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Rabinow, Paul - Antropologia da Razão

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Paul Rabinow

Antropologia da Razão

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ENSAIOS DE PAUL RABINOW

ORGANIZAÇÃO E TRADUÇÃO

João Guilherme Rieh!

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Rio de Janeiro

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© Copyright da tradução, João Guilherme Biehl DUMARÁ DISTRIBUIDORA DE PUBLICAÇÕES LTDA. Travessa Juraci, 37 - Penha Circular 21020-220 - Rio de Janeiro, RJ Te!.: (21) 564-6869 Fax: (21) 590-1135 E-mai!: [email protected]

Consultoria de texto Mike Panasitti Denise Coutinho Roberto Machado

Revisão Henrique Tamapolsky Denise Coutinho

Editoração Carlos Alberto Herszterg

CIP-BrasiL Catalogação-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RI.

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Antropologia da razão: ensaios de Paul Rabinow/organização e tradução, João Guilherme Biehl. - Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999

Inclui bibliografia ISBN 85-7316-183-3

1. Vida intelectual- História- Século XX. 2. Ciência e civilização. 3. Ciências sociais - História - Século XX. 4. Etnologia - História _ século XX. I. Biehl, João Guilherme. 11. Título. III. Título: Ensaios de Paul Rabinow.

CDD 306.4 99-1285 CDU 316.7

Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violação da lei 5.988.

Sumário

1. Prefácio / João Guilherme Sieh! ...................... . Política da Verdade:

9

Paul Rabinow entrevista Michel Foucault ............... .

2. Sujeito e governarnentalidade: 17

3.

4.

5.

6.

7.

8.

9.

elementos do trabalho de Michel Foucault . . . . . . . . . . . . . 27

o que é maturidade? Habermas e Foucault

sobre "O que é iluminismo?" .... ................. , .. '. 55

Representações são fatos sociais: modernidade e pós-modernidade na antropologia .................... 71

Antropologia Como nominalismo .... ................... 109 Vida. normas e erros:

o trabalho de Georges Canguilhem .. . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 123

Artificialidade e iluminismo:

da sociobiologia à biossociabilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 135

Cortando os laços: fragmentação

e dignidade na modernidade tardia ............... .... '. 159 BiotecnoIogia americana: fazendo

a PCR, Reação em Cadeia da Polimerase . . . . . . . . . . . . . . .. 185

Agradecimentos do organizador. ....................... 203

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"Permitam que eu vos leve mais uma vez para a América, pois lá freqüentemente pode-se observar tais coisas nos seus formatos mais massivos e originais."

Max Weber*

* Max Weber, Wissenschaft ais Beruf, Berlin, Duncker & Rumbol!, 1984, p. 29.

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Prefácio

Desde o início dos anos 90, o antropólogo norte-americano Paul Rabinow trabalha com cientistas, técnicos, empresários e governantes envolvidos em projetos biotecnológicos.

Atento às possibilidades e aos perigos da presença global norte­americana, Rabinow problematiza a modernização da vida. "Vive­mos num momento em que novas práticas sobre o que significa ser antropos estão em produção e em circulação." A antropologia con­temporânea, argumenta Rabinow, "precisa criar novas maneiras de se engajar e de analisar os logoi. as ciências e compreeensões que estão emergindo ao redor do material constitutivo da vida."

Rabinow concorda com Georges Canguilhem quando diz que a ciência também é cultura e não existe fora de relações de saber e poder; é assim que ela é real, construtiva: "Como é produzido este saber de quem somos como seres vivos? Como é representado e disseminado culturalmente?" Em diálogo com o trabalho de Max Weber e Michel Foucault, Rabinow está interessado em problema­tizar como verdade e subjetivações se articulam biopoliticamente neste momento do capitalismo.

Rabinow deu início a esta etapa da sua antropologia da razão fazendo pesquisa de campo na Cetus Corporation, uma indústria biotecnológica localizada nos arredores de San Francisco1• Ele investigou o meio científico, técnico e cultural da invenção es­pecífica da Reação em Cadeia da Polimerase (Polymerase Chain Reaction, PCR). Em 1989 a PCR foi escolhida pela Revista Science

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como "A Molécula do Ano." Em 1993 Kary B. Mullis, o inventor oficial da PCR, recebeu o Prêmio Nobel de Química. O que é a PCR? Entre outras coisas é uma técnica que permite a identificação de segmentos precisos do DNA e suas multiplicações em milhões de cópias num curto período de tempo. De fato, a PCR revolucionou as práticas científicas com o material genético da vida.

Rabinow fez esta investigação tendo em vista o Projeto Genoma, um símbolo do amálgama de aparatos e multi locações da nova genética, biotecnologia e bioética. O Projeto Genoma objetiva ma­pear "a totalidade do material genético no conjunto de cromossomos de um organismo específico."2 O antropólogo pergunta: "O que é um mapa e quem somos NÓS em 'nossos' genes?"3 "É a seqüência do DNA realmente a 'linguagem da vida'? Testemunhamos uma mudança de época na relação com o mundo? Estamos a ponto de nos tornarmos 'senhores da vida e da morte'? ... Em nome de que ética e política avaliamos estes desenvolvimentos?"4

No metade desta década, Rabinow realizou um estudo compara­tivo sobre como as verdades universais do Projeto Genoma foram trabalhadas no contexto do Centro de Estudos do Poliformismo Humano (CEPH) em Paris.s O CEPH venceu os americanos na corrida pela produção de um primeiro e bruto mapa físico do Geno­ma. Este empreendimento científico foi ainda mais espetacular por ter sido financiado por organizações de pacientes. Atualmente Rabi­now está envolvido no 'Projeto Islândia'. O mapeamento total dos genes daquela população está sendo democraticamente levado a cabo através de uma constelação inédita de atores: uma indústria biotecnológica privada, o serviço nacional de saúde pública e com­panhias multinacionais. "Contradições, desafios, futuros," diz ele.

Esta vida modernizada extrapola a sociedade como objeto de saber e poder e como categoria para intervenção técnico-política: "no futuro a nova genética deixará de ser uma metáfora biológica para a sociedade moderna e se tornará uma rede de circulação de termos de identidade e lugares de restrição, em torno da qual e através da qual surgirá um tipo verdadeiramente novo de auto produ­ção; vamos chamá-lo de 'biosociabilidade'." Segundo Rabinow, na biosociabilidade a natureza será modelada na cultura compreendida como prática "ela será conhecida e refeita através da técnica; a natureza finalmente se tomará artificial, exatamente como a cultura

Prefácio • 11

se tornou natural."6 O olhar ético de Rabinow percebe esta informa­ção e este mapeamento como vitais, uma vez que os instrumentos também viabilizam intervenções.

*

Há descontinuidades no trabalho de Paul Rabinow: curiosidade é força motriz. Este nativo de uma cidade-jardim em New York, nascido em 1944, começou a delinear o seu trabalho filosófico e antropológico nos anos 60 na Escola de Altos Estudos em Paris e na Universidade de Chicago, onde fez seus estudos de graduação e doutoramento. Entre 1968 e 1969, Rabinow desenvolveu sua pes­quisa de campo no Marrocos sob a supervisão de Clifford Geertz: "Ele exemplificava o que a Academica Americana era capaz de me oferecer e demonstrava claramente que isto em si mesmo não era suficiente. Eu me sentia menos confortável do que Geertz com o modus vivendi americano e estava mais interessado do que ele em interfaces culturais." Sua tese de doutorado Symbolic domination: Cultural From and Historical Change in Moroco (Dominação sim­bólica: forma cultural e mudança histórica em Marrocos) foi publi­cada em 1975, com fotografias de Paul Hymen.

Rabinow recusou-se a lidar com a pesquisa de campo como um mero rito de socialização antropológica, ao invés problematizou-a como construção e representação de outra realidade social, bem como a sua própria. Ele concluiu seu livro Reflections on Fieldwork in Morocco (Reflexões sobre uma pesquisa de campo no Marrocos) apontando para alteridades não essenciais, historicamente produzi­das e parcialmente interconectadas; sugerindo interlocuções pos­síveis através do reconhecimento de diferenças e uma crítica auto­reflexiva dos símbolos da sua própria tradição: "Ao fazer isto, começamos um processo de mudança."7

De passagem, alguns experimentos dúbios na metade dos anos 70 em diálogo com, entre outros, Jean Paul Sartre e Roland Barthes: "ficção, prazer, teatro social, unidade plural, identidade impes­soal."8 Inquieto ironizava a pedagogia desconstrutivista que se limi­tava a repetir o mesmo texto indefinidamente. "Eu argumentaria então que um caminho adiante para a antropologia, além do positi-

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vismo, começa através de um olhar para trás em direção às tradições multivocais nas quais estamos inevitavelmente imersos e para frente em direção a novos modos de se relacionar com o mundo social no qual, por bem ou por mal, nos encontramos."9

Em I 978, depois de lecionar na City University em New York, Rabinow assumiu atividade docente na Universidade da Califórnia em Berkeley. O encontro COm Michel Foucault em Berkeley entre 1979 e sua morte em 1984 foi "decisivo em muitos registros." Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estrutura­lismo e da hermenêutica, escrito em parceira com o filósofo Hubert Dreyfus, também professor em Berkeley. encetou esta convçrsa inconclusa. 10 O diálogo com Foucault proveu Rabinow de ins­trumentos analíticos com os quais o seu próprio trabalho foi ganhan­do forma, arcabouços das imbricadas relações entre espaço, saber, poder, máquina e sujeito. Na sua penúltima obra, O Uso dos Praze­res, Foucault menciona que estes encontros no outro lado da Amé­rica também o levaram a reformulações teóricas e metodológicas 1 1

Antropologia da Razão abre com uma entrevista de Rabinow com Foucault, em Berkeley, maio de 1983, Política da verdade. Naquela oportunidade, Rabinow questionou Foucault sobre as relações entre ética, política e a genealogia da verdade. Esta e outras entrevistas inéditas com Foucault estão no livro texto The Foucault Reader, publicado em 1984. A seleção de Rabinow enfatiza as dimensões sociais e políticas do trabalho de Foucault nas quais discursos e práticas se interconectam. O segundo texto desta coletânea, Sujeito e governamentalidade, é a introdução de Rabinow ao trabalho inte­lectual de Foucault, "esquivo e momentaneamente livre." O terceiro texto, O que é maturidade? Habermas e Foucault a respeito de 'O que é iluminismo?', foi escrito em 1985 com Hubert Dreyfus12

Entre outras coisas, é ressaltado aí o caráter processual e permanente da tarefa iluminista: não desdenhar o presente implica em conhecê­lo detalhamente, testar seus limites e ir além deles.

