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QUINAXIXE

QUINAXIXE · 2016-07-05 · da chuva, vermelhos como gotinhas de sangue, e o Martini vendera já as melhores maçãs da Índia, que ti-nham caído da véspera. Os criaditos acorriam

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TÍTULO: QuinaxixeAUTOR: Arnaldo SantosCapa: José João1.a Edição: Casa dos Estudantes do Império.

Colecção de Autores Ultramarinos. Lisboa 1965Composição e impressão: Grafitécnica. Lisboa2.a Edição: União das Cidades Capitais de LínguaPortuguesa (UCCLA)A presente edição reproduz integralmente o texto da1.a edição.Artes Finais da Capa: Judite CíliaComposição e Paginação: Fotocompográfica. Almada.Impressão: Printer Portuguesa. Mem Martins.

Esta edição destina-se a ser distribuída gratuitamente peloJornal SOL, não podendo ser vendida separadamente.Tiragem: 45 000Lisboa 2015Depósito Legal: 378 498/14

Apoios Institucionais:

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COLECÇÃO AUTORES ULTRAMARINOS

ARNALDO SANTOS

q u i n a x i x e

EDIÇÃO DA CASA DOS ESTUDANTES DO IMPÉRIO

L I S B O A

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COLECÇÃO AUTORES ULTRAMARINOS

SÉRIE LITERATURA

N.o 1 — Amor, de M. António (esgotado)N.o 2 — A Cidade e a Infância, de Luandino Vieira (esgotado)N.o 3 — Fuga (Poemas, 1960), de Arnaldo Santos (esgotado)N.o 4 — Poemas, de Viriato da Cruz (esgotado)N.o 5 — Poemas de Circunstância, de António Cardoso (esgotado)N.o 6 — Terra de Acácias Rubras, de Costa Andrade (esgotado)N.o 7 — Kissange, de Manuel Lima (esgotado)N.o 8 — Poemas, de Agostinho Neto (esgotado)N.o 9 — Poemas, de António Jacinto (esgotado)N.o 10 — Poesias, de Alexandre Dáskalos (esgotado)N.o 11 — Poesia Angolana, de Tomaz Vieira da CruzN.o 12 — Diálogo, de Henrique AbranchesN.o 13 — Caminhada, de Ovídio Martins (esgotado)N.o 14 — Chigubo, de José CraveirinhaN.o 15 — Quinaxixe, de Arnaldo Santos

SÉRIE ENSAIO

N.o 1 — Literatura Angolana (resenha histórica), de Carlos Ervedosa(esgotado)

N.o 2 — Consciencialização na Literatura Caboverdiana, de OnésimoSilveira

N.o 3 — Negritude e Humanismo, de Alfredo Margarido

SÉRIE ETNOGRAFIA

N.o 1 — Cancioneiro Popular Angolano (subsídios), de Gonzaga Lambo(esgotado)

N.o 2 — Canções Populares de Nova Lisboa, com um ensaio interpreta-tivo de Alfredo Margarido

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Àquela hora, já não havia os aveludados bichinhosda chuva, vermelhos como gotinhas de sangue, e oMartini vendera já as melhores maçãs da Índia, que ti-nham caído da véspera. Os criaditos acorriam a reca-dos das senhoras do Quinaxixe e saíam agitando guin-das coloridas que giravam no ar. Alguns comerciantes,findo o primeiro afluxo com os matabichos dos traba-lhadores da madrugada, descansavam à porta e entreti-nham-se tentando surpreender negrinhas púberes.

Junto do Canelas, o Bairro do Cruzeiro crescia de-vagar, sob o rumor intenso dos instrumentos de traba-lho das oficinas da Bricon. Até no Cemitério, comobranco quintal de cruzes e flores, a vida aparecia comaqueles que se quedavam sob a terra, e a sineta como seu toque frágil, de vez em quando, acrescia aostons confiantes do trabalho, uma nota de impereni-dade.

O sol elevava-se com a vida. O Nito então tentouescapar.

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Meio agachado, com a respiração truncada pelaatenção, baixava-se amiúde entre o capim, como fle-chando gafanhotos e olhava oblìquamente para o por-tão. Ninguém. As janelas vazias, o portão fechado,o criado esquecido da vigilância.

Momentos antes saíra ostensivamente pela portada frente, armado de arco e das flechas. «Para ondevais Nito?» — perguntaram. «Vou brincar aqui mes-mo...» — e realmente brincara ali mesmo, pertinho decasa.

Mas agora tentava em corridinhas rápidas enco-brir-se com a casa de D. Joana, para procurar os com-panheiros do bairro que certamente já o esperavam.Ficava o criado, o Cumbage, passivo responsável dassuas fugas, perante a justiça sempre igual e inflexívelda D. Zulmira. «Eu já te disse que não quero o meni-no a estorricar ao sol.»

Mas nem sempre o Cumbage era fàcilmente logra-do. Curtido, espiava-o às vezes do fundo do quintalonde a sua cabeça encarapinhada aflorava na linha lar-ga e azul do muro alto. Via-o silencioso esgueirar-secomo uma onça, e sorria cabindamente quando eledisfarçava, fingindo mergulhar no capim como paraagarrar quinjongos, mas calava-se e consentia.

Poucas vezes porém o Nito se lembrava do Cum-bage. Talvez a mamã lhe batesse, como sempre, poraquilo ou por factos diferentes. Era hábito. Encolhiaos ombros.

— Eh! miúdo...!

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O Barriga de Ginguba assustou-se, apanhado emflagrante. Escondeu precipitadamente, atrás das cos-tas, o que tinha na mão, e ficou imóvel, vendo-o apro-ximar-se, à espera, com a boca entreaberta ainda sujade barro vermelho e os olhos mortiços, apagados.

Enquanto se encaminhava para ele o Nito lem-brou-se de que ele ia morrer. A sua mãe repetia-osempre que o via passar com a sua enorme barriga.Coitado! Era melhor deixá-lo à vontade, pensou. Seele tinha fome...

— Então... — disse com intenção de não o atemo-rizar.

O Barriga de Ginguba não respondeu, seguindo--lhe os movimentos, desconfiado. O Nito abaixou-seesgaravatando um buraco de formiga com a ponta daflecha. Precisava de lhe demonstrar que não o queriacontrariar, ter um gesto que o tranquilizasse. De súbitolembrou-se, e estendeu-lhe um grande torrão de barroavermelhado.

O Barriga de Ginguba olhou-o surpreendido, masencolheu os ombros recusando, e por sua vez, lenta-mente retirou a mão de trás das costas e ofereceu-lhetambém um pedaço de barro endurecido. O Nito pe-gou nele receoso e provou para não o desgostar. Sen-tiu a boca encher-se de saliva. Afinal era gostoso!Mas lembrou-se das palavras lúgubres da mãe e cus-piu.

No passeio do Pitta-Groz contou com grande exa-gero aos amigos, o sucedido. O Dino achou que de-viam ir pedir comida a casa para lhe irem levar.

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— E se déssemos o dinheiro da rifa? — propôso Rui.

— Mas os quadros ainda não estão prontos... —lembrou o Gigi, para quem o assunto parecia inadiá-vel.

— Mas o pai dele, porque é que lhe não dá comi-da? — perguntava o Neco recriminando o egoísmodos pais do Barriga de Ginguba.

A discussão animou-se de pormenores e sugestões.Mas os pais dele não tinham dinheiro? O Dino asse-gurava que o criado dele recebia dinheiro e comida.

Velho Congo ua dilongo...

Em ritmo da conga em voga, os filhos do empre-gado da Invicta cantavam para atazanar um negro ma-luco que ia a passar.

— Olha o velho Congo! Vamos também... — gri-tou o Rui. E correram todos já esquecidos da discus-são, mas o Dino ficou para trás.

Era franzino e detestava violências. Eles iriam cer-tamente atirar-lhe pedras, quando o maluco se virassepara os enfrentar. Felizmente nunca o acertavam.

Finda a perseguição tinham-se distanciado muitoda loja do Pitta-Groz, e estavam perto da Casa dosSantos, um maciço casarão de 1.o andar, rodeado deestátuas à entrada e que servia de colégio da D. Berta.Nas histórias dos meninos do Quinaxixe dizia-se queà noite as estátuas falavam entre si e desciam dos pe-destais. O Dino recusou-se a prosseguir.

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— O meu avô pode-me ralhar — pretextou.Os companheiros entreolharam-se. Sabiam que

o Dino não ultrapassava uma certa distância de casa.— Vamos só até ali, nas barrocas da LAL, apanhar

uns tubos — insistiram. Os tubos eram de chumboe faziam parte da canalização da Luz e Água, que re-bentara, e que eles surripiavam para trocar por chupa--chupas na loja do Mário Maluco.

— Olha, depois não te damos nenhum! — amea-çaram o fugitivo que já corria para casa.

** *

Uma pírula cantou do alto da mafumeira e o Má-rio avisou os companheiros que eram 11 horas. Comoconfirmação ouviram pouco depois a sineta do Cemi-tério soar fracamente. Eram realmente 11 horas. Aságuas barrentas da lagoa do Quinaxixe estavam aco-breadas e pareciam metálicas e espessas sob o sol in-tenso.

O único refúgio que lhes permitiria continuara pescar abrigados do sol, era uma mafumeira que aságuas transbordantes da lagoa tinham quase rodeadoe que aparecia como uma ilhota de sombra. Porém,até lá, teriam que atravessar um lodaçal traiçoeiroe escorregadio por um lado, ou atravessar a nado certazona da lagoa O Zeca que já tinha os calções molha-dos preferia ir a nado.

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— Eu não vou a esta hora...! — disse o Tonecasdesanimado que até à altura só tinha conseguido apa-nhar dois cacussos pequeninos. E acrescentou: —Mesmo estes vou dar ao guarda da Agricultura.

— Bem, então vamos para a patinagem — decidiuo Mário que já tinha desistido da pesca e tentava atin-gir com a fisga os sapos que apareciam à tona.

A patinagem era um improvisado escorregadourode cimento, que servia de esgoto ao Bairro dos Lusía-das, onde os jovens quinaxixenses, depois das excur-sões pela Floresta, deslizavam em cima de vassourasde mateba.

O Zeca ficou contrariado com a resolução, masnão disse nada. Desde que lá rasgara umas calças no-vas, evitava a patinagem.

Ao dirigirem-se para lá, uma mulher de aspectodesleixado descia uma pequena elevação da Agricul-tura, que ia dar ao largo dos Lusíadas. Era branca, du-rázia e vinha suada, carregando desajeitadamente umpacote humedecido pelo suor.

— Olha a Talamanca! — cochichou o Tonecas pa-ra o Zeca, trocando um olhar significativo.

Bebia muito a Talamanca, e a garotada do bairrogirava-lhe à volta, caçoando. Nessas ocasiões, ela gri-tava muito vermelha, batendo com a mão fechada nopeito achatado: «Meu marido era um capitão! Souviúva de um capitão!».

— Agora... — avisou o Mário quando se aproxi-mavam.

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Água fria da ribeiraÁgua fria quem a inventou...

O Zeca cantava baixo, olhando-a prudentemente,com o rabo de olho ao passar. Ela não se importavanada de lhes dar uma berrida! Talamanca realmentenão gostou, e rosnou, deitando-lhe um olhar duro: —Seu mulato vadio...!

— Atira-lhe uma pedra — ofendeu-se pelo com-panheiro o Mário, que era branco.

— Deixa lá, é uma quissanda... — riu-se o Zeca,fazendo uma careta.

** *

— Atira...! — gritou o Miranda, enquanto desciaa correr uma elevação, perseguido por furioso sardãoazul de cabeça vermelha. O Pica fisgou-o. O sardãosalpicado pela areia levantada pelo burgau, parou.

— Lázaro...! — xingou o Miranda, que já se tinharecomposto e disparava por sua vez a fisga. O réptilatingido pela pedra foi projectado a certa distância,e ficou depois inerte, com a barriga branca exposta aosol.

— Einh! tu só mesmo p’rás picas.O Pica era o famoso matador de pica-flores do

Quinaxixe. Magríssimo, com uma cabeça pequenina,

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tinha um nariz comprido e afilado, assemelhando-sefìsicamente ao passarinho. Não lhe desagradava po-rém a alcunha que lhe dava grande prestígio entre oscompanheiros.

— Merda, fazem tanto barulho... — gritou contra-riado o Carlos, aparecendo por detrás de umas piteiraspróximas, donde tentara atingir um bico de lacre pou-sado num arbusto. Ainda conservava a fisga retesada,agora inútil, e olhava-os vingativamente, mas hesitan-te. Acabou no entanto por ir juntar-se ao Bufa, quedescansava à sombra de uma acácia.

O Pica e o Miranda aproximaram-se também dis-cutindo sobre o novo rumo a tomar.

— A Floresta já não dá nada... — dizia o Pica,que visava a Missão, um imenso quintal da Igreja Pro-testante, plantado de árvores de flores brancas, que aspicas gostavam de bicar. O Miranda pensava, porém,nas berridas do guarda, e não se convencia.

Para ele a Floresta, ainda era melhor. Imenso cor-po vegetal, descia ruidosa pelas barrocas do Bungo,rastejando nos muxitos, cucuritando nos arbustos, er-guendo-se no gorgeio multi-facetado do burburinhoarborescente.

— Que tal a patinagem...?! Está mais perto e tu-do... — lembrou o Bufa, mangonheiro, e que não esta-va para correrias.

Fazia muito calor. A sugestão foi aceite. Já desli-zavam no escorregadouro de cimento quando apare-ceu o grupo da lagoa.

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O Zeca franziu o sobrolho quando viu o Miranda.Certamente este iria troçar do seu hábito de regressara casa para beber água.. O Miranda não perdia nenhu-ma oportunidade para o arreliar. Ele não gostava queo Zeca se recusasse a beber a água das torneiras dosjardins e dos quintais que eles pulavam, quando esta-vam sedentos. Achava que era mania, tibieza de meni-no amimado, e não temia irritá-lo, porque era mais ve-lho e mais forte.

O grupo foi recebido com gritos de alegria, e pou-co depois misturavam-se em ruidosa confusão caindouns sobre os outros. Ao disputar uma vassoura, o Mi-randa, como o Zeca tinha previsto, zombou:

— Larga lá isso, e vai beber água... — disse-lheao puxar com brusquidão a vassoura.

— Vai à merda... — respondeu atrevidamenteo Zeca.

