25
1 R. Marquês de Itu, s/n

R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

1

R. Marquês de Itu, s/n

Page 2: R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

2

Page 3: R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

3

R. Marquês de Itu, s/n

Victor Medeiros

Page 4: R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

4

Page 5: R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

5

Palavras Primeiras

Para o mundo:

Somente esta vez, para que não comece de forma pouco pes-soal, ou que desagrade os necessitados de palavras primeiras, mas sem formalidade, pois em hipótese alguma vejo a mim como molda-dor de realidades e aos leitores como meros receptivos, venho dizer que esta obra é (o todo), na verdade, epifania.

Começou como o resto das coisas que existe: com o vazio, o número zero, decepção.

Estava eu diante de O Encarte, a vê-lo, a revisar prólogos, adicionar vírgulas, sintetizar sinopses, a tê-lo como obra completa. Mas o que via não era obra completa: via páginas, o enredo termina-do, as ideias e verdades nas quais acredito explícitas, as horas pas-sando e o meu café no fim, mas não via o que queria.

E eu questionei-me: “Já acabou?!”. A mesma pergunta foi feita sob os curiosos olhos de minha

esposa a ler a palavra “fim” um dia depois que terminei (já que esta-va tarde na ocasião da data e ela precisava dormir. Leu no dia seguin-te). Olhos esmeralda me questionaram se aquele era, de fato, o fim.

E eu sabia que era. Se completo, por que mais? Por que de-senvolver mais sete contos? Foi o questionamento seguinte: eu tinha a capacidade, suposta habilidade, as ideias... Sim, as ideias, estas já estavam a me visitar e renovarem-se em minha mente por tantos anos que não resisti.

Disto, surgiu este livro, cujo título é homenagem à majestosa Praça da República (me acarrete os problemas que forem usar tal título). Além disto, as páginas que seguem são a prova de que os contos também têm filhos, embora as inspirações sejam diferentes. O Encarte é o meu escrito favorito, e a ele eu sou agradecido, pois se não fosse por tamanha teimosia em mostrar-se inacabado, não teria legal paternidade sobre os demais.

Victor Medeiros São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014

Page 6: R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

6

Page 7: R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

7

Sumário

O Encarte .............................................................................................. 9

O Locatário.......................................................................................... 27

A Mais Querida Memória ................................................................... 57

Nina ................................................................................................... 116

Querida Vanessa ............................................................................... 187

Lidando com a Felicidade ................................................................. 234

Medo e Efeito ................................................................................... 293

Gestão de Conflitos .......................................................................... 347

Page 8: R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

8

Page 9: R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

9

O Encarte

Page 10: R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

10

Page 11: R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

11

A Dança Eu me lembro de que a pouca luz emitida pelo abajur trans-

cendia o quarto e colidia com a parede ante a porta semiaberta, cuja brecha era paradoxo de revelação. O corredor que antecedia este cômodo estava escuro, como o resto do domicílio, às sete horas de uma noite de sexta-feira.

Ali parado, creio que delirei: primeiro senti que a imagem à frente se aproximava como se tentasse me esmagar e, após, como se meu corpo se movimentasse em frente, alheio à ordem, à consciên-cia, como se eu me teleportasse ou flutuasse.

Então, eu caminhei guiado pelos gemidos supressos, em pas-sos leves, inaudíveis, mensurando cada movimento, oprimindo a respiração, rastejando-me dentro deste lar, como ladrão, gatuno a espreitar, aguardando oportunidade de roubo.

Encostei com leveza os dedos, sentindo o frio da maçaneta e, temendo que o ranger perturbasse a dança de sombras que ocorria, movi-a mais um milímetro ou dois, a fim de desobstruir a visão do interior do local.

Dois corpos a bailar, numa motricidade repetitiva e embebida de gemidos. A pesada atmosfera perturbou-me. A reação mais sensa-ta seria dar meia volta e dali sair, mas a mesma dor que solicitava imediata fuga também me obrigava a ali ficar, à cena observar, pre-senciar cada choque de um corpo no outro, cada longo suspiro, cada citação herege ou desonrosa pronunciada pelo casal, a fim de pro-porcionar mais prazer ao momento.