Em 1986. Rabinow participou do seminário "Experimentos de Antropologia Contemporânea" que culminou na publicação de Wri­ting Culture: The Poetics and Politics of Ethnography (Escrevendo a cultura: poética e política da etnografia). Este livro, editada por James Clifford e George Marcus, tornou-se pedra de toque da antropologia interpretativa, deslanchando uma série de reformula-

Prefácio • 13

ções retóricas da antropologia norte-americana agora como crítica cultural. Em Representações são fatos sociais: modernidade e pós­modernidade na antropologia, o quarto texto desta coletânea, Rabi­now propõe uma prática de ciência social discursivamente auto-re­flexiva e responsavelmente engajada nas políticas da verdade: "Necessitamos ... enfatizar aqueles domínios tidos como universais (isto inclui a epistemologia e a economia); mostrá-los o mais pos­sível como sendo historicamente peculiares; mostrar como as suas reivindicações à verdade estão conectadas a práticas sociais e se tornaram portanto forças efetivas no mundo social."13

Em 1987, Rabinow foi professor visitante no Programa de Pós­graduação em Antropologia Social do Museu Nacional no Rio de Janeiro, passando também por São Paulo, Salvador e Brasília: "Mi­nha passagem pelo Brasil foi basicamente como turista. De qualquer forma, fiquei com a impressão de uma grande continuidade entre os Estados Unidos e o Brasil como 'americanos'. Digo isso lembrando os comentários de Lévi-Strauss e Michel de Certeau acerca do Brasil como 'novo mundo'. Existe similaridade na maneira das pessoas abordarem a natureza e a cultura como sendo maleáveis, vendo o controle e o melhoramento do ambiente Como um projeto ainda bastante dinâmico e vivo. O caráter acelerado desta modernidade explicita-se no horror de uma miséria cotidiana onde pessoas e coisas são rapidamente repostas e jogadas no lixo."l4 Algumas particularidades desta experiência foram anotadas em A Modem Tour in Brazil: "Aqui ( ... ) um discurso oficial voa longe do signifi­cado ao qual está supostamente ligado. A representação alcançou um alto grau de autonomia no Brasil."15

Adiante, Rabinow continuou seus questionamentos, tomando a razão contemporânea como o seu objeto antropológico. Do sentido à verdade. Em 1988, ele sugeriu pensar a Antropologia como nomi­nalismo, o quinto texto desta coletânea: "A razão, a despeito de qualquer outra coisa que possa ser, é uma relação social historica­mente localizável, uma ação no mundo - um coniunto de práti­cas."16 Está em jogo um exame das superfícies, à la Nietzsche, tornando-as acessíveis à discussão pública.

French Modem: Norms and Forms of the Social Environment (Francês moderno:normas e formas do ambiente social), publicado em 1989, descreve como certa racionalidade política tomou-se uma

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forma de governamentalidade. "Deforma ampla este livro é sobre a emergência de certas práticas de razão na França. A fim de entendê­las, eu começo com a suposição padrão da etnografia de que nós podemos analisar a razão da mesma maneira geral como lidamos com outros projetos etnográficos, isto é, um conjunto de práticas em relações complexas com uma congeneridade de símbolos. Mais especificamente, é sobre campos de saber (higiênicos, estatísticos, biológicos, geográficos, e sociais); sobre formas (arquitetônicas e urbanísticas); sobre tecnologias sociais de pacificação (disciplina­doras e de previdência social); sobre cidades como laboratórios sociais (reais, industriais, coloniais, e socialistas); sobre novos es­paços sociais (espaços disciplinadores liberais, aglomerações, e novas cidades). Em cada um destes domínios, descrevo as diversas construções de normas e a procura por formas adequadas para entender e regular o que veio a ser conhecido como a sociedade moderna." 17

Desde 1990, Rabinow trabalha com a hipótese de que agora a categoria "vida" passa por uma modernizaçãO paralela àquela ocor­rida com "sociedade" no século passado. Nesta investigação Rabi­now dialoga com, e vai além, dos estudos sociais da ciência deslan­chados por, entre outros, Thomas Kuhn, Bruno Latour e Donna Haraway. Estes estudos investigaram predominantemente práticas cotidianas nos laboratórios e evidenciaram como as grandes abs­trações da "Ciência" também são produtos destas práticas locais. Rabinow entende que uma vez que tais compreensões foram incor­poradas o terreno está pronto para reavaliações e tomada de novas direções. A etnografia é um passo fundamental neste processo. "Há que aproximar-se dos lugares científicos onde novas formas/eventos emergem e investigar como estas formas/eventos catalizam atores, coisas, temporalidades ou espacialidades num modo distinto de existência, uma nova montagem que faz as coisas funcionarem de maneira diferente, produzindo e instanciando novas capacidades."

Atualmente Rabinow pesquisa as codificações e práticas de vida emergentes na produção de objetos científicos e tecnológicos e seus interconectados aparatos. Ele faz isto tendo em vista o Projeto Genoma, a indústria biotecnológica e o aparecimento da bioética e da ética ambiental. A questão etnográfica colocada por Rabinow é:

Prefácio • 15

como irão mudar nossas orientações, experiências e formas sociais à medida que estes projetos avancem?

Quatro ensaios elaboram a complexidade e a contingência de tais questões: Vida, normas e erros: o trabalho de Georges Cangui­Ihem l8 ; Artificialidade e iluminismo: da sociobiologia à biosociabi· lidade l9 ; Cortando os laços: fragmentação e dignidade na moder­nidade tardia2o; e Biotecnologia americana: fazendo a PCR21.

O antropólogo confronta problemas cujas respostas não são co­nhecidas a priori. O modo de investigação é exploratório. Assim, também a própria ciência social formulada por Rabinow existe como um "dispositivo", uma "constelação de objetos visíveis, afir­mações formuláveis, forças em exercício, sujeitos posicionados."22

João Guilherme Biehl*

Notas

1. Vide Paul Rabinow. Making PCR: A Story of Biotechnology, Chicago, The University of Chicago Press, 1996.

2. Paul Rabinow, "Artificialidade e Ilustração: da Sociobiologia à Biosocia­bilidade" in Novos Estudos do CEBRAP, 31 (80): 81.

3. Ibidem, p. 82. 4. Paul Rabinow, "Studies in the Anthropology of Reason" in Anthropology

Today, 8 (31): 8.

5. Vide Paul Rabinow, French DNA: Trouble in Purgatory, Chicago, The University ofChicago Press, 1999.

6. Paul Rabinow, "Artificialidade e Ilustração", p. 85. 7. Paul Rabinow, Reflt;.ctions on Fieldwork in Morroco, Berkeley: University

ofCalifomia Press, 1977, p. 162. 8. Paul Rabinow, "masked I go forward" in Philosophy and Social Criticism,

6 (2): 231.

9. Ibidem, p. 241.

* João Guilherme Biehl e doutor em antropologia pela Universidade da Califórnia, em Berkeley, e trabalha como pesquisador nos deparo tamentos de antropologia e de medicina social da Universidade de Harvard.

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10. Vide Hubert Dreyfus e Paul Rabinow, Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995.

11. Michel Foucault, The Use of Pleasure - The History of Sexuality, Volume Two. New York. Vintage Books, 1986. p. 8.

12. A primeira versão da tradução deste texto ao português foi feita por Antônio C.Maia.

13. Paul Rabinow, "Representations are social facts: modemity and post-mo­dernity in Anthropology" in James Clifford e George Marcus, Writing Culture: The Poetics and Politics of Ethnography, Berkeley, University of California Press, 1986, p. 241.

14. Vide a entrevista de João Guilherme Biehl com Paul Rabinow, "E a natureza finalmente se tornará artificial" in Ciência & Ambiente, 2 (3): 76, 77.

15. Paul Rabinow, "A Modem Tour in Brazil" in Friedman e Lash, Modernity and ldentity. Oxford, B1ackwell.1992. p. 260.

16. Paul Rabinow, "Beyond Ethnography: Anthropology as Nominalism" in Cultural Anthropology 3 (4): 361.

17. Paul Rabinow, French Modem: Norms and Forms of the Social Environ­ment. Cambridge: MITPress, 1989, p. x.

18. Este texto foi traduzido em parceria com Luis Guilherme Streb. 19. Este texto foi traduzido por Zarima Vargas. Revisões foram feitas pelo

autor e pelo organizador desta coletânea. 20. Este texto foi traduzido por Heloísa Jahn. Revisões foram feiras pelo autor

e pelo organizador desta coletânea. 21. Este texto foi traduzido em parceria com Mike Panasitti. 22. Gilles Deleuze, "Qu'est-ce que un dispositif?" in Michel Foucault Philo­

sophe, Paris: Éditions du Seui!, 1989, p. 185.

• >

Política da Verdade: Paul Rabinow entrevista Michel Foucault1

PR.: Por que você não se envolve em polêmicas? M.F.: Eu gosto de discutir e tento responder as perguntas que me

fazem. É verdade que não me agrada participar de polêmicas. Se abro um livro e vejo que o autor está acusando um adversário de "esquerdismo infantil", imediatamente tomo a fechá-lo. Esta não é minha maneira de fazer as coisas; não pertenço ao mundo das pessoas que agem assim. Considero essa diferença como algo essen­cial: toda uma moral está em jogo, a da procura da verdade e da relação com o outro.

No intercâmbio sério de perguntas e respostas, no trabalho de elucidação recíproca, os direitos de cada pessoa são de algum modo imanentes à discussão. Derivam da situação de diálogo. Aquele que pergunta está apenas exercendo um direito que lhe foi concedido: o de não estar convencido, perceber uma contradição, requerer mais informação, enfatizar postulados diferentes, apontar raciocínios de­feituosos etc. Quanto ao que responde, também ele exercita um direito que não vai além da própria discussão; pela lógica de seu próprio discurso, está comprometido com o que disse antes e, por aceitar o diálogo, com o questionamento pelo outro. Perguntas e respostas dependem de um jogo, um jogo que é ao mesmo tempo prazeroso e difícil, no qual cada um dos dois parceiros se compro­mete a só usar os direitos que lhe são dados pelo outro e pela aceitação da forma de diálogo .