O Miranda olhou-o longamente, sem compreender.Que bicho lhe mordera. O Zeca encolhia-se sempre.Mas ele não podia perder a sua autoridade. Reagiucom decisão e pediu café. Os companheiros fizeramroda, silenciaram e o Pica que gostava de ver lutar,encheu imediatamente as costas das mãos com areiae ofereceu-as aos contendores.

O Zeca pensava angustiado que ia levar uma ta-reia, mas bateu corajosamente numa das mãos do Pi-ca, olhando-o também com rancor, como se ele se ti-vesse tornado cúmplice. A roda fechou-se e oscompanheiros começaram a incitá-los.

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Depois da pugna, dorido, mas intimamente satis-feito, o Zeca arreganhou com ousadia: — Agora,manda-me lá beber água!

Não lhe suportaria mais o domínio antigo. Sentia--se livre.

** *

Do poente esmorecido, um raio amplo e sanguíneoestendia-se pela terra batida do Quinaxixe. As casastingiam-se das cores do pôr-do-sol, e os vultos dasgentes dos muceques alongavam-se sob os seus pas-sos apressados. Debaixo da mulembeira do Pitta-Groza sombra era maior, furada aqui e ali por pequenosraios acerados.

O comprido passeio de cimento da loja enchera-sedos rapazes do bairro que faziam dele o pouso predi-lecto para as histórias do anoitecer.

Conversavam alegremente sobre os acontecimen-tos do dia. O Chôa e o João Maluco assobiavam paraumas jovens que regressavam em bando para os mus-seques. Eles muxoxaram.

— Xoxo no teu prato... — respondeu o Chôa.O João Maluco preto fulo, disparatou em quim-

bundo. A rapaziada riu estrepitosamente. Eles eram asautoridades do bairro. lam já sòzinhos à noite ao CineColonial, sem ter medo de passar pela Cerca onde ossoldados da Companhia Indígena faziam esperas,

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viam os filmes do Buck Jones e tinham experiênciacom mulheres da vida. A tardinha lanchavam entãoà pressa, e vinham ainda empanzinados de gonguenha,para não perder a narração das histórias que eles con-tavam. O Chôa era a figura principal. Descrevia as ce-nas com grandes gestos e exclamações e algumas ve-zes auxiliava-se da proximidade de algum garoto, paradar maior veracidade às cavalgadas de perseguiçãoaos bandidos. Encavalitado nas costas do miúdo quegemia, cantava fanhoso, à moda do Texas.

Alô pistoteiquePistoteique mamaAlô pistotei...

Como a canção era sempre a mesma, tornou-sepopular entre a juventude no Quinaxixe, com aqueleinglês intraduzível. «Mentira! Mentira mete no saco,saco vazio não fica em pé, cinco réis não volta troco,água quente não queima a casa...», era assim caudalo-samente que os garotos reagiam contra alguém quepunha desconfiança nas histórias do Chôa.

— Olha, lá vai a Caxia! — avisou o João Maluco,ao ver uma mulata gorda que passava ao largo. Oscompanheiros olharam também. As suas ancas largase fornidas tinham sido há muitos anos o motivo dedisputas dos brancos ricos de Luanda. Hoje só recor-davam aquele passado de luxúria, que a juventude doQuinaxixe lhe recordava impiedosamente, gritando:

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— «Mucaje ia kingando...» Ela reagia com pedradas.Naquele dia ia triste. Passava longe, para os evitar:

Entretanto o Chôa iniciara já a narração do últimofilme de cow-boys. O Mário que era o mais miúdo dogrupo, desviou-se prudentemente para dentro da lojado velho Pitta-Groz, temendo alguma cena de caval-gada.

No balcão comprido e liso de cimento, empilha-vam-se pratos de esmalte, e os trabalhadores das seise meia, comprimiam-se falando em uníssono.. Entreaquela vozearia alteava-se a voz do empregado bran-co: — Kitári, kitári... Quanto... — alguns afastavam--se resmungando, que os pratos não estavam bemaviados, e voltavam depois para o quimbombo.

Um homem magro e cansado veio sentar-se deva-gar, gemendo ligeiramente ao dobrar-se, quase aos pésdo Mário. Levantou a cabeça e com um olhar nubladopor uma névoa branca de cansaço, interrogou-o muda-mente, estendendo-lhe em seguida o prato de feijão deazeite de palma.

O Mário encolheu os ombros negativamente. Nãotinha ido lanchar. Tinha fome, mas hesitava. A mãepodia vir a saber. Ainda se o empregado não estivesseali.

Gritos insólitos sobrevieram da rua e o Mário vi-rou-lhe as costas e chegou à porta curioso.

O Tonecas e o Neco tinham chegado da Florestacom as gaiolas de bordão e explicavam algo, exci-tados. O Mário aproximou-se a correr, mas recuoua seguir. Junto das gaiolas estava uma cobra esguia

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e amarelada. Tinham-na morto depois de ela ter engo-lido duas celestes e um maracachão da gaiola do Ne-co, que vinha choroso e trémulo. O Tonecas contavacom grande animação o acontecimento. A rapaziadaqueria mais detalhes. Repisava as perguntas, recorda-va casos semelhantes, peripécias antigas. Por fima voz forte de comando do Chôa ordenou a autópsiada cobra, e a sua incineração, para a dança do deuscobra.

E em algures do Quinaxixe já dentro de uma noiteque se adensara, envolta em panos de luto, ainda osvultos esguios e magros dos rapazes do bairro se re-cortavam na luz vermelha da fogueira, agigantadosnas sombras movediças, retorcendo-se e saltando nu-ma dança frenética e tumultuosa, que enchia o ar degritos roucos — a dança do deus cobra.

— Agora, quem não saltar a fogueira, a mãe deleé baco!

Era a ordem final. Terminava a dança. A fogueiraapagava-se devagar.

Entraram depois em suas casas sorrateiramente pa-ra esconder o desalinho.

** *

Noite alta D. Ana de Sousa entrou silenciosamenteno quarto do filho. Depois do jantar recomendara-lheque lavasse bem os pés, a fim de não sujar os lençóis.

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O Mário adivinhou as intenções da mãe, mas resig-nou-se. Era sempre o mesmo aviso antes da extracçãodas matacanhas. O que vale é que ele só acordavaquando da desinfecção com a tintura de iodo. Mas co-mo ardia aquela tintura!

D. Ana ia devagar, quase solene, e a seu ladoa criada segurava o candeeiro a petróleo, e o frasco damalfadada tintura.

O Mário dormia profundamente. Um fiozinho desuor corria-lhe sob o queixo e deslizava para o peitomoreno descoberto. Um dos braços pendia-lhe aban-donado de um dos lados da cama de ferro. Dormiae campeava em sonhos pelas barrocas, encavalitadoem monstros, perseguindo feiticeiros que bungulavamnas portas, lutando contra cobras que comiam pássa-ros, nadando na lagoa do Quinaxixe no mistério dassereias; comendo funje com os contratados na loja doPitta-Groz, dançando um batuque de vingança a umadivindade impiedosa. Vivia então o seu grande e únicosonho de liberdade — o da sua infância:

As feições severas da mãe adoçaram-se ao olhá-lo.Pobre passarinho indefeso, pensou D. Ana comovida.Tão sereno e tão calmo dentro desse sonho grande.Ser-lhe-ia possível ser fiel às juras dessa infância deinfluências comuns, que eles erguiam dia a dia numcoro uníssono, sagrado com cruzes nas pulsos, queeles recriavam entusiasmados e opunham depois vi-brantes com novas tonalidades vivas, para novos fins.

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E aquela ingénua confiança rescendia da sua respi-ração funda e regular, como uma certeza tão lúcidae renovadora, que D. Ana de Sousa estremeceu. Tevemedo.

E a sua voz autoritária suavizou-se, quando dissepara si, baixinho, receosa:

— O que será de ti, amanhã, meu filho...?

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O VELHO PEDRO

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Há anos que o velho Pedro se aquietara na sombrada sua cubata de zinco, isolada, junto das barrocas daLAL. As águas das chuvas vinham caudalosas dosmuceques, roendo as margens da terra aberta e aproxi-mando-as lenta e perigosamente do tugúrio do velho.Mas iam as chuvas, vinham as chuvas e ela continua-va firme e solitária, como uma sentinela metálica, su-gerindo no seu vulto hirto a existência misteriosa da-quele velho temido.

Cá fora o tempo passava sob uma toalha de sol,salpicada de gritos e corridas ruidosas dos garotos doQuinaxixe. Mas raras vezes aquelas correrias desnor-teadas iam dar às barrocas da LAL. «Cuidado como cambungú da barroca» — assustavam as mamãs osfilhos vadios, ansiosos por pesquisarem os montes delixo despejados nas barrocas.

Aquela barroca era por isso a única que resistia àinsaciável curiosidade daqueles meninos aventureiros,que procuravam os tesouros dos corsários. Contenta-vam-se então com alguns achados mais modestos, e o

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Zeca fez um figurão durante algum tempo, com umdespertador que ainda tocava!

Só quando chovia e porque, dizia-se, vinham ca-cussos na corrente, é que alguns se atreviam a enfren-tar o risco da aparição do cambungú... Se ele apareciamesmo, silenciava no alto da barroca, magro, angulo-so, como um diquixi de madeira. No rosto ossudo, osolhos redondos brilhavam febris sobre uma barba cas-tanha. Os garotos ficavam transidos, sem reacções,prensados entre aquele olhar fixo e imperativo, e ofundo vermelho do buraco.

Azar...! — repetiam com a voz tremente quandoescapavam.

Em certa ocasião teve uma explosão nasal parao Zeca e o Neco, que esgaravatavam distraìdamenteno fundo da barroca, uns imbricados monturos de coi-sinhas bambas. «Fora chafurdos!». — Sob o impactodaquele grito, eles difìcilmente perceberam a separa-ção dos termos, porque os sons se juntaram nos seusouvidos tensos, enrolados uns nos outros, formandoum volume único.

No dia seguinte o Zeca, porque a mãe dele, a D.Brízida, andara no liceu, explicou com arrogânciae ódio que «chanfurdos» era uma quimbundisse dovelho negro. O Neco concordou, vingativamente, em-bora não reconhecesse absolutamente perfeita seme-lhança entre aquela palavra e os sons que lhe tinhamficado gravados nos ouvidos. Mas enfim, devia serquimbundisse, pois também o criado dele, o Catuto,

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metia muitas palavras na conversa, que a mãe lheproibia de imitar, porque eram de quimbundo. Alémdisso aquele andava sempre mais roto e sujo queo criado dele, e nem se lavava!

Às vezes de cima do quintal de sua casa, o Necoolhava a cubata isolada e cismava. Porquê que as do-nas do Quinaxixe não o ignoravam ou desprezavam,como faziam com aqueles pretos velhos e cegos, quedeambulavam pela cidade, atrás de meninos magrose agarrados às extremidades de varas longas, casta-nhas com desenhos negros, que vendiam para cabosde vassoura. Porquê que elas os desprezavam? Coita-dos, ainda por cima eram cegos! Mas àquele velhomau, ainda mandavam comida e presentes... Era certa-mente uma injustiça, aquela preferência insólita.

Na casa da D. Zulmira, quem estava incumbida delevar as ofertas ao velho Pedro era a Benjiquisse. En-chia todas as semanas uma quinda pequena, anteo olhar desolado do Neco que não compreendia por-que é que auxiliavam aquele homem que devia tercombinação com os feiticeiros. Tanto desperdício!E por sua conta ia às furtadelas, atenuando o prejuízo,ratando o fornecimento, diminuindo o número demandiocas, surripiando um punhado de arroz ou gin-guba. Quando o não conseguia, porque a Benjiquissepor fim já andava mais atenta, simulava acidentescontra as suas pernas fortes e luzidias, o que fazia pe-rigar o conteúdo da quinda equilibrada na cabeça.Eram protestos inúteis, mas convictos: «Oh! Neco tu

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não vês que ele não é igual aos outros!». D. Zulmira,branca de condição, mas mulata de nascimento, pres-sentia com alguns remorsos aquela activa animosidadedo filho, e lançava água na fervura, falando-lhe va-gamente do passado de um homem rico, que o velhoPedro tinha sido há muito tempo, das suas viagens,e de um filho mulato que ele também tinha no Brasil.E um dia acrescentou com energia como utilizandoum argumento decisivo: «Olha ele até sabe francês!

O Neco não acreditou. Se ele era tudo isso porqueé que passava os dias no escuro da cubata a falar comas almas e a viver de esmolas. Tanta admiração não ti-nha fundamento.

Mas talvez não fosse admiração. Fosse medo,e quisessem evitar que ele viesse à porta de casa, si-lencioso, autoritário, chamar-lhes chafurdos e exigircomida. A esta ideia o Neco estremecia e reconside-rava.

Verdadeiramente assustado ficou certo dia, quandoD. Zulmira mandou a sua irmã Juju, com uma cartilhae uma pedra negra para o cambungú. Juju ficou aflita.Chorou muito. D. Zulmira ainda tentou explicar-lheque aquilo era para o bem dela. Ela não compreendiae teve que apanhar. Tudo um exagero!

O Neco reprovou interiormente aquela iniquidade.Não podia admitir que aquelas ameaças veladas que jáhá tempos a mãe vinha fazendo, para limitar as traqui-nices da Juju, pudessem ser concretizadas. Ficou tré-mulo a um canto, choroso e abatido, pensando que

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também o entregariam algum dia ao Fatal que cantavaà noite na avenida do cemitério, se ele continuassea fugir para vadiar. Felizmente a Juju saiu ilesa. Volta-va até sorridente, gritando, enchendo anasaladamentea casa de ã e i o u. Dizia muitas vezes o Sr. Pedrop’raqui, o Sr. Pedro p’rali, em vez do velho Pedroe mostrava a toda a hora os bonecos coloridos da Car-tilha Verde. O Neco ficou decepcionado.

Esperava sôfrego a todo o momento que algumamonstruosidade do velho confirmasse os seus temo-res. Espiava ansioso o rosto da irmã, os gestos e a lin-guagem e continuava desiludido. Ela continuava gor-geante e despreocupada como uma celeste saltando deramo em ramo.

