu um revigoramento desse tipo de indústria a partir de 2001, com oapoio de incentivos do governo estadual, que instituiu o programa Reativaçãoda Agroindústria Alcooleira Fluminense – RIOCANA INDUSTRIAL (Decretonº 261 de 24 de setembro de 2001). Tal incentivo provocou no Norte fluminenseuma transformação sem precedentes da região: as usinas perderam o caráter de“empresas familiares”, sendo compradas ou arrendadas por grandes gruposeconômicos do setor.

Do ponto de vista da classe trabalhadora a preocupação central que emergedesse processo está na refuncionalização de práticas consideradas ultrapassadasou “arcaicas” no trato com a mão-de-obra presente no corte da cana expressapela chamada “escravidão contemporânea”, que condicionam a vida, a cidadaniae a dignidade dos trabalhadores rurais das lavouras de cana de açúcar em Camposdos Goytacazes (RJ).

Breve panorama de Campos dos GoytacazesMarcada pela monocultura da cana-de-açúcar e pela influência das elites

locais, a realidade no Norte do Estado do Rio de Janeiro revela uma estruturaagrária caracterizada pela grande concentração de terras e por uma desigualdadesocial expressa pela pobreza e miséria em pleno ciclo do petróleo (CRUZ, 2006).Apesar do crescimento de pequenos estabelecimentos agrícolas, os grandeslatifúndios permanecem intactos, retratando uma das causas da desigualdade

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socioeconômica do município de Campos dos Goytacazes (ABREU, 2008).A cidade de Campos dos Goytacazes é a que detém o maior índice de

trabalho escravo em todo o estado do Rio de Janeiro, segundo dados divulgadosna 1ª Conferência sobre Trabalho Escravo Contemporâneo, que aconteceu nacapital. Na última década, foram registrados sete mil casos de trabalhadores emcondições de escravidão no Rio de Janeiro. Só em 2009 e 2010 foram libertadoscerca de mil trabalhadores (LACERDA, 2010, online).

Com 432 mil habitantes, Campos é a cidade mais populosa do interiordo Estado, e a de maior extensão territorial. É também a sexta cidade mais ricado país, revelando um grande contraste social mediante tal afirmativa (ONGREPÓRTER BRASIL, 2009).

A concessão dos royalties do petróleo não afastou de Campos a pobrezae a exclusão, pois apresenta um grave quadro de atraso em termos de qualidadede vida, que segundo Totti e Pedrosa (2006), são atribuídos ao longo tempo demonocultura canavieira, à falta de inovação no comércio e de investimentos naformação educacional da população.

Atualmente o município de Campos dos Goytacazes, de acordo comdados do PNUD (ONU), detém o 54º lugar no ranking estadual de Índice deDesenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) num universo de 91 municípios.Este índice é composto por renda familiar em salários mínimos, taxa deanalfabetismo, número médio de anos de estudo e esperança de vida ao nascer.

O processo de aquisição de terras para fins especulativos também éuma particularidade da região, em que a busca pela propriedade rural ocorreupelo interesse de obter reservas de valor, e não para realizar investimentos ematividade produtiva, em que a terra cumpre função social. Esse processo ocorreatravés de maciça aplicação de capitais industriais e financeiros em imóveisrurais (ABREU, 2008).

Segundo dados divulgados pela Agência Brasil – através dos estudosrealizados pelo Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo(GPTEC) – entre o ano de 2000 e 2010 foram registrados 7.398 casos detrabalhadores em regime de escravidão no Estado do Rio de Janeiro. Destemontante o município de Campos lidera o ranking com 5.495 casos, 74% dototal, seguido por Cabo Frio, com 1.011 casos (13%) e pelo Rio de Janeiro, com370 casos que corresponde à 5 %. O estado do Rio de Janeiro apesar de sediaruma das principais metrópoles do país, ainda convive com essa realidade arcaica.

Campos dos Goytacazes foi uma das últimas regiões do país a abolir otráfico de escravos e é possível encontrar relações de trabalho ainda permeadaspor uma cultura escravocrata, percebidas nas péssimas condições a que sãosubmetidos os trabalhadores, especialmente na cultura de cana. As característicasdo trabalho presente nas usinas de Campos apontam, conforme Abreu (2008)para indicadores de pobreza e para a baixa e/ou falta de escolaridade que forçam

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os trabalhadores do corte da cana a aceitarem o trabalho subumano que lhes éoferecido. Sendo muitos deles aliciados em favelas e em bairros periféricos dacidade e contratados sem acesso aos direitos trabalhistas e previdenciários.

São estes trabalhadores destituídos de direitos que trabalham nos piorescanaviais, os mais sujos, com a cana mais difícil de limpar e cortar. Estão tambémmais expostos aos riscos de acidente, intoxicação pela fumaça na queima dacana, ao ataque de animais peçonhentos e com pouco acesso à água potável.

Algumas questões conceituais sobre trabalho escravoNo Brasil, houve uma ampliação do conceito de trabalho escravo, segundo

o Procurador do Trabalho Sebastião Caixeta em sua afirmação de que até 2003o que caracterizava a condição análoga a escravidão era o trabalho forçado,realizado sob vigilância ostensiva, ou a chamada servidão por dívida, em que aremuneração serve quase que unicamente para quitar despesas de transporte,alojamento e alimentação. Porém, nos últimos anos, a legislação incorporoumais duas situações: a) as jornadas exaustivas, que variam conforme aintensidade da tarefa, e b) as condições degradantes de trabalho (RIO..., 2010,online).

Nesse sentido, depreendem-se como características da “escravidãocontemporânea” os crimes incorridos na área penal, cível e trabalhista; aviolência física, a tortura, o cárcere privado, as violações trabalhistas – retençãode documentos e o não recolhimento dos direitos previdenciários – dentre outros.

Para Organização Internacional do Trabalho (OIT) “Toda a forma detrabalho escravo é trabalho degradante, mas o recíproco nem sempre éverdadeiro”, e o que diferencia um conceito do outro é a liberdade. O “trabalhoescravo” é considerado uma das formas contemporâneas de trabalho forçado –que engloba diversas modalidades de trabalhos involuntários – quais sejam:trabalho em servidão por dívida; trabalho forçado na agricultura e em regiõesrurais remotas (sistema de recrutamento coercitivo); escravidão e raptos;participação obrigatória em projetos de obras públicas; trabalhadores domésticosem situação de trabalho forçado; trabalho forçado imposto por militares; trabalhoforçado no tráfico de pessoas e alguns aspectos do trabalho em penitenciárias eda reabilitação por meio de trabalho. Os relatórios da OIT apontam ainda queas diversas modalidades de “trabalho escravo” no mundo possuem em comumduas características: o uso da coação e a negação da liberdade.

No Brasil, como forma mais comum de escravidão contemporânea, tem-se a chamada escravidão por dívida. Tratada por autores como Figueira (2004),Novaes (2007), e outros, refere-se a uma negociação de trabalho fraudulentaem que o trabalhador involuntariamente adquire uma dívida com o empregador– normalmente na pessoa do contratante – os chamados “gatos” – em função dotransporte, comida e ferramentas oferecidos a ele para a execução das tarefas

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no trabalho; onde termina preso a essa dívida e submetido às condições deservidão e escravidão.

Desse modo, no país o trabalho escravo resulta da soma do trabalhodegradante com a privação de liberdade, pois além do trabalhador ficar atreladoa uma dívida, tem seus documentos retidos e nas áreas rurais costuma ficarisolado.

Nessa tipificação de “trabalho escravo” a relação de trabalho pode viracompanhada de práticas que são consideradas juridicamente como crime –manutenção de pessoas em cárcere privado, violência física, como a tortura elesões corporais, assassinatos e danos ambientais, violações às leis trabalhistas– ausência de assinatura de Carteira de Trabalho e Previdência Social,recolhimento dos direitos previdenciários, pagamento dos salários e das férias,condições inadequadas de habitação, transporte, alimentação e segurança(FIGUEIRA, 2004).

Segundo Sakamoto (2007) a “escravidão contemporânea” não se tratade “resquício de antigas práticas econômicas que sobreviveram provisoriamenteao capital”, mas “um instrumento para o capital facilitar a acumulação, aaquisição de riquezas, durante um processo de expansão ou durante um processode modernização”. De acordo com o autor, utilizar trabalho escravo é uma formade economizar na mão-de-obra, sobretudo em empreendimentos agropecuários,garantindo, assim, a competitividade a produtores rurais.

O Código Penal Brasileiro (CBP) considera “trabalho escravo” não sóa privação de liberdade, mas igualmente a submissão do trabalhador a trabalhosforçados ou à jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes detrabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão dedívida contraída com o empregador ou preposto.

Em Campos dos Goytacazes é possível verificar que os trabalhadoresque condensam de forma candente a condição de produtores de riqueza e que avivem no pólo contraditório, expresso na superexploração do trabalho, podemser considerados como “vítimas da banalização da vida humana” ou “vítimasda alienação” nos termos de Martins (1998) na medida em que são obrigados aconviverem com condições degradantes de trabalho que em muitos casos sãocondições análogas às da escravidão.

Em audiência pública organizada pela Comissão de Defesa dos DireitosHumanos da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) sob acoordenação do Deputado Estadual Marcelo Freixo, realizada na CâmaraMunicipal de Campos dos Goytacazes, no dia 16 de abril de 2010, ostrabalhadores narraram a ausência de contratos de trabalho, o não pagamentoda rescisão trabalhista, longas jornadas de trabalho, alimentação de má-qualidade, falta de acesso à água potável, a ausência de assistência médica eequipamentos de segurança, mortes por exaustão, câimbras e intoxicação por

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pesticidas. Alguns trabalhadores relataram que recebiam permissão para deixaras usinas apenas quando suas dívidas eram quitadas, dívidas estas adquiridaspela inflação do preço dos alimentos e das ferramentas de trabalho, que eramobrigados a comprar.

Segundo a exposição dos fiscais do trabalho quando são encontradasevidências de trabalho escravo nas usinas, os direitos trabalhistas dos empregadossão pagos imediatamente e para cada contratação irregular há a aplicação demulta. Porém, não existe controle entre a aplicação e o pagamento da multa,isto é, os ficais do trabalho não obtém retorno se a multa foi paga.

Com o fechamento das Usinas Santa Cruz e Cupim, a rescisão trabalhistade três mil trabalhadores não foi paga, refletindo negativamente na qualidadede vida destes indivíduos, que possuem como único meio de sobrevivência ocorte da cana. A maioria dos trabalhadores agrários é analfabeta e transmite suaatividade profissional para seus filhos, o que pode ser constatado no relato deA. 32 anos, cortador de cana “Só sei fazer isso moça, meu avó era cortador decana, meu pai era cortador de cana, eu sou cortador de cana, não sei como vousustentar a minha família.”

As escolas rurais que funcionavam ao redor das usinas citadas, tambémforam fechadas, impedindo que diversas crianças tenham o acesso a um direitoconstitucional: a educação. Nos relatos ouvidos durante a audiência pública,foram reconhecidas as diferentes refrações da questão social: o desemprego, afome, ausência de direitos sociais e trabalhistas.