Ali fiquei, transtornado, envergonhado, sem saber no que pensar, sem saber o que fazer, apreciando o espetáculo, tentando definir, dar título ao evento, como se fosse obra de arte minha ou

Page 12: R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

12

divina. Relatava na mente o que eu via e fazia descrições detalhadas, como se visasse à divulgação posterior.

Deram procedência ao ato libidinoso, apenas mudando, por vezes, os passos da dança nupcial. Apesar da pouca luz, era nítida a expressão dos rostos, que exibiam verídica satisfação, com sorrisos largos, fulgurantes. Seria felicidade genuína, ou talvez, da parte dela pelo menos, poderia ser fingimento, similar aos que tinha comigo? Nada a impedia de isto fazer, afinal, tantos foram os momentos que assim vivemos, amamo-nos, trocamos carícias e afeto, declarações de amor.

O que tinham em mente? Os semblantes revelavam verda-deiras intenções? Seria jogo de interesses, atitude egoísta em que as intenções primeiras eram camufladas em juras e promessas que, apenas em aparência, beneficiavam a ambos? Talvez nada fosse, uma vez que, dependendo dos envolvidos, em situações como essa o cé-rebro cede, relapso, controle ao corpo. A linguagem carnal tem pou-cos signos, facílimos de serem decodificados pelo instinto.

No momento seguinte, questionei-me se chegaram a consi-derar eventual aparição como ocorria. Não temiam, nem cogitavam a possibilidade de minha fúria ceifar-lhes a vida. Estava certo de que meus sentimentos, dor, caso eu expusesse o flagrante, em nada im-portava. No momento em questão, o mundo era deles e somente deles.

Temendo se notado, fugi, sentindo calafrio, desagradável sensação de inércia, ódio que continuaria recluso, esperando atitude futura. Sabia que logo terminariam e voltariam à rotina, depois de mais dez ou quinze minutos de diálogo em cima da cama.

O Reflexo

Dirigi-me ao banheiro. Acendi a luz, despi-me e, sem mais

medo de quebrar o silêncio, sentindo-me seguro no local fechado, como se o mundo exterior deixasse de existir junto aos meus pro-blemas, iniciei o banho. Relaxava e quebrava as amarras da realidade, quando ouvi delicadas batidas na porta: era a esposa, já satisfeita, sem mais obrigações extraconjugais a cumprir, carne e espírito sujos,

Page 13: R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

13

questionando se eu já estava em casa. Falou de forma calma, debo-chada talvez. Tratava-se de pergunta retórica, pois, se não eu, quem mais lá estaria? Nossa filha tinha pequeno lavabo no quarto e só des-cia as escadas se insistíssemos. Era improvável que fosse ela; teoria tal fundamentada na rotina.

Indagou se eu ainda demoraria e obteve verídica réplica, já que eu, de fato, acabara de entrar. Segundo ela, esperaria mais um pouco, mas tinha urgência para uso do cômodo.

Achei de grande ironia tal evento. Em verdade, tive certeza de que se tratava de inexplicável coincidência: enquanto eu lá estava, a espiar o genuíno caso de deslealdade, ela não sentira sequer von-tade de ir à cozinha, mas, agora, longe do meu campo visual, queria usar o mesmo banheiro que eu. Quem ela queria enganar?

Além da humilhação primeira, eu ainda precisava fazer parte de encenação infame, na qual era personagem de pouca importância, ridicularizado e esmagado no mar da apatia.

Limpei o embaçado do espelho no armário e olhei-o. Quem era o homem no reflexo? A quem pertencia tal imagem? Um desas-tre, deteriorado pelo tempo, repleto de indiferença para com a situa-ção, conivente com tamanho ato de desonra, que em muito diferia dos votos que fizemos em cima do altar, diante do padre, diante de Deus. Procurava justificativas enquanto preparava o creme, a loção e o aparelho de barbear.

O impulso causado pelo ódio resultou numa ferida a escorrer sangue do rosto. Apertei-a e o fato de meus dedos ainda possuírem resquícios de sabonete, causou ardor. Ainda assim, tal gesto fez com eu me sentisse vivo, como não acontecia há tempos. Lavei o talho, abri o armário e peguei curativo. Agora estava não só derrotado, mas fisicamente desfigurado.