Às vezes regressava com o Zeca que também ti-nha sido castigado com o velho e que lhe falava dosnovos companheiros, pretos e mulatos, graúdos e bas-suleiros que passavam os intervalos a lutar. Mas docambungú nada! Parece que tinha desaparecido. Fala-vam de um Sr. Pedro, brando, que ensinava a ler nacartilha e soletrava pacientemente o b a - ba, como sefalasse com as almas dos meninos traquinas. «Diztambém umas palavras difíceis», cochichou um diao Zeca muito sério, enquanto entrelaçava uma cadeiri-nha de capim. E que na aula anterior dissera para umdos seus colegas grandalhões. «Vai deitar esta carta noreceptáculo do correio.»

E como o Neco demonstrasse espanto por não tercompreendido, garantiu, satisfeito com a surpresa, que

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sim, que era no re-ceptá-cu-lo e carregava com firme-za nas sílabas, porque a sua mãe lhe informara queexistia e que até lhe explicara o uso do receptáculo.

O Neco sentia enovelar-se o entendimento. Atéo seu amigo o deixava entregue sòzinho àquele medoe ódio antigo, que ele esquecera tão depressa. Sentia--se humilhado e desamparado perante aqueles olhosredondos, inquisidores, que pareciam brilhar semprede febre. Mas porque é que ele não tentava tambémenfrentá-lo?... Aquela ideia acudiu-lhe de repente aonotar o sorriso de orgulho do Zeca, e deixou-o pálido.Se a Juju o tinha conseguido... (Quando D. Zulmiradava purgante de óleo de rícino aos dois, ele nuncadesejou ficar para trás em decisão, depois da irmão tomar. Ficava sempre com uma agradável sensaçãode alívio depois de se superar, o que lhe dava confian-ça). Porquê não tentar então?

Seria verdade que ele não fazia mal, e que antestinha sido rico e que se vestira bem antigamente?E que sabia francês? Começou a imaginar o francêscomo algo de muito importante.

O prestígio que se adensava à volta de um mito desustos e pesadelos, transformava-se lentamente e re-nascia de vagar como uma madrugada, sob um com-plexo de dúvidas «coma é que um negro, pode saberaquilo tudo?» e de pena «porquê que ele tinha ficadotão pobre?»

— Mamã porque é que o Sr. Pedro anda sempretão roto?

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— Ora, sei lá!Manter-se-ia sempre insolúvel a razão daquele

abandono. Não. O Neco queria conhecê-la, pesquisaro fundo daquela existência solitária como o fazia nasbarrocas e descobrir também entre os detritos impres-táveis, acumulados pelo tempo, o tesouro escondido,as sobrevivências do passado. Mas junto da mãe, dopai, do Sr. Ferreira, olhava os seus rostos impacientes,o seu aborrecimento e tinha a certeza que eles nadalhe diriam. Imaginava até as suas respostas: «Tenhomais em que pensar» — «Ora..., deixa lá os negros»,como o Sr. Ferreira lhe dizia com a voz de trovãosempre que ele lhe fazia alguma pergunta sobre oscriados. Conformava-se de má vontade.

Mas se ele tentasse aproximar-se sòzinho. Porquenão tentar sòzinho? A ideia repercutiu-lhe com maissonoridade e não o afligiu tanto.

Quinta-feira a Benjiquisse voltou ao Sr. Pedro, e oNeco ante a surpresa da mãe insistiu em querer ire agarrou com energia num mamão. E foi. Humildecom o mamão à frente, para que o velho lhe percebes-se a intenção. A criada pelo caminho ainda tentou as-sustá-lo com o espírito da barroca. O Neco disparatou,irritado e nervoso.

O velhinho tinha deixado a cubata onde dava a au-la, e fora colocar o fogareiro mal aceso no alto da bar-roca, onde o vento atearia o fogo fàcilmente. Viroua cabeça lentamente e mal os olhou quando a Benji-quisse muito viva e já familiarizada o cumprimentouem quimbundo. Não respondeu.

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O Neco um pouco envergonhado com a irreverên-cia da criada pousou o mamão junto da quinda abarro-tada. Porquê que ela foi logo cumprimentar em quim-bundo, pensou angustiado. Ele não teria gostado? Iriatalvez pensar que ele o julgava algum daqueles velhosque vendiam vassouras, um maluco. Mas sùbitamenteele voltou-se e o Neco baixou os olhos com medo deenfrentar aquele rosto de diquixi, que ele temia. Viudepois a sua sombra caminhar e parar junto de si.O coração pulsava-lhe desordenadamente e ele malsentiu que uma mão negra e enrugada se pousara noseu ombro. Levantou então timidamente a cabeça. Osolhos redondos do Sr. Pedro brilhavam febris, mas elesorria. O Neco estremeceu. E no acordo que os seussorrisos selaram ia nascer o Sr. Pedro, e desapareciao cambungú das barrocas.

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EXAMES DA 1.A CLASSE

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Naquela manhã caiu sobre o Gigi, ainda mal des-perto, a excitação de toda a casa. D. Angelina, sempremuito enérgica, redemoinhava entre os criados, despe-dindo ordens rápidas e contra-ordens imediatas e, pelomeio, alguns bofetões que a criadagem recebia espan-tada, sem compreender. Porquê naquele dia toda aque-la confusão, entreolhavam-se. Mas logo a voz alta dapatroa lhes gritava a urgência dos preparativos da toa-lete do menino.

O capacete foi exigido num tom tolerante, porqueGigi ainda esfregava os olhos de sono, mas a criadaLaurinda suportou azedos reparos, porque ainda nãotinha a bata engomada. Era o dia do exame da 1.a clas-se do menino Gigi!

Ao Gigi, nesse dia, cortaram-lhe todas as pequeni-nas liberdades matinais. D. Angelina não queria na-quele dia lavagens à moda dos gatos. Arrancaram-noda cama, e dentro de uma celha deram-lhe tanta safa-dela que o Gigi temeu que o esfolassem.

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— Estes meninos da terra... — encorajava a mãeos criados pressurosos sobre o gemebundo Gigi.

Pouco depois, já mais calma, D. Angelina enquan-to o penteava falou-lhe longa e carinhosamente emmeninos bonitos, que passam nos exames, que estu-dam muito e que se tornavam pessoas ricas e conside-radas. Gigi ouvia-a admirado mas receoso. Mas por-quê que a mãe lhe estava a falar assim? Nunca setinha importado... Quando por fim ela lhe exigiu comfirmeza que deveria passar no exame, então com-preendeu.

Lembrou-se da azáfama passada, olhou a batamuito branquinha, os sapatos das ocasiões importan-tes, os rostos dos criados sorridentes e mesureiros co-mo à espera de alguma coisa, tudo tão diferente dosdias anteriores, calmos e rotineiros, e amedrontou-se.Choramingou.

D. Angelina tentou acalmá-lo e deu-lhe um aparonovo, um espinho de quiombo (com que se fazia boaletra, dizia), um beijinho, faz-lhe o Sinal da Cruze mandou-o embora sem mais nada.

Dolorido, porque os sapatos lhe faziam bolhas porserem largos (ele estava a crescer e não podiam estarsempre a comprar sapatos novos), verificou ao chegarà Escola 8, pelo aspecto sério e compenetrado dos co-legas de aula, que também a eles lhes fora dado co-nhecimento da gravidade da ocasião. Batas muitobrancas, as riscas dos penteados muito direitinhase alguns até com óleo no cabelo. Deviam também ter

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recebido canetas, beijinhos e borrachas novas, pensouGigi.

Estavam encostados na comprida varanda de ma-deira da escola e esperavam muito quietos, como pin-tainhos molhados.

O Gigi viu Arlindo entre eles e acenou-lhe desani-madamente. O Arlindo era o seu companheiro predi-lecto, um caxitense tímido, e com o qual a professoraembirrava. Respondia às perguntas que ela lhe faziacomo se estivesse a pedir perdão. Muito pobre, anda-va sempre com a bata rota, e a D. Ruth ainda por cimateimava que ele tinha mais piolhos do que os outros.Nos intervalos das aulas, enquanto o Gigi lanchava,olhava-o como hipnotizado e não podia esconder a fo-me. Quis pôr cassumbula. Gigi não aceitou. Ele quasenunca trazia lanche. Às vezes aparecia só com umafatiazinha de quicuanga mas não dava a ninguém.Gostava de contar histórias dos jacarés do Dande, queagarravam pessoas e as mostravam três vezes antes deas levar para as profundezas do rio. Gigi então acama-radava, impressionado. Também se lembrava de brin-cadeiras antigas da Ngana Hima e Tuia mu ibanga.Um dia perdeu a timidez e cantou. Era uma cançãomelancólica que falava de andorinhas, flores e amorà luz de uma candeia. Tinha-a ouvido à noitinha, deum vizinho branco, pobre como ele, que morava noS. Paulo e transmitia um terno sentimento de esperan-ça numa vida feliz. Estendera-se até junto de si, fra-terna, como um destino comum e ele cantava-a sem-pre que se sentia triste. Gigi ouviu-a emocionado

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e nunca mais lhe recusou metade da merenda. Masnaquele dia até ele segurava, muito encolhido, comose estivesse envergonhado, a sua bucha de pão comovo!

O carro que trazia o Higino parou pouco depois,levantando poeira. Ele saiu também atemorizado, soba mão do pai, com os seus cabelos muito negros e bri-lhantes, alisados com azeite, que lhe escorria pelopescoço e engordurava a bata quando fazia muito ca-lor. Entrara para a Escola 8, com uns compridos cara-cóis de menina que embranqueceram com o lendeaço.O pai dele teve que os sacrificar, mas queixou-se doscolegas do filho, a quem atribuía a culpa, sobretudo osdo Bairro Operário.

Estes já tinham todos chegado e eram os menosconstrangidos, talvez por alguns repetirem o ano. Unssabidos para as fugas embora a escola ficasse mesmoem frente dos olhos das mamãs! «Uma raça atravessa-da! Não estou disposta a aturar isto...» dizia a D. Ruthquando lhes batia. Eram na grande maioria meninosmulatos e pretos, mal trajados e andarilhos que vi-nham das fugidas às barrocas do Bungo, carregadosde tambarinos e figos de piteira.

O continuo João surgiu naquele momento e come-çou a gritar que se reunissem em frente da sala 2,a fim de esperarem pela chamada. Gigi olhou-o comespanto porque não lhe parecia o João dos outros dias,que se humilhava para esmolar algumas ofertas da suamãe. Tinha adquirido arrogância, e recomendava con-tìnuamente silêncio, embora sem necessidade.

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Entraram por fim para uma sala diferente. Espera-vam-nos dois professores desconhecidos que, diziam,pertenciam à Escola Emílio Monteverde. Gigi olhou--os com antipatia e temor, porque começaram logopor desrespeitar a ordem antiga na colocação dos alu-nos.

Sentaram-no numa carteira perto da janela que da-va para a estrada do cemitério, no meio de colegasque até ali tinha ignorado. Sentiu-se desnorteado, in-seguro. O Arlindo lá estava também ao fundo da sala,tão enfiado como ele, e nem se atrevia a levantar a ca-beça. Gigi sùbitamente sentiu saudades das aulas daD. Ruth, livres, nas quais só era exigida presença. Al-gumas vezes ela iniciava uma lengalenga cantada, queera a tabuada de somar, e que eles retomavam ruidosa-mente, mais pelo gosto musical e necessidade de seexpandirem. Ele então aproveitava a oportunidadee na confusão cantarolava com variações:

lálálá lá lólóló ló ..............

Às vezes a professora procurava dar certa serieda-de à lição e, com ar carrancudo, enfileirava-os e arma-da de uma vara de amoreira ia indagando o que é quedizia a música. Acabava por desistir, furiosa, ao veri-ficar o fracasso do método. «Não estou para aturar ru-fiagem...!»

Mas eles irão perguntar aquilo? A pergunta surgiude repente e o Gigi procurou com os olhos a resposta

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nos rostos dos colegas que, afinal, pareciam tão in-quietos e interrogativos como ele.

Era meio-dia quando a criançada saiu, sem pressa,sem gritos e sob uma suspeita dolorosa.

— Então...? — perguntavam entre si.— Então... — respondiam, encolhendo os ombros.

Como haveriam de saber? A conta de somar tinha tan-tos oitos e noves...

** *

O júri abandonou a Escola 8, horas depois. O solcalcinava a terra batida, amarfanhava intenções e sen-timentos e pousava na areia vermelha vagas quase lí-quidas de calor.

Passada a solenidade do exame, o Arlindo e o Gigitinham-se descalçado e as batas já tinham a cor dosoutros dias. Tinham-se refugiado sob o edifício demadeira da escola, erguido sobre colunas de cimento,e enquanto esperavam viram passar os professoresapressados, protegendo-se com os livros do sol incle-mente. O calor adormentara-lhes a impaciência e elesviram-nos desaparecer, sem emoção, continuando sen-tados no chão, encostados às colunas, fazendo dese-nhos na areia.

— O que é que eles puseram lá...? — perguntouo Arlindo sornamente, como desinteressado da resposta.

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— Oh... — encolheu os ombros o Gigi, sem se-quer se dar ao trabalho de pensar na importância dapergunta e prestando atenção aos passos que se ou-viam na varanda.

— Devem ser os resultados! — disse, erguendo-see espreitando pelas frestas das tábuas da varanda.

Pouco depois, misturados aos colegas, apinhavam--se à volta das vitrines em grande alvoroço. Cambuta,o Gigi perdia-se na confusão e não atinava com a suaclassificação.

Nas listas extensas e afixadas alto, os nomesamontoavam-se em letra difícil, com tracinhos per-pendiculares à frente. Os tracinhos queriam dizeraprovado, discutia-se, mas os que estavam em baixodas palavras escritas com tinta vermelha queriam di-zer, chumbado.

O Gigi, aflito, agarrava-se aos mais velhos, masesses, eufóricos, libertavam-se, pulavam de contentese sumiam-se a correr. O que é que eu hei-de fazer,pensava, impotente. Socorreu-o o contínuo João, quedepois de algum tempo lhe gritou:

— Apruvadoé...— Quer dizer, passei... para a 2.a classe?Após a afirmativa o Gigi lembrou-se da alegria

dos colegas e começou a pular, a gritar, empurrandoo Arlindo que, ansioso, esperava também a sua sen-tença, da boca do contínuo.

Este, com o dedo grosso apoiado no vidro, procu-rava inutilmente seguir a linha em que estava o nome

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do Arlindo e relacioná-lo com a sua classificação. Fezalgumas tentativas e acabou por dizer simplesmente:— Tu não.