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18 • Antropologia da Razão

o polemista procede baseado nos privilégios que tem de antemão e que nunca vai questionar. Ele possui, por princípio, direitos que o autorizam a guerrear e que fazem dessa luta um empreendimento justo; quem está diante dele não é um parceiro na procura da verdade, mas um adversário, um inimigo errado e nocivo cuja mera existência constitui uma ameaça. Para ele, então, o jogo não consiste em reconhecê-lo como um sujeito com direito a faJar, mas sim em aboli-lo como interlocutor de qualquer diálogo possível; seu objeti­vo final não será chegar o mais próximo possível de uma verdade difícil, mas sim obter o triunfo da causa justa que ele manifestamen­te sustenta desde o princípio. O polemista assume uma legitimidade que por definição é negada a seu adversário.

Algum dia, quem sabe, uma longa história da polêmica será escrita; da polêmica como figura parasitária na discussão e obstácu­lo na procura da verdade. Esquematicamente, creio que podemos reconhecer hoje a presença de três modelos na polêmica: o religioso, o judiciário e o político. Como na heresiologia, a polêmica assume a tarefa de determinar o ponto intangível do dogma, o princípio fundamental e necessário que o adversário negligenciou, ignorou ou transgrediu - e nessa negligência denuncia a falta moral; na raiz do erro encontra a paixão, ° desejo, o interesse, toda uma série de fraquezas e compromissos inconfessáveis que estabelecem uma culpabilidade. Como na prática judiciária, a polêmica não abre a possibilidade de uma discussão igualitária, mas instrui um processo; não lida com um interlocutor, mas com um suspeito; colhe as provas da sua culpa, designa a infração cometida por ele, emite um veredito e o condena. Em todo caso, ° que temos aqui não pertence à ordem de uma investigação em conjunto; o polemista diz a verdade na forma de um julgamento e segundo a autoridade que conferiu a si mesmo. Mas é o modelo político que hoje em dia é o mais poderoso. A polêmica define alianças, recruta partidários, une interesses ou opiniões, representa um partido; ela também situa o outro como um inimigo que apóia interesses opostos aos seus e contra o qual é preciso lutar até que, derrotado, se renda ou desapareça.

Evidentemente, a reativação dessas práticas políticas, judiciárias e religiosas na polêmica não passa de teatro. Gesticula-se: anátemas, excomunhões, condenações, batalhas, vitórias e derrotas nada mais são que maneiras de dizer. Mas são também, na ordem do discurso,

Polêmica, política e problematizações • 19

maneiras de agir, que têm suas conseqüências. Há efeitos esterili­zantes: alguém já viu uma idéia nova surgir em uma polêmica? Não poderia ser diferente, já que os interlocutores não são incitados a avançar, a se arriscar no que dizem, mas a encerrar-se continuamente nos direitos que reivindicam, na legitimidade que precisam defender e na afirmação da sua inocência. Algo ainda mais grave aparece aqui: nessa comédia faz-se caricaturas de guerra, batalhas, aniquila­mentos ou rendições incondicionais, permitindo que o polemista utilize ao extremo seu instinto de morte, Ora, é bastante perigoso fazer crer que o acesso à verdade passe por tais caminhos e assim, ainda que de forma meramente simbólica, validar as práticas políti­cas reais que poderiam ser admitidas a partir disso, Imaginemos por um momento que com uma varinha de condão seja concedido a um dos adversários numa polêmica todo poder que quiser sobre o outro. Não é preciso nem imaginar: basta ver o que aconteceu há pouco tempo com os debates na União Soviética sobre lingüística ou genética. Seriam apenas desvios aberrantes do que deve ser uma discussão correta? Não; eram conseqüências reais de uma atitude polêmica cujos efeitos normalmente ficam em suspenso.

P.R.: Você já foi visto, por suas obras, como um idealista, um niilista, um "novo filósofo", um anti marxista, um neoconservador e assim por diante ... Onde você se situa verdadeiramente?

M.F.; De fato, acho que tenho sido localizado consecutiva ou simultaneamente em todas as casas do tabuleiro político. Já fui tido como anarquista, esquerdista, marxista ostentoso ou dissimulado, niilista, antimarxista explícito ou enrustido, tecnocrata a serviço do gauIlismo, neoliberal etc. Certa vez um professor americano indig­nou-se com o fato de que um cripta-marxista como eu tivesse sido convidado para visitar os Estados Unidos; também fui denunciado pela imprensa de países do Leste Europeu como cúmplice de dissi­dentes. Nenhuma destas caracterizações é importante em si mesma; mas, se tomadas em conjunto, elas significam algo. E admito que gosto do que significam.

É verdade que não gosto de me identificar e me divirto com a diversidade das maneiras como tenho sido julgado e classificado. Algo me diz que depois de tantos esforços, em direções tão variadas, um lugar mais ou menOs aproximado deveria ter sido finalmente

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20 • Antropologia da Razão

encontrado para mim. E como obviamente eu não posso suspeitar da competência das pessoas que se confundem com seus juízos diver­gentes, e já que não é possível questionar sua falta de atenção ou seus preconceitos, é preciso então admitir, em sua incapacidade para me situar, algo que tem a ver comigo.

Isto decorre, sem dúvida, da minha maneira de lidar com as questões políticas. Minha atitude não é resultado de um certo tipo de crítica que, com O pretexto de um exame metódico, rejeita todas as soluções possíveis com exceção de uma única, que seria a boa. Ao contrário: busco a "problematização", isto é, a elaboração de um domínio de fatos, práticas e pensamentos que me parecem colocar problemas para a política. Por exemplo, não creio que com relação à loucura e às doenças mentais exista qualquer "política" que tenha a solução justa e definitiva. Mas penso que existem na loucura, na alienação e nas perturbações de comportamento razões para que a política seja interrogada; e ela deve responder a essas perguntas, ainda que nunca possa respondê-Ias de forma definitiva. O mesmo se aplica ao crime e à punição: naturalmente, seria errôneo pensar que a política nada tem a ver com a prevenção e a punição de crimes, bem como com os elementos que modificam suas formas, significa­dos e freqüências; mas também seria errôneo pensar que existe uma fórmula política capaz de resolver definitivamente a questão do crime. Algo semelhante acontece com a sexualidade, que se relacio­na com estruturas, exigências, leis e regulamentações políticas que têm uma importância capital para ela; entretanto, não se pode espe­rar que a política venha a apresentar as formas pelas quais a sexua­lidade eventualmente deixaria de ser um problema.

Trata-se então de pensar na relação dessas diferentes experiências com a política, o que não significa que se vá procurar na política o princípio constituinte delas ou a solução que irá resolver definitiva­mente seus destinos. É preciso elaborar os problemas que experiên­cias como essas colocam para a política. Mas também é preciso determinar o que de fato significa "colocar um problema" para a política. Richard Rorty observa que, nessas análises, eu não apelo a nenhum "nós", nenhum daqueles "nós" cujo consenso, valores e tradições constituem o arcabouço de um pensamento e definem as condições em que esse pensamento pode ser validado. O problema, contudo, é justamente saber se é mesmo dentro de um "nós" que

Polêmica, política e problematizações • 21

devemos situar-nos para asseverar os princípios reconhecidos e os valores aceitos; ou se não será preciso, elaborando a questão, tomar possível a futura formação de um "nós". Penso que o "nós" não pode ser prévio à pergunta, só pode ser um resultado - e resultado necessariamente provisório - da pergunta tal como surge nos novos termos em que é formulada. Por exemplo: não tenho certeza de que, quando escrevi a História da loucura, houvesse um "nós" preexis­tente e receptivo, ao qual bastaria que eu me referisse para poder escrever meu livro, e do qual esse livro fosse a expressão espontâ­nea. Laing, Cooper, Basaglia e eu não fazíamos parte de uma comunidade, nem tínhamos relação alguma. Mas com base no tra­balho que havia sido feito, leitores e autores vislumbraram a possi­bilidade do estabelecimento de um "nós", um "nós" que também seria capaz de formar uma comunidade de ação.

Eu nunca procurei analisar coisa alguma do ponto de vista da política, mas sempre perguntei à política o que ela tinha a dizer sobre os problemas com que se defrontava. Pergunto sobre as posições que a política assume e as razões que dá para isto; não peço que ela elabore a teoria do que eu faço. Não sou nem adversário, nem partidário do marxismo; indago o que ele tem a dizer sobre as experiências que o questionam.

Quanto aos eventos de maio de 1968, parece-me que eles são decorrentes de uma outra problemática. Na época eu não estava na França, e só voltei vários meses depois. Era possível reconhecer ali elementos completamente contraditórios: por um lado, havia um esforço amplamente afirmado de confrontar a política com toda uma série de questionamentos que tradicionalmente não eram parte de seu domínio estatutário (questões acerca das mulheres, das relações entre os sexos, da medicina, das doenças mentais, do meio-ambien­te, das minorias, da delinqüência); por outro lado, havia um desejo de reescrever todos esses problemas como o vocabulário e uma teoria que era em grande parte derivada mais ou menos diretamente do marxismo. Ora, o processo que se deu naquele momento não assumiu os problemas levantados pela doutrina marxista; pelo con­trário, o que aconteceu foi uma crescente manifestação da incapaci­dade do marxismo para lidar com aqueles problemas. De modo que estávamos diante de interrogações dirigidas à política que, entretan­to, não haviam se originado de uma doutrina política. Deste ponto

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de vista, tal libertação do ato de questionar desempenhou um papel positivo: havia agora uma pluralidade de perguntas feitas à política, e não a reinscrição do ato de questionar no âmbito de uma doutrina política.

PR.: Você diria que o seu trabalho está centrado nas relações entre a ética, a política e a genealogia da verdade?

M.F.: Sem dúvida pode se dizer que, em certo sentido, eu tento analisar as relações entre ciência, política e ética. Mas não creio que isto seja uma representação inteiramente correta do trabalho que me proponho fazer. Não quero permanecer nesse nível: tento ver como esses processos puderam interferir mutuamente na formação de um domínio científico, de uma estrutura política, de uma prática moral. Tomemos a psiquiatria como exemplo: sem dúvida podemos hoje analisá-Ia em sua estrutura epistemológica, embora esta ainda seja um tanto fluida; ela pode também ser analisada no âmbito das instituições políticas em que opera; e as implicações éticas da psiquiatria com respeito aos seus objetos e aos seus praticantes também podem ser avaliadas. Mas meu objetivo não era fazer isso. Ao contrário: procurei ver como a formação da ciência psiquiátrica, a delimitação do seu campo e a definição do seu objeto envolviam uma estrutura política e uma prática moral. Isto num duplo sentido: por um lado. eram pressupostas pela progressiva organização da psiquiatria como ciência e, por outro, também eram transformadas por essa constituição. A psiquiatria como nós a conhecemos não poderia ter existido sem todo um entrelaçamento de estruturas polí­ticas e sem um conjunto de atitudes éticas~ mas, inversamente, o estabelecimento da loucura como um domínio do saber também mudou as práticas políticas e as atitudes éticas relacionadas com ela. Tratava-se de determinar o papel da política e da ética na constitui­ção da loucura como um campo particular do conhecimento cientí­fico e de analisar seus efeitos nas práticas éticas e políticas.