As impressões colhidas na referida audiência pública que contou com oapoio do Comitê Popular de Erradicação do Trabalho Escravo/Norte Fluminense,possibilitaram a uma aproximação à algumas questões que permeiam o universodas condições de vida desses trabalhadores. Verificou-se ainda as escassasmanifestações das entidades representativas dos trabalhadores da cana e asdificuldades do Estado em impor ao patronato o cumprimento de suas obrigaçõestrabalhistas, apesar da legislação vigente e apropriação privada da terra emfunção da lucratividade.

Um trabalhador do corte de cana, em Campos, dispensado após vinte etrês anos de trabalho sem receber nenhum de seus direitos e submetido àprivações alimentares juntamente com sua família, relatou que se consideravaum escravo pela humilhação que sempre viveu no trabalho da usina (apesar denão ser migrante) e pelo fato de hoje não ter nem expectativa de receber o quelhe seria de direito. “Trabalho escravo pra mim, é ter que se matar no corte enão saber nem quanto vai ganhar [...] é ser humilhado [...] eles pagam o preçoque querem. [...] depois de todos esses anos, saio sem direito à nada.” (A. 42anos de idade e 23 anos de serviços prestados à Usina X).

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Migração e trabalho escravo – binômio constanteEm Campos também se verifica, segundo Abreu (2008), a contratação de

trabalhadores migrantes sazonais para trabalho o corte da cana. O trabalhodegradante escravo na região foi uma prática inaugurada durante a safra 2001/2002, pelo Grupo J. Pessoa. Inicialmente foram trazidos 42 trabalhadores doestado de Pernambuco, com ocorrência de morte no alojamento. Na safra de2003, a Polícia Federal encontrou, nas fazendas da Usina Santa Cruz, mineirosvivendo em condições subumanas, entre os quais dois menores de idade. Asusinas Barcelos e Cupim, ambas do conglomerado tradicional Grupo HoteleiroOthon também foram incluídas na “lista suja” do trabalho escravo.

A Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo é umimportante órgão no combate ao trabalho escravo. Segundo a ONG RepórterBrasil, os maiores agentes no combate ao trabalho escravo hoje no Brasil, são oMinistério do Trabalho e Emprego, o Ministério Público do Trabalho e a PolíciaFederal que compõem o grupo móvel de fiscalização, responsável pelaverificação de denúncias e libertação de trabalhadores. Também merece destaqueo trabalho da Comissão Pastoral da Terra, instituição considerada como a maisatuante no combate ao “trabalho escravo” OIT entre outras.

Conforme noticiou o Jornal O Globo (RIO..., 2010, online), o Rio deJaneiro é o estado com maior número de trabalhadores em condições análogasàs da escravidão e que teve resgatados no ano de 2009 pelo Ministério doTrabalho 521 trabalhadores (14,5%) de um total de 3.571, em 19 estados.

De acordo com a Procuradoria Geral da República, uma operação doGrupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho resgatou cerca de 280trabalhadores submetidos a regime similar à escravidão, no corte e cultivo decana-de-açúcar em Campos, em julho de 2009. Uma força-tarefa do MinistérioPúblico do Trabalho (MPTE) efetuou operações nos canaviais dos doismunicípios, próximos à divisa com o Espírito Santo, operações estas que têm oapoio da Polícia Federal. Segundo nota do Ministério do Trabalho, em usinasde Campos foram encontrados 200 trabalhadores sem registro em carteira. Alémdisso, foram constatadas más condições de saúde e segurança no campo;alojamentos sem banheiros ou instalações sanitárias; e os trabalhadores nãopossuíam equipamentos de proteção individual (EPI).

Analisando os documentos e artigos de órgãos e instituições que militamcontra a exploração do trabalho nesse setor verifica-se que os impactos maislatentes envolvem a superexploração dos trabalhadores, o desrespeito àscomunidades, populações tradicionais e indígenas e a degradação ambiental.Segundo o (CMA) o aumento da produção de cana de- açúcar e de etanol sesustenta sobre bases nada comprometidas em termos socioambientais.

Pesquisa da Comissão Pastoral da Terra (CPT) revelou que em 2009,1911 trabalhadores considerados escravos foram libertados no setor da cana

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nos estados do Espírito Santo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Pernambuco,e Rio de Janeiro. Também está registrado segundo CMA (Repórter Brasil) quea COSAN (maior grupo sucroalcooleiro do país), após ter sido inserida na listasuja do trabalho escravo do Ministério do Trabalho e Emprego, saiu em seguidaapós liminar de justiça.

Políticas públicas para erradicação do trabalho escravoEm 2003, foi criada por decreto a Comissão Nacional de Erradicação do

Trabalho Escravo (CONATRAE) com as atribuições de acompanhar ocumprimento das ações constantes do Plano Nacional para a Erradicação doTrabalho Escravo, propondo as adaptações; acompanhar a tramitação de projetosde lei relacionados com o combate e erradicação do trabalho escravo noCongresso Nacional, propor atos normativos necessários à implementação doPlano, acompanhar e avaliar os projetos de cooperação técnica firmados entre oGoverno brasileiro e os organismos internacionais, e ainda, propor a elaboraçãode estudos e pesquisas e incentivar a realização de campanhas relacionadas àerradicação do trabalho escravo.

Analisando as políticas públicas no período 2003-2010, uma daspreocupações do Estado juntamente com os empresários do setor, foi o esforçopara mudar a imagem dos canaviais e das usinas, o que pode ser expresso nolançamento, em junho de 2009, do “Compromisso Nacional para Aperfeiçoaras Condições de Trabalho na Cana-de-açúcar”. O compromisso foi assinadopor 331 usinas brasileiras, o que compõe praticamente 80% das usinas do setor.O documento prevê que as usinas signatárias assumam práticas empresariaisexemplares a ONG Repórter Brasil, CPT, Comitê de Erradicação do Trabalhoescravo, Sindicatos dos trabalhadores rurais, MST e outros.

Outro exemplo é a Portaria nº. 540/2004 do Governo Federal do MTEque cria o cadastro de empresas e pessoas autuadas por exploração do trabalhoescravo. A autuação é caracterizada caso seja constatado a exploração detrabalhadores na condição análoga à de escravos. Ficam proibidos a figura do“gato” na contratação e os alojamentos inadequados. Afirma-se o respeito àsaúde e a segurança laboral, bem como o direito a transporte seguro. (BRASIL,2004, online).

A indagação posta é como tais políticas serão efetivadas ante um cenáriode intensificação da exploração do trabalho, dispersão dos movimentos sociaise organizações dos trabalhadores, sobretudo, dos trabalhadores cortadores decana; e das constantes ofensivas dos grandes conglomerados produtores debiocombustíveis na busca pela maximização dos lucros.

O grande empresariado agrosucroalcooleiro possui representantes noPoder Legislativo, o que impossibilita a aprovação da PEC 438/2001(expropriação das terras onde haja trabalho escravo, para fins de reforma agrária)

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e dificulta a punição dos empresários que fazem uso de mão de obra escrava einfringem os direitos constitucionais, trabalhistas e sociais dos indivíduos.(ANDRADE, 2001, online).

ConclusãoO Brasil contemporâneo, mantendo seus traços históricos continua

lançando bases para o aprofundamento da “questão social”, alimenta as caldeirasdo agronegócio e continua sustentando a riqueza da burguesia agrária. Provadisso é a constatação de 158 propriedades rurais no ano de 2010 utilizandotrabalho escravo, contabilizados pelo Cadastro de Empregadores conhecidocomo “lista suja”.

De acordo com esse levantamento foram encontradas 1.130 pessoas emregime de trabalho escravo entre 2003 e 2009. Vincula-se a essa afirmativa arestrição sobre o crédito rural no mês de junho de 2010 pelo Conselho MonetárioNacional para empresários que insistirem em fazer parte dessa lista. Resta saberse as restrições serão suficientes para vetar a motivação criminosa no campotrabalhista e dos direitos humanos.

Com base nos dados analisados e na própria realidade do campoempírico, percebemos que o projeto dos biocombustíveis se sustenta numarelação que tem como suporte, em grande parte, as classes que sobrevivem daexploração e da impunidade. Porém, a realidade em sua complexidade e múltiplasdeterminações também comporta ações de combate a exploração.

Desse modo, a pesquisa sobre escravidão contemporânea como umadas expressões da “questão social” nesses tempos de mundialização da economia– sob o comando do capital financeiro e da orientação neoliberal – mostra-secomo um desafio de grande relevância para o Serviço Social, visto que asimplicações desse processo têm refletido e fragilizado diretamente tanto a esferado trabalho quanto os direitos conquistados historicamente.

É um quadro no qual se faz necessário pensar o Serviço Social noprocesso de reprodução das relações sociais, entendido como reprodução datotalidade concreta desta sociedade, em seu movimento e em suas contradições.Ou seja, a reprodução de um modo de vida que envolve o cotidiano da vidasocial: um modo de viver e de trabalhar socialmente determinado, que abarca areprodução das forças produtivas sociais do trabalho e das relações de produçãona sua globalidade, envolvendo sujeitos e suas lutas sociais, as relações depoder e os antagonismos de classes.

Implica identificar na sociedade contemporânea suas contradiçõesbásicas: por um lado, a igualdade jurídica dos cidadãos livres é inseparável dadesigualdade econômica, derivada do caráter cada vez mais social da produção,contraposta à apropriação privada do trabalho alheio. Por outro lado, aocrescimento do capital corresponde a crescente pauperização relativa do

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trabalhador, lei geral da acumulação capitalista que se encontra na raiz da“questão social” nessa sociedade.

Assim, conforme Ianni (1984, p. 171) o que está em questão é:[...] algo mais, além da subordinação da agricultura à indús-tria, do campo à cidade. Não se trata apenas de “desenvolvi-mento” econômico, social ou outro, mas de desenvolvimentocapitalista, acumulação do capital, transformação da agricul-tura em indústria produtora de capital. [...] nessas condições.E em simultaneidade, formam-se as desigualdades e osdesequilíbrios, tanto em termos da estrutura do subsistemaeconômico brasileiro como das regiões.

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PROCESSO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E SUAPARTICULARIDADE HISTÓRICA BRASILEIRA

Célia Maria David1

Mireille Alves Gazotto2

Este artigo esboça o desenvolvimento histórico e específico docapitalismo tardio no Brasil fundamentado nas suas relações sociais, políticas eeconômicas. Tal processo, com reflexos das economias mundiais, fundamenta-se em um desenvolvimento com resquícios coloniais e bases oligárquicas agro-exportadoras escravagistas cafeeiras.

Para o desenvolvimento do processo histórico do capitalismo atravésda relação capital e trabalho, é necessário antes adentrar nas especificidades docapitalismo tardio no Brasil em que é de primordial importância abordar as trêscondições de desenvolvimento do capitalismo: um volume de capital, a forçade trabalho assalariada e um mercado consumidor interno.

A acumulação de um determinado volume de capital acontece duranteo capitalismo comercial e representa a fase de acumulação primitiva de capital.

A força de trabalho, na sua fase fabril, torna-se uma mercadoria e possuiao mesmo tempo um valor-de-uso e um valor-de-troca.