Talvez fosse momento para colocar as cartas na mesa e ten-tar abordagem assertiva: ao sair do banho, eu poderia revelar ter conhecimento de seu romance patético. Assim pensava porque me sentia sufocado: queria dizer verdades e jogar favores outrora pres-tados na cara dela. Queria apresentar-lhe as provas e ter fulminante vitória na questão. Tais informações que eu guardava enjaulavam minha mente. Eu comecei a imaginar vida sem tais pensamentos,

Page 14: R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

14

sem segredos nem hematomas acumulados. Novo rumo, destino, cheio de prosperidade, no qual eu teria a companhia de pessoa fiel e amorosa, opondo a realidade atual.

Foi então que ouvi mais batidas; desta vez, não tão delicadas, intimando-me a sair sob a pena de arcar com as consequências da desobediência. A inspiração momentânea caiu por terra e eu sucum-bi ao vazio que se manifestou de imediato no coração. Abismo no peito, espaço a ser preenchido por sentimentos refutáveis, vão para guardar lembranças de futuros que jamais aconteceriam.

Saí, fingindo coçar o rosto, a fim de cobrir o talho, para não ouvir comentários e para não ser vítima de falsa misericórdia. Ainda assim, recebi beijo e o indague de como fora o dia. Embora eu tenha tentado esquivar-me de contato visual, precisei fitar os olhos menti-rosos e vestir a máscara de homem pleno, mostrar os dentes amare-lados.

Enquanto eu a ouvia fazer apontamentos sobre a demora, imaginei-me torcendo-lhe o pescoço, espancando-a em vingança, decepando-lhe as mãos, pernas, pescoço. Onde eu esconderia seu corpo? Alguém sentiria falta de tão infame criatura? Eu poderia co-meter assassinato silencioso, com veneno, por exemplo, e atirar seu corpo no rio, logo após livrar-me de sua arcada dentária e de outros itens que pudessem me incriminar. Daria jeito de atribuir a culpa ao amante, ou, para executar serviço completo, enterraria os dois, vivos, e esquecê-los-ia, a amargar juntos nas profundezas do inferno.

O movimento de seus lábios e olhos era gracioso, mas o es-plendor labial dissipava-se assim que eu supunha o que ela fizera com eles momentos antes. Eu vi o processo em vias de terminar, não sabia com que frequência eles se amavam, que carícias faziam, de que jogos gostavam.

Dei reposta genérica, visando a livrar-me da necessidade de prolongar a conversa. O som do trancar do ferrolho deu-me alívio. Encostei os ouvidos na porta, tentando construir imagem mental do que acontecia lá dentro. Cada gesto, movimento ou tosse era de difí-cil percepção, mas assim que iniciou o banho, ficou mais claro. Eu imaginei semblante de alegria a recordar-se dos momentos vividos, a

Page 15: R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

15

sentir corrente elétrica a correr seu corpo, êxtase, gargalhadas de luxúria.

Mexia em seus produtos de limpeza e beleza, aplicando-os nos cabelos e corpo, a fim de ficar mais bela, como se a química dos cosméticos purificasse seu espírito. Ficou quieta de repente e eu acreditei que ela podia me sentir a espreitar do lado de fora. Achei melhor deixá-la à vontade e fui até nosso quarto, agora livre da pre-sença de terceiros.

O Relógio

No caminho, atravessei a cozinha e notei que o relógio estava

parado. Há quanto tempo estaria ele defeituoso? Um dia, conheci-a, a puncionar minhas veias, preparando-as para injeção que me livraria da dor do acidente de trânsito. Trocamos palavras, experiências e sentimos afinidade.

Duas semanas depois, eu tive alta, mas não a tirei da cabeça. Voltei ao trabalho, ainda sentindo dores fortes e adaptando-me às sequelas: minha atenção já não era mais a mesma, caminhar tornou-se um tanto difícil e as ideias bagunçavam-se com frequência.

Logo, a saudade fora grande e eu decidi visitá-la. Ela reagiu com estranheza, mas aceitou tomar café comigo. Conversamos e sorrimos, mas no ar pairava bloqueio, que, a meu ver, intencionava deixar claro que o bom tratamento de outrora era devido à respon-sabilidade profissional e não a afeto em si.

Depois de insistência minha, começamos a namorar. Víamos-nos duas vezes por semana, geralmente nas folgas da escala dela. Eu a levava para o teatro, a fim de assistirmos a peças de época, de que ela muito gostava. Quando possível, fazíamos compras e eu lhe dava presentes. Chegamos a passar três dias juntos, no campo, longe da poluição e má influência urbana. Por conseguinte, eu faltei três vezes ao serviço, mas ela estava de férias.