O mesmo acontece com relação à delinqüência. Tratava-se de ver que estratégia política, ao conferir seu status à criminalidade, havia sido capaz de recorrer a certas fonnas de saber e a certas atitudes morais; tratava-se também de ver como essas modalidades de co­nhecimento e essas formas de moralidade haviam sido refletidas nessas técnicas disciplinadoras e, ao mesmo tempo, modificadas por

Polêmica, política e problematizações • 23

elas. No caso da sexualidade, eu queria dissecar a formação de uma atitude moral: tentei reconstruí-Ia por meio do jogo que estabelece com as estruturas políticas (essencialmente na relação entre auto­controle e dominação de outros) e com modalidades de conhecimen­to (autoconhecimento e conhecimento de diversas áreas de ativida­

de). De modo que nessas três áreas -loucura, delinqüência e sexua­

lidade - enfatizei um aspecto particular de cada vez: a constituição de uma objetividade, a formação de uma política e de uma autogo­vernabilidade e a elaboração de uma ética e uma prática de si mesmo. Mas também, a cada vez, procurei destacar o lugar ocupado pelos outros dois componentes necessários para a constituição de um campo de experiência. Trata-se, no fundo, de exemplos diferen­tes em que estão implicados os três elementos fundamentais de qualquer experiência: um jogo de verdade, relações de poder e formas de relação consigo mesmO e com os outros. Como cada um desses exemplos enfatiza de algum modo cada um desses três aspectos - pois a experiência da loucura foi organizada recente­mente como um campo de saber, o crime como uma área de inter­venção política e a sexualidade como uma posição ética -, tentei demonstrar a cada vez como os outros dois elementos estavam presentes, que papéis desempenharam e como cada um deles foi afetado pelas transformações nos outros dois.

P.R.: Ultimamente você tem falado sobre uma "história de pro­blemáticas". O que quer dizer exatamente com isso?

M.F.: Há muito tempo que eu investigava a possibilidade de caracterizar a história do pensamento como distinta da história das idéias - isto é, a aÍ1álise de sistemas de representações - e da história das mentalidades - isto é, a análise de atitudes e esquemas de comportamento. Parecia-me que havia um elemento capaz de descrever a história do pensamento: é o que se pode chamar de problemas ou, mais exatamente, de problematizações. O pensamen­to se caracteriza por ser totalmente diferente do conjunto de repre­sentações que fundamentam um certo comportamento, assim como do domínio de atitudes que podem determinar esse comportamento. O pensamento não é o que habita determinada conduta e lhe confere um sentido; é aquilo que permite a uma pessoa distanciar-se de certa maneira de agir e de reagir, adotá-Ia como objeto de pensamento e

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questioná-la quanto ao seu significado, suas condições e seus obje­tivos. O pensamento é a liberdade com relação ao que se faz, o movimento pelo qual se toma distância desse fazer, constituindo-o como objeto e refletindo sobre ele como problema.

Dizer que o estudo do pensamento é a análise de uma liberdade não significa que se esteja lidando com um sistema formal cuja única referência é ele mesmo. De fato, para que um campo de ação - um comportamento - entre efetivamente no âmbito do pensa­mento é preciso que um certo número de fatores o haja tornado incerto, que ele tenha perdido sua familiaridade e provoque um certo número de dificuldades em torno de si. Estes fatores resultam de processos sociais, econômicos e políticos. Mas aqui eles cumprem unicamente papéis de instigação. Podem existir e desempenhar suas ações por um longo período antes que haja problematização efeti va pelo pensamento. Quando o pensamento intervém, ele não assume uma forma única, que seria resultado direto ou expressão necessária dessas dificuldades. O pensamento é uma reação original ou especí­fica, freqüentemente multifacetada e mesmo contraditória, às difi­culdades que são definidas por uma situação ou um contexto e funcionam como uma questão possível.

Várias respostas podem ser dadas a partir de um único conjunto de dificuldades; na maioria das vezes, respostas diferentes são efetivamente propostas. Mas o que temos que compreender é o que as faz simultaneamente possíveis, o ponto em que está enraizada a simultaneidade das respostas, o solo que as nutre em suas diversida­des apesar de suas contradições. Diversas soluções foram propostas no século XVIII para as dificuldades encontradas pela prática com a doença mental: por exemplo as de Tuke e Pinel: bem como toda uma gama de soluções foi proposta para as dificuldades encontradas pela prática penal na segunda metade daquele século; ou ainda, tomando um exemplo bem remoto, as diversas escolas de filosofia do período helenista propuseram soluções distintas para as dificul­dades da ética sexual tradicional.

Mas o trabalho de uma história do pensamento seria redeScobrir, na raiz destas soluções distintas, a forma geral de problematização que as tornou possíveis, mesmo na própria oposição que mantêm entre si; ou o que possibilitou a transformação das dificuldades e obstáculos de uma prática em um problema geral para o qual são

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propostas diversas soluções práticas. É a problematização que res­ponde a essas dificuldades, fazendo porém algo distinto de simples­mente expressá-Ias ou manifestá-Ias. A problematização elabora, a propósito delas, as condições em que podem ser dadas possíveis respostas e define os elementos que irão constituir aquilo a que as diferentes soluções tentam responder. Essa elaboração de um dado como uma questão, essa transformação de um conjunto de obstácu­los e dificuldades em problemas - para os quais as diversas solu­ções vão tentar produzir uma resposta - é o que constitui o ponto de problematização e o trabalho específico do pensamento.

Aqui fica evidente a distância que existe entre esta análise e aquela feita em termos de desconstrução (qualquer confusão entre os dois métodos seria imprudente). Trata-se, ao contrário, de um movimento de análise crítica com o qual procura-se ver como as diferentes soluções para um problema foram construídas; mas tam­bém como essas diferentes soluções resultam de uma forma especí­fica de problematização. Parece então que qualquer nova solução que possa ser adicionada às outras decorreria da problematização atual, modificando-se apenas alguns dos postulados ou princípios em que se baseiam as respostas dadas por alguém. O trabalho da reflexão filosófica e histórica se situa no campo de trabalho do pensamento desde que se compreenda claramente a problematiza­ção não como um arranjo de representações, mas como um trabalho do pensamento.

Notas

I. In Paul Rabinow (ed.), The Foucault Reader, Nova York, Pantheon Books, 1984. Entrevista feita em maio de 1983. Agradecimentos a Thomas Zum­mer e Lydia Davis.

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Sujeito e governamntalidade: elementos do trabalho de

Michel Foucault l

Em 1971, Michel Foucault e Noam Chomsky participaram de um debate promovido por um canal de televisão holandês: "Natureza Humana: Justiça versus Poder."2 Os dois pensado­

res não se envolveram em brigas ferrenhas (os supostos produtos de tais ocasiões), mas diferenças flagrantes foram claramente articula­das. Ainda que ambos sejam extremamente críticos da atual ordem social e política, seus pressupostos acerca da natureza humana, de poder e de justiça, e de como estas questões podem ser entendidas diferem radicalmente. Utilizo este intercâmbio como meio de intro­duzir alguns dos elementos fundamentais do trabalho de Michel Foucaul!.

Para Noam Chomsky existe uma natureza humana; este ponto é crucial para ele: a não ser que exista alguma forma relativamente fixa de natureza humana, o verdadeiro conhecimento científico é impossível. Baseado na sua própria pesquisa, Chomsky perguntou': dado o conjunto de experiências parciais e fragmentadas, como é que indi víduos, em todas as culturas, são capazes de não somente aprender a sua própria língua mas de também usá-Ia criativamente? Para Chomsky há somente uma resposta possível: deve existir uma estrutura biofísica-mental básica que nos permite como indivíduos e como espécie deduzir uma linguagem unificada a partir da multi­plicidade das experiências individuais. Deve haver, insiste Choms­ky, uma "massa de 'esquematismos' e princípios governantes inatos, que guiam nosso comportamento social, intelectual e individual... há

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alguma coisa biologicamente dada, imutável, um fundamento para tudo o que fazemos com as nossas capacidades mentais."3 Chomsky tem dedicado sua carreira científica a descobrir estas estruturas. Seu objetivo: uma teoria matematicamente testável da mente. Sua linha­gem: a racionalidade cartesiana.

Michel Foucault rejeita a visão chomskyana da natureza humana e da ciência. De maneira metodologicamente típica, Foucault evita a questão abstrata: existe natureza humana? e pergunta: como fun­ciona o conceito de natureza humana na nossa sociedade? Tomando como exemplo as ciências da vida durante o século XVIII, Foucault traça uma distinção entre as categorias operacionais efetivas dentro de uma disciplina específica num momento histórico particular e aqueles amplos marcos conceituais tais como "vida", ou "natureza humana", que, na sua opinião, tiveram pouquíssima importância nas mudanças internas das disciplinas científicas. Conforme Foucault, "não foi estudando a natureza humana que os lingüistas descobriram as leis das mutações das consoantes, ou que Freud descobriu os princípios da análise dos sonhos, ou que os antropólogos culturais descobriram a estrutura dos mitos. Parece-me que na história do conhecimento a noção da natureza humana desempenhou principal­mente o papel de ... designar certos tipos de discursos em relação ou em oposição à teologia, à biologia ou à história." Foucault descon­fia, e muito, de reivindicações a verdades universais. Ele não as refuta, mas consistentemente historiciza grandiosas abstrações. Em última análise, ele não toma uma posição sobre se existe ou não uma natureza humana. Ele prefere mudar de assunto e examinar as funções sociais que tais conceitos desempenham no contexto de práticas "tais como a economia, a tecnologia, a política, a sociologia que podem oferecer a estes conceitos condições de formação, de modelos, de lugar, etc ... o que há nas formas sociais que torna as regularidades da ciência possíveis."4

Para Foucault, não há posição externa de certeza, não há com­preensão universal que esteja além da história e da sociedade. Sua estratégia é ir o mais longe possível na análise sem recorrer a universalismos. Sua principal tática é historicizar categorias supos­tamente universais, tal comO natureza humana, cada vez que se depara com elas. O objetivo de Foucault é entender a pluralidade de papéis que por exemplo a razão teve como uma prática social na

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nossa civilização, não para usá-la como um padrão a partir do qual estas práticas podem ser mensuradas. Esta posição não reduz, a priori, O saber a condições sociais. Pelo contrário, existe um impe­rativo consistente, utilizado com ênfase variada, que perpassa os estudos históricos de Foucault: descobrir as relações de disciplinas científicas específicas e práticas sociais particulares.