Valor-de-uso no que tange a necessidade e uso da mercadoria; e, comovalor-de-troca no que se refere ao tempo socialmente necessário na (re) produçãoque gera mais valor no tempo que é utilizada, ou seja, gera a mais-valia. Assim,quando a mercadoria é transformada em valor-de-troca, temos então, a base docapitalismo formada e a força de trabalho no seu percurso de mistificação.

Mas, como o Brasil possui a sua especificidade própria, essa força detrabalho não estava formada de acordo com o desenvolvimento capitalista daseconomias centrais em que se apresentavam, no final do século XIX, na suafase monopolista. Necessitava, o Brasil, de criar condições para a formação deum contingente de pessoas que aderissem às condições de trabalho assalariadaspara a expansão e consolidação do capitalismo brasileiro e que, os grandesprodutores de café – na sua fase exportadora cafeeira escravista – aderissem auma acumulação de capital voltada para o desenvolvimento industrial. Nesseprocesso histórico, o mercado consumidor seria essa própria força de trabalhoao se tornar assalariada; pois ao mesmo tempo em que produz mercadorias,também a consome, fazendo a circulação do capital.

1 Livre Docente do DECSPI/UNESP/Franca. Docente e orientadora do Programa de Pós-Graduaçãoem Serviço Social da mesma unidade.2 Graduada em Serviço Social, especialista em Docência do Ensino Superior pelas FaculdadesIntegradas de Jacarepaguá-RJ, mestranda em Serviço Social na UNESP, campus Franca/SP. Atualmenteé Assistente social na Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) no Núcleo de AssistênciaEstudantil (NAE).

CAPÍTULO 24

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Com essas três condições para o desenvolvimento do capitalismo, pode-se, então, prosseguir com a especificidade do mesmo no Brasil marcado peladiferença com que gestou o capitalismo na Europa. Dito de outra forma, aAmérica Latina, mais especificamente o Brasil, seguiu etapas diferenciadas dedesenvolvimento do capitalismo, como um capitalismo tardio, desenvolvidoperante um passado colonial em que as economias centrais já se encontravamna sua fase capitalista monopolista. Mesmo com essa especificidade, observa-se então que teve uma formação única, fundamentada com as três condições dedesenvolvimento do capital que elencamos – volume do capital, força de trabalhoe mercado consumidor.

As especificidades do capitalismo no Brasil foram por ser um país que,ditado por ordens metropolitanas, gerou o seu subdesenvolvimento, tornando-se periférico, dependente e selvagem. Subdesenvolvido por ser uma economiacolonial ligada ao “exclusivo metropolitano”; periférico por ocupar a periferiado sistema em relação ao sistema central de economia; dependente por dependerdas grandes inovações tecnológicas do exterior, ou seja, importadas; e, selvagem,por formar abismos sociais.

Observa-se, então, nos países de capitalismo avançado que as revoluçõesburguesas foram desenvolvidas a partir da Segunda Guerra Mundial, contra umregime socialista em que há um interesse pela sua sobrevivência, controle econsolidação política. No Brasil, como país periférico, também obtém interessesiguais aos das economias centrais. A revolução burguesa, no Brasil, foi movidapor uma autocracia que queria:

[...] manter a ordem, salvar e fortalecer o capitalismo, impedirque a dominação burguesa e o controle burguês sobre o Esta-do nacional se deteriorem. [...] a Revolução Burguesa “atrasa-da”, da periferia, seja fortalecida por dinamismos especiais docapitalismo mundial e leve, de modo quase sistemático e uni-versal, a ações políticas de classe profundamente reacionári-as, pelas quais se revela a essência autocrática da dominaçãoburguesa e sua propensão a salvar-se mediante a aceitação deformas abertas e sistemáticas de ditadura de classe(FERNANDES, 1981, p. 294-295).

A história política brasileira foi uma ditadura preventiva da burguesiaem que as condições de desenvolvimento do capital aconteceram com um Estadointerventor a serviço desta classe em que há uma consolidação das relaçõesentre capitais e sucessivamente relações entre capital e trabalho. Destaconsolidação forma-se um Estado brasileiro ditado sob três funções: reguladora,interventora e empreendedora. Sob essa ótica, e como pensa Fernandes (1981,p. 295), “[...] a possibilidade de uma revolução burguesa que significa umarevolução política que transpôs na revolução econômica.” Assim, a história do

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Brasil Republicano é marcada por constantes ditaduras, golpes de elites.Dessa condição histórica é imprescindível explanar, dentro do contexto

brasileiro com uma visão crítica marxista, a passagem da economia colonialpara a economia nacional mercantil agro-exportadora cafeeira escravagista. Edepois desta, para a economia nacional mercantil agro-exportadora assalariada;e como última análise, a industrialização e o Serviço Social.

A economia colonial era voltada para a manutenção da metrópole comtrabalho escravo, servil ou compulsório com a produção para o mercado externoe para a produção de subsistência em grande quantidade de açúcar, tabaco,metais preciosos, etc. Esse contexto se molda através do “exclusivometropolitano”.

A economia colonial define-se, portanto, como altamente es-pecializada e complementar à economia metropolitana. Estacomplementaridade se traduz num determinado padrão de co-mércio: exportam-se produtos coloniais e se importam produ-tos manufaturados e, no caso de economias fundadas na es-cravidão negra, escravos. Por outro lado, a articulação econo-mia- metropolitana-economia colonial a isto não se resume,porque este padrão de comércio se efetiva através do monopó-lio de comércio exercido pela burguesia comercial metropoli-tana, do exclusivo metropolitano, como então era chamado(MELLO, 1984, p. 37).

Esse exclusivo metropolitano deu bases para a organização daacumulação primitiva de capital formando uma produção colonial mercantil,mas cuja forma de capital é ser exógeno, ou seja, essa produção sofria os ditamesde uma metrópole em que a produção excedente era comercializávelinternacionalmente pela burguesia metropolitana; a busca de mercados coloniaispara que a metrópole pudesse auferir a sua produção; e, o valor excedido nessaprodução era substanciado, quase que integralmente, pela metrópole.

Esse processo específico se sobressai através de um trabalhocompulsório, servil ou escravo. Nesse momento da economia colonial mercantil,Mello (1984, p. 40) nos chama atenção para que “não se deve esquecer, ademais,que o tráfico negreiro representou poderosa alavanca à acumulação de capitais”em que o comércio dessa espécie apreende capitais rentáveis perante àsnegociações de seres subalternizados às condições de trabalho em prol daacumulação de capitais sob a égide do exclusivo metropolitano em que “era omecanismo fundamental pelo qual o excedente gerado na colônia se transferiaà burguesia comercial metropolitana, bem como providenciava que por elafossem supridos os mercados coloniais” (MELLO, 1984, p. 40)

Esse trabalho compulsório era a forma com que se aviltassem os lucrosda metrópole através das colônias, uma vez que, quanto menos se empregassedinheiro em trabalho, mais acrescentaria a escala de lucros da metrópole; e, os

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colonos poderiam, também, através das terras apropriáveis, elevar a sua produçãode auto-subsistência não acarretando gastos com o trabalho assalariado.

A crise do exclusivo metropolitano ofereceu fundamentação para aascensão e formação dos Estados Nacionais, uma vez que, a crise das economiascoloniais foi estimulada pela ruptura com o pacto colonial e nascimento dessesEstados Nacionais. Mas esse nascimento ainda obtinha sua forma de‘plantation’3, ou seja, trabalho escravo que não atrapalhava a forma econômicae que, também, já estava nas mãos dos Estados Nacionais a decisão dapermanência dessa economia escravagista.

Na América Latina, o capitalismo industrial traz consigo o iní-cio da crise das economias coloniais: não destrói seu funda-mento último, o trabalho compulsório, mas, tão-somente, seestimula decisivamente a ruptura do Pacto Colonial e consti-tuição dos Estados Nacionais. [...] a queda do ‘exclusivo me-tropolitano’ e a subseqüente formação do Estado Nacionalmarcam, indiscutivelmente, o início da crise da economia co-lonial no Brasil (MELLO, 1984, p. 46).

Não devemos esquecer, também, a vinda da Família Real para o Brasil,que fez surgir um sistema monetário nacional.

Forma-se então, a base da passagem da economia colonial para aeconomia mercantil-escravista cafeeira nacional que, segundo Mello (1984, p.54), esta última economia demonstrada:

[...] é obra do capital mercantil nacional, que se viera forman-do, por assim dizer, nos poros da colônia, mas ganhara notávelimpulso com a queda do monopólio de comércio metropolita-no e com o surgimento de um muito embrionário sistema mo-netário nacional, conseqüências da vinda, para o Brasil, daFamília Real, o passo decisivo para a formação do EstadoNacional.

Por essas características o desenvolvimento do capitalismo no Brasilsobreveio com suas particularidades mostrando as dificuldades de organização3 "plantation” é uma exploração com trabalho obrigatório, que produz especialmente para o mercadoe obtém produtos agrícolas. A economia das ‘plantations’ nasceu em todos os lugares em que aexploração agrícola, filha da conquista, coincidiu com a possibilidade de se praticarem cultivosintensivos e foi particularmente característica das colônias. Seus produtos, em nossos tempos, são decana-de-açúcar, tabaco, café e algodão. O processo reveste a forma semi-‘plantation’, na qual omercado regulado se concentra em uma só mão, enquanto a produção é ordenada a trabalhadoresservis e forçados, com responsabilidade solidária de seus municípios, sujeição à terra e pagamentosaos proprietários da semi-‘plantation’, comumente uma companhia colonial. É a condição dominantena América do sul até a Revolução, em princípios do século XIX e nos territórios da Nova Inglaterra,até sua separação da Metrópole. O sistema de ‘plantation’ plena encontra-se espalhado por todo omundo. Mas em duas ocasiões se nos apresenta em suas características clássicas: na ‘plantation’romano-cartaginesa da Antiguidade e nos Estados Meridionais da União norte-americana durante oséculo XIX” (WEBER, 1964, p. 82 apud MELLO, 1984, p. 32)

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que agora está a caminho de uma ‘independência’ econômica financeira.Demonstra-se que essa organização, em primeiro lugar, formou com um capitalmercantil, ou seja, os primeiros investimentos advieram da produção dosproprietários de terras que comercializavam a sua produção, de acordo comMello (1984, p. 54), “[...] as fazendas de café, certamente as mais significativas,foram organizadas com capitais transferidos diretamente do setor mercantil(comércio de mulas, capital usurário urbano, tráfico de escravo, etc.).”

Deve-se lembrar, também, que esse Estado Nacional teve um personagemimportante para a negociação e financiamento do café produzido no Brasil cujocodinome era chamado de ‘comissário’.

O significado do comissário na organização do grande negó-cio do café não se esgota em ter sido o pivot da comercializaçãoem massa. Articulando a este traço de sua atividade, apareceum outro, que aumentou a importância de sua figura: seus in-teresses, que eram os de fazer passar por suas mãos a maiorquantidade possível de café, fizeram-no participar da monta-gem e do custeio das fazendas, invadindo a própria área daprodução, financiando-a (FRANCO, 1969, p. 169 apudMELLO, 1984, p. 55).