Numa noite, criei coragem de pedi-la em casamento. Só após esta ocasião foi que a senti próxima. Já não mais notava o perfil de enfermeira em suas atitudes comigo. Eu comecei a fazer diversos planos, uma vez que a união de nossas rendas mensais poderia nos

Page 16: R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

16

proporcionar estável vida. Item a item, a prazo, compramos os ele-trodomésticos para nossa futura casa e, poucos anos depois, estáva-mos morando juntos, casados.

Oito meses depois, recebi telefonema, no qual a minha mu-lher, desesperada, me informava que o exame de gravidez dera posi-tivo. Confesso que não fiquei radiante de alegria, mas comemorei mesmo assim. As aquisições seguintes foram referentes a artigos que dariam conforto ao nosso bebê, como berço, enxoval e similares.

O relógio continuava parado, por isso não sei quanto tempo perdi com estas memórias. Talvez menos de segundo, ou mais de hora. Meus olhos continuavam fixos nele, como se isso fosse fazer o ponteiro voltar a mover-se.

Quatro anos depois, éramos família feliz. Nossa menina cres-cia numa velocidade incrível e precisava de agrados, escola, presenti-nhos caros, enfim, benefícios que somente as crianças têm, financia-dos por meu holerite e o da mãe dela. Muitas vezes, parcelados em inúmeras prestações.

Nós três pouco nos víamos. Eu saía de manhã e, em diversas ocasiões, não fazia questão de estar em casa a tempo de ver minha filha acordada, preferia ficar no bar com amigos. Minha esposa, plan-tonista, estava em casa duas ou três vezes por semana; isso quando saía, fingindo ir trabalhar, sabe-se lá para onde, ou com quem. Pen-samos em pagar babá, mas a minha cunhada aceitou o serviço de cuidar da sobrinha, a preço exorbitante, bem maior que qualquer pessoa cobraria. Como eu queria deixar em família, não reclamei.

Ao término do ano, sofri outro acidente automobilístico, pelo mesmo motivo do primeiro. Desta vez não tive os cuidados de minha amada, mas de outra pessoa, indiferente, que eu sequer me lembro da fisionomia. Também tive a má sorte de deixar moça acidentada. Fui obrigado a passar a virada de ano sozinho, em meio a médicos, auxiliares e enfermeiros, mas por mim estava bem, afinal, onde quer que eu estivesse, as pessoas vestiriam branco da mesma forma.

Decidi deixar o relógio em paz. Cedo ou tarde eu iria conser-tá-lo. Por enquanto, era só mais um objeto inútil. Retomei o cami-nho, afinal, precisava de roupas limpas. Logo, ela sairia do banho e voltaríamos a nossa mentira favorita.

Page 17: R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

17

A Gaveta

Assim que me vesti, sentei-me na cama. Passei a palma da

mão no lençol, já trocado e sem rastros de adultério. Olhei para as paredes e para o teto, de forma aleatória. Ainda podia ouvir os gemi-dos, ver os corpos bailando, sussurrando heresias e outras imagens que iam e vinham na mente. De cabeça baixa, deixei os minutos pas-sarem, até que, sob impulso que não sei ao certo qual foi, decidi abrir a gaveta dela.

Olhei seu panorama e, a princípio, não quis colocar as mãos ali. Estava tentado a revirá-la, remover o conteúdo, verificar cada peça de roupa e o que mais aparecesse.

Peguei uma de suas camisolas. O doce odor, o perfume que me conquistou estava ali, intacto. Pressionei-a contra o rosto, delici-ando-me com a sensação. Para meu azar, ainda havia um pouco de afeição dentro de mim e eu estava alimentando-a. Percebi o tama-nho da tolice que fazia e atirei a vestimenta longe. Continuei a espa-lhar as coisas que encontrava, sem saber ao certo pelo que eu procu-rava, talvez por declaração de amor a mim, motivo para eu desculpá-la por seus atos, ou seja, por objetos de misericórdia em geral.