Para os dois amigos fez-se à volta um silêncio quenão existia e eles entreolharam-se, com os olhos mui-to abertos, mas sùbitamente cegos. Aquela revelaçãode repente parecera-lhes sem significado, mas opri-mia-os como um peso. Dizia no entanto, brutalmente,que eles se iriam separar. E os seus olhares transmi-tiam a incompreensão por aquele desenlace que in-tuíam terrível, recordando o fervor com que as suasfamílias lhes tinham feito conhecer a importância doexame.

Mas depressa o Gigi se sentiu agitado pelos en-contrões dos colegas e os seus ouvidos voltaram-sea encher das vozes e dos gritos em redor. Lentamentefoi retomando a sua animação anterior e começoua dissipar-se nele a angústia do amigo. Momentos de-pois, tentava inocentemente comunicar-lhe a sua ale-gria, simulando as brincadeiras antigas, cantando.

O Arlindo olhava-o mortiço, seguia-o dòcilmentee ao ouvi-lo cantar, sorriu com timidez antes de come-çar a chorar.

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A MENINA VITÓRIA

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Transferiram-no no meio do ano lectivo, parao colégio do Bucha Beatas, por causa dos piolhos daEscola 8 e da prosódia, em que os professores o acha-vam muito fraco.

O Sr. Sílvio Marques embora pouco exigente con-sigo em relação à pronúncia — trocava amiúde os vvpelos bb — era no entanto muito cuidadoso a fecharas vogais. Ralhava severamente o Gigi sempre que lheouvisse algum desconchavo, ou então abria-lhe muitoos olhos, o que significava o mesmo. Também os ami-gos dele aos domingos, debaixo da mulembeira e en-tre uma ou outra jogada de sueca, comentavam asincorrecções do Gigi. E sibilavam (alguns eram daBeira Alta) lamentando que a pronúncia do garoto seestragava, que era preciso afastá-lo da companhia doscriados e dos colegas dos musseques. Todos concorda-vam que era pena, porque ele já se podia considerarcomo um branco, embora D. Angelina fosse mulata,mas enfim... era senhora de princípios. O Sr. Sílvioouvia-os atento, e considerava conscienciosamente

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a crítica, porque afinal se tratava do futuro do seu se-cretário, como dizia referindo-se ao filho.

Assim, embora com sacrifício porque o colégioera caro, a transferência teve que se fazer. Mas valiaa pena, anunciara a mãe às vizinhas. «Aqueles meni-nos muito arranjadinhos, levados pela mão dos cria-dos, e alguns até de carro...! Que diferença!» — ex-clamava, não escondendo a vaidade, no dia em queo levou ao colégio.

Gigi ganhou roupa nova, uma sacola bordadae muitos conselhos de D. Angelina, que se afligia coma sua aparência. Mas da mudança mesmo o que o Gigimais gostou, foram dos passeios na moto com carrolateral, em que o pai o levava ao colégio. O assentoera tão baixo que pelo trajecto ele podia apanhar pe-quenos tufos de capim. Isso passou a ser a sua únicaalegria, porque o Gigi estranhou o colégio.

A professora da 3.a classe, a menina Vitória, erauma mulatinha fresca e muito empoada, que tinha ti-rado o curso na Metrópole. Renovava o pó de arroznas faces sempre que tivesse um momento livre, e du-rante as aulas gostava de mergulhar os dedos nos ca-belos alourados e sedosos de uns meninos que se sen-tavam nas primeiras filas.

Olhou-o com desconfiança e depois do primeiroexame mandou-o para uma carteira do fundo da aula,junto de um menino com cara de puto, a quem chama-va cafuzo, por ser muito escuro. Mas o menino cafuzochamava-se Matoso, o que, de início, pareceu ao Gigi

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insuficiente para justificar o seu mutismo. Vergado nacadeira, não tirava os olhos do livro, nem mesmoquando a menina Vitória se referia a ele, quase semprecom desprezo, ao recriminar outro aluno. «Pareceso Matoso a falar...», «Sujas a bata como o Matoso...»,«Cheiras a Matoso...», — e ele grudava-se cada vezmais à carteira, transido por aqueles comentários im-piedosos.

Fora também transferido da Escola 8, e mesmo nodia da apresentação a menina Vitória não esconderaa sua má impressão, com alusões veladas à sua batade brim grosso. Porém o seu azedume cresceu quan-do, tempos depois, o Matoso lhe respondeu distraida-mente em quimbundo. «O quê, julgas que eu sou datua laia...!?» Daí por diante o seu nome era jogado pe-la aula com crueza, criando um símbolo maldito, queo Gigi mais tarde, atemorizado, reconheceu fàcilmen-te. Era uma imagem familiar. Estava muito perto de sie dos seus companheiros do Quinaxixe. Mas porquêque ele irritava tanto a professora e lhe merecia aquelatroça? O Gigi retraiu-se.

Olhava para os colegas de soslaio, inseguro. Elesiriam troçar também dele, da sua bata modesta debrim, dos seus sapatos puídos, quase rotos? E não res-pondia quando a menina Vitória o chamava à lição,receando um despropósito que o identificasse como Matoso. «Vêm para aqui neste estado e depois que-rem milagres!» — suspirava a professora. Era comcerteza do método de ensino da Escola 8, ou da sua

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influência perniciosa. Mas tolerava-o lá no fundo daaula. E o Gigi diminuía-se ainda mais para não se tor-nar notado, esforçando-se num mimetismo impotentepor imitar os gestos dos meninos da baixa. Tenho queser como eles, reflectia no recreio, afastando-se dosalunos da 4.a classe que eram, na maioria, os seuscompanheiros de vadiação do Quinaxixe. Ficava entãoa jogar com os estames dos botões que caíam das acá-cias, e reprimia a vontade de trepar ao cimo delas, pa-ra colher os botões compridos de estames longose curvos que venciam todos os outros. Bocejava en-quanto brincava com o balanceio das anteras e via-ascair sem entusiasmo. Depois submergia de novo naturma e só um ou outro desatino o fazia surgir à tona.«Muxixeiro na redacção... que coisa é esta...!?» —alarmava-se a menina Vitória, considerando o neolo-gismo inferior. E a meninada da baixa ria e surriava,porque na baixa não tinha muxixeiro. Gigi torcia a ca-ra, engonhava com medo de explicar. Calava-se. Masfixava prudentemente o reparo.

Nas suas redacções vagueava então tímido sobreas coisas, com medo de poisar nelas, decorava os no-mes das árvores, das aves, dos jogos descritos no seulivro de leitura. Procurava esquecer o colorido vivodas penas dos maracachões, dos gungos, dos rabos--de-junco que ele perseguia na floresta e cujo cantoescutava trémulo atrás dos muxitos, o sabor ácido dostambarinos que colhia sedento, o suor e o cansaço daslongas caminhadas pelas barrocas, a emoção dos seus

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jogos de atreza e cassumbula. Imitava passivamentea prosa certinha do gosto da menina Vitória. Esvazia-va-a das pequeninas realidades insignificantes que elevivia, das suas emocionantes experiências de meninolivre, agora proibidas e imprestáveis.

Quando o Matoso lia submisso a sua redacção, on-de pintassilgos gorgeavam e debicavam cerejas amare-las (o Matoso explicara-lhe num recreio que as cerejaseram as gajajas do puto), intimamente o Gigi pergun-tava-se onde é que ele tinha descoberto tudo aquilo.«Cada vez pior...!» — rezingava a menina Vitória, quenão se compadecia com os enganos. E continuavaa erguer à volta do Matoso, implacavelmente, um cír-culo intransponível de desprezo, onde ele já não sedebatia, nem chorava. Apenas no rosto as suas feiçõesendureciam sob a pressão dos maxilares contraídos.Exasperava-a.

Tenho que andar pouco com ele, pensava preocu-pado o Gigi. A professora pode virar-se contra mim.E fugia, afastava-se também da sua companhia, dei-xando-o abatido, solitário, dentro das suas ruínas. Ti-nha medo de enfrentá-la. Precisava de esconder o se-gredo ilegítimo do seu passado igual. Precisava deo dissimular para que não fosse destruído. «Mulato-na... nem cabrita é...» — insultava-a furioso à tardinhaquando regressava a casa. E até à noite, descalço, gri-tava pelo bairro junto dos seus camaradas do Quinaxi-xe a sua juventude ameaçada, correndo, bassulando,assaltando as quitandeiras de quitetas.

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«Restos dos maus hábitos...» — lamentava-seD. Angelina. A gradual sisudez começava a animá-lae por isso não compreendia aquelas súbitas erupçõesde revolta. «... mas o colégio leva-o à ordem!» —confiava. Realmente a menina Vitória, como uma gi-bóia enlaçada em cima da árvore, vigiava-lhe os maispequenos movimentos.

— Higino, a tua redacção?O Gigi naquele dia estava contente com o seu tra-

balho. O tema era sobre uma figura importante do Go-verno e ele não esquecera os adjectivos mais expressi-vos que na véspera a professora tinha proferido. Issodar-lhe-ia com certeza satisfação. Os meninos da bai-xa, mais libertos da coacção da professora, não ti-nham sido convincentes, limitando-se a referênciasdistraídas, o que a tinha irritado.

Embora confiante, o Gigi estremeceu ao ouviro seu nome. Que diria ela, pensava agitado, depois delhe ter estendido timidamente o caderno. Enquantoa via ler atreveu-se a tentar decifrar-lhe no rosto al-gum indício revelador, mas a menina Vitória pareciade pedra. Reparou-lhe então nos lábios pintados e naslinhas muito definidas dos seus contornos que pare-ciam emoldurar o baton. As sobrancelhas aparadase finas afastavam-se das órbitas por um traço de car-vão, e isolavam uns olhos castanhos — barrentos co-mo a água da lagoa do Quinaxixe. Mas sùbitamenteeles abandonaram o caderno e voltaram-se para si,perplexos. Apanhado em flagrante, o Gigi baixou

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a cabeça. A menina Vitória olhava-o silenciosamentee os alunos da classe, pressentindo algo de estranho,apagaram as conversas. Esperavam. Gigi esperou tam-bém e as comissuras dos lábios entreabriram-se numsorriso de confiança.

— Com que então pretendes brincar comigo...? —ela falava-lhe friamente.

Gigi empalideceu. Alguma coisa tinha falhado.Mas o que é que poderia ter sido? Estavam lá todos oslouvores pelas pontes e estradas que ele construíra.Ter-se-ia esquecido de algum facto importante? Olhouo caderno que ela lhe devolvera, aberto nas mãos, masnão distinguiu as letras sùbitamente misturadas.A acusação, porém, veio sem tardar, inexorável, im-previsível. Como é que ele se atrevera a tratá-lo portu! Como é que ele tivera o arrojo de o nomear comum simples artigo definido!?

— Ouve lá.., tu julgas que ele anda sujo e roto co-mo tu, e come funje na sanzala...?

— Não... não.., não é... — gemia o Gigi, desnor-teado, tentando estancar o fluxo daquelas insinuaçõesque ele temia.

De repente exibia-se aos olhos dos colegas, defor-mado como uma caricatura, o compromisso irrecusá-vel que circulava no seu sangue e que até ali inùtil-mente escondera. Uma vaga de calor inundou-lheo rosto e invadiu-o levemente uma sensação entorpe-cente. Os seus ombros encurvavam-se. Sentiu-se mui-to fraco. Já nada tinha que disfarçar, mas estava triste

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perante a luta que pressentia. Mas porquê, porquê queela, logo ela, o queria humilhar? Ela que tinha carapi-nha. Ela que era filha de uma negra, pensou com fu-ror. Os seus músculos crisparam-se e o caderno come-çou a amarrotar-se-lhe nas mãos. Depois mal sentiua violência da palmatória. Só nas faces a queimaduraviva da humilhação, só nos ombros a responsabilidadeda sua condição, de que ele não tinha culpa, mas quequeria aceitar mesmo dolorosa como as pulsações quelhe ressoavam nas palmas das mãos inchadas.

E na carteira chorou. Chorou de raiva, da dor quelhe nascia da piedade dos colegas e da vergonha denão poder esconder a sua angústia, com os olhos se-cos, enxutos, e orgulhosamente raiados de sangue, co-mo os do Matoso.

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ALMAS DO OUTRO MUNDO

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O dia fechou a cara e deixou que a noite viesse ge-mebunda para os lados do cemitério. As casas encer-ravam-se nos seus largos quintais já invadidos pelassombras e agitavam timidamente como a repeli-las,trémulas luzes dos candeeiros a petróleo. Ressumavados muros do cemitério uma luz fria e a noite petrifi-cava-se ali, num rectângulo branco, que punha na vi-zinhança da casa do Canelas uma área de solidão, queos trabalhadores do Bairro Operário evitavam quandoregressavam à tardinha.

Cangundinho caminhava apressado, com os maxi-lares contraídos, duros, na intenção de atravessar asobras da Bricon. Só dera pelo tempo quando o sol aodeclinar cobriu a água com uma capa leve, amarelada.Na praia da Rotunda os outros garotos já tinham parti-do, quando ele chamou pelos companheiros, que es-quecidos ainda nadavam na água morna da tardinha.Estava atrasado e aquele caminho era o mais curto pa-ra casa. Roçava pelos muros do Cemitério, mas eleprometera aos amigos que tinham ficado no Bairro

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Operário, que passaria por lá sòzinho. Não tinha medonenhum!

O Zeca caminhava na mesma direcção e não pro-metera a ninguém que faria isso tão tarde. Distraíra-sesimplesmente na casa do Jorge a jogar às figurase nem dera pelas horas. Agora teria que andar rápido,sossegar a mãe que estava doente. Ela certamente jáestaria a perguntar por ele ao criado. Mas aquele ata-lho ia dar ao Cemitério pensou inquieto, ao notar quecaminhava na direcção das obras da Bricon. Estavaescuro e não se via nada. Talvez fosse bom arrepiarcaminho, reflectiu prudentemente.

Cangundinho estava orgulhoso da sua decisão.Bem o Tonico o tentara impressionar quando vinhamda Rotunda e subiam as barrocas. Que só os feiticei-ros é que deslizavam à noite pelas cercanias do cemi-tério para bungular, que arrancavam as unhas dosmortos. Assim é que o feitiço tinha força, dizia. Tam-bém o Zé Gungo (a alcunha viera-lhe do hábito demorder quando lutava), ajudou. Que era verdade. Queandavam nus, com o corpo untado de azeite de palma.Ele ouvira-os sobranceiro. Via um ardil para o amole-cerem. Dominava-os nas bassulas, vencia-os nas fim-bas e sobretudo o Zé Gungo estava surucúcú, por elelhe ter cassumbulado todas as matonas da pesca. Não.Endureceu mais e segurou bem firme o fio das mato-nas. «Eu cá não tenho medo nenhum!» — exagerouum pouco.