Concomitante a esse comissário tinham, também, terras produtivas nosarredores do Rio de Janeiro; e, “[...] escravos liberados pela desagregação daeconomia mineira” (FRANCO, 1969, p. 169 apud MELLO, 1984, p. 55): Essesdois fatos tornaram-se indispensáveis para o surgimento de uma economia sobos moldes da produção de café. Assim, as terras eram adquiridas por posse oujá eram fatores de propriedade. Para adquirí-las necessitava-se de “capital-dinheiro” para a sua aquisição; e, enquanto aos escravos estes permaneciamnas propriedades e se fazia apenas a transferência de propriedade.

Há que se lembrar que a produção de café tinha um elevado cuidadodesde a sua plantação até a colheita da mesma, demonstrando, então, adificuldade de se fazer os financiamentos almejados para a sua produção.

Mesmo com esses ‘problemas’ de financiamentos, o café generalizou-se. Ou seja, no século XIX, nas suas primeiras três décadas, o café passou paraum mercado consumidor internacional em que a população européia fez uso domesmo por ser um produto que aumentava o rendimento da concentração edestreza do trabalhador; e, por baixo preço, podendo concorrer no mercadodevido a elevada oferta que o Brasil estava oferecendo.

A demanda externa, por conseguinte, não foi mero fator inde-pendente e inerte, sobre o qual a economia brasileira não tevea menor ação. Ao contrário, é a própria expansão da ofertabrasileira que permite, em última análise, que a demanda seamplie, constantemente e, ao mesmo tempo, estimule nova-

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mente, dentro de certas condições, o crescimento da oferta.(FRANCO, 1969, p. 169 apud MELLO, 1984, p. 55).

Observa-se que a economia nacional escravista cafeeira surgiu sob osmoldes da grande propriedade, do trabalho escravo e com um capital-financeiroarticulado em parâmetros nacionais.

Produzindo “muito” e “barato”, o Brasil, já em 1830, puderabater a concorrência do Ceilão e de Java, tornando-se o pri-meiro produtor mundial, e o café se alçara a primeiro produtode exportação brasileira e sul-americana. Neste mesmo mo-mento, a economia mercantil-escravista cafeeira assumira seustraços definitivos: grande empresa produzindo em larga esca-la, apoiada no trabalho escravo, articulada a um sistema co-mercial-financeiro, controlados, uma e outro, nacionalmente(FRANCO, 1969, p. 169 apud MELLO, 1984, p. 55).

Através dessa ascensão concorrencial, de economia mercantil exportadoracafeeira escravista, o Brasil desenvolveu a acumulação de capital, que é aprimeira condição para a formação de um sistema capitalista. Para que se pudesseobter a acumulação de capital, o Brasil passava, na década de 1830, por umafase em que suas economias centradas na comercialização de metais preciososestavam se esgotando, ou seja, passava, o Brasil, por uma nova crise. Como oBrasil sempre foi uma economia exógena e dependente, o café, surgiu acima deoutros produtos para a comercialização exportadora, dependente e escravista.

A exaustão das minas de ouro e diamantes na segunda metadedo século XVIII tornou-se a economia brasileira novamentedependente de exportações agrícolas, com o algodão e o arrozcomplementado agora as tradicionais exportações de tabaco eaçúcar. Por volta de 1830 um novo produto havia parecido – ocafé, um produto de exportação que abasteceria a economiade exportação do Brasil pelos próximos 140 anos(SKIDMORE, 1998, p. 75).

No sistema capitalista de produção observamos que a cada crise que sesucede, o sistema vem com mais força a cada nova emersão. O capitalismobrasileiro tardio na sua passagem da economia colonial à economia nacionalmercantil agro-exportadora cafeeira escravista se deu através da crise,principalmente do exclusivo metropolitano. Agora, observamos mais uma criseque dará sustentação à uma economia nacional mercantil agro-exportadoraassalariada. Isto é, passará de força de trabalho escrava, servil ou compulsóriapara uma força de trabalho assalariada.

Essa mão-de-obra escrava já estava no mundo abolida desde 1826; masno Brasil ainda se fazia perceber esse contingente de negros escravizados até1845 através do tráfico negreiro. Foi apenas em 1850 que realmente extinguiu

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o tráfico sobre ordens diretas da Inglaterra. Com a diminuição dos denominadosescravos da economia mineira e abolição do tráfico negreiro, surgiramdificuldades em se ‘arranjar’ meios para que os grandes proprietários dasfazendas de café pudessem sair da crise que iniciava: a falta de mão-de-obracompulsória e a continuação das altas taxas de lucros da economia cafeeira;pois a taxa de mortalidade, doenças, suicídio prevalecia elevada nas senzalas; onúmero de homens excedia o das mulheres. Segundo Mello (1984, p. 60), “Tenhoque recordar que o dia de trabalho era de quinze a dezoito horas, a alimentação,parca e desequilibrada, as condições de habitação e higiene, infra-humanas, eque, de outra parte, na composição do estoque havia uma notável preponderânciade homens.”

Desta forma a produção interna estaria descartada por essas inúmerasnegativas elencadas não cumprindo com o que se desejava para o ponto positivodessa produção interna que seria igualar a taxa de mortalidade à taxa denatalidade, juntamente com a diminuição da exploração do trabalho escravo e aprevalência dos lucros: “[...] a posição dos defensores brasileiros da escravidãoera pragmática: eles alegavam que o trabalho escravo era essencial à agriculturabrasileira e, portanto, à economia brasileira.” (SKIDMORE, 1998, p. 81)

Tem-se que destacar, também, outra condição para que pudesse manter avenda e as taxas de lucros nas exportações: a interiorização do plantio, ou seja,expandir o plantio às terras que se encontravam no interior do país ocorrendo,dessa forma, um elevado gasto nos transportes. Assim, para que a produçãocontinuasse no seu nível de ganhos, nos lucros no mercado internacional, deveriadiminuir as taxas de transportes, continuar com o trabalho escravo e a produçãode café não poderia oscilar nos períodos de maturação do grão.

Nesse momento, por volta do primeiro lustro da década de 1850, observamosa entrada maciça do missionário com os financiamentos aviltantes da acumulação,pois a produção cafeeira prevalece sobre um círculo de produção bastante longo e asua linha de financiamento e comercialização estava sob a égide.

[...] do maciço investimento inicial. Não há qualquer margemde dúvida. O capital mercantil continua a dominar agora a eco-nomia nacional, através da ação do comissário, que alcançaseu auge em 1850, depois compartilhada pelos grandes “ban-cos cafeeiros” que começam a se formar desde então (MELLO,1984, p. 68).

Prossegue-se, nesse patamar, a concentração e canalização em busca denovos investimentos pelos comissários e bancos que apoderavam dos lucros daprodução cafeeira.

Estas condições demonstram que os rumos que se traçam na história docapitalismo tardio brasileiro irão nos mostrar as condições que criaram aemergência de trabalho assalariado através das especificidades gestadas na

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economia nacional com dificuldades de formar uma mão-de-obra ‘adepta’ àscondições do capital, pois o que foi de suma importância para a expansão daeconomia nacional cafeeira escravista, tornou um empecilho para aquisição demão-de-obra assalariada.

Uma delas deu-se pela migração dos fazendeiros para o interior do paíscom a apropriação de terras produtivas para a produção do café e a contínuaescassez de mão de obra escrava que, nesse momento era comercializadanacionalmente ocorrendo ‘perda’ de mão-de-obra escrava para determinadasregiões que estavam em expansão produtiva cafeeira; os pobres e escravos quese tornaram homens ‘livres’ também foram cedidos áreas inaproveitáveis.

Buscando exemplificar melhor, mesmo possuindo uma vida na miséria,os chamados ‘pobres’ e também os ‘livres’ ainda possuíam meios de abarcar asua própria subsistência; desta maneira, não tinham o menor interesse em setornar mercadoria, ou seja, se submeter a égide do capital para garantir a suasobrevivência em troca de míseros salário.

Quando se expandia a economia mercantil-escravista, aos ho-mens livres e pobres era dado ceder terreno, deslocado-se parao interior, ou, então, se fixar em faixas inaproveitadas, poruma ou outra razão, para a produção mercantil e escravista.Quando chegava a crise, em nada se afetava a situação doshomens livres e pobres que, porque dela não dependessem,continuavam pobres e livres, mas, ainda, produtores da pró-pria subsistência. Nem a expansão os punha em cheque, nem acrise desprendia de si este elemento fundamental à constitui-ção do capitalismo, os trabalhadores carentes de meios sociaisde produção e de vida em “quantidade superabundante”. Domesmo modo, a economia de subsistência, dispondo de terrasonde se acomodar, ia se dilatando e fugindo da pressãodemográfica (MELLO, 1984, p. 78).

Com isso, o único meio que se viu para que pudesse haver a expansãodas indústrias seria a expropriação, a concentração em massa desse mercado detrabalho e fazer com que o Estado os obrigasse a “[...] trabalhar para o capital,por um salário abaixo do que seria fixado, espontaneamente, por um teóricomercado de trabalho.” (MELLO, 1984, p. 79)

O Brasil não ficou apenas nessas condições para a formação de ummercado de trabalho. Há também que se lembrar que não havia formado aindauma indústria de bens de produção e, muito menos, não havia ainda uma indústriamanufatureira. Observa-se que, o Brasil não obtinha, na segunda metade doséculo XIX, “Nem industrialização capitalista, nem economia cafeeiraorganizada com trabalho assalariado. A regressão, em longo prazo, deixara deser um mero fantasma.” (MELLO, 1984, p. 80)

Com essa frase de Mello é percebido que, ao invés de regredir na história,

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deu-se inicio a digressão no sistema capitalista através do capital mercantilnacional juntamente com o capital mercantil estrangeiro apoiado pelo Estadobrasileiro. Tem-se, então, por volta de 1865, com o financiamento vindo daInglaterra, a construção de estradas de ferro para diminuir os gastos nostransportes de escoagem do café até chegar aos portos.

Com o surto ferroviário houve condições mais objetivas para que pudessecriar, determinadamente, rumos em prol de uma economia nacional mercantilcafeeira assalariada. Essas condições objetivas foram determinadas pelasconseqüências que esse investimento inglês pôde ‘oferecer’ ao Brasil.

[...] braços até então desviados da lavoura porque aplicadosaos transportes podiam, agora, voltar-se para as culturas; mai-or rapidez nas comunicações, maior capacidade de transporte,baixos fretes; melhor conservação do produto, que apresenta-va superior qualidade e obtinha preços mais altos no mercadointernacional; portanto, possibilidades de maiores lucros, no-vas perspectivas para o trabalho assalariado (VIOTTI, 1966,173-4 apud MELLO, 1984, p. 81).

Na década de 1870 temos a entrada da máquina de beneficiamento decafé – a primeira forma de industrialização que pode dar a produção de cafémaior qualidade ao produto com melhores preços internacionais e menos usoda mão-de-obra escrava. Esse progresso ocorreu no Oeste Paulista, ficando oVale do Paraíba a mercê do processo antigo de produção do café.