Um conjunto paralelo de diferenças entre Chomsky e Foucault emerge a partir das discussões sobre política. O entrevistador per­gunta a cada um por que está interessado em política. Chomsky responde retornando a outras dimensões da natureza humana e da razão universal. Segundo ele, existe uma necessidade humana uni­versal de trabalhar criativamente e de indagar livremente. Nossa sociedade sufoca a possibilidade de satisfazer esta necessidade. Chomsky argumenta que a tecnologia e a ciência moderna colocam à nossa disposição os meios para se sobrepujar a alienação e a árdua sobrecarga do trabalho. A culpa disto não estar sendo concretizado não está na ciência, mas na organização social e política da nossa sociedade. Portanto, o problema real que devemos confrontar é político: como viabilizar a sociedade justa na qual a criatividade e a razão poderiam reinar. Nossa tarefa é "tentar criar a visão de uma futura sociedade justa, quer dizer, criar uma teoria social humanista baseada, se possível, num conceito sólido e benevolente de essência ou natureza humana."5 Para Chomsky, o fim da ação política é claro, ou vai tornar-se claro, pois é guiado pela razão e pela natureza humana. A tarefa dos intelectuais é utilizar o conceito de natureza humana como padrão para julgar a sociedade e valer-se de sua razão para formular uma conceitualização precisa de uma ordem social mais humana e mais justa. Nossas tarefas políticas podem ser coe­rentemente informadas pelos conceitos universais de razão e justiça.

Foucault se recusa a responder por que a política lhe interessa. Ele acha esta pergunta tão trivial quanto evidente. Assim ele substi­tui o "por quê" pelo "como": como eu estou interessado em política? Certamente não "imaginando um modelo social ideal para o funcio­namento de nossa sociedade científica ou tecnológica". Na interpre­tação de Foucault, um dos pontos cruciais da filosofia política ocidental tem sido a devoção a tais abstrações, primeiro princípios e utopias, isto é, teoria. Nós temos abordado consistentemente o problema político no Ocidente construindo modelos de uma ordem

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social justa ou procurando princípios gerais para avaliar condições existentes. Mas Foucault reivindica que é exatamente esta ênfase, esta "vontade de saber", que nos deixou quase que totalmente às escuras no que concerne ao funcionamento concreto de poder nas sociedades ocidentais. Nossa tarefa é colocar de lado estes esquemas utópicos, a procura por princípios primeiros, e perguntar corno o poder efetivamente opera na nossa sociedade. "Parece-me", explica Foucault, "que a verdadeira tarefa política numa sociedade como a nossa é criticar o funcionamento das instituições que aparentam ser neutras e independentes; criticá-Ias de tal maneira que a violência política exercida obscuramente através delas possa ser desmascara­da, a fim de que possam vir a ser combatidas."6

Por que devemos lutar contra a violência política? Mais uma vez Chomsky e Foucault divergem. Para Chomsky devemos lutar contra as injustiças da nossa sociedade em nome de uma meta mais altiva, a justiça. Com certeza, argumenta Chomsky, se não tivermos um princípio orientador, não teremos maneira de julgar as ações dos outros. É perfeitamente possível que venhamos a nos encontrar numa situação na qual a revolução é pior do que o regime que ela substitui. Estaremos perdidos, a não ser que tenhamos alguns padrõ­es fixos e racionais para julgar o que constitui urna sociedade melhor. Isto não significa, acrescenta Chomsky, que tenhamos que atingir um desempenho perfeito destes padrões; mas sem eles não teremos maneira de agir ou julgar.

Foucault discorda, e é neste desacordo que ele se apresenta mais radical e desestabilizador. Ele diz: "Vou ser um pouco nietzschiano acerca disto ... parece-me que a idéia de justiça em si mesma foi efetivamente inventada e utilizada em diferentes tipos de sociedade como instrumento de um certo poder econômico e político ou como arma contra este poder ... não se pode, ainda que isto seja lamentável, levar estas noções adiante para justificar uma luta que deveria ... derrubar os veros fundamentos de nossa sociedade."7 Foucault mos­tra-se consistente: ele não diz que a idéia de justiça nunca deveria ser invocada numa luta política, mas sua metáfora básica é a batalha e não a conversação. Envolver-se em lutas políticas é alterar rela­ções de poder. Foucault pensa que estamos envolvidos nelas o tempo inteiro, daí, portanto, o seu desdém pela pergunta acerca da impor­tância da política.

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Para Foucault todos os tipos de saber estão enredados nas dominações triviais, assim como nas grandes batalhas que consti­tuem o nosso mundo. O saber não é externo a estes embates, não constitui uma maneira de escapar da briga ou de colocar-se acima dela como advoga Chomsky. Para Foucault, a "vontade de saber" na nossa cu1tura é simultaneamente parte do perigo e instrumento para combatê-lo. Seguindo Nietzsche, Foucault assevera que o saber não "se desprendeu vagarosamente de suas raízes empíricas, das neces­sidades iniciais das quais emergiu, para tomar-se especulação pura, submetida unicamente às demandas da razão ... Assim como em outros tempos as religiões demandavam o sacrifício de corpos, agora o saber requer experimentação em nós mesmos, nos conclama ao sacrifício do sujeito do saber."8 Foucault confronta este desafio, esta ameaça, recusando-se a separar saber de poder. Ele enfoca seu trabalho, tanto político quanto intelectual, naquilo que considera a maior ameaça, esta estranha, de certo modo improvável, mistura de ciências e práticas sociais desenvolvidas ao redor da subjetividade.

"A geneaologia do sujeito moderno", é assim que Foucault deno­mina esta tentativa de localizar historicamente e de analisar os fios discursivos e as práticas que lidam com o sujeito, saber e poder. O que é distintivo acerca da cultura ocidental é que nós temos dado muita importância ao problema do sujeito nas nossas tradições sociais, políticas, econômicas, legais, filosóficas e científicas. O objetivo mais geral de Foucault é "descobrir o ponto no qual estas práticas tornaram-se técnicas refletivas coerentes com objetivos definidos; o ponto no qual um discurso particular emergiu destas técnicas e passou a ser visto como verdadeiro; o ponto no qual estas técnicas estão conectadas com a obrigação de procurar a verdade e de dizê-Ia."9

o problema do sujeito

Numa recente autocaracterização, Foucault enfatiza: "o alvo do meu trabalho durante os últimos vinte anos não foi analisar o fenômeno do poder, nem elaborar os fundamentos de tal análise. Meu objetivo tem sido criar uma história dos diferentes modos pelos quais os seres humanos na nossa cultura tornam-se sujeitos."lO Os três modos de

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objetificação do sujeito arrolados por Foucault oferecem um meio conveniente de apresentar brevemente os principais temas do seu trabalho.

O primeiro modo de objetificação do sujeito é criticamente cha­mado de "práticas divisórias". Os mais famosos exemplos no traba­lho de Foucault são: o isolamento de leprosos durante a Idade Média; o confinamento indiscriminado de pobres. dementes e vaga­bundos no Hôpital Général em Paris, em 1656: as novas classifica­ções de doenças e as práticas da medicina clínica na França do início do século XIX; a ascensão da psiquiatria moderna e a sua entrada nos hospitais, prisões e clínicas ao longo dos séculos XIX e XX; e, finalmente, a medicalização, a estigmatização e a normalização do desvio sexual na Europa moderna.

De maneiras diferentes, usando procedimentos diversos e com uma eficiência muito variada em cada um destes casos, "o sujeito é objetificado por um processo de divisão dentro de si ou de divisão dos outroS."1l Neste processo de objetificação e categorização, os indivíduos recebem tanto uma identidade social quanto pessoal. De forma geral, "práticas divisórias" são modos de manipulação que combinam a mediação de uma ciência (ou pseudo-ciência) e a prática de exclusão, geralmente num sentido espacial, mas sempre num sentido social. Estas práticas divisórias formam uma parte substancial de História da loucura, O nascimento da clínica e Vigiar e punir. Os principais tópicos destes livros são: a objetificação de indivíduos tirados de uma massa indiferenciada, por exemplo as populações vagabundas na Paris do século XVII, e mais tarde de populações pré-selecionadas, delinqüentes oriundos da classe traba­lhadora; as interconexões das práticas divisórias com a formação e a crescente sofisticação na elaboração das ciências sociais; o rela­cionamento histórico destes modos de classificação, controle e con­tenção com uma distintiva tradição de retórica humanitária sobre reforma e progresso; as aplicações cada vez mais diversas e eficien­tes destes procedimentos de saber e poder principalmente, embora não exclusivamente, sobre grupos dominados ou formados e identi­ficados através das práticas divisórias.

O segundo modo de transformar seres humanos em sujeitos objetificados está relacionado com o primeiro mas é independente dele, chamemo-lo de "classificação científica". Este modo surge

Sujeito, saber/poder, govemamentalidade • 33

"dos modos de investigação que se dão o status de ciências, por exemplo, a objetivação do sujeito falante na grammaire générale, filologia e lingüística ... [ou] a objetificação do sujeito produtivo, o sujeito que trabalha, na análise da riqueza e da economia. Ou a objetificação do simples fato de se estar vivo na história natural ou na biologia."12 Esta lista é um sumário conciso dos conteúdos do mais controverso e aclamado livro de Foucault, As palavras e as coisas. Neste livro denso e erudito, ele mostra como os discursos da vida, do trabalho e da linguagem foram estruturados em disciplinas; como, desta maneira, eles atingiram um alto grau de autonomia interna e coerência; e como estas disciplinas da vida, trabalho e linguagem (freqüentemente lidamos com estes discursos como se fossem universalizações da vida social humana e como se progre­dissem logicamente, refinando-se no curso da história, assim como nas ciências naturais) mudaram abruptamente em diversos pontos históricos, apresentando uma descontinuidade conceitual das disci­plinas que as precederam.

Os escritos de Foucault têm como marca característica as ruptu­ras históricas que deslancharam a idade clássica (aproximadamente da metade do século XVII até a Revolução Francesa). Dada a história francesa, não há nada particularmente surpreendente nesta cronologia; de fato, freqüente e erroneamente, Foucault foi visto como um filósofo da descontinuidade. Ele é parcialmente responsá­vel por iS10. Obras como A arqueologia do saber e As palavras e as coisas enfatizam mudanças abruptas nas estruturas discursivas das ciências sociais. Mas, em outros contextos, Foucault também ressal­tou as continuidades a longo prazo nas práticas culturais. As pronun­ciadas linhas de descontinuidade discursiva nas ciências humanas e as longas linhas de continuidade em práticas não-discursivas forne­cem a Foucault um efetivo e flexível dispositivo de interpretação através do qual é possível aproximar-se das relações de saber e poder. Deve no entanto ser ressaltado que esta não é uma filosofia da história que por alguma razão misteriosa glorifica a descontinui­dade.