O Zeca hesitava. Desviando-se para a esquerdaevitaria o cemitério, mas lá estava fatalmente a Casa

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dos Santos. No bairro diziam que aquele que ouvisseas estátuas a conversar, perdia a fala, para não poderrepetir o que tinha escutado. Não, daquele lado pareceque ainda era pior. Afinal de contas estava ali como coração a bater, e nem sequer conseguira ganhara fotografia do Douglas Fairbanks vestido de corsário,pensava desalentado. Olhou desconfiado para os ladose procurou descobrir a fogueira do guarda das obrasda Bricon. Naquela direcção, porém, só apareciam asluzes da casa do Canelas. — Paciência, vou tentar poraqui... — murmurou tão baixo, que parecia ter ouvidoapenas o seu pensamento.

«Tu não tens medo é porque és cangundo» — res-mungava o Zé Gungo, que não se conformara coma perda das matonas. (Iria, talvez, ficar sem jantarporque o Sr. Carneiro já não fiava na mãe). Vingava--se assim, irritando o companheiro. «Cangundosim...!» — fazia alusão à cor de Cangundinho dondelhe nascera a alcunha, embora ele fosse mulato. Can-gundinho não gostava. Se se submetia mais pelo hábi-to à brincadeira, rebelava-se sempre contra a sua sig-nificação. Irritou-se. Ele não tinha medo porque eraum homem. De madrugada, já ia há muito tempo des-pachar peixe frito para a Funda, na estação da CidadeAlta, justificara-se. Tonico interviera para evitar a bri-ga. Enquanto caminhava com firmeza, Cangundinholembrava-se da disputa e sorriu.

O Zeca estugou o passo. Sentia sob os pés descal-ços o chão arenoso do atalho e entre os dedos entrela-çar-se os caules finos do capim que por vezes pisava

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ao desviar-se do trilho. As vozes do Bairro Operáriochegavam-lhe já muito esbatidas e o regular cri-cridos grilos tornava-se mais puro e nítido, envolto nosom melífluo da brisa suave. E ele continha a respira-ção, atento, e movia o corpo com força para a frente,quase aos solavancos. Os seus ouvidos porém come-çaram a encher-se de pequenos sons estranhos que sedesdobravam ténues e se uniam depois mais fortessubmergindo o cri-cri dos grilos. Cada deglutição co-meçou a soar-lhe como o baque surdo de um tambor.«Sèculo Mané, não tem medo...» — acudiu-lhe derepente a voz do velho Garopa, calma e repousante,com que ele o tranquilizava para adormecer. Mas nosangue sentia lenta e inexoràvelmente aflorar, criadapelas sombras e aumentada pelos sentidos tensos, umaemoção igual à que o velho cozinheiro lhe acordava,quando à noite na cozinha, enquanto os pais conversa-vam à porta com os vizinhos, escutava as histórias dosjinzumbi. Então, ao deitar-se, enrolava-se nos cober-tores e ainda sob o rumor ancestral das almas vaga-bundas, ouvia no armazém contíguo ao quarto os seusgemidos, liquefeitos no pio do mocho que se empolei-rava na mulembeira do quintal. «Não tem medo SèculoMané. Tem almas que são boas...» — era na voz con-fiante do velho Garopa que ele se abandonava, atéadormecer. Como ele gostaria de o ter naquele mo-mento ao lado.

Debaixo do tamarineiro que ficava atrás do Cemi-tério, Cangundinho sentiu colar-se-lhe ao pé um pe-daço de papel arrastado por uma lufada de vento mais

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forte. Com um movimento brusco repeliu-o, mas es-tremeceu. As folhas pequeninas e preguiçosas do ta-marineiro nem se moviam. Arrepiou-se. Tamarineiroé árvore dos espíritos! Inconscientemente correu umpouco para fugir da sua influência, mas a corrida im-pacientou-o. Refreando o ímpeto mordeu os lábiose sentiu na boca um gosto a sal. Parou de correr, masos músculos mantinham-se retesados. Apalpou-os.Um sardão noctívago restolhou perto e ele deu umpulo.

— Bolas! Preciso não pensar nisto! — disse parasi contrariado.

Uma picada aguda no pé e o Zeca gemeu ao reti-rar o espinho. Contraiu-se, porém, apreensivo. O ge-mido parecia ter-se libertado da tonalidade que lhedera e adquirido uma existência própria, como se a es-curidão ao prolongar o som, o revestisse de uma dormisteriosa. Recalcou a dor que sentia e recomeçoua andar com um ritmo mais rápido. Pela aproximaçãoda mancha branca dos muros do cemitério julgou re-conhecer o caminho por onde o carro funerário doHospital trazia os mortos para a vala comum. Entãoa porta de ferro dos fundos do cemitério abria-se, ran-gendo, e da carrinha esquife, negra e alta, surgia umamaca, coberta por um lençol branco, recordou. Só ospés é que ficavam de fora, uns pés pretos e exangues,que eles despejavam numa enorme boca de terra e co-briam de cal. Seriam agora almas penadas? «SèculoMané tem almas que são boas... »

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Inútil. Não podia deixar de pensar naquilo. Sentiaretinir nos ouvidos o menor sussurro. Seria a cabeçade alguém aquele vulto que espreitava por cima dosmuros do cemitério? Talvez o ramo de alguma árvore,procurava convencer-se Cangundinho. Acorriam-lhepequenos medos que esquecera, as emoções rápidase agudas das corridinhas na noite quando fugia paracasa do vizinho e a rua estava cheia de contornos sus-peitos, uivos e os chamados das histórias dos quifum-bes que vendiam cabeças cortadas nas fábricas deaçúcar. Torceu com força o fio em que enfiara as ma-tonas. Precisava firmar os músculos em algo tangível.Uma angústia antiga subia-lhe à garganta e causava--lhe dores no pescoço.

Mas aquela promiscuidade de destroços, imprestá-veis, despejados como lixo, amontoados e descarnan-do-se entre sorrisos brancos de outras caveiras, indis-tintos num alvoroço de membros enrodilhados, ficariaimpune? Seriam boas aquelas almas? pensava o Zeca.Não buscariam culpas agora que eram mais fortes?

Os dois jovens caminhavam então como autóma-tos, movidos pelo impulso inicial do qual já mal per-cebiam os contornos, e os músculos tornavam-se re-beldes sob as vontades obstinadas. A noite enchia-lhesos olhos e os pensamentos fugiam da realidade, cor-riam entre sombras, ganhavam fluidez e bafejavam ascoisas e os seres do dia-a-dia que perdiam as cores e osentido.

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O Zeca sùbitamente viu a fogueira do guarda daBricon, meio apagada, e não suportando mais a ten-são, arrancou velozmente na sua direcção, tropeçandoruidosamente num monte de burgaus.

O barulho insólito descontrolou Cangundinho quevinha perto, e uma força desconhecida impeliu-o, tam-bém, desordenadamente, para a frente, numa corridaalucinada. Chegou ofegante junto da fogueira, no mo-mento em que o Zeca desembocava da esquina deuma construção vizinha.

— Ahn.., és tu... — reconheceu-o, sem fôlego.O guarda que, acocorado, assava batata doce,

olhou-os surpreendido, mas percebendo pelas feiçõesdescompostas dos jovens que estavam emocionados,levantou-se e indagou inquieto:

— Tem alguma coisa no caminho...?Mas a pergunta ficou suspensa entre os olhares

dos dois rapazes que se fitavam muda e persistente-mente. As suas expressões transmitiam arfantes todaa desordem interior que se estabelecera nos seus espí-ritos durante o caminho.

Os lábios do Zeca tremeram e distenderam-se le-vemente, mostrando os dentes, num rasgão brancoque pretendia ser um sorriso, mas o rosto de Cangun-dinho mantinha-se inalterável. Estava humilhado.A presença do amigo restituía-lhe a consciência da suaforça, a sua arrogância peculiar, mas testemunhavatambém, pensou com fúria, a agitação que lhe transpa-recia no rosto, as reminiscências comuns daquele pâ-nico. Ele, o Zeca, sabia que fora sob a pressão do

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mesmo medo que estava assim descomposto, porquetambém se assustara com os vultos que pareciam al-mas e com os ruídos que imitavam vozes. Não podiadissimular. E continuava ali em frente a sorrir-lhecúmplice, compartilhando o seu medo, lembrandoa impotência dos seus músculos.

Então Cangundinho avançou e bateu-lhe com ospunhos, violentamente, na barriga e no peito. O Zecarecuou com a boca entre-aberta de dor e de espanto,e atirou instintivamente o braço para a frente. Cangun-dinho sentiu no peito a pancada e parou.

— Einh! agora o que é que tu pensas...? — per-guntou, contendo um sorriso arrogante nos lábiosapertados. O peito erguia-se-lhe já confiante e os mús-culos ganhavam a antiga rudeza. Já não sentia medo.Crispava os músculos e eles transmitiam-lhe forçae segurança.

Vergado pela dor, o amigo respondeu à zombariacom um soco desesperado e aguardou firme a sua in-vestida. Mas Cangundinho, enquanto limpava o lábioferido na manga da camisa, limitou-se a repetir comlentidão:

— ...e agora o que é que tu pensas...? — libertan-do por fim o sorriso numa gargalhada ampla, que lhealargou ainda mais o seu rosto quadrado.

O Zeca ainda encolhido na defensiva reconheceuo riso do amigo e devagar foi distendendo os braçose teve então um acesso de riso nervoso. Reencontravatambém o corpo. Enfrentava a situação, e as coisas re-cuperavam as suas formas falíveis.

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E quando os dois amigos seguiram tranquilamentepara o Quinaxixe, o guarda, boquiaberto pela rapidezdaquelas situações incompreensíveis, abanou a cabeça,estupidificado, mas encolheu os ombros e aproveitouas matonas para o jantar.

Cheia de sugestões misteriosas a noite guardavano seu estojo negro o cri-cri regular dos grilos, agoranítidos e redondos como missangas vermelhas.

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QUARTA-FEIRA DE CINZAS

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Quando havia luar, as duas famílias seroavam nopasseio de cimento da casa dos Chaves. As donas pre-feriam sentar-se no próprio passeio, mas em cima decolchas, por causa das formigas pretas que tinhamuma picada dolorosa. As crianças brincavam à voltaem gritaria estridente. O Sr. Chaves zangava-se por-que elas lhe atrapalhavam a conversa e o Sr. Sousa,o vizinho da casa defronte, esperava pacientementeque ele resmungasse e ficava depois a escutá-lo sobreo habitual assunto da cultura do tabaco.

As crianças não se interessavam por aquilo e devez em quando, uma ou outra vinha estorvar, chorosa,para reclamar de alguma prepotência. As mães inter-vinham conciliadoras e os homens impacientavam-seainda mais. Mas a interrupção não tinha grande im-portância porque no dia seguinte voltariam a falar so-bre os mesmos assuntos. Só nos dias feriados ou deacontecimento imprevisto é que se dispensava o luar.Mas então os meninos não brincavam, medrosos, epreferiam ficar prudentemente junto das mamãs a jogar

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às pedrinhas, ou a ouvir os comentários sobre o dia,entremeados de remendadas biografias das outras do-nas do bairro.

Naquele dia, o último do carnaval, D. Ana de Sou-sa (Donana entre os criados), arreliava-se com elesporque ainda não tinham a louça lavada e ela já ouviao marido conversar com os vizinhos. «— Oh! estamaldita criadagem...»

Brincando na serraEnquanto o lobo não vem...

As vozes das crianças chegavam-lhe alegres, brin-cando ao lobo mau. Mas quando é que estes criadosquerem acabar com o serviço, pensava irritada? Esta-va agulhada por saber se o Craveira sempre se tinhaencorajado a falar à Margarida, a filha mais velha davizinha, uma jovem alegre e roliça. Além disso queriacomunicar à amiga os gabos feitos à sua cassule, mas-carada de índia, com um saiote de folhas de mulem-beira. «Oh.., mas estes criados! — Pois fiquem saben-do que não quero ninguém a sunguilar no quintal,depois das 11 horas...» — avisou vingativamente.

Quando D. Ana apareceu no passeio, a brincadeirados garotos já ia adiantada e a Quinhas perguntava:«— O que é que o lobo está a fazer?» «—... a bungu-lar...» — respondiam em coro os companheiros.

D. Ana estranhou que não fosse o filho a fazer delobo como era habitual e procurou-o com os olhos.

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Viu-o sentado no passeio um pouco afastado do gru-po, encostado à parede da casa, com o queixo quaseapoiado aos joelhos, meditando.

Tinha sido tão inesperada aquela despedida daNandinha, pensava o Mário. Foi talvez por isso queele se descontrolara. Mas se alguém viesse a saber?Iriam troçar com certeza. E ele que sentira os olhosinundados de lágrimas. Aquela suspeita magoava-o.Mas não podiam dizer que ele não fosse decidido.A sua mão ainda conservava o calor dos seios durosda criada da Nandinha e recordava os seus gemidos dedor e de volúpia quando a apalpou enquanto jogavamàs escondidas.

— Não brincas, Mário? O que é que tens? Estásdoente? — sobressaltou-se D. Ana.

Mário despertou bruscamente e respondeu ataba-lhoadamente. Que não, que não queria brincar. A vizi-nha interveio. Lembrou que ele devia estar cansadopor ter passado a tarde nos musseques atrás das dan-ças. O Sr. Sousa aproveitou a oportunidade para narraruma briga que tinha presenciado entre a «Kazekuta»e os «Invejados». Pronunciava «Invejados» com asvogais todas fechadas e o Mário tinha dificuldade emassociar aquele nome ao seu grupo de carnaval favori-to, o mais falado, que até ia dançar no Palácio. «In--vé-já-dos» é que era, com as vogais bem abertas,e lembrava logo o estandarte bordado a cores, o ritmopróprio dos ngomas e das dicanzas, os índios com asazagaias...

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— ...a Nandinha também vai amanhã para o Asilo.— D. Conceição (assim se chamava a vizinha) que ti-nha uma filha no Asilo D. Pedro V, falava da partidada filha e associava o nome da Nandinha, colega dafilha, que sabia igualmente em férias.