O surto ferroviário e a grande indústria de beneficiamento de cafépouparam trabalho escravo, deu qualidade ao seu produto, garantiu investimentosmais seguros para auferir uma margem de lucros significantes; cedendo lugar,dialeticamente, à necessidade de trabalho assalariado pelo grande aumento dasplantações que não possuíam braços suficientes para o plantio e cuidados aolongo do ano. Ou seja, promoveu o desenvolvimento da economia nacionalcafeeira – ainda - escravista em bases mais sólidas e, “[...] ao mesmo tempo, seopõem a ela, criando condições para a emergência do trabalho assalariado.”(MELLO, 1984, p. 82)

Como conseqüência desse desenvolvimento tem, também, a alta do cafétanto nacional quanto internacional, chegando ao seu ápice em 1873. Mas a DepressãoMundial, 1874, fez com que iniciasse a regressão do preço do café internacionalmentee essa depressão não foi motivo para que se elevasse a produção, nacionalmente,quatro anos seguintes a mesma, “[...] chegando a 5,5 milhões de sacas”. (DELFIMNETTO, 1966, p. 21 apud MELLO,1984, p. 82)

Com a elevação da produção entra novamente na grande problemáticaque o Brasil vinha passando desde 1850 com o término do tráfico negreiro – aausência de força de trabalho. Para que pudesse solucionar essa escassez, oscapitalistas – ainda subordinados ao trabalho escravo, adentraram com a questão

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do trabalho assalariado; mas os grandes proprietários fazendeiros e produtoresde café se opunham a essa questão, pois, uma vez que, a sua acumulação faziaemergir com o trabalho escravo, não viam razões para adentrar com oassalariamento da produção de café, fazendo com que aumentassem as despesaspara o escoamento da produção de café, terminaria por dizimar os valores desuas ‘peças’ – escravos – com a emersão da abolição da escravatura e aconcorrência que faria surgir entre as empresas.

Uma solução primária, para que pudessem eximir a questão da escassezda mão-de-obra, foi a imigração. Uma imigração de colonização para o capitale não uma imigração de povoamento, uma vez que os grandes fazendeiros nãoqueriam parceiros, e, sim, mão-de-obra farta para um assalariamento cada vezmais baixo e, substancialmente, aumentar seus lucros.

Nesse período de imigração, por volta da década de 1870-80, nas grandeseconomias centrais, no caso da Europa, já haviam um enorme contingente demão-de-obra excedente. Assim, os imigrados vinham para o Brasil, na ilusão deserem parceiros das terras; mas as condições que estabeleceram aqui foramdiferenciadas do que se propunha ao saírem de sua terra natal.

Esses denominados colonos parceiros adquiriam desde a saída da Europaaté as fazendas de cafezais uma dívida que não poderiam aniquilar e condiçõesde trabalho juntamente e semelhantes aos tratamentos desumanos dos fazendeirospara com os escravos.

[...] o que desejavam os fazendeiros era converter os parceirosem proletários e não fomentar futuros concorrentes. O queambicionavam os parceiros não era se proletarizarem, mas sim,se transformarem em proprietários, encarando sua condiçãocomo espécie de etapa para formar um pecúlio, o bastante paradar o “salto”. (MELLO, 1984, p. 85)

Descartada essa condição de parceira, necessitava-se pensar em outromeio para que pudessem garantir uma mão-de-obra assalariada para as empresascafeeiras, retirando desta, os gastos com os subsídios onerosos para essaimigração.

Entra em cena novamente o Estado para financiar a vinda dessesimigrantes para as grandes empresas cafeeiras, uma vez que, nesta altura, osproblemas com a escassez da mão-de-obra estavam no seu ponto mais crítico.

O Estado nesse momento arca com 100% (cem por cento) das despesasdos imigrantes que se dirigiam exclusivamente para as empresas agrícolas. Essecontingente de imigrante emergiu substancialmente. Um dos motivos para essecrescimento foi devido a falta de incentivos norte-americano e europeu.

Os imigrantes que chegavam ao Brasil eram tipicamente ver-sáteis, muitas vezes demonstrando sua grande mobilidade detrabalho em diferentes campos, do trabalho agrícola ao têxtil e

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à metalúrgica. Eles também tinham mobilidade entre as fron-teiras nacionais, transitando entre Argentina, Brasil e EstadosUnidos. Frequentemente tinham mentalidade capitalista, pro-curando maximizar a aquisição de novas aptidões e o acúmulode economias (SKIDMORE, 1998, p. 105).

Está formada as bases para o abolicionismo juntamente com oimigrantismo. Dito de outra maneira, com mão-de-obra, imigrada, farta para odesenvolvimento da economia nacional e a falta de terras apropriáveis, emergiu,em 1888, o abolicionismo. Já havia, em terras brasileiras nas últimas décadasdo século XIX, força de trabalho suficiente para dar prosseguimento ao sistemacapitalista.

Pelo que se viu, tem-se então, o início de uma economia capitalista nasbases da exportação cafeeira no final do século XIX. Como já foi arrolado, aAmérica Latina, mais especificamente, o Brasil, não possuía ainda indústriasde bens de produção, suas indústrias manufatureiras eram poucas e seestabeleciam em poucos pólos favoráveis a abarcar mão-de-obra, mercadoconsumidor e matéria prima.

Assim, esse desenvolvimento capitalista foi marcado por uma fase detransição para que se pudessem criar condições para a formação do capitalismo.Uma das problemáticas foi a questão da industrialização relacionada com amão-de-obra.

Essas forças produtivas, como segunda condição da consolidação docapitalismo, emergiu nos grandes centros do território brasileiro, no final doséculo XIX, com um grande contingente de mão-de-obra vinda das grandeslavouras de café que, segundo Prado Júnior. (1990, p. 198), “[...] era numerosa,fruto de um sistema econômico dominado pela grande lavoura trabalhada porescravos”, que possuíam, então, ocupações insólitas – pessoas que viam daszonas rurais para o centro urbano e retornavam pelas suas insatisfações, homens‘livres’, desocupados, imigrantes, pobres, mulheres e etc.

Desta forma, os empregadores pagavam baixos salários para essapopulação fazendo com que iniciasse uma industrialização brasileira e, ao mesmotempo, como condição da historicidade – tratamento semelhantes a escravidãoe dependência da venda da força de trabalho para os empregadores em questãode sobrevivência.

Esses foram um dos problemas para a expansão de uma mercadoconsumidor – terceira condição para a consolidação do capitalismo – com suasindústrias rudimentares e uma população sem condições econômicas e sociaisde se inserir num mercado consumidor para o desenvolvimento industrial visandoa geração de lucros no sistema capitalista.

É este um dos aspectos mais progressistas, se não o maior de-les, da nascente industrialização brasileira, pois permitira

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entrosar no trabalho produtivo normal uma categoria impor-tante da população que vivera até aí à margem dele. [...] Falta-va sobretudo o que a moderna indústria fabril e mecanizadaexige como condição essencial de vida: um mercado amplo eem continua expansão, o que as condições sociais e econômi-cas da grande massa da população brasileira não podia ofere-cer (PRADO JÚNIOR, 1990, p. 198).

Essas forças produtivas tiveram sua gênese capitalista tardia no sistemacapitalista brasileiro, considerada determinadamente, pelas condições que ocapital impôs a ela. Isto é, sob o aspecto de uma visão materialista dialética,essas forças produtivas condizem às relações sociais. Relações sociais que foramse desenvolvendo sobre as bases do capital e formando as relações sociaiscapitalistas entre explorados e exploradores. Muda-se, então, a qualidade dasrelações sociais de produção escrava para o trabalho “livre”/assalariado quecontinua fundamentada na exploração e na desigualdade das relações sociaisde produção já existentes.

[...] é preciso considerar que o desenvolvimento das forçasprodutivas assume as formas adaptadas à reprodução das rela-ções de produção dominantes. O desenvolvimento das forçasprodutivas sob a dominação do capital não é somente desenvol-vimento das forças produtivas: é, também, desenvolvimento dasrelações sociais capitalistas. Em outras palavras, reforço da domi-nação do capital sobre o trabalho (MELLO, 1984, p. 96).

No Brasil, o desenvolvimento dessas forças produtivas aconteceu nummomento em que as economias centrais já encontravam no seu estadomonopolista, verificando, assim, um capitalismo tardio, ou seja, retardatárioque foi determinado pelas bases de uma economia cafeeira em que o capitalindustrial e a grande indústria tiveram a sua gênese nessas relações sociaiscapitalistas em que a economia mercantil fundamentou o desenvolvimento dadivisão do trabalho.

Ao reportar as três condições históricas para desenvolvimento do sistemacapitalista e relacioná-las com o desenvolvimento tardio do capitalismo no Brasil,observa-se que as condições históricas – volume do capital, força de trabalho emercado consumidor – mostram que a gênese da grande industrial e do capitalindustrial, no Brasil, também, obtém a sua especificidade relacionada às trêscondições que são, segundo Mello (1984, p. 99),

1) gerar, previamente, uma massa de capital monetário, con-centrada nas mãos de determinada classe social, passível de setransformar em capital produtivo industrial; 2) transformar aprópria força de trabalho em mercadoria; e, finalmente, 3) pro-mover a criação de um mercado interno de proporções consi-deráveis.

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Para que se pudessem desenvolver essas três condições necessitarampromover o desenvolvimento do capital cafeeiro para a formação das grandesindústrias. Como isso ocorreu? Com a sobreposição da taxa de acumulaçãofinanceira sobre a taxa de acumulação produtiva. Desta forma, os capitaisfinanceiros investiram na construção dessas indústrias. E, não devemos esquecer,também, do Estado que financiou o desenvolvimento do capital cafeeiro aocapital industrial pela Política Econômica do Estado.

Essas indústrias foram marcadas pela formação de indústrias de bensde consumo, uma vez que, emergia os mercados de trabalho urbano, as indústriascafeeiras tinham uma demanda para bens de consumo e as economias centraisestavam no seu ápice enquanto investimentos altos para a introdução de umatecnologia mais avançada e os instrumentos para a indústria de bens de consumoera facilmente manuseada e se encontrava, no mercado, para fácil aquisição.

Considerações FinaisEste artigo demonstrou as especificidades com que foram gestadas as

condições de desenvolvimento do capitalismo tardio no Brasil com formaçãode um volume de capital e da criação de força de trabalho que aderissem odiscurso de acumulação de capital. Esta força de trabalho, para os capitalistascom apoio do Estado, precisava produzir mercadorias e, ao mesmo tempo,consumi-las contribuindo para a circulação do capital no Brasil e,consequentemente, para a formação de suas indústrias.

Desta condição permanece a indústria brasileira de bens de consumopara um proletariado que emergia em prol do capital no final do século XIXonde as grandes potências, no seu surto tecnológico, não viam na economia doBrasil condições seguras de investimentos.

Referências

FERNANDES, F. A Revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretaçãosociológica. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

MELLO, J. M. C. O capitalismo tardio. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.

PRADO JÚNIOR, C. História econômica do Brasil. 38. ed. São Paulo:Brasiliense, 1990.