Acabei por descobrir que ela possuía cupons de desconto pa-ra motéis nos quais eu jamais pisara. Com quem ela para lá foi? Eu bem sabia. Ela possuía um primo, também enfermeiro, cuja aparên-cia em muito diferia da dela. Os dois já trabalhavam juntos há meses na época em que eu a conheci e, por isso, estavam acostumados a passar bastante tempo juntos, tanto tempo que ele foi à nossa festa de casamento. Ter sua companhia nos finais de semana era comum.

Muito eu ouvia o seu nome: por vezes, passeávamos e em cada frase, ela o mencionava pelo menos uma vez. Sempre dando ênfase a atitude correta, a momento que passaram durante o plan-tão, no alto conhecimento medicinal que o primo tinha e de como era carinhoso com os pacientes. Discursos assim se tornaram banais.

Depois vieram os presentes: ontem vestido, amanhã gargan-tilha, na semana seguinte colar. Ela os exibia onde quer que fôsse-mos. Muitas vezes, quis com ela sair, somente nós, sem crianças e

Page 18: R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

18

parentes ridículos, mas lá estava ele, cumprindo seu papel de des-truidor de relacionamentos.

Encontrei roupas íntimas, sensuais, nunca antes vistas por mim. Perfumes cujo odor também era inédito. Vi diversos itens os quais eu sequer sabia que existiam. Parecia que eu estava conhecen-do nova pessoa, bem diferente da que eu estava acostumado a ter todos os dias em casa. Quem era ela? A mulher insaciável, evidencia-da por seus pertences ou a esposa indiferente e desmotivada a quem eu dizia boa noite antes de ir dormir?

Achei melhor arrumar seus pertences, para evitar questio-namentos a respeito de minha atitude, quando percebi que além do citado acima, havia também diário, trancado por fechadura minúscu-la. O que estaria escrito nele e por que tanta segurança? Numa opor-tunidade futura, eu tentaria encontrar a pequena chave e verificar. Por enquanto, seria melhor eliminar evidências.

A Filha

Voltei à cozinha. Ela estava terminando de preparar o jantar:

refeição ridícula, na qual não houve o mínimo empenho. Pensei em dali sair, sem nada dizer, mas tive atenção solicitada. Recebi beijo no rosto e fui avisado de que logo a comida estaria na mesa. Fazia-se necessário chamar nossa menina para fazer-nos companhia. O talho em meu rosto foi notado, mas antes que pudesse entrar em pauta, apressei o passo para o quarto da mocinha. Fui interrompido uma segunda vez.

Recebi abraço, angustiante, que eu rezei para cessar logo, e beijo na boca. Com ternura, ela me perguntou o que acontecera e eu expliquei. A falsa compaixão incendiava meu ser. Eu quis livrar-me do aperto e sufocá-la, mas me rendi ao carinho. Terminada a farsa, fui cumprir com meu dever de pai.

Minha filha dormia, na pequena cama. Brinquedos espalha-dos pelo chão, empesteando o cômodo. Acendi a luz e acordei-a. Ela, a princípio relutante, mas logo despertando do sono dos justos e questionando o motivo de minha aparição, sentou-se na cama. Eu, de

Page 19: R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

19

pé, observei-a: nela não havia traços que se assemelhavam aos meus; nem sua voz, seus gestos, nada.

Procurei algo para me orgulhar na criatura. Se existisse, eu não sabia ou discordava. Por si só, era mais uma menina, que nunca me chamava de pai, assim como não demonstrava afeto por mim. Atitudes que começaram no ano de seu quinto aniversário e se con-solidaram agora, no sexto.

Perguntei como foi o dia do meu anjinho e não obtive respos-ta. Ela foi para a cozinha e eu a segui. Assim que lá cheguei, elas esta-vam abraçadas e trocavam carícias. Sentamos à mesa para iniciar mais uma refeição, financiada por minha esposa, como todas as que tivemos durante o ano.

Comíamos e conversávamos sobre assuntos aleatórios. Mi-nha mulher sorria, fazia perguntas, se interessava pelos detalhes de nossas rotinas, ou pelo menos fingia bem se interessar. Usava pala-vras carinhosas conosco e não permitia que o silêncio reinasse duran-te a refeição. A menina voltava a atenção para ela e somente ela: sorria, brincava com a comida, fazia gracinhas e não cruzava os olhos com os meus. Na concepção dela, eu nada valia. A pequena odiava-me. Nas visitas do primo, sentavam-se os três ao sofá, enquanto eu saia.

Do lado de fora, eu dialogava com os vizinhos. Muitas vezes, com eles, reclamei dos moradores que nos perturbavam, inclusive com eventos das vidas pessoais. Nada fugia de nossa opinião e críti-ca: púnhamos em evidência os detalhes da vida de cada morador cuja conduta fugisse de nossa afeição e aprovação. A crítica era fer-renha e sem eufemismos. O tempo gasto com isso dificilmente varia-va do que é considerado exagero.

Do lado de dentro, os três se divertiam. Era família feliz, na qual nada faltava. Havia fartura de pertences e sentimentos. Eu não era necessário nem quando havia reuniões de seriedade na escola. Sempre a mãe. Muitas vezes, eu sequer tinha conhecimento do que se passava em sua realidade de menina burguesa.

O Jantar

Page 20: R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

20

O jantar prosseguia. A minha mulher contava histórias com euforia, alegria que só pessoa satisfeita sexualmente pode demons-trar. Seus olhos brilhavam a contar casos, mencionando, claro, o pri-mo e a beleza, tanto física quanto moral. Por vezes, ao notar o exage-ro com elogios, mencionava-me, comparava nossas índoles e dava-me certo crédito. Tanta hipocrisia me causava asco.

Eu considerava a falsidade imensurável. Suas palavras e gestos, atitudes, ideias, crenças e todo o res-

to era inverídico. Ali não estava somente parte da pessoa. O resto era dedicado ao outro. É provável que sua verdadeira personalidade só entrasse em evidência na companhia do terceiro, seus medos, dese-jos, agonias e opiniões.

Mas ali ela precisava ser caseira, fiel, dedicada e boa mãe, prendada senhora do lar, amante da família e dos bons costumes.

Falsidade imensurável. Esta rotina começou no dia em que nossa filha completara

cinco anos. Na ocasião, eu, ainda empregado, precisei sair duas horas mais cedo para comparecer à especial festinha. Seria necessário ne-gociar com o ex-chefe a recuperação do período cedido. Eu planejava fazer horas extras no decorrer da semana.

Porém, a reação do superior não foi amistosa. Ele me lem-brou das vezes que eu me atrasei e faltei sem nada avisar, fui mal educado com meus colegas de trabalho e arruinei meses inteiros de bom relacionamento com os clientes.

Evidenciou que as intrigas do setor foram iniciadas por mim, resultantes de boatos e rumores que eu espalhava. Revelou estar decepcionado com minha incompetência e bajulação, disse que eu jamais cresceria oferecendo somente o básico e, que se eu não de-monstrasse maior interesse em produzir, não ficaria sequer mais uma semana ali.

Isso era calúnia. Eu tinha seleta roda de amigos e nós apenas fazíamos apontamentos que julgávamos importantes. É verdade que falávamos da vida de um funcionário ou outro, mas onde não se faz isso? Eu criticava a falta de moral de muitos, a fim de estabelecer bons princípios no recinto. Possuía a responsabilidade de valorizar o

Page 21: R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

21

trabalho dos superiores, fazendo-os perceber o meu reconhecimen-to.

Debati com o chefe. Falei verdades. Revelei jamais ter gosta-do da aparência grotesca, nem da metodologia de trabalho. Achava-o incompetente, embora muitas vezes eu tenha dito o contrário. Até ter ouvido dele tamanhas mentiras, eu visava a fazê-lo ver seus erros sem mencioná-los, por isso realçava as qualidades. Agora nada tinha a perder.

Não temi decepcionar meu pai, que fora quem me indicou para o emprego e cuidou da papelada para a contratação. Há muito queria dali sair, mas temia não poder encontrar serviço melhor. O empregador não tem o direito de proibir o funcionário à participação na festa de aniversário da filha. Como seria mais um mês no qual eu não receberia cem por cento do ordenado, graças ao número de atrasos e faltas, dei-lhe as costas e saí, dando-lhe adjetivos de baixo calão enquanto deixava o recinto.