Em As palavras e as coisas e A arqueologia do saber (a única tentativa encetada por Foucault de uma análise teórica sistemática abstraída da dissecação histórica que constitui o tema dos seus outros livros), o discurso é dissociado (colocado entre parênteses)

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das práticas sociais e instituições nas quais está encaixado. Esta dissociação também causou alguma confusão. Embora estivesse temporária e parcialmente enredado no vocabulário estruturalista daquele momento, ele nunca teve a intenção de isolar o discurso das práticas sociais que o circundavam. Pelo contrário, ele procurava ver quanta autonomia podia ser legitimamente reivindicada para formações discursivas. Seu objetivo, tanto então quanto depois, era evitar análises de discurso (ou ideologia) como reflexos, não impor­ta o quão sofisticadamente mediados, de algo supostamente mais "profundo" e mais "real". Ao perguntar "como funciona o discur­so?" sua meta foi isolar as técnicas de poder exatamente naqueles lugares onde este tipo de análise é raramente feita. Mas para atingir isto, ele primeiro superenfatizou as articulações internas e a natureza aparentemente autônoma dos discursos científico-sociais. Embora tenha preservado a maioria das suas sistematizações "arqueológi­cas" da formação de conceitos, objetos, sujeitos e estratégias discur­sivas nas ciências humanas, ele agora explicitamente alargou a sua análise para mostrar como estas disciplinas tomaram parte efetiva num campo histórico que inclui outros tipos de prática não-discur­siva.

Foucault permanece continuamente interessado nas maneiras mutantes em que o corpo e as instituições sociais com ele relaciona­das entraram em relações políticas. No primeiro modo de objetifica­ção (as práticas divisórias), o sujeito constituído pode ser visto como uma vítima tomada pelos processos de objetificação e coação; o exemplo mais óbvio são os prisioneiros e os doentes mentais. Em­bora existam desenvolvimentos paralelos associados com O segundo modo de objetificação (a classificação científica), a relação com a dominação é mais oblíqua. Por exemplo em O nascimento da clíni­ca, Foucault demonstra como durante o século XIX o corpo foi, de forma crescente, tratado como uma coisa e como esta objetificação foi paralelizada e complementada pelas práticas divisórias instituí­das nas compartimentalizações espaciais, temporais e sociais da clínica. Mas as duas dimensões, práticas divisórias e classificação científica, não são a mesma coisa, nem são orquestradas juntas por algum ator invisível. Foucault não oferece explicações causais para estas mudanças, deixando obscuro o modo como avalia a intercone-

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xão de ação intencional, mudanças sócio-econômicas, interesses particulares e acidentes.

O terceiro modo de objetificação representa a contribuição mais original de Foucault. Chamemo-lo subjetivação; tem a ver com a ~'maneira como o ser humano torna-se sujeito".!3 Este processo difere significativamente dos outros dois modos e representa uma nova direção, deveras importante, no trabalho de Foucaul!. De um modo geral, as práticas divisórias são técnicas de dominação e têm sido aplicadas principalmente em populações vagabundas, em clas­ses trabalhadoras, naqueles definidos como marginais, etc. Embora a relação entre estes modos de dominação e várias formas científi­co-sociais de classificação tenha recebido nova clareza e efetividade pelas análises e estudos históricos de Foucault, esta relação.também foi reconhecida por outros pensadores. Em ambas as instâncias, a pessoa que é colocada numa cela ou cujo dossiê é compilado está basicamente numa posição passiva, cerceada. De forma distinta, neste terceiro modo, subjeti vação, Foucault olha para os processos de autoformação no qual a pessoa é ativa. Suas últimas análises publicadas enfocam as classes dominantes, especificamente a bur­guesia francesa da metade do século XIX, cidadãos gregos, os ascetas cristãos primitivos e os Pais da Igreja. Nestas análises, Foucault está preocupado em isolar aquelas técnicas através das quais a pessoa inicia uma ativa autoformação. Esta autoformação tem uma genealogia longa e complicada; acontece através de uma variedade de "operações nos corpos das pessoas, nas suas almas, nos seus pensamentos, na sua própria conduta."14 Estas operações impli­cam caracteristicamente num processo de autocompreensão media­do por uma figura externa de autoridade, seja o confessor ou o psicanalista. Foucault nos mostra, por exemplo, como durante o século XIX havia uma vasta proliferação de discursos científicos sobre "sexo". em parte porque o sexo era visto como uma chave para a auto-compreensão. Esta linha culminou em Freud. Foucault tam­bém aponta para uma crescente obsessão com a sexualidade, a saúde do indivíduo e da raça, o crescimento dos discursos médicos sobre a sexualidade, e assim por diante. O indivíduo e a raça eram assim unidos num conjunto de preocupações comuns. É importante traçar aqui uma linha nítida entre estes processos de subjetivação e práticas divisórias. Como Foucault mostra na História da sexualidade e em

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Vigiare punir, os dois podem ser efetivamente combinados, embora sejam analiticamente distinguíveis.

o problema de Poder/Saber

Tomados em conjunto, os três modos de objetificação do sujeito (aquele que categoriza, distribui e manipula; aquele através do qual nos entendemos cientificamente; aquele que utilizamos para nos formar em selves que conferem sentido) apontam para a problemá­tica das indagações de Foucault. Logo toma-se aparente, no entanto, que se o tema mais geral do trabalho de Foucault tem sido o problema do sujeito, uma compreensão desta investigação requer o arsenal de conceitos e preocupações subsidiárias que elaborou ao longo do caminho. Localizados perto do problema do sujeito estão os termos gêmeos de poder e saber. A importância disto já foi bem colocada por Colin Gordon na sua antologia de textos de Foucault PowerlKnowledge. Embora aqui não seja necessário listar os argu­mentos de forma detalhada, diversos pontos merecem ser destaca­dos.

Durante a maior parte dos anos sessenta, Foucault procurou de diversas maneiras isolar e analisar as estruturas das ciências huma­nas tratadas como sistemas discursivos. É importante enfatizar que ele não se considerou um praticante destas ciências humanas; elas eram o seu objeto de estudo. Foucault nunca tratou estes discursos a partir de dentro, ou seja, nunca colocou a questão da verdade ou falsidade das reivindicações específicas feitas em qualquer discipli­na particular. Embora tenha pacientemente delineado os sistemas discursivos das ciências da vida, linguagem e trabalho, sua meta não foi revelar as verdades por elas descobertas ou as falsidades propos­tas. Pelo contrário, mais uma vez, o alvo de Foucault foi a efetivação destas disciplinas: como e ao redor de que conceitos elas se forma­ram, como foram usadas, onde foram desenvolvidas. O problema tornou-se como analisar as afirmações das ciências sociais sem julgar seus "progressos" ou a sua falta de progressos, e sem reduzir suas relativas autonomias discursivas e conceituais a alguma coisa tida como sendo mais básica. Colin Gordon pergunta: "Como as ciências humanas são historicamente possíveis e quais são as condi-

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ções históricas de suas existências?,'l5 Questões paralelas, embora não idênticas, foram obviamente levantadas antes, mais notadamen­te na Genealogia da moral de Nietzsche, mas Foucault perseguiu as conseqüências destas questões com uma sistematicidade e vigor sem

precedentes. Nesta área, Foucault é decididamente anti-hegeliano e antimar­

xista; a procura por uma teoria geral da história não está na sua agenda. De fato, no seu diagnóstico isto é parte do problema. Foucault parece estar se identificando com a crítica da teoria inicia­da nos tempos modernos por Nietzsche e perseguida por Heidegger. Para Foucault, situar-se dentro desta linhagem não acarreta rejeitar a razão; ele rechaça ser um "irracionalista", como Jürgen Habermas entre outros o acusou. 16 Foucault tampouco abandonou a contínua argumentação crítica na arena pública. Ele simplesmente se recusa a ver a razão como nossa esperança ou como nossa nêmesis. Coloca então a questão da seguinte maneira: "A relação entre racionalização e excessos de poder político é evidente. Não deveríamos esperar pela burocracia e por campos de concentração para reconhecer a existência de tais relações. Mas o problema é; o que fazer com um fato tão evidente? Devemos julgar a razão? Para mim nada seria mais estéril. Primeiro porque o campo da razão não tem nada a ver com culpa ou inocência; segundo porque não tem sentido referir-se à razão como a entrada contrária à não-razão; e por último tal julgamento nos colocaria na armadilha de ter de desempenhar o papel arbitrário e maçante de irracionalista ou racionalista."17

O caráter anti metafísico e antiontológico do seu trabalho é bas­tante forte. Permanecem abertas perguntas, tanto filosóficas quanto políticas, acerca do status exato da razão no trabalho de Foucault. Parece colocar-se próximo mas separado de uma linha de pensado­res que vai de Max Weber a Martin Heidegger, através de Theodor Adorno e Max Horkheimer. De maneira distinta, cada um destes pensadores reconheceu tanto uma central idade quanto um perigo nos processos de crescente racionalização e desenvolvimento tecno­lógico do mundo. Cada qual também diferenciou tipos de razão e de pensamento, instrumental, substantivo, formal, crítico, etc., e tentou separar aquelas dimensões e conseqüências da atividade racional que eram perniciosas daquelas que, de uma forma ou de outra,

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poderiam servir como instrumentos de resistência ou ultrapassagem do funcionamento destrutivo da razão na cultura ocidental.