SKIDMORE, T. Uma história do Brasil. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1998.

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QUESTÃO AGRÁRIA E REESTRUTURAÇÃOPRODUTIVA: Reconfigurações e Tendências no BrasilContemporâneo

Maria das Graças Osório P. Lustosa1

Introdução2

Até o final dos anos de 1980 no Brasil predominava nas análises daquestão agrária, um ideário originado do pensamento conservador, para o quala agricultura desempenharia “[...] funções clássicas ao desenvolvimentoeconômico” “[...] balizado em uma modernização sem reformas ou com reformas,ocorreria apenas onde se comprovasse ineficiência da estrutura agrária.”(LUSTOSA apud DELGADO, 2001, p. 157-172). Essa tese prevaleceu nostempos do “desenvolvimentismo”, na ocasião da conhecida “modernizaçãoconservadora” em que as mudanças ocorreram nos interstícios da ordemcapitalista donde se consolidaram um “[...] pacto modernizante/conservador”(LUSTOSA apud DELGADO, 2001, p. 157-172), um padrão de desenvolvimentoe industrialização voltado “[...] à atender às necessidades da acumulação e nãoàs do consumo.” (LUSTOSA apud OLIVEIRA, 2003, p. 50-51). A partir dogoverno Fernando Collor de Mello percebeu-se mais claramente, o rompimentodesse padrão de “crescimento” fundamentado na política intervencionista doEstado. Surge a partir daí, um novo ciclo de organização das relaçõesintercapitalistas forjada pelas imposições da economia competitiva e globalizada,calcada nos processos de ampliação e abertura comercial, a liberalização dosmercados e a financeirização da economia. Com os sinais de esgotamentos dessepadrão entra em cena a programática neoliberal, uma nova ordem mundialeconômico financeira. No setor rural surge um novo ideário sobre o padrão dereforma agrária definido como “O Novo Rural Brasileiro” (SILVA, 1999),preconizado pelos governos Fernando Henrique e aprofundado pelo governode Luis Inácio Lula da Silva com uma redefinição teórico-prática substantivasobre a propriedade da terra no Brasil. O primeiro introduz uma novaclassificação da propriedade da terra que altera seus fundamentos, definida como“agricultura patronal e familiar” (BRASIL, 1996).

Até o final da década de 80 o Estado brasileiro interveio à garantia dofinanciamento da produção na agricultura através das políticas de financiamentoagrícola. Nessa época o Sistema Nacional de Crédito Rural fora o instrumento1 Assistente Social. Doutora em Serviço Social UFRJ. Professora Adjunta da Escola de Serviço Socialda UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE– Campus Universitário do Gragoatá. E-mail – [email protected] Este trabalho é constituído de parte extraída de minha tese de doutorado, intitulada: “A Viabilidadeda Agricultura Familiar no Contexto da Reestruturação Produtiva: Particularidades no Brasil”,defendida no Programa de Pós-Graduação da Escola de Serviço Social – UFRJ, cujo conteúdo originalsofreu modificações e atualizações.

CAPÍTULO 25

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central na “[...] consolidação dos complexos agroindustriais e cadeiasagroalimentares, e na integração de capitais agrários, à órbita de valorização docapital financeiro.” (LEITE, 2001. p. 53). Nesse novo contexto histórico emergemsinais de mudanças como uma expressiva redução na intervenção do Estado naspolíticas agrárias e agrícolas.3 Observa-se que “[...] nos anos 70 a desvalorizaçãocambial bloqueava a entrada de produtos concorrentes e facilitava as exportaçõesagrícolas.” (BELLIK; PAULILO, 2001, p. 98; DELGADO, 1999, p. 234-235). “Aofinal dos anos 70 existia a defesa de um Estado econômico e politicamenteforte, principalmente, na América Latina à qual vivia um contexto de longaduração de regime ditatorial, em tempos” era das nacionalizações, “[...]atualmente a palavra de ordem é a das privatizações” (LUSTOSA et all apudBORÓN, 1995, p. 63-80). A partir de 1990 sucedem profundas alterações nasrelações institucionais, como a “[...] deliberação do poder de regulação doEstado, em função da abertura da economia e a quebra de barreiras àimportação.” (BELLIK; PAULILO, 2001, p. 98). Igualmente nesse períodointensifica-se a inserção do setor privado nos negócios agrários, comopreconiza a “nova” economia social de mercado.

Nos marcos dessa reestruturação produtiva no setor agrário, a aberturacomercial da produção agrícola no Brasil mais precisamente, em 1994 com acriação da Organização Mundial do Comércio (OMC) e em “[...] 1995 os acordosde Ouro Preto sobre o Mercosul” (DELGADO, 1999, p. 233-234), instituem-seprofundas alterações nas relações “multilaterais”4. Os organismos internacionais,Banco Mundial (BIRD) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) definem novosrumos a essas relações, com fortes influências no desenvolvimento da pequenaagricultura. Consolidaram “[...] o princípio de União Aduaneira, e estabeleceramcomo regra geral o princípio de Tarifa Externa Comum para fora da União e livrecomércio de mercadorias para dentro dessa União” (DELGADO, 1999, p. 234),efetivam-se novas regras econômicas e políticas às relações agrárias, como a “[...]liberalização e o desmonte da intervenção direta nos mercados agrícolas [...] restaurao livre cambismo sob a égide dos preços internacionais de ‘commodities’.”(DELGADO, 1999, p. 234).

A partir de 1990 essas mudanças em sintonia com a transição do regimemilitar para o democrático em meio à crise mundial do capitalismo, têmrepercussões internas que se revelaram na opção nacional de ruptura “[...] doprojeto de industrialização nacional [...] abandonado diante do objetivo maiorde pagamento dos serviços” da dívida externa ao capital internacional.5 Sob3 Essas mudanças nas relações agrárias prenunciam alterações no papel do Estado, na ampliação domercado no setor agrário, conforme determinações das políticas de descentralização neoliberal.4 O GATT e a Rodada do Uruguai são organismos geopolíticos multilaterais responsáveis pelanormatização das relações comerciais com o mercado mundial, regulamenta as políticas agrícolasnacionais em suas relações com o mercado internacional.5 Ver a análise de Pochmann (2010, p. 81).

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esse marco histórico se alteraram os rumos do projeto de desenvolvimentonacional direcionado a novas bases de sustentação econômica, calcada nafinanceirização da economia (POCHMANN, 2010, p. 81). Esses fenômenosacenam para novas relações do Estado com os segmentos que trabalham naterra com fortes repercussões à consolidação do monopólio da terra e doagronegócio.

Esse projeto civilizatório exerce influências singulares nos paísescapitalistas periféricos como o Brasil. As reformas iniciadas desde 1980,resultantes das imposições da nova divisão nacional e internacional do trabalho,donde os acordos entre as instituições financeiras internacionais e o governobrasileiro objetivavam recuperar seus interesses econômicos a despeito doendividamento dos países pobres. O resultado foi o fortalecimento do aumentodas exportações de matérias-primas originadas dos países endividados(POCHMANN, 2010, p. 84). Tais medidas consolidaram ainda mais, a condiçãode desigualdades e a subordinação econômica de países pobres, às economiascentrais como os Estados Unidos, situação agravada nessa conjuntura deeconomias financeiras mundializadas. Prevalece à lógica comercial a exportaçãode matérias-primas por parte dos primeiros, como condição determinada nessasrelações intercapitalistas para o “[...] enfrentamento da crise da dívida externa”(POCHMANN, 2010, p. 88), contudo, ineficaz, diante da emergência da crisedos setores produtivos. Isso se deve principalmente, em certos setores daagricultura, enquanto fornecedora de bens primários, essa dinâmica recai commais força sobre os setores produtores de alimentos, principalmente os pequenosprodutores. A lógica de exploração de monoculturas destinadas à exportaçãotem contribuído para materializar esse padrão que consolidou a divisão entre“terra de negócios e terra de trabalho” (PAULINO; ALMEIDA, 2010, p. 93)

Essa condição revela uma desimportância e queda da produção naagricultura em suas contribuições na economia nacional, fato tambémidentificado em diversos países, em especial no Brasil, considerando-se o papelque o Estado assumiu em outras décadas, como importante financiador dodesenvolvimento desse ramo da produção. O que se conclui é que essaprocessualidade é uma resultante da transição da condição entre uma economiaprodutiva para a esfera especulativa-financeira. “A Organização das NaçõesUnidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) calcula que a produçãomundial de cereais diminuirá em 2009.” Acrescenta que, “[. . .]principalmente, na América do Sul, onde já caiu a de trigo e persiste a faltade chuvas. Segundo estimativas dessa instituição, a crise alimentar persisteem 32 países do mundo.” “A FAO calcula que as reservas de cereais para2009/2010 se situarão em 496 milhões de toneladas, o nível mais alto de2002” (FAO..., 2009, online). Dados do IBGE também “[...] mostram umaqueda na contribuição da agropecuária no PIB nacional, como o caso do Brasil,

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que contribuiu com apenas 6,7% do PIB” (apud PAULINO; ALMEIDA, 2010,p. 74). Em outros países da América Latina essa queda de participação no PIBse repete: na Colômbia foi de 7,5%, Argentina de 11%. Ou seja, “[...] aparticipação da agricultura no conjunto dos países da América Latina e do Caribefoi reduzida a 6,4% contra 30,4% do setor industrial e 63,3% dos serviços.”(PAULINO; ALMEIDA, 2010, p. 74). “Dados atuais confirmam que a agriculturaem 2009 foi o setor que mais demitiu, com o fechamento de 15,3 mil vagas.”(AGRICULURA, 2010, online). Enquanto na indústria brasileira, segundo dadosdo IBGE, “[...] o nível de emprego teve uma queda de 0,6, o maior desde outubrode 2003 (0,7%)” (apud LUSTOSA et al, 2010). Efetiva-se em paralelo “[...] umrecuo significativo da produção industrial brasileira que também sofreu umaqueda de 5,2 %, considerada como a maior, desde 1995 e 6,2% se comparadacom o mesmo período de 2007, visto como o mais intenso recuo desde o mês dedezembro de 2001 que chegou a 6,4%” (LUSTOSA et al, 2010). QUAL?????2010a ou 2010b

As Relações Agrárias e a “Mundialização Financeira”No âmbito dessas novas relações agrárias nesse contexto de

“mundialização financeira” (CHESNAIS, 1996) registram-se os encontrosinternacionais de reorganização geopolítica e econômica intercapitalista. O Brasilno ano de 2003 liderara a criação do G 206, que desde 1999 foi criado, sendoformado pelos 20 maiores países de economias capitalistas, incluindo paísesricos, como os Estados Unidos, Europa, e os emergentes: Brasil, China e Índia,os chamados (BRICs). Esses países procuravam dar respostas à crise do sistemafinanceiro internacional num clima de intensas divergências e resistências, frenteàs novas formas de regulação econômica e social das políticas dedesenvolvimento e crescimento. Assim, os acordos multilaterais em prol daabertura comercial dos mercados nacionais e internacionais como determinamos organismos financeiros internacionais, OMC, BIRD e o FMI, reafirmaramessas diferenciações de papéis entre economias centrais, União Européia e osEstados Unidos e países emergentes como o Brasil.