O Mário estremeceu. Relembrou Nandinha e ima-ginou-a no Asilo, de muros altos, impenetráveis, vi-giada pelas madres severas e inflexíveis como ga-viões. Mas no lugar da tristeza, sentiu uma estranhasensação de alívio. O seu segredo ficaria ali sepultadovivo, defendido por aquelas paredes maciças e inaces-síveis. Mas as meninas, do alto daqueles muros pare-ciam tão tristes, tão desesperadamente frágeis. Recor-dou mais uma vez o rosto da amiga, estático, onde sóos olhos se moviam preguiçosamente muito brancose mortiços, e o sorrir dos seus lábios sem elasticidade,passivos. Falava baixinho, aproximando-se muito, co-mo se vivesse num mundo de segredos. Como é queela suportaria o Asilo? Ainda ficaria mais triste? Nãopressentia nela nenhuma ambição. Brincara com eladurante todo o período das férias. Ela entregara-seà ternura daquela amizade infantil, de uma forma tãolivre e rectilínea, que no fim dela ficava sòmente ele,único. Todo o seu ardor possessivo, quando junto de-la, esvaía-se numa carícia, como uma onda revolta nu-ma praia lisa e aberta. «Um homem vai logo direitoao fim... Não sejas parvo!» Cerrou os punhos ao pen-sar nas palavras do Sr. Chaves enquanto lhe piscava

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o olho intencionalmente, designando as criadas. Não,ela não. Ela precisava de protecção. Ela não sabia lu-tar. (Quando a mãe da Nandinha, no meio dos cestosde mateba abarrotados de mangas, bagres e cacussos,que lhe mandavam da Funda para revenda, enfrentavaas quitandeiras em dicussões acaloradas, ela não de-monstrava a mínima emoção. Continuava apática, lon-gínqua, e acabava por lhe pedir para irem brincar parao passeio, por causa do barulho). A sua ignorância deque havia um jogo vital em que era preciso ganhar,perturbava-o. O seu pai cedo lhe transmitira essa cer-teza sem piedade. Punha-o de sobreaviso, em relaçãoaos vencidos e fracos. O que era preciso era ganhar.Mas ela não parecia compreender.

— ... sim, porque só um papa-açorda é que faz es-sa figura — concordavam as duas senhoras, confes-sionalmente, no meio de uma conversa murmurada.

De quem estariam a falar? O Mário cuidou quedevia ser das cenas que o Craveira fazia para se decla-rar à Margarida. Ela rira-se-lhe na cara, carnuda e sen-sual, quando ele lhe chamara de... de quê? Ahn! In-tangível! O que é que queria dizer aquilo?

Mas os juízos da mãe e da D. Conceição, que an-tes lhe provocariam a troça, deixavam-no agora poucoà vontade. Não que ele fosse um papa-açorda! Noconceito das duas família o seu prestígio era bem fir-me. O Sr. Chaves incitava-o e gozava com os muxo-xos e as queixas das criadas a quem ele levantava de

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surpresa as saias. Mas se viessem a saber daquela des-pedida...? Fora tudo tão rápido! A emoção traíra-o.Ainda sentia na mão o calor daqueles lábios quentese suaves!

Iam por uma das ruas estreitas do Bairro Operárioatrás do grupo formado pela mãe da Nandinha, pelasprimas e pelos criados. Àquela hora algumas dançasjá tinham acendido os lampiões e um batuque desciaa rua. Os primeiros guerreiros evolucionavam pertodeles, ameaçando-os com as lanças e chocalhando osguizos dos braços e dos pés. Tinham-se encostadoa uma cerca de tábuas, para não serem absorvidos pe-la multidão que avançava a cantar, e olhavam. Era tar-de e ele procurava um pretexto para se despedir, masnão queria parecer aos olhos da Nandinha um medro-so, tremendo dos ralhos da mamã. Ele era já crescido.Poderia entrar mais tarde em casa. Não tinha medo,procurava convencer-se, para esconder a razão do seutemor.

Nandinha olhava-o às vezes de frente e pareciacompreendê-lo. O seu olhar estava carregado de inten-ções e envolvia-o numa teia de sentimentos que o per-turbava. Ela amanhã partiria para o Asilo. Ele teriaque se despedir agora e a separação viria irremedià-velmente. Separação que ficaria vazia como um cortebrusco num feixe de luz, sem um compromisso, umagarantia da confissão mútua da ternura que os ligavae que ele, afinal, evitara sempre. Iriam separar-se por

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quanto tempo? E não ficaria nada a preencher a dis-tância... Ela só sairia nas férias grandes. Era melhoresquecer. Tinha que ser, não podia fazer nada. E aca-bou por dizer com determinação, sem se atrevera olhá-la:

— Vou agora.., atrás desta dança.Nandinha, que lhe pressentia a agitação, percebeu

que afinal seriam só aquelas palavras vazias de afectoque iriam encerrar toda a sua comoção da despedida.Ficou quieta, silenciosa, como se não tivesse ouvido,procurando nele, inùtilmente, porque seria assim tãofrio e sem futuro aquele momento. E como sonâmbu-la, segurou-lhe a mão e pediu trémula:

— Escreves-me?O Mário receou viver a expressão daquela súplica

e a garganta contraiu-se-lhe, recusando comunicara afirmação que lhe enchia o peito. Acenou simples-mente um sim, com a cabeça, e sùbitamente sentiu namão os seus lábios quentes, suaves.

Retirou-a bruscamente como se a tivesse ferido.Quis fugir. Nandinha arfava, envergonhada. Foi entãoque num beijo tímido ele também juntou o seu jura-mento de fidelidade. Não pudera nem quisera conteras suas lágrimas. Eram dela.

E naquele momento o Mário recordava, agitando--se no passeio, e mordia os lábios para não chorar.A mãe dele vira e sorrira. Toda a gente sorrira. Aochegar a casa todos os rostos sorriram. Talvez soubes-sem. Gozavam.

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— Só o nosso Mário é que não é de meios ter-mos... — dizia D. Conceição, na continuação da con-versa sobre o Craveira e fazendo alusão aos despropó-sitos do garoto com as criadas.

A gargalhada alta e fresca da Margarida que acom-panhou os olhares e que se lhe dirigiram sorridentes,feriu o Mário como um espinho. Sentiu as orelhasa arder e um suor quente inundá-lo. Eles sabiam, go-zavam, troçavam também. Mas o que é que eles ti-nham com isso? O que é que tinham com a sua vida?A fraqueza fora sua e ele não a recusara. Gritou:

— Não têm nada com isso, não têm nada com is-so... — e fugiu, choroso, deixando os pais e os vizi-nhos boquiabertos.

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A MULHER DO PADEIRO

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O João das Quinhentas já andava irritado e rece-beu o criado de sobrolho franzido e com o queixo er-guido num movimento inquiridor. O que é que elaqueria agora?

— A senhora não quer este feijão. Tem bicho! —respondeu acanhadamente o garoto ao seu olhar avi-nhado. Àquela hora ele já tinha bebido umas poucasquinhentas (como chamava aos copos de vinho decinco tostões) e zangava-se fàcilmente.

— Se calhar lá na fortaleza davam melhor feijão?Tem bicho... armada em fina... — rugia o taberneiroenquanto ia despejando a quinda.

O criado não se atreveu a concordar, mas na muxi-ma guardou avaramente a confirmação. Afinal a pa-troa sempre tinha estado na fortaleza de S. Miguelonde ficam os condenados que vêm do puto, repetiupara si com emoção. Sentia vontade de pular, desaltar, como se de repente o tivessem desamarrado dealgo que lhe comunicava um instintivo temor. Eramentira a banga que ela fazia. Ela era mesmo uma

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condenada. E depois com a mania ainda de lhe dar bo-fetadas.

No bairro do Quinaxixe, porém, todos conheciamo seu passado. As donas do bairro não gostavam doseu aspecto grosseiro, dos gestos com que ela tentavaimitá-las num arremedo de dama. Viam nela uma in-trusa. «... uma cavalona!» — diziam entre si quandoa viam na praça.

Não era uma cavalona, mas era alta e corpulentae chamava-se Apolónia, aliás, D. Apolónia. Emboraamigada com o padeiro Brandão, «...em África é pre-ciso mais respeito!» — ela impunha-se.

Moravam numa pequena casa com um quintal demuros tão altos que pareciam continuar as paredes.Caiada de branco alvejava a pouca distância da taber-na do João das Quinhentas muito frequentada porex-presidiários. Ouviam-se de sua casa as suas graço-las pesadas e as discussões acesas enquanto jogavamas cartas. D. Apolónia trancava as portas e janelas:«...por causa da pequena... e do Brandão que precisade descansar.» — explicava afinando a voz rouca.

A pequena era a filha cassule Joaquina, uma meni-na mortiça que tinha medo de aparecer à porta. O JoãoJosé, o outro filho do casal, mais ousado, sempre quepodia esgueirava-se para se juntar aos companheirosdo bairro. D. Apolónia não gostava. Os meninos doQuinaxixe andavam com pretos e mulatos, o que elaconsiderava um mau costume. Opunha-se por issocom firmeza. Toda a gente de casa conhecia a dureza

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das suas convicções. Ela nunca esboçava um gesto,uma frase. Não hesitava nunca. As suas palavras, assuas atitudes, eram sempre definitivas.

O padeiro Brandão por tacto evitava colidir comas musculosas opiniões da mulher, embora não cons-tasse que ela lhe batesse. Noctâmbulo, passava o diapiscando os olhos como um albino, hesitante em re-solver a mais lisa circunstância doméstica. «Issoé com a minha mulher.» — dizia engrossando parado-xalmente a voz. «Oh! home não sejas atado!» — inci-tava-o às vezes D. Apolónia sorrindo envaidecida. Narealidade ele vivia apenas amassado pela sua presençaimponente.

— Desde que começou a besuntar-se parece queficou pior... — resmungava ainda o João das Quinhen-tas ao devolver a quinda ao criado. Referia-se ao ba-ton que há uns tempos atrás D. Apolónia passaraa usar.

O padeiro também não gostara e ruminava emboraresignadamente, que aquilo era uma porcaria. A vizi-nhança porém foi mais longe. Reparou no lábio supe-rior de D. Apolónia densamente sombreado por umbuço agressivamente negro, e à sucapa ria-se do con-traste. Murmurava-se até que ela andava de amorescom um frequentador da taberna do João das Qui-nhentas. Na verdade as transformações que se opera-vam no seu temperamento, a partir da altura em quese começou a pintar, punham as pessoas do bairro in-trigadas. O baton além de disfarçar-lhe as gretas dos

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seus lábios carnudos, amaciou-lhe os gestos e adoçou--lhe o olhar de gavião. Em casa o Brandão ganhou au-toridade e percebia-se às vezes o timbre da sua voz,embora hesitante, como saída de uma longa asfixia.O João José pressentiu o afrouxamento da vigilânciamaternal e aproveitou, fugindo amiúde para se juntarao seu companheiro dilecto que morava perto do Mar-tini das maçãs da Índia.

— Ena! tenho que ir com depressa... — murmurouo criado de D. Apolónia ao descobrir à saída o bandodas alunas de costura, que gostavam de fazer poucoda sua senhora. A patroa poderia bater-lhe, julgandoque ele as ajudava na troça. No íntimo ficava contentequando a senhora se irritava e descompunha as rapari-gas. «Não se pode mostrar os dentes a esta gente.Abusam logo...!» — dizia furiosa, batendo com as ja-nelas. As raparigas gargalhavam e já longe ainda seouviam os seus dichotes em quimbundo. O pior mes-mo foi quando veio uma marchinha brasileira da Mu-lher do padeiro. No regresso para os muceques elascantavam-na bem perto da casa, deturpando intencio-nalmente a letra da canção. E ele ouvia da cozinha assuas vozes esbatendo-se ao longe...

A mulher do padeiroCorneava noite e diaOoooooooh!........................ e o padeiro não sabia

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Se naquele dia a patroa as apanhava...! E o criadosentiu um arrepio ao recordar D. Apolónia armada docutelo de cortar o sabão, a correr sobre as raparigas.«Esta senhora não é bom.»

D. Apolónia, que se habituara ao desdém das se-nhoras do Quinaxixe, não amolecia no entanto comopatroa. Aí não cedeu. «Estes negros julgam que eusou igual a eles...?» — a ideia de um nivelamento pu-nha-a fora de si. «É uma regateira...» — concordavamas donas do Quinaxixe com as quitandeiras que sequeixavam daquela quissanda. E continuavam a afas-tá-la do seu convívio.

— Até que enfim... Estavas a fazer o feijão, anh?— perguntou-lhe carrancuda D. Apolónia que o espe-rava à porta.

— O Sô João é que... — tentou explicar-se o ga-roto.

— Qual Sô João, Sô João... — atalhou com rispi-dez. — Julgas que me comes... Ficas lá a conversarcom os outros e depois é o Sô João...

— Vai mas é ver onde está o menino João — co-mandou a seguir, retirando-lhe a quinda das mãos. —Aquele parece que também anda a pedir...

— O menino está ali no trás, brincar com o meni-no Zeca — disse o criado apontando as traseiras doquintal, onde momentos antes os tinha visto a jogarà bilha.

— Ah! sim... então espera...

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** *

O Zeca ardia de curiosidade. Intrigava-o a malíciaque as alunas da costura punham na letra da marchi-nha brasileira. Aproximara-se temeroso. A mãe doJoão José parecia não gostar dele. O que é que que-riam dizer com aquilo? No dia em que ela irromperapela porta, de cutelo na mão, ele estava próximo e tre-para aflito para cima dum muxixeiro. Não confiavamuito no seu aspecto. Teria ela mesmo morto um ho-mem, com uma faca? Mas o João José era tão mansi-nho... nem sequer gostava de jogar às bassulas. Comoele se encolhia quando a mãe o chamava! Fugia preci-pitadamente da sua companhia, mas sempre que podiavinha depois à janela acenar-lhe como a pedir-lhe per-dão.

— Estás a roubar nos palmos — e o João José foirectificar a posição da mão do Zeca, que quase esten-dido no chão, fazia pontaria a um buraco.