No momento, não ouvi réplica. Precisava relaxar, então fui até o bar e ingeri quatro cervejas. Com coragem redobrada, voltei à sala do patrão e disse-lhe

opiniões habitantes do inconsciente. Cinco minutos depois, estava demitido por justa causa. O seguro desemprego fez-me falta. Eu não fazia ideia de como iria me virar dali nos dias vindouros. Voltei para o bar e consumi mais bebidas alcoólicas, afinal, eu precisava chorar as mágoas e, por que não, comemorar o rompimento das algemas tra-balhistas.

Dormi pela rua, atirado ao chão como mendigo. Pela manhã, dei a notícia aos familiares queridos. Só descobri que a festinha da garota fora sucesso semanas depois, pela boca da cunhada.

O Conselho

Terminada a refeição, eu tirei a mesa e comecei a lavar a lou-

ça. Refleti sobre o passado, presente e futuro. Queria logo terminar, livrar-me da tarefa. Pensamentos iam e vinham, torturando-me às vezes, alegrando-me em outras. Lembrei-me das diversas contas que

Page 22: R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

22

precisariam ser pagas no dia seguinte. Como faríamos este mês? Eu em nada poderia ajudar, de novo.

Há um ano eu cuidava mais da casa do que minha esposa. A babá há muito já não morava conosco e quem cuidava da pequena era eu, obrigação que muito me perturbava. Quando ela estava na escola, eu procurava distrair-me navegando na internet, observando as notícias, vídeos interessantes e demais formas de entretenimento. Eu precisava estar atendo ao que acontecia no mundo.

Ouvi carro buzinar frente à porta. Preferi nem cogitar quem poderia ser o inconveniente, embora eu bem soubesse. Sorridente, bem apessoado, com sacolas na mão, entrou o primo de minha mu-lher. Foi bem recepcionado pelas damas da casa, com beijinhos e abraços demorados. Ele já estava de banho tomado, cabelo penteado e nenhum sinal de vergonha na cara, já que, horas antes, estivera no mesmo lugar, roubando a esposa alheia.

Cumprimentou-me da sala e eu respondi com monossílabo. Sentou-se no sofá, ligou a televisão e começou seu rotineiro momen-to em família com minha filha e a mãe dela. Da cozinha, eu ouvia as risadas, as piadas, o som estúpido da felicidade que ecoava pela casa.

Lavava faca e cogitei a hipótese de matá-lo, mas jamais faria isso na frente do anjo de seis anos, além do mais, eu bem sabia por que ele lá estava. Não sei como consegui afundar família em débitos durante um único ano de desemprego. O ordenado da minha esposa não cobriria com êxito nossa outrora farta vida, mas ela, dois ou três meses depois, conseguiu dar a volta por cima em nossa pobre situa-ção.

A louça estava quase limpa, mas nada cessava o alegre mo-mento vivido na sala. Minha filha mudava quando estava na presença do homem: ficava espontânea, falante, hiperativa, como se tentasse impressioná-lo com inocência. Ele sempre a elogiava e, com bastante frequência, dava-lhe presentes caros, que empesteavam o quartinho e que eu não poderia pagar.

Ele era também o responsável por trocar a mobília da casa. Estávamos com sofás e quadros mais bonitos. Devagar, ele inseriu no nosso lar seu jeito, sua cara, sua filosofia de vida e ali começou a reinar.

Page 23: R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

23

Para meu azar, o trabalho doméstico findou. Eu queria distra-ir-me um pouco, mas não queria interagir com meu rival, menos ain-da dividir o contagiante momento que viviam. Pensei em ir para o quarto e esconder-me nas sombras, mas, assim que percebessem a ausência, iriam querer usá-lo outra vez. Se ligassem as luzes e me percebessem, seria caótico. Desisti do plano e decidi sair de casa, como de costume.

Passei pela sala e, quando os fitei, o primo retirou do bolso cédulas e entregou-as para a amada. Ao observar a cena, eu estava certo de que ele apenas pagava pelo serviço prestado, o prazer de horas antes, meses antes talvez. O cliente precisa pagar pelos servi-ços da prostituta, certo?

Fez cafuné na menina e voltou a atenção para o programa exibido. Eu passei por trás do sofá, visando a sair sem perturbá-los.

Porém, assim que abri a porta, ouvi-o me chamar. Ele me fa-lou uma idiotice ou duas, as quais eu não dei o mínimo de atenção, mesmo sabendo que eu usaria sua doação no dia seguinte. A imagem do homem me causava asco. Eu queria seu sucesso, seu dinheiro, sua beleza, mas a única coisa que tínhamos em comum era a mesma família, aliás, estou errado, afinal, isso já havia sido tomado por ele.