Resguardados os limites desta análise, duas questões ganham destaquenessas relações: a primeira refere-se às relações de produção em que se efetivama intensificação da competitividade econômica-financeira e política entre ospaíses, além do que, acirram-se as disputas políticas pela hegemonia econômicamundial sob o comando dos Estados Unidos. Por sua vez, o Brasil, encampauma luta contra as medidas protecionistas na produção agrícola, defendidas a

6 O G 20 é um grupo formado pelas vinte maiores economias capitalistas do mundo, onde se reúnemos líderes dos países que representam cerca de 90% do Produto Interno Bruto, (PIB - conjunto debens e serviços produzidos) mundialmente e dois terços da população do planeta. (OLIVEIRA, 2009,p. 27).

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fogo e ferro pelos países ricos, nas quais os países pobres continuam a se manterna condição de exportadores de matérias – primas, em especial, no setor agrícola.

Os países consolidam cada vez mais os mecanismos de proteção dosseus mercados. Nesse sentido, é que afirmamos que a globalização assumesignificados e impactos distintos, com refrações no mundo do trabalho e daprodução, sobretudo, em países como o Brasil, com expressões importantes àscondições de desigualdades regionais, de soberania.

Sabe-se por outro lado, que o histórico fracasso da Rodada de Doha, naOrganização Mundial do Comércio (OMC), suspensa e/ou sem sucesso pormais um ano, encontro esse, no qual o Brasil se diferenciou como um dos paísesexportadores de matérias-primas agrícolas e tivera maior interesse, embora semsucesso, frente ao desinteresse dos países ricos como Estados unidos e UniãoEuropéia que, na regra do jogo apresentaram divergências, em relação às regrasdas políticas protecionistas. Pode-se afirmar nesta “[...] fase imperialista docapitalismo” um acirramento das competitividades e rivalidades entre os paísesricos e os emergentes pela intensificação e o fortalecimento das relações deforça aí travadas (LENIN, 1987, p. 95).

Contudo, a OMC tem registrado queda no setor produtivo doagronegócio brasileiro, cuja participação na economia globalizada mostradiferenças em relação aos países ricos. Esses países resistem fortemente contraas concessões que porventura alterem sua supremacia econômica. Na Rodadade Doha da OMC, os EUA descartaram avanços nas conversações feitas emmarço de 2007, cujas notícias confirmaram a impossibilidade dos países decapitalismo central em fechar o acordo sobre redução de barreiras comerciais.(BERLINCK , 2007, p. 23-24). Inversamente, a ampliação da participaçãopolítica entre esses países, que reforçam a defesa do sistema financeiro mundial.

No âmbito do desenvolvimento agrário brasileiro, o padrão depropriedade fundamentado no agronegócio aprofunda à exploração da terra efaz emergir novos ramos da produção de monoculturas para exportação comosoja, milho, mamona, e cana de açúcar, esta destinada à produção de Etanol,para atender a produção dos chamados “agrocombustíveis”, ou a “agroenergia”.Essa diversificação da produção na óptica oficial vai responder à “crise de energiano mundo”. É importante dizer que esses produtos hoje, considerados comofontes naturais, são economicamente mais atrativos aos interesses do capitalfinanceiro, internacional e nacional.7 Não por acaso, o agronegócio brasileiroatualmente responde por 1/3 do PIB nacional, quase metade das exportações ealoca 38% da força de trabalho do país.8 No entanto, esse setor de produção é o

7 Conforme o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA) – documento divulgado nainternet. “CONSEA questiona modelo de produção e consumo de alimentos.” (CONSEA, online).8 Conforme declaração do relator do Novo Código Florestal brasileiro, Deputado Aldo Rebelo(CARELLI, 2010, p. 74-76).

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que menos emprega, quando agrega apenas 25,6 % dos trabalhadores do campo;enquanto que a pequena produção emprega 74,4% da força de trabalho. Osavanços desse setor fazem com que o Brasil se destaque como um grandeprodutor de soja do mundo9, apesar da queda cíclica entre os anos 2009 US$13,55 para US$ 7,929 bilhões em 2010, resultado de dispensa da força detrabalho, especialmente, o não qualificado. As altas tecnologias e a monoculturareduziram o número de empregos, daí a razão da grande propriedade mostrar-se“[...] 10 vezes menos que a agricultura familiar, afora a depredação que olatifúndio provoca no meio ambiente e a biodiversidade [...].” (MOVIMENTODOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA, online).

As Novas Tendências do Desenvolvimento Agrário e AgrícolaPortanto, vivemos um período em que a agricultura em seus avanços

tecnológicos cada vez mais se integra à lógica do mercado. As reformasneoliberais acenam à desaceleração da produção em diferentes níveis. Emconsonância com os princípios neoliberais essas reformas reforçam a garantiade abertura dos mercados, com vistas “[...] a mercados livres e de livre comércio.”(HARVEY, 2008, p. 75). Essa abertura dos mercados é determinada naprogramática, de remover

[...] todas as barreiras ao livre movimento” em que os “(...)movimentos de mercadorias e de capital é entregue ao merca-do global” e a “(...) competição internacional é tida como sau-dável, já que melhora a eficiência e a produtividade, reduz ospreços [...] e controla as tendências inflacionárias” (HARVEY,2008, p. 76).

Os desencontros entre as esferas produtivas e financeiras forjam umadesorganização com sérios agravamentos à distribuição da riqueza, da renda.Essas metamorfoses recriam significados das formas sociais de subordinaçãodo trabalho, mecanismos de produção, troca e distribuição. É sob a perspectivado trabalho à luz das formas de “como os homens produzem” e em que“condições produzem” (MARX, 1991, p. 27-28), que podemos apreender atotalidade social. Esse caminho revela a essência das relações entre o capital eo trabalho, como um processo desigual, atravessado por exploração, não seencerra nas esferas da distribuição, da produção e do consumo na produção de“valor de uso”, mas enquanto conjunto de relações interdependentes. Como dizLuckács apoiado em Marx, “[...] antes de ser distribuição de produtos, [...] éprimeiro, distribuição dos instrumentos de produção, e, segundo, distribuição

9 O aumento das exportações de soja no Brasil ainda que não se constitua um setor produtivo de pontarevela certa prioridade, quando em 2007 o país exportou US$ 8,905 bilhões de dólares, em 2008 foi9,152 e em 2009, 13,555. Em 2010, há uma queda expressiva, US$ 7,929 bilhões de dólares. Ministériodo Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (OLIVEIRA, 2010, p. 30-32).

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dos membros da sociedade pelos diferentes tipos de produção.” (LUCKÁCS,1979, p. 71).

Em relação à evolução das forças produtivas, o modo capitalista deprodução, em sua “fase tardia”, para usar os termos de Mandel, tem como umade suas características, o fato “[...] de que a agricultura está se tornando tãoindustrializada quanto à própria indústria, a esfera da circulação tanto quanto aesfera de produção, o lazer tanto quanto a organização do trabalho.” (MANDEL,1982, p. 271-272). Por conseguinte, os avanços desses processos consolidamnovas modalidades, sob a forma clássica do capitalismo, em que a “centralização”de capitais, ou seja, a “reprodução ampliada” completa o processo deacumulação, onde os capitais ampliam seu rastro de operação para vários setoresda indústria de matéria-prima e buscam integração maior com o consumo.

Tem-se nessa processualidade a ampliação dos sistemas produtivos, emque o capitalismo globalizado expande sua atuação para diferentes campos,reconstrói novas bases mais adequadas às suas necessidades. Com isso, “[...]acelera os efeitos da acumulação, a centralização, amplia e acelera ao mesmotempo as transformações na composição orgânica do capital [...] aumentam aparte constante à custa da parte variável, reduzindo assim a procura relativa detrabalho.” (MARX, 1971, L. 1, v. 2, p. 729).

Essas mudanças afetam os processos de trabalho, sob o ângulo da pequenaprodução acenam à idéia de que o aprofundamento não só quantitativo, masqualitativo dos avanços tecnológicos forjam a “[...] subordinação direta do processode trabalho ao capital’, donde ‘a subsunção real do trabalho’ como uma forma superiorde produção de mais-valia, agrega valor à matéria-prima, o que corresponde àindustrialização da agricultura.” (MARX, 1971, L. 1, v. 2, p. 727-729).

Essas relações nos remetem à divisão da propriedade da terra. “Pesquisasdo INCRA mostram que, 1,6% dos imóveis rurais concentram 43,8% de todasas terras; em oposição, a 20% do que resta está distribuído em 85% de todos osimóveis rurais.” (PAULINO; ALMEIDA, 2010, p. 13). Constata-se também,que no Brasil “[...] apenas 46 grandes grupos econômicos controlam, sozinhos,mais de 20 milhões de hectares de terras.”10 O padrão atual de relações agráriasde forte expressão na “agrodiversidade”11 mostra novas tendências dodesenvolvimento rural, uma delas é a diversificação da produção em novasformas de produção, além da agropecuária, via recriação de atividades produtivasnão agrícolas, e a expansão do setor de serviços etc. Essas podem variar desde10 Ver em Stédile (2002) que cita o Grupo Votorantin como exemplo de diversificação da centralizaçãode capitais, pois só esse grupo é dono do maior projeto de laranja em São Paulo, além de produção decimento, da propriedade de banco, de fábrica de computador e de fax bem como proprietário de terrase de gado.11 Termo utilizado na nova concepção sobre o “novo mundo rural”, cuja tese afirma que esse setor nãopode mais ser explicado apenas no campo da produção agropecuária. Maiores detalhes, ver Silva(1999, p. 5).

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a criação de peixes, plantações de flores, trabalhos artesanais, pequenas oficinasde meios de trabalho e equipamentos agrícolas.

A outra face dessas relações no conjunto das reformas na políticamacroeconômica, tais como a “desvalorização cambial de 1999 e da políticacambial posterior”12, trouxeram muito mais vantagens ao setor agropecuárioempresarial, pelo aumento das vendas de máquinas e instrumentos agrícolasformando o alicerce tecnológico necessário ao desenvolvimento da produçãocapitalista. Somente no período entre “[...] 1996 e 2002, a venda de máquinasagrícolas para o setor de agronegócios cresceu em 190,7% [...] .” (GASQUES,2004, p. 5).

Em tempos recentes, o crescimento da exportação de produtos agrícolas– ou seja, de matérias-primas expressam essa dinâmica. De janeiro a julho de2004, as exportações brasileiras cresceram 32,5% no ano, somando US$ 52.298bilhões. No período de agosto de 2003 a julho de 2004, as exportações, demodo geral, somaram US$ 86,275 bilhões e as importações, US$ 55,402 bilhões.(LUSTOSA, 2006, online). A maior parte das importações refere-se à comprade bens de capital, as máquinas, os quais vêm impulsionando tanto a indústriaquanto o agronegócio. (SALGADO, 2004, p. 88-100). Esse incremento dosavanços tecnológicos voltados à obtenção de lucros mais efetivos viabiliza oslucros desse novo padrão de acumulação hoje definido como “acumulaçãoflexível” (HARVEY, 1999). Nessa direção, o governo brasileiro “[...] para asafra de 2007/2008 repassou ao agronegócio, recursos no valor de R$ 58 bilhõesenquanto para os agricultores camponeses foi repassado recurso no valor deR$12 bilhões.” (MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEMTERRA, online). Essas diferenças de certa forma indicam tendências dessenovo padrão de regulação econômica, como mostram pesquisas semelhantes,sobre esses novos imperativos de acumulação que tem na “financeirização dariqueza” e na “secundarização do setor produtivo” as suas bases centrais dereprodução capitalista (POCHMANN, 2004, p. 8).