O trabalho de Foucault é em si mesmo um testamento de Contínua racionalidade crítica Com intenção política. Entretanto, nós temos somente os começos de uma avaliação crítica das funções positivas da razão em Foucault. Ele constantemente pIuraliza e "desmaiuscu­liza" todos os grandes conceitos, os princípios primeiros e as bases fundamentais que a nossa tradição produziu. O problema da razão não é jurídico, nem ontológico; é histórico e político. Foucault explica: "A questão central da filosofia e do pensamento crítico desde o século XVIII tem sempre sido ... O que é esta razão que nós usamos? Quais são os seus efeitos históricos? Quais são os seus limites e quais são os seus perigos? ... [Se a] filosofia tem uma função dentro do pensamento crítico é precisamente aceitar este tipo de espiral, este tipo de porta giratória da racionalidade que nos refere à sua necessidade, à sua indispensabilidade e, ao mesmo tempo, aos seus perigos intrínsecos." 18

Governamentalidade

Foucault inovou ao procurar isolar e analisar um esquema para entender como a nossa cultura produziu diferentes tipos de sujeitos. De maneira semelhante, o seu trabalho mais recente também inovou a abordagem do tema do poder. Nas suas palavras: "De forma contínua, tem-se desenvolvido desde o século XVI uma nova polí­tica de poder; esta nova estrutura política é o Estado. Predominan­temente, no entanto, o Estado é percebido como um tipo de poder político que ignora indivíduos e que está atento tão-somente aos interesses da totalidade, ou eu deveria dizer de uma classe ou de

algum grupo entre os cidadãos ... Mas gostaria de realçar o fato de que o poder do Estado (esta é uma das razões da sua força) é tanto uma forma de poder individualizadora quanto totalizante. Penso que nunca na história das sociedades humanas. mesmo na antiga socie­dade chinesa, houve uma combinação tão complexa de técnicas individualizantes e procedimentos totalizantes nas mesmas estrutu­ras políticas."19 Já vislumbramos estas "técnicas de individualiza_ ção" em relação à objetificação do sujeito; voltemo-nos agora bre-

Sujeito. saber/poder. governamental idade • 39

vemente aos "procedimentos de totalização", primeiro com um breve bosquejo da análise de Foucault das mudanças históricas básicas na relação do Estado com o indivíduo.

Durante a Renascença, novas conexões entre o Estado (formado pelas grandes monarquias territoriais que surgiram dos fragmentos dos estados feudais) e o indivíduo (cuja alma e salvação receberam renovada proeminência como uma questão política durante a Refor­ma e a Contra-Reforma) fizeram surgir um novo tipo de reflexão política. A partir da segunda metade do século XVI, apareceram uma série de tratados sobre a "arte de governar". Eles não estavam preocupados com as tradicionais questões da natureza do ~stado, nem como o príncipe poderia salvaguardar da melhor maneira pos­sívelo seu poder (embora estes tópicos não estivessem ausentes por completo); suas abrangências eram muito mais amplas. De fato, lidavam com quase tudo: falavam diretamente sobre como "gover­nar um domicílio, almas. crianças, uma província, um convento, uma ordem religiosa, ou uma família." Através destes tratados, a reflexão política foi tacitamente alargada para incluir quase todas as formas da atividade humana, desde as menores comoções da alma às maiores manobras militares; cada atividade demandava, a partir da sua própria especificidade, uma reflexão sobre como poderia ser melhor levada a cabo. "Melhor", nos diz Foucault, significava "da forma mais econômica." "A arte de governar ... preocupa-se com ... como introduzir a economia, quer dizer, a maneira correta de geren­ciar indivíduos, bens e riquezas dentro da família; como introduzir no gerenciamento do Estado esta atenção meticulosa do pai para com a sua família."2o

A primeira grande mudança portanto é de uma preocupação com a natureza do Estado e as preocupações per se do príncipe para uma consideração mais ampla e detalhada de como introduzir economia e ordem, isto é, governo, não somente nos altos níveis do Estado mas através de todos os aspectos da vida social. A sociedade estava se tornando um alvo político.

Uma vez compreeendida a conceitualização de Foucault sobre esta mudança, muitas enunciações aparentemente mundanas feitas por pequenos administradores adquirem uma nova importância. Como exemplo, Foucault cita o filósofo Guillaume de la Perriere no seu tratado Miroir de la Politique, de 1567: "governo é a correta

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40 • Antropologia da Razão

disposição das coisas, organizadas com o propósito de alcançar um fim conveniente." A articulação desta frase parece inócua; FoucauIt no entanto a lê como o indicativo de uma grande mudança no pensamento político. Ele aponta que, para as tradicionais teorias da soberania, havia uma conexão fundamental entre o soberano e o território; estava dado que o soberano governava tanto os habitantes quanto os recursos daquele território. O laço fundamental, a fonte de legitimidade do soberano, era sua conexão com um domínio. A definição de GuilIaume de la Perriere não menciona o território, a prioridade é dada à complexa relação entre homens e coisas. "Con­seqüentemente", conclui Foucault, "as coisas com as quais o gover­no deve se preocupar são homens, mas homens em suas relações, suas conexões, suas imbricações com riqueza, recursos, meios de subsistência, o território com suas qualidades específicas, clima, irrigação, fertilidade, etc.; homens em suas relações com coisas como costumes, hábitos, maneiras de fazer e de pensar, etc.; e por fim, homens em suas relações com coisas como acidentes e desgra­ças, isto é, fome, epidemias, morte, etc."2l As preocupações de um Estado bem governado (ou bem policiado, como seria chamado no século XVIII) agora se estendem desde o príncipe e sua conduta, através dos costumes do povo, até o próprio ambiente.

Estes tratados sobre o governo eram mais do que meros exercí­cios acadêmicos. Na França, a partir da segunda metade do século XVI, eles estavam diretamente conectados ao surgimento e ao cres­cimento de aparatos administrativos estatais centralizados. Foi so­mente um pouco mais tarde, no século XVII, que o conhecimento detalhado da disposição das coisas disponíveis, os diferentes "ele­mentos, dimensões e fatores de poder do Estado", foi batizado de "estatística": a ciência do Estado. Juntos, a arte de governar e o conhecimento empírico dos recursos e das condições do Estado, sua estatística, formaram os principais componentes de uma nova racio­nalidade política; uma racionalidade, assegura FoucauIt, da qual ainda não emergimos.

A atenção à população, à família e à economia durante a era clássica está relacionada com eventos históricos bem estudados que a escola Anna!es tomou famosos: "a expansão demográfica do século XVIII conectada com a histórica abundância monetária, por sua vez ligada à expansão da produção agrícola através de uma série

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de processos circulares."22 A contribuição de Foucault foi explicitar as conexões entre estas mudanças a longo prazo e certos processos políticos que foram sistematicamente minimizados pelos historiado­res dos Anna!es. Especificamente, ele ajudou a explicar padrões econômicos, demográficos e políticos da idade clássica, revelando assim decisões conscientes sendo feitas por administradores no que concerne às forças supostamente inconscientes analisadas pelos

historiadores !ongue durée. Quando o fomento da vida, o crescimento e o cuidado da popula­

ção tomam-se uma preocupação central do Estado, articulados na arte de governar, instala-se um novo regime de poder. FoucauIt chama este regime de biopoder; ele explica que o biopoder "trouxe a vida e os seus mecanismos para o domínio de cálculos explícitos e tomou saber-poder um agente de transformação da vida humana ... O homem moderno é um animal cuja política coloca a sua existência como ser vivo em questão."23 Biopoder coliga-se ao redor de dois pólos distintos no começo da idade clássica. Um pólo é a espécie humana: pela primeira vez na história, categorias científicas (espé­cies, população, fertilidade e assim por diante) ao invés de catego­rias jurídicas, tomam-se objeto de sistemática e contínua atenção e intervenção política. O outro pólo do biopoder é o corpo humano: o corpo tratado não diretamente na sua dimensão biológica, mas como um objeto a ser manipulado e controlado. Um novo conjunto de operações e procedimentos, estas junções de saber e poder que Foucault chama "tecnologias", reúne-se ao redor da objetificação do corpo; formam a "tecnologia disciplinadora" que Foucault analisa detalhadamente em Vigiar e punir.

O objetivo da tecnologia disciplinadora, qualquer que seja sua forma institucional (ela surgiu em cenas diferentes tais como ofici­nas de trabalho, escolas, prisões e hospitais), é forjar um "corpo dócil que possa ser sujeitado, usado, transformado e melhorado."24 Isto é feito de diversas maneiras relacionadas: através de instruções e treinamento do corpo, através da padronização das ações ao longo do tempo e através do controle do espaço. A disciplina procede da organização de indivíduos no espaço, requerendo portanto uma delimitação específica do mesmo. Uma vez estabelecido, este es­quema permite uma distribuição segura dos indivíduos a serem disciplinados e supervisionados. Numa fábrica, tal procedimento

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facilita a produtividade; numa escola, assegura comportamento dis­ciplinado; numa cidade, reduz o risco de multidões perigosas, vaga­bundos a esmo, ou doenças epidêmicas.

O controle disciplinador está inquestionavelmente ligado ao sur­gimento do capitalismo, mas a relação entre as mudanças econômi­cas que resultaram da acumulação de capital e as que resultaram da acumulação de poder precisam ser especificadas. Foucault argu­menta que os dois são mutuamente dependentes: "Cada qual faz o outro possível e necessário; cada qual provê o modelo para o outro": por exemplo "a massiva projeção de modelos militares na organiza­ção industrial foi um exemplo da esquematização da di visão de trabalho seguindo o modelo ditado pelos esquemas de poder."25 Em outras palavras, as tecnologias disciplinadoras precederam o capita­lismo moderno; segundo o argumento de Foucault, elas fazem parte das suas precondições. Sem o recurso às técnicas disciplinadoras para sujeitar os indivíduos, incluindo os arranjos espaciais necessá­rios e apropriados para a tarefa, as novas demandas do capitalismo teriam sido obstruídas. De maneira paralela, o capitalismo teria sido impossível sem a fixação, o controle e a distribuição racional de populações com base num conhecimento estatístico. O crescimento e a disseminação de mecanismos disciplinadores de saber e poder precederam o crescimento do capitalismo tanto no sentido lógico quanto temporal. Embora estas tecnologias não tenham causado o surgimento do capitalismo, foram os pré-requisitos para o seu suces­so.

No entanto, o crescimento do capitalismo não é o foco de Fou­cault; ele se interessa pelo sujeito e pelo poder, pela racionalidade política que os une. Podemos juntar estes temas num exemplo, talvez o mais famoso do repertório de Foucault: ele seleciona o plano do panóptico, de Jeremy Bentham, como o paradigma de uma tecnologia disciplinadora. Sua análise deste aparato serve como taquigrafia para as outras tecnologias por ele analisadas.

O panóptico oferece uma instância particularmente vívida de como as tecnologias políticas do corpo funcionam. É "um modelo de funcionamento generalizável; uma maneira de definir relações de poder em termos da vida cotidiana dos homens ... É o diagrama de um mecanismo de poder reduzido à sua forma ideal... é, de fato, uma figura de tecnologia política que pode e deve ser desprendida de

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qualquer uso específico."26 É também uma organização particular de espaço e seres humanos, uma ordem visual que clarifica os mecanis­mos de poder que estão sendo empregados.