— Queres apostar que mesmo assim ganho?Mas o João José não respondeu. Olhava uma saia

azulada com listas vermelhas que vogava de vagar so-bre umas pernas musculosas e peludas. De súbito pa-receu reconhecê-las e levantou-se apressado, limpandoa terra dos joelhos. Foi então que o Zeca tambéma viu, vermelha e silenciosa. O coração bateu-lhe alvo-roçado. Era a mãe do João José. Sentiu os músculos

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da garganta contraírem-se. Hesitou. O que é que de-via fazer? Fugir. E se ela o agarrasse pelo pescoço?Olhou-a de vagar de soslaio. Não se atrevia a esboçarnenhum movimento e cumprimentou-a tìmidamentedo chão onde ficara transido, simulando jogar o bur-gau redondo.

D. Apolónia, depois de o olhar alguns momentos,virou-se rápida para o filho, puxando-o com violênciapor um braço.

— Estou farta de te dizer... Estás a ouvir...? —e ameaçava-o com a mão livre.

E se ela se virar para mim, pensava angustiadoo Zeca. Mas ela não é minha mãe. Não tem nada deme bater.

— E tu também... Andas pr’aí todo sujo... e cadavez mais escuro — voltara-se finalmente para elee olhava-o intensamente.

— É que a minha mãe... disse que eu apanho mui-to sol — titubeou enfiado.

— O que a tua mãe disse... com que então andasmuito ao sol... — ela tinha a voz rouca e abanavaa cabeça. O buço parecia mais negro e sob as sobran-celhas espessas e ruças os olhos tinham um brilhoafiado.

— O que a tua mãe disse... Pois fica sabendo... Tués escuro porque és mulato. Descendes dos negros! —estas últimas palavras foram batidas com violência,atiradas como pedras.

Amorrinhado pelo sol o Zeca ouviu-a passivamen-te, baixando a cabeça. De súbito o ruído de uma porta

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ao fechar-se sobressaltou-o e ele pareceu acordar. Te-ria sido um sonho? Como aquela voz parecia vir delonge... Fora para ele que ela tinha dito aquilo? Por-quê? Mirou com atenção os braços sem compreender.Tinham um tom castanho, pardo, que escurecia na ar-ticulação do cotovelo quando os dobrava. Que tinhaaquilo de mal? Salvo ligeiras gradações eram quaseda mesma cor que os da maior parte dos seus compa-nheiros. O Zito até era mais escuro que ele e tinhao cabelo liso e brilhante. Mas a minha mãe tem o ca-belo crespo e a sua cor é também igual à minha, re-flectiu melhor o Zeca. Mas mesmo assim parecia-lheigual às outras mamãs do Quinaxixe. Mas as palavrasda mãe do João José continham uma intenção desco-nhecida que o deixava perturbado. Olhou à volta. Tu-do continuava impiedosamente iluminado por um solardente.

Os carpinteiros da Bricon serravam maquinalmen-te e de vez em quando agachavam-se como para lim-par a serradura ou escutar. Os serventes caminhavamem todas as direcções, transportando padiolas de ci-mento para as obras em construção do Bairro do Cru-zeiro. Sujos e calados caminhavam lentamente e osruídos flutuavam e plasmavam-se aos seus movimen-tos cansados. As coisas e os homens comungavam nu-ma expectativa de vencidos sem esperança.

De repente o Zeca sofreu o impacto de uma sus-peita e enrubesceu. Descendes dos negros! A fraseemergiu com ímpeto e ficou a boiar em frente dos

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seus olhos atónitos, cegos de luz. Forcejou por levan-tar-se e correr para casa. Era preciso perguntar seaquela suspeita era verdade e porque é que era assim.Sim, porque a mãe devia sabê-lo, podia sabê-lo. Não.Ela não devia saber. Ela também lhe proibia a compa-nhia dos meninos negros... Ela não queria saber.

Hesitava, pensativo, quando lhe chegou aos ouvi-dos as risadas das alunas de costura. Batucavam nascaixas o ritmo da Cidrália e cantavam a marchinhabrasileira. O Zeca olhou-as e sorriu com tristeza. Elaseram negras também mas não tinham medo, nem pa-reciam importar-se. Cantavam com alegria, com umaconfiança que os seus pulmões expeliam com força.E uma simpatia imensa por aquelas jovens cresceutanto, que o deixou ofegante quando começou a can-tar. E enquanto fugia desabaladamente, a sua vozuniu-se àquele coro uníssono que parecia desafiara vida, gritando e berrando:

A mulher do padeiroCorneava noite e dia...

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MORTE DO VELHO NORONHA

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Paravam os automóveis defronte do jardim daIgreja do Carmo, e saíam de vagar, molhados de suorsob os fatos pesados, constrangidos pelos nós das gra-vatas pretas. No átrio da Igreja cumprimentavam-secerimoniosamente e limpavam as testas avermelhadas,com os lenços finos e brancos.

— Não se pode lá estar! Abafa-se lá dentro... —justificavam-se alguns aos recém-chegados, indicandocom um gesto vago o interior da Igreja, onde estavaexposto o corpo do velho Noronha.

Eram 11 horas. A Igreja estava aberta àquela hora.Sòmente algumas senhoras velavam o cadáver, senta-das nos bancos de madeira. Prostradas pelo calor,seguiam absortas o movimento lento da cera escorre-gando pelos círios. Entregues aos seus íntimos pensa-mentos, pareciam acordar a qualquer ruído ou movi-mento que pressentiam em redor. Depois retomavama mesma sonolência e ouvia-se de vez em quando umsuspiro de resignação.

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Junto do altar de Santa Filomena, uma mulher en-volta em panos de luto, rezava baixinho, de cabeçabaixa.

— Credo, que calor! — murmurou uma senhoraalta e grisalha ao erguer-se, encaminhando-se a seguir,muito direita e quijilosa, para uma das portas que da-va para o átrio, donde chegava um susurro contínuo.

— Olhe que já naquela altura era um grande im-portador de conservas... Deu a mão a muitos patrí-cios... Minha senhora... — interrompeu-se o SampaioLeal, inclinando-se perante D. Adelaide, irmã do de-funto, que naquele momento acabava de surgir deuma das portas da Igreja.

Alguns dos recém-chegados aproximaram-se tam-bém reverentes, e apresentaram pêsames inaudíveis,recebidos com uma gravidade negligente. Era precisocumprir o ritual e assim curvavam-se com um grandemovimento afirmativo do tronco, com o qual D. Ade-laide parecia concordar tàcitamente.

Momentos depois reconstituíam-se os grupose continuavam os diálogos. D. Adelaide foi juntar-seao irmão, que ouvia com uma expressão de deferênciaforçada o João Moiteiro, comerciante dos musseques,que agitava vivamente as mãos gordas e suadas.

Louvaminhando os predicados do morto (foi uma quem ele dera a mão) denunciava-lhe agora as virtu-des como outrora o denunciara ao fisco como fabri-cante de quimbombo. Não tinha escrúpulos e vingara--se daquela maneira da preferência que os negrosdavam ao velho Noronha...

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Enfim, um ganancioso, um hipócrita, pensavao Mário Noronha, visivelmente enfastiado com os re-morsos do comerciante. Sobretudo com as recorda-ções daqueles negócios reles que ele fazia renascer.Um passado aviltante que era preciso esquecer, apa-gar. Não queria saber de nada que se relacionasse comele. Estava farto! Porquê que ele lhe estaria agoraa contar aquilo? Pelo menos sugeria...

— Com licença... Mário, não achas que o Padrepoderia abreviar esta tortura? — a voz da irmã liber-tou-o dos seus pensamentos e ele respirou aliviado.

— Ah! Pois... com certeza. Dá-me licença... —despediu-se apressado do João Moiteiro, que se tinhavirado para D. Adelaide com um sorriso largo e servil.Que dias terríveis aqueles. Teria certamente que en-frentar mais situações embaraçosas.

Ao dirigir-se para a sacristia colheu retalhos deconversas que lhe confirmaram os pensamentos e o fi-zeram apressar-se. Que gente sem dignidade, enfure-ceu-se. Que lhes interessava os terrenos que o irmãotinha perdido no jogo, e com as amantes negras?Iriam lembrar-se de tudo agora. Dos filhos mestiços,vadios espalhados pelos musseques, e até de pretoscom o apelido da família. Eram capazes de chamaràquilo prestígio. Talvez, entre aqueles homens comoo João Moiteiro, que se rebaixavam até aos negros.Não! Na sua posição não podia suportar ligações da-quele género. Era humilhante! Era preciso acabar comaquilo, pensou mais uma vez inquieto. Revolviam

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o passado do morto, esgaravatavam como abutrese exibiam depois os despojos sobre o fundo presti-giante da família, para a denegrir. Prazer dos que nãopodem subir a certas posições, julgava com desprezo.E ele que tentara tudo para que o irmão reconsideras-se. «Desaparece antes que te ponha na rua!» — aindase mantinham nos seus ouvidos (e isso fora há quan-tos anos!) a sua voz extraordinàriamente serena, masfirme. Para ele a família, a raça, era um mito. «Sou li-vre, não tenho os vossos preconceitos.» Livre, disseraele. Antes o tivesse sido totalmente. Ele não seriaobrigado a encolher-se na roda dos amigos sempreque lhe falavam do irmão. Finalmente, sim, finalmen-te, é melhor encarar a realidade. Tudo ia terminar, pa-ra evitar maior degradação.

A porta da sacristia estava aberta. Entrou. Não es-tava ninguém e alguns paramentos jaziam sobre umaescrivaninha estreita. Ainda mais esta! Onde estariao Padre?

— ... não fosse esse vício e ele estaria muito bemagora — continuava o Sampaio Leal junto de um gru-po de senhores circunspectos. — Aliás não é segredo.Não havia amante que não recebesse um presente devulto... uma casita... e até ordenados! Como devemcalcular tinha grande popularidade no meio indígena.

— Realmente quando me mudei para o Quinaxixevia isso no carnaval. Não havia dança que lá não fos-se parar. Afinal ele também beneficiava com isso...com a lojeca...

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— Oh! nem por isso. Estava velho, desinteressou--se. Limitava-se à rotina da fuba, farinha, ginguba...Olhe aqueles garotos ali, eram os seus melhores fre-gueses... de fiados — e apontava sorrindo um grupode jovens encostados às árvores do jardim.

— Coitados, vão sentir a sua falta...Coitado do Eduardo! Pensava D. Adelaide olhan-

do o corpo hirto do irmão. Vendo bem, ele em nadatraíra as esperanças da família. Mantivera-se simples-mente aquele Eduardo espontâneo e directo, que elavira partir muito novo para a África. Talvez ele tives-se tido nestas terras mais oportunidades de se mostrarigual a si próprio, embora tivesse sido menos com-preendido. A vida era diferente em África. Cada umprecisava de ocupar o seu verdadeiro lugar. As socie-dades existentes deviam ser respeitadas. Se assim nãofosse, como é que depois poderíamos manter as nos-sas posições? «Quero lá saber disso... São mulherese eu preciso viver!» — «É um imoral!» — O Eduardoe o Mário eram tão diferentes...! Já não o via desdeque ele tinha rompido com a família. Estava ali agora,com uma expressão levemente sorridente, emolduradapelos cabelos totalmente brancos. A mesma testa alta,ampla, o nariz afilado, distinto. O que é que ele teriaganho ao escolher essa outra face da sociedade, des-prezando aquela a quem eles pertenciam. Para quê?Para se tornar o pai dos pretos. Um pai caprichosoque tanto os explorava como a seguir lhes oferecia.

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O soba branco. Horrível! Era inevitável o rompimen-to. Como poderíamos apresentá-lo nas reuniões?! Se-ria um motivo de escárnio para todos nós. Meu Deus,como ele os pudera trocar por aquela gente...!

D. Adelaide levou as mãos aos olhos num gestocansado. Agitavam-se nela emoções diferentes, temiaanalisá-las, e acabou por enxugar uma lágrima teimo-sa. Que situação injustificada!

Mas já fechavam o caixão. Retiravam os aprestosdo enterro e alguns homens aproximavam-se parao levantar. Mário Noronha aproximou-se da irmãe passou-lhe a mão pelos ombros. Tinha-se acercadono momento e surpreendera-lhe o desfalecimento.Agora protegia-a, não se sabe de quê, talvez do poderde conversão da piedade que, pensava, despontava nairmã. Ela não devia ceder. O passado dele tinha sidovergonhoso, ele fora um indesejado. Cingiu com maisforça os ombros da irmã, e ela como se tivesse com-preendido, baixou os olhos.

Formava-se o séquito fúnebre e preparavam-se pa-ra sair da igreja. As senhoras faziam as últimas genu-flexões, e retiravam os ramos de flores. Mário Noro-nha tomou então o braço da irmã e encaminhou-separa o átrio da igreja.

Sùbitamente nasceu um choro alto. Um movimen-to insólito fervilhou no meio daqueles homens elegan-tes, e uma mulher envolta em panos negros, precipi-tou-se sobre o caixão.

— Sô Eduardo! Sô Eduardo, tão bom, tão bom...— clamava abanando a cabeça.

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Os cavalheiros que se aprestavam para levantaro caixão, recuaram e entreolharam-se hesitantes.

D. Adelaide empalideceu e depois corou violenta-mente sob os olhares interrogativos dos circunstantes,que pareciam esperar dela uma iniciativa, ou uma ex-plicação, e olhou angustiada o irmão.

— Tinha sempre pena da nossa gente... — a mu-lher agarrava-se como desesperada ao caixão um ges-to descontrolado derrubou uma coroa de flores artifi-ciais, que caíram impróprias, substituídas pelas suaslágrimas ardentes.

Mário de Noronha sùbitamente desnorteado come-çou a ofegar, limitando-se depois a enxugar com pan-cadinhas nervosas o suor da testa. Nem mesmo depoisde morto, ruminava com furor. Teriam que enfrentarsempre as raízes que ele criara no passado?

— —Tinha sempre um bocado de fuba, um boca-do de farinha... — a lamentação escorria num prantosacudido pelos soluços, enquanto as pessoas do corte-jo visivelmente embaraçadas baixavam a cabeça, semesboçar um movimento.

Como é que o Eduardo pudera ser tão egoísta!D. Adelaide revoltava-se e um sentimento novo, feitode vergonha e humilhação ensombrava a recordaçãopiedosa que tivera do irmão.

João Moiteiro, a quem Mário Noronha parecia su-plicar com os olhos, auxílio, desviou o rosto e pareciamuito interessado a examinar um quadro da Crucifica-ção, que se encontrava pregado na parede oposta.

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Aquela gente elegante que aguentasse! Teimavam emignorar a origem dos seus bens, só pelo facto de seacharem afastados directamente dessa realidade, pen-sava com uma pequena satisfação interior o comer-ciante. Era bom de vez em quando fazê-los descerà vida. E pressentia-lhes o mal estar, aspirava-o comvolúpia, apalpava-o, saboreando a sua densidade.