Por exemplo, segundo o IPEA, o agronegócio é o setor da economiaque mais cresceu, mas isso tem oscilações cíclicas por razões inúmeras nessasrelações. Só no ano de 2002, ele respondia por 41,15% das exportações, issoem função da abertura de sua economia e da conquista de mercadosinternacionais na venda de matérias-primas, – grãos, carne bovina e suína –para países como: China, Rússia, países do Oriente Médio, Chile e Indonésia.13

Esse avanço tecnológico viabiliza o processo de valorização, subordinando o

12 Relatório do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA – DISET) “Desempenho eCrescimento do Agronegócio no Brasil: Síntese dos Fatores Explicativos (resumo executivo).(GASQUES, 2004, p. 5).13 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Desempenho e Crescimento do Agronegócio noBrasil. (GASQUES, 2004, p. 9-11).

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trabalho de forma que o trabalho morto, objetivado, conduz a dinâmica dosprocessos de trabalho; nas palavras de Marx (1971, L. 1, v. 2, p. 54): “[...] não éo trabalho vivo que se realiza no trabalho material [...] é o trabalho material queconserva e acrescenta pela sucção do trabalho vivo, [...] se converte em valorque se valoriza em capital.”

No período de 2009/2011 esse modelo de “crescimento” se inverte,quando as importações atingiram um crescimento significativo14, na faixa de60% enquanto as exportações atingem um pouco mais de 20%.15 A rigor, não setrata de simples alterações internas, pois em quase todos os países do mundo,não apenas aqui, esses acontecimentos vêm aflorando com consequênciasdiversificadas no campo da produção, do trabalho e da reprodução, sendo umadelas, a alta silenciosa dos preços, principalmente, dos alimentos (LUSTOSA,2009 apud MALUF, 2009, PÁGINA). SEM REFERÊNCIA

Algumas Particularidades das Relações de Propriedade no BrasilÉ verdade que a propriedade privada da terra no Brasil está diretamente

relacionada a essa dinâmica do desenvolvimento agrário. Os históricos conflitose tensões sociais vivenciados nas áreas rurais entre proprietários fundiários eocupantes de terras demonstram esses antagonismos. O crescimento das invasõesde propriedades16, o número de acampamentos de trabalhadores rurais montadosde Norte a Sul do País, expressam insatisfações com o não cumprimento da funçãosocial da propriedade privada da terra, fato importante nessa análise. Dados daComissão Pastoral da Terra (CPT) mostram que a nova política de reforma agráriano Brasil não fica isenta de responsabilidade frente ao quadro extremamentecomplexo de violência no campo.17 A permanência da concentração da estrutura14 O Jornal o Globo publicou uma matéria sobre o aumento das importações, agora veiculada pelos Estadose mostra os desafios da guerra fiscal. Assim diz a matéria, “[...] 18 unidades da federação reduziram a zeroo ICMS para os produtos importados.“ Isso equivale dizer que o Brasil “[...] corta ICMS, para atrairempresas e preço de importações cai até 40%.“ Com isso favorece o comércio externo, que aumenta avenda de suas mercadorias que passam a ter preço menor em nosso país, mas prejudica a indústria nacional,em especial, perde-se postos de trabalho, etc. (OLIVEIRA; BECK, 2010, p. 29-32).15 Informações obtidas por notícias da imprensa televisiva.16 Segundo Miguel Rosseto, Ministro do Desenvolvimento Agrário, existem 120 mil famílias acampadase um total de 700 mil famílias cadastradas pelo Correio, aguardando assentamentos. Dados acessadosem Jornal do Brasil Online, extraídos de entrevista com o ministro realizada no dia 8 de julho de2003, ocasião da publicação da proposta de Reforma Agrária perto das cidades e dos consumidorespleiteada pelo governo Lula da Silva. (REFORMA..., 2002, online).17 Ver informações extraídas de relatório da CPT e apresentadas no artigo de Juliano. A CPT reconheceo Estado como o principal responsável pela situação de violência com os trabalhadores da agricultura:“Em 1998, os conflitos no campo chegaram a 1.100, contra 736 em 1997, impulsionados pelo aumentodo conflito de terra, trabalhistas e de seca.“ “A Região Nordeste apresenta o maior número de casosde conflitos (542), a Sudeste 195 a Centro – Oeste 133, a Sul 130 e a Região Norte com 100.“ “Asocupações de terras continuam mantendo crescimento desde o início da década, saltando para o totalde 599, em 1998 (em 1991 foram 77, em 97 foram 463) envolvendo 76.482 famílias (em 91 foram14.720; em 1997 foram 58.266.” (CARVALHO FILHO, 2001, p. 217-218).

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fundiária tem relação direta com a extração da “renda da terra” como um forteatrativo na conservação da propriedade. Isso instiga observar a relação entre apropriedade privada e a “renda absoluta”, já que esta só pode existir na agriculturamediante um atraso que se acumulou no decorrer do processo histórico, atrasoque é assegurado pelo monopólio. (LENIN, 1980, p. 85).

O monopólio da propriedade é um fator de atraso cuja irracionalidadedesta no sistema capitalista de produção torna impeditivo ao desenvolvimentodo capital, sendo esta uma diferenciação entre o padrão brasileiro e o clássicomodelo do capitalismo agrário de países que fizeram a reforma agrária;exatamente, para remover esse obstáculo. Por conseguinte, a importância dapropriedade privada da terra se intensifica nesse contexto do capitalismoespeculativo mundializado. Ora, não foi o próprio capitalismo que uniu emuma única as três formas de capitalismo – o agrário, o industrial e o financeiro– desde os anos 1970 com o episódio da formação dos complexos agroindustriaisbrasileiros?

Essas particularidades do capitalismo agrário brasileiro consolidaram umpadrão equivocado, por não ter eliminado o latifúndio para fazer a reforma agrária.Ao manter a terra concentrada no modo de produção capitalista, conserva traçosparticulares quando se confirma que “[...] a propriedade privada da terra impedea livre concorrência, impede a nivelação do lucro, a formação do lucro médio nasempresas agrícolas e não-agrícolas.” (CARVALHO FILHO, 2001, p. 85), se é fatoque faz parte da lógica burguesa à reprodução do sistema mercantil, remover osobstáculos impeditivos de seu pleno desenvolvimento. Confirma-se esta questãoquando o IBGE mostra que no “Censo de 2006, 86% dos estabelecimentos noBrasil ocupam 21,4 % das terras, ao passo que 0,9 dos estabelecimentos controlam44,4% das terras.” (PAULINO; ALMEIDA, 2010, p. 13).

Por fim, estas considerações deixaram explícito que o significado da“renda da terra” nas relações sociais de produção denota que: “[...] a renda daterra resulta das relações sociais nas quais se faz a exploração [...]” e que “[...]a renda da terra provém da sociedade, e não do solo.” (MARX, 2001, p. 144;1991, L. 3, v. 4).

Con[siderações FinaisO conjunto destas reflexões sobre as particularidades e as tendências

da questão agrária brasileira em tempos de “neoliberalização”18 permitiu-nosapreender as novas ofensivas capitalistas, que têm à concentração de capital e apropriedade privada da terra as bases fundamentais à intensificação das relações“capital-terra”. Identificamos também, resguardados os limites deste objeto deestudo, que “[...] a acumulação dos capitais aumenta e diminui entre eles a18 Me aproprio do termo “neoliberalização” extraído do livro original de David Harvey (2008, cap. 3,6), sua discussão sobre o Estado neoliberal.

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concorrência, quando o ‘capital e a propriedade agrária’ se encontram unidosnas mesmas mãos, e também quando o capital é capaz, devido ao seu aumento,de combinar diferentes ramos da produção.” (MARX, 2001. p. 95, grifo nosso)

A centralização de capital é entendida como acumulação em “[...] mãode um só, porque escapou das mãos de muitos outros, o que [...] não se confundecom a acumulação e a concentração.” (MARX, 1971, L. 1, v. 2, p. 722-729). Éesta uma “metamorfose” que o capital utiliza para se reproduzir e garantir suareprodução e acumulação. Assim, transforma-se em proprietário de terras e daprodução social, uma vez que “[...] o capital não pode existir sem a propriedadeda terra – a transformação das condições de trabalho em capital pressupõe queos produtores diretos sejam expropriados da terra. [...] A propriedade da terra éproduto do capital.” (ROSDOLSKY, 2001, p. 44-46).

Portanto, em qualquer tempo histórico, torna-se impensável adesvalorização da propriedade no caso, a imóvel, aos interesses do capitalismo,sobretudo, nesses tempos de neoliberalismo. Ao contrário, “[...] o monopóliofundiário” vai resultar na potencialização dos tributos, na medida em que, “[...]quanto menos proprietários, maior a possibilidade de uso produtivo condicionadoa elevadas taxas de renda da terra.”19

Outra tendência dessas reconfigurações das relações agrárias é o fatode países da periferia como o Brasil permanecerem como grande exportador dematérias-primas, diante do acirramento das disputas econômicas. Um país comoo Brasil, com vasta disponibilidade de riquezas naturais, vegetais, minerais,tem expressiva condição de contribuir no aumento da competitividadeintercapitalista, inclusive fomentar disputas territoriais, hoje tão presentes. Issoresulta no reforço às subalternidades econômicas de países pobres aosimperativos dos países ricos, nessas relações.

Estes são alguns dos novos desafios colocados à sociedade brasileira,aos movimentos sociais organizados, urbanos e rurais, aos quais cabe à lutapela realização das grandes reformas estruturais: a reforma agrária, tributária,da previdência, em buscar vias possíveis de mudanças nos níveis dedesigualdades sociais, pobreza, renda, propriedade e na distribuição da riquezasocialmente produzida. Corroborando com Pochmann (2010, p. 183), taismudanças vão depender de “[...] uma grande revolução na propriedade. NoBrasil que pouco avançou na democratização da propriedade [...] mantendoapenas 6% de toda a população com posse dos meios de produção. As reformas,urbana e tributária com justiça social permitiriam consagrar o avanço do Estado.”Portanto, invoca-se outro modelo civilizatório, que se contraponha à clássicatese: “[...] a produção capitalista, [...] só desenvolve a técnica e a combinaçãodo processo social de produção, exaurindo as fontes originais de toda riqueza:a terra e o trabalhador.” (MARX, 1971, L. 1, v. 2, p. 578-579).

19 Ver análise sobre a aliança-terra-capital no Brasil de Paulino e Almeida (2010, p. 83).

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Referências

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