O panóptico consiste num grande pátio com uma torre no centro, circundado por uma série de prédios divididos em níveis e celas. Em cada cela há duas janelas: uma traz luz para dentro e a outra confronta a torre onde grandes janelas observatórias permitem a vigilância das celas. As celas tornam-se "pequenos teatros nos quais cada ator está só, perfeitamente individualizado e constantemente visível."27 O prisioneiro é visível somente pelo supervisor; está separado de qualquer outro contato. Este novo poder é contínuo e anônimo. Qualquer pessoa poderia operar os mecanismos arquitetô­nicos contanto que estivesse na posição correta; e qualquer pessoa poderia estar sujeita a estes mecanismos. O vigia poderia facilmente estar observando tanto um criminoso, um aluno, ou uma esposa (Bentham sugere, aparentemente sem humor, que o panóptico pode­ria ser uma disposição extremamente efetiva para um harém, já que dispensaria os eunucos necessários para vigiar as mulheres nas celas).

A perfeição arquitetônica é tal que, mesmo não havendo guardas presentes, o aparato de poder funciona efetivamente; como o prisio­neiro não pode ver se o guarda está ou não na torre, ele deve comportar-se como se a vigilância fosse perpétua e total. Se o prisioneiro nunca está certo de quando está sendo observado, ele se torna seu próprio guardião. Como último degrau em perfeição arqui­tetônica e tecnológica, o panóptico inclui um sistema de observação e controle dos controladores: aqueles que ocupam a posição central no panóptico também estão completamente enredados na localiza­ção e ordenação do seu próprio comportamento. "Talvez este seja o aspecto mais diabólico desta idéia e de todas as aplicações que ela viabilizou", comenta Foucault. "Nesta forma de gerenciamento, o poder não é imputado de forma total a alguém que sozinho poderia exercê-lo sobre os outros de uma maneira absoluta; pelo contrário, esta máquina é tal que cada qual está enredado, tanto os que exerci­tam este poder quanto aqueles que estão sujeitos a ele. "28

Então, através de um ordenamento espacial, o panóptico agrupa o poder, o controle do corpo, o controle de grupos e o saber (na sua cela o prisioneiro é sistematicamente observado e examinado). Ele

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localiza indivíduos no espaço numa organização hierárquica e efi­cientemente visível. Embora o esquema de Bentham nunca tenha sido inteiramente implementado e suas numerosas adaptações não tenham (como veremos) operado tão eficientemente quanto ele pretendia, ainda assim para Foucault este é um desenvolvimento crucial. "O funcionamento automático do poder, sua operação me­cânica, não é absolutamente a tese de Vigiar e punir: é, no século

XVIII, a idéia de que tal forma de poder é possível e desejável. É a procura teórica e prática de tais mecanismos, a vontade constante­mente atestada de organizar este tipo de mecanismo que constitui o objeto da minha análise. "29

Uma racionalidade particular acompanha a tecnologia panóptica: ela é auto-suficiente e não-teórica, está voltada à eficiência e à produtividade. Para Bentham, o panóptico tinha a vantagem de ser utilitário, capaz de servir a propósitos múltiplos em cenas variadas. O panóptico parecia não impor padrão de julgamento ou seguir qualquer programa particular; objetivava ser um instrumento para a distribuição de indivíduos no espaço, para a sua ordenação visível, daí o seu potencial generalizador.

Foucault no entanto aponta para uma racionalidade adicional embutida no projeto do panóptico: ele oferecia não somente uma lógica de eficiência, mas também de normalização. Para Foucault, "normalização" é um sistema de intervalos mensuráveis, graduados de forma precisa e sutil, nos quais os indivíduos podem ser distri­buídos ao redor de uma norma que organiza esta distribuição con­trolada e que é também o seu resultado. Um sistema de normalização está em oposição a um sistema legal ou de poder pessoal; não há pivôs fixos a partir dos quais se fazem julgamentos e se impõem vontades. Ordem normativa e serializada (para usar o termo sartria­no) é um componente essencial do regime do biopoder, pois "um poder cuja tarefa é controlar a vida necessita de mecanismos contí­nuos de regulação e correção ... Tal poder tem que qualificar, medir, avaliar e hierarquizar ao invés de exibir-se no seu esplendor assas­sino ... ele efetiva distribuições ao redor da norma ... A instituição jurídica é incorporada de forma crescente num contínuo de aparatos (médicos, administrativos, etc.) cujas funções são prioritariamente regulatórias."30

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Esta racionalidade normativa gradualmente minou e "invadiu" (como um parasita invade um corpo) tanto os excessos do poder sobe'rano quanto, e isto é ainda mais importante, os procedimentos da lei (assim como o parasita, sem eliminá-los). A entrada da medi­cina, da psiquiatria e de outras ciências sociais nas deliberações legais do século XIX levou ao que Foucault chama de sistemática "normalização" da lei, isto é, a um crescente apelo a medidas estatísticas e a julgamentos acerca do que é normal e do que não é em dada população, ao invés da aderência a medidas absolutas do que é certo ou errado. Sob o regime do biopoder, nem o soberano nem a lei, ni roi, ni loi, escapam da disseminação da racionalidade normativa. "Há dois significados da palavra sujeito", escreve Fou­cault, "sujeito a algum outro através de controle e de dependência, e atado à sua própria identidade através de uma consciência ou autoconhecimento. Ambos os sentidos sugerem uma forma de poder que subjuga e que faz alguém sujeito a."ll

Essencial às tecnologias de normalização é o papel-chave que elas desempenham na sistemática criação, classificação e controle de "anomalias" no corpo social. Sua raison d' être vem de duas reivindicações dos seus promotores: primeiro que certas tecnologias servem para isolar anomalias, e segundo que é possível normaJizá­las através de procedimentos corretivos ou terapêuticos, determina­dos por outras tecnologias relacionadas. Em ambos os casos, as tecnologias de normalização são técnicas supostamente imparciais no trato de perigosos desvios sociais. Entretanto, como Foucault mostra detalhadamente em Vigiar e punir e em A história da sexua­lidade, o avanço do biopoder no século XIX é contemporâneo ao surgimento e à proliferação das categorias modernas de anomalia (o delinqüente, o perverso) que as tecnologias da disciplina e da con­fissão pretendem eliminar, mas que nunca o fazem. Na leitura de Foucault: "A implementação de perversões num efeito-instrumento: é através do isolamento, da intensificação e da consolidação de sexualidades periféricas que as relações do poder com o sexo e o prazer se ramificaram e multiplicaram, mediram o corpo e permea­ram modos de conduta."'2 A meta de um bom governo é a correta disposição das coisas, mesmo que tenham que ser inventadas para

poderem ser bem governadas.

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Com o século XIX, a possibilidade de conhecer e controlar os aspectos mais detalhados do comportamento em nome do bem-estar da população está presente, pelo menos em princípio, embora isto nunca seja inteiramente realizado. Um amplo aparato documental toma-se parte essencial das tecnologias normalizadoras: dossiês precisos capacitam as autoridades a fixar indivíduos numa teia de codificação objetiva; um conhecimento individual mais preciso e estatisticamente mais acurado leva a critérios de normalização mais sutis e abrangentes. Este acúmulo de documentação toma possível "a mediação de fenômenos gerais, a descrição de grupos, a caracte­rização de fatos coletivos, o cálculo de interstícios entre indivíduos, sua distribuição numa certa 'população"'33 O poder do Estado de produzir uma teia de controle totalizante está interconectado com e depende da sua habilidade de produzir uma crescente especificação da individualidade.

Foucault não reivindica que este poder totalizante e individuali­zante tenha empiricamente tomado conta de tudo, nem que seja inelutável, e ainda assim esta crescente sujeição não é um mero sonho. Foucault tem sido questionado: "O que pode ser feito face à propagação desta rede de poder?" Embora tenha sido reticente quanto a uma possível advocacia, ele oferece de tempos em tempos avaliações gerais. Aqui está uma: "Talvez o alvo hoje em dia não seja descobrir O que somos, mas recusar o que somos. Temos que imaginar e construir o que poderíamos ser para nos livrar de uma 'dupla obrigação' política, que é a simultânea individualização e a totalização das modernas estruturas de poder. Talvez o problema político, ético, social e filosófico do presente não seja tentar libertar o indivíduo do Estado e de suas instituições, mas liberar-nos tanto do Estado quanto do tipo de individualização que está ligada ao Estado. Temos que promover novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de individualidade que tem sido imposta sobre nós ao longo dos séculos. "34 .

De uma forma geral, as implicações práticas deste desafio não foram exploradas por Foucault nos seus escritos, pelo menos não de uma forma extensa. Se analisássemos atividades políticas suas nos últimos vinte anos, teríamos uma indicação do escopo das lutas contra a totalização e a objetificação do sujeito. Mas nestas lutas ele

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tem sido um cidadão como qualquer outro, não reivindicando direi­tos especiais para si, nem qualquer relação direta e privilegiada entre o seu trabalho intelectual e as suas ações.

A localização do autor

É de fato extremamente difícil tentar situar Foucault como um porta-voz intelectual propondo uma mensagem específica. Ele não é um profeta intelectual. Diferente de Jean-Paul Sartre, não se arroga a falar a voz da Razão, da Justiça, do Progresso, de Posições Objetivamente Melhores, ou mesmo da Futilidade. Em diversas ocasiões, por exemplo em Verdade e poder, Foucault pronunciou na mais relutante das vozes proféticas o fim da profecia intelectual, mas este é o limite dos seus pronunciamentos délficos. Na sua opinião, o intelectual universal, cuja tarefa é falar a verdade ao poder em nome da universalidade da razão, da justiça e da humanidade, não é mais uma figura cultural viável, o reinado deste indivíduo passou, Sartre foi o último titular deste cargo. Há uma certa contradição na segurança com que Foucault oferece tal predição: baseado em que posição privilegiada e a partir de que fontes de saber ele afirma que a figura do intelectual universal saiu da cena histórica?

Mas Foucault não é um biólogo ou físico, tampouco é um homem da ciência. Tais cientistas ocupam as posições-chave do intelectual específico (o termo de Foucault que designa aqueles especialistas setoriais dos quais nosso futuro depende e que devem falar conosco a partir dos seus laboratórios). Eles não têm o direito especial de representar a razão; a autoridade das suas vozes reside no fato de que o seu trabalho e o nosso destino estão interconectados. O intelectual específico é "aquele que, junto com um punhado de outros, seja a favor ou contra o Estado, tem à sua disposição poderes que podem beneficiar ou irrevogavelmente destruir a vida. Ele não é