Convidou-me para passear. Eu recusei. Ouvi a insistência do infeliz, somada à solicitação da mulher dele. Nada melhor tinha para fazer e um lapso de sanidade me fez ver que isso poderia aumentar a quantia que ele nos cederia. Aceitei. Fomos para a rua e eu pude ver seu carro, destacado em meio aos outros, populares, que se situavam na pobre rua.

Dada a partida, eu, no banco do carona, não tive coragem de perguntar aonde íamos. Rezei para ser, no mínimo, local onde vinho ou uísque pudesse ser consumido, quem sabe eu ganharia drinque.

Paramos num shopping. Descemos no estacionamento e ele puxou assunto pelo caminho. Revelou-me que iríamos até lojinha comprar máquina fotográfica, modelo moderno, com várias caracte-rísticas inovadoras que melhorariam a qualidade das fotos, mas, com certeza, não a dos momentos registrados.

Frente à escada rolante, ele me perguntou se eu era homem feliz. Eu respondi que sim, pois tinha família maravilhosa, esposa

Page 24: R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

24

linda e dedicada, filha estudiosa, angelical, inocente... Ouvi que ele sempre quis ter vida assim, mas que as pessoas do mundo contem-porâneo estão muito mudadas e já não respeitam os bons costumes.

Acreditei que o passeio terminaria nas profundezas desse diálogo idiota, quando, enfim, ele fez a fatídica pergunta, que eu considerei, de imediato, epifania: indagou-me como eu dou prazer para minha esposa. O que eu fazia, do que ela gostava, como eu a seduzia e outras coisas mais.

Quis matá-lo, mas nada pude fazer. Engoli o ódio. Seu rosto exibia ares debochados. Tive a certeza de que ele sabia que eu tinha conhecimento do que acontecia durante ausência. Ali, ele quis fulmi-nar-me, tomar para si o troféu, o título, ridicularizar o oponente. Eu dei as informações que ele precisava, sem questionar o motivo da pergunta, primeiro porque eu não queria prolongar a conversa, se-gundo porque eu acreditava que ele tinha muito mais experiência no assunto.

Dito isso, ele começou a colocar minha vida em pauta e a dar-me conselhos. Mostrou como resolveria em segundos os problemas que eu enfrentava, como se minha vida fosse fácil e eu fosse pregui-çoso, incompetente, inútil. Num rápido argumento, protagonizou minha vida, evidenciando minha falta de percepção para assuntos simples e, por conseguinte, sua ampla experiência.

Falou-me como lidaria com esposa e filha, caso fosse eu e deixou claro que tinha respeito por mim, certa inveja, consideração. Eu ouvia cada palavra, via seus gestos, infiltrado por seu tom de voz e domínio da palavra, habilidade de discursar.

Minutos depois compramos a maldita câmera e o que era ne-cessário para fazê-la funcionar logo. No caminho de volta para casa, ele pediu desculpas e que eu não o levasse a mal, pois só estava ten-tando me ajudar a ter mais autoestima e a não ver as dificuldades como absolutas. Falou algo sobre Deus, o qual eu estava certo de que não era o Cristão, mas qualquer criatura abissal que ele cultuava.

Assim que chegamos, ele fez questão de mostrar o novo brinquedo para a família: as funções, os benefícios e a forma de ope-rá-la. As garotas ficaram encantadas, como se louvassem a dádiva

Page 25: R. Marquês de Itu, s/n€¦ · São Paulo, Osasco, 04/03/2013 — 10/05/2014 . 6 . 7 Sumário ... às sete horas de uma noite de sexta-feira. Ali parado, creio que delirei: primeiro

25

que presenciavam. Eu estava cansado e só queria sair dali, mas, assim que dei meia volta, mais um favor foi solicitado.

Queriam que eu registrasse o momento. Prometeram que, como era a primeira, o primo apareceria antes, mas que na próxima, eu ficaria entre as duas. Preparei-me para eternizar a imagem. Cheio de asco, observei-os sorrindo, abraçando-se, no sofá que fora presen-te meses antes.

O relógio da cozinha continuava parado. Fotografei-os: a família feliz que eu sabia que não eram. E

jamais seriam. Fim