Mas como a ladaínha parecia eternizar-se, sem quese apresentasse qualquer solução, avançou e interveio:

— Pronto, pronto, já acabou... — e batia familiar-mente nas costas da mulher, enquanto com um sinalligeiro aconselhava que saíssem com o caixão.

Os rapazes do Quinaxixe que esperavam encosta-dos às árvores do jardim e que tinham acorrido aosgritos da mulher enlutada, olharam-na depois comovi-dos. Amarfanhada num dos bancos da Igreja, era co-mo um símbolo dos seus sentimentos, mas que nelesse anulavam envergonhados no meio daquela gentediferente.

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DESPERTAR

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Caminhava devagar e pisava levemente a terravermelha, receoso que a poeira embaciasse o brilhodos sapatos cuidadosamente engraxados. Aquela preo-cupação dava-lhe ao andar uma indolência gingona,que o calor das 2 horas acentuava.

Era cedo, e ele não tinha pressa. Só começariama passar o filme às 3 horas, e ele já tinha compradoo bilhete. Tinha ido de manhã comprá-lo, depois deassistir a um treino de futebol no campo do S. Pauloda Missão. Quase chegara tarde, distraído como esti-vera com as fintas cambaias do Cagalhoça, mas con-seguira arranjar um superior. Num filme de RandolphScott é difícil! Mas mesmo que só encontrasse geralnão ia para os bancos de pedra. Aquilo era só para ospretos de pé descalço. Embora uma vez o Ruço, por-teiro, quisesse obrigar um rapaz mulato. Houve ca-vanza!

Mas se ele pudesse o que compraria mesmo seriauma cadeira. Era mais selecto. Mas com aquelas tipasdo musseque quase não valia a pena. Mal penteadas,

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com vestidos feios de flores berrantes. No Cine Na-cional é que interessava comprar plateia. Na matinéeo cinema enchia-se de moças lindas, brancas e cabri-tas de cabelos ondulados, de fala suave. Se aindao deixassem entrar com bilhete de criança, não volta-ria ao Colonial. Não que lá se sentisse mal. Gozavaaté uma pequenina satisfação interior. A gente que fre-quentava o Colonial, tinha ficado no começo da vidae competia já, desesperadamente, por necessidadesprimárias. Ele tinha a promessa do seu futuro de estu-dante liceal. O que é que ele poderia vir a ser? Enge-nheiro? Advogado? Não definia muito bem as suasambições, nunca incitadas e vagamente cerceadas pelopai, modesto empregado de comércio. «O quintoano... e mesmo assim com que dificuldades!» «Masum rapaz precisa de estudar, Silva. Enfim, podia-se...»— aquela esperança embora reticente da mãe (sabiamque nunca poderiam mandá-lo estudar para Lisboa)animava porém a sua imaginação fogosa.

Gostava por isso de ir ao Colonial. Ao abrigo daescuridão, aquela multidão heterogénea, de pretos,brancos e mulatos, que gritava, ria e cheirava mal, pa-recia plasmada num só corpo agitado por uma emoçãouníssona e fraterna. No intervalo porém distinguiam--se, marcando os seus direitos e os seus fins, e afas-tavam-se. O pior de tudo, é que os colegas do liceutroçavam dos frequentadores do Colonial. Chamavam--nos mussequeiros, o que perto das colegas era con-frangedor. Elas eram tão proibitivas! Reparavam emtudo. Então as mulatas e a Conceição, que era filha de

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pais indianos, quase não falava com os colegas de cor,para não a confundirem. A verdade é que ele ia aoColonial mas não dava confiança.

Ao entrar numa das ruas que nasciam para o S.Paulo, do largo do chafariz do Carneiro, a atenção doGigi foi desviada pelo pressentimento que o espreita-vam de uma casa amarela de pau-a-pique. Pensou quedevia ser a filha daquela mulher de panos que quandoele passava cochichava para as vizinhas: «É o meninoGigi, o filho da D. Angelina. Anda no liceu!» A admi-ração com que o seguiam envaidecia-o. Exagerava en-tão o andar e encurvava ligeiramente as costas. Masa curiosidade da filha púbere, criava-lhe também umsentimento de irritação. Diminuía-o a ideia de que elao considerasse muito próximo, ou acessível, só pelofacto de frequentar esporàdicamente os musseques.Precisava não transigir.

Não olhou na direcção da casa e alteou a cabeçacom arrogância. Não podia fraquejar. Aquela indefiní-vel promessa, sempre presente nos olhos distraídos daZezette, as suas mãos finas e brancas, que ele sonhavaacariciar... Não. Não poderia arriscar.

Sùbitamente ia-se desiquilibrando ao dar uma pe-quena topada, e sentiu o sapato cheio de areia. Coroupor ter quebrado a compostura e recomeçou a andaragora mais depressa. Limpá-lo-ia ao alcançar a rua deasfalto do S. Paulo, em frente do cinema.

Uma multidão já se acotovelava junto do portãode rede do Cine Colonial, e os polícias e o porteiro

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começavam naquele momento a abri-lo. Mantiveram--no depois de forma a que só desse passagem a umapessoa, e de repente toda aquela gente cresceu e enro-dilhou-se, comprimindo-se para aquela nesga. O pas-seio escoava-se, esvaziando-se lentamente.

Na torrente o Gigi sentiu que o puxavam por umbraço. Era um colega de turma, o Semião, Cambonzocomo o alcunharam no liceu.

— Ficamos juntos, einh — gritou-lhe o Gigi.— Guardo-te um lugar... — respondeu o colega

que desaparecia naquele momento pela abertura doportão.

Ainda faltava perto de meia hora para o início doespectáculo, e a sala já se encontrava quase cheia.Restavam poucos lugares dos bancos de pedra que fi-cavam junto do écran. Toda a gente parecia excitadae falava alto. As vozes chocavam-se, ressoavam, e oeco retornava ao encontro de novas vozes e de outrosecos.

O Semião Cambonzo gritava, descrevendo umacena duma película antiga do Kitt Carson, mas a aten-ção do Gigi estava fixada nos gestos de um rapaz quena sua frente narrava qualquer coisa semelhante. Sólhe chegavam as exclamações e algumas palavras pe-neiradas do barulho. «Ena... saca-lhe... zanvulou o ga-jo!». E o Gigi sorriu também ao ouvir a gargalhada.Contraía-se de prazer ao ouvir aquela linguagem ex-clamativa, cheia de expressões novas que irrompiamvibrantes no meio da frase, com uma veracidade di-recta, orgânica, dando-lhe um ritmo vivo, e criando

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uma mímica natural, de gestos espontâneos. Nestesmomentos lembrava-se da sua impaciência nas aulasde português! A exposição do professor, monótona,igual, e ele a sentir nos lábios, incivis, mas imperati-vas, aquelas gostosas expressões de quimbundo.

Fazia muito calor. O Gigi pediu ao Semião que lheguardasse o lugar e saiu. Mas o que lhe interessavamesmo ver, eram aqueles rapazes do musseque saltaro muro do cinema e enganar os cipaios. Pela rede domuro ele viu-os passar, namorando a oportunidade dedar o bote, logo que o cipaio se distraísse. Talvez ti-vessem sorte. O mais terrível era o Pés-de-Chumboe ele não estava de serviço. Tinha sido auxiliar doSantos Kipexe, quando este trabalhava para a polícia.Pesado, de pernas gordas e luzidias, mas famoso pelaargúcia. Um fingido, nunca se sabia quando é que es-tava a vigiar ou a dormir. De repente chegava-se ao pédo saltador, já tranquilizado, e agarrava-o. Diziam queera ambaquista, mas ele falava pouco, mesmo quandoos garotos o disparatavam de fora, impotentes peranteaquela negra barreira de subtileza.

Ao Gigi divertia-o aquele jogo. Ele tinha podidocomprar o bilhete. Isso conferia-lhe uma espécie dedomínio da situação e dos próprios interventores. Ce-dia-lhes então a sua metade de bilhete, para que pu-dessem passar pelos fiscais das portas laterais. Erauma cordealidade distante em relação à qual ele po-rém não queria comprometer-se, e que provinha de

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um vago desejo de proteger, para se distinguir acimadeles.

Do lado de fora dos muros começaram a juntar-senaquela ocasião as jovens doceiras. Lembrou-se entãode comprar um pacote de ginguba polvilhada de açú-car para comer durante a sessão, ou alvejar algumascabeças mais salientes.

Um jovem da sua idade estava no momento ten-tando chamar a atenção de uma negrinha alegre deseios pequenos que despontavam como gajajas. Usavacalções de caqui incrivelmente curtos, e uma aguçadapoupa molhada de gordura. Gigi aproximou-se na al-tura em que a doceira trazia a quinda para mais pertodo muro, e acenou-lhe com uma nota de um angolar.Mas o corpo do jovem opôs-se reivindicativamenteà frente, procurando ser o primeiro. Gigi franziu o so-brolho contrariado. Afinal o que é que este gajo que-ria. Não podia esperar... Mirou o competidor, que lheretribuiu o olhar, sobranceiro. Os seus ombros quasese encostavam, e ele reparou-lhe na camisa muito pas-sajada, que exprimia um confronto impossível. A jo-vem hesitava entre os dois e sorria lisonjeada coma disputa.

— Desencosta — disse-lhe o Gigi empurrando-ocom desprezo.

— Desencosta tu — respondeu-lhe o jovem comoum galo, com a poupa bem em riste.

— Levas no focinho, seu...— Então bate lá, bate lá... vamos...

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Não há outra saída, pensou o Gigi, ferido na suavaidade. O que é que ele pensava, que ele era!? Atacou.

O seu antagonista, experimentado em lutas nomusseque, engalfinhou-se tentando conduzir um corpoa corpo. Gigi repeliu-o com dificuldade. O jovem opo-sitor lutava com ardor, quase com desespero e na ba-rafunda da poeira e do emaranhado de braços quea sua agilidade criava, Gigi ouvia sobre as vozes dosgrupos de espectadores que se reuniam à volta, umapergunta trémula da jovem doceira: — P’ra quê só is-so, p’ra quê...?

P’ra quê?, relampejou-lhe a pergunta no meio daluta, e vagamente percebeu que esmorecia. Os braçostornavam-se-lhe pesados e a presença do adversáriomais acutilante. P’ra quê retinia a dúvida. E quandoo polícia branco os separou, não insistiu. Afinal, paraquê, não poderia ter evitado? O polícia afastou-o combrandura, mas ameaçou o seu adversário com o casse-tete. A respiração deste acentuou-se e um brilho de re-volta cintilou-lhe alucinadamente no olhar. Afrontouo polícia.

Gigi olhou-o com espanto, mas baixou a cabeçacom vergonha e fugiu, afundando-se no ruído quente equase adstringente da sala. Sentou-se sem dizer palavra,e o Semião distraído não deu pelo seu ar afogueado.

Pouco depois as imagens começaram a surgir noécran, quase sem ele dar por isso. Sentia os ombrosvergados por um cansaço estranho, tomava-o uma vagadormência. Na sala escura, o écran iluminado, impu-nha-se-lhe, branco, como o brilho alucinado daquele

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olhar de fera acuada defendendo a vida, que ele virano adversário quando afrontava o polícia.

A sala começou sùbitamente a gritar emocionada.Era um documentário de catch com dois monstros deviolência, com rostos largos e pisados. As imagenscorriam umas sobre as outras, aos saltos, incoerentes.Gigi não conseguia concentrar-se, perceber a linha deacção. Desviou a vista e sentiu um imperceptível late-jar no olho direito.

O que é que ele defenderia com tanto desespero,pensou. Pouco tinha que defender. Ele nascera semnada e a vida, depois, pouco lhe tinha dado. Maso pouco que ele defendia, o que criara para si, numaexistência árida e sem conforto, talvez fosse agreste,mas devia ser-lhe tão essencial como a própria vida.O que seria? Devia ser alguma coisa abstracta, assimcomo uma atitude perante a vida, uma noção de liber-dade, ou talvez a sua própria condição de ser livree poder reivindicar. Era realmente muito pouco o quelhe restava — a vida para oferecer em holocaustoà sua ambição de existir como ser humano.

Mas ele não teria também o direito de lutar peloque era? De utilizar as possibilidades que não lhe ti-nham retirado e impor-se, criar a sua posição na vida?Eles não eram iguais. Mas lutar contra quem? Contraele! O que é que ele lhe poderia negar, ou impedir? Sóa circunstância de poder dispor da sua força, das suasrenúncias e da coragem dos seus sacrifícios. Entãocontra quem exigir? «Estes mulatos julgam que nós

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somos da laia deles...», doeu-lhe de repente a lem-brança da voz da Nelly, furiosa com o galanteio doSemião. E recordou o seu orgulho de menina ricae mimada. Ela estava no alto de um pedestal que co-bria todos os pequeninos e variados pedestais de am-bições que se erguiam debaixo de si. Sim, em relaçãoà sua sociedade, eles não eram da mesma laia. Erao mais fraco. Quando é que o polícia o ameaçaria tam-bém com o cassetete?

Acabava o documentário. O vencido aparecia ago-ra em primeiro plano com o rosto entumescido. Re-viu-se naquele destroço com uma sensação de derrota,não física, mas nascida do desgosto que lhe davamagora as suas ambições, que faziam dele mais um pe-so de uma cadeia de domínio opressivo. Levou a mãoao rosto. A vista direita nublava-se e a pálpebra fecha-va-se lentamente.

Ao sair no intervalo o Semião alvoroçou-se ao re-parar no seu olho negro. Pressentindo a causa, fez per-guntas, exigiu pormenores, quis desforrá-lo.

O Gigi sorria estranhamente, sem ressentimento.Que não era nada. Uma luta, um descuido, uma distrac-ção, um erro. E depois acrescentou, triste mas firme.

— Deixa lá. A culpa foi minha.

F I M

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ÍNDICE

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QUINAXIXE ................................................................. 5O VELHO PEDRO ........................................................ 23EXAMES DA 1.a CLASSE .......................................... 33A MENINA VITÓRIA ................................................. 43ALMAS DO OUTRO MUNDO ................................... 53QUARTA-FEIRA DE CINZAS .................................... 65A MULHER DO PADEIRO ......................................... 75MORTE DO VELHO NORONHA .............................. 87DESPERTAR ................................................................ 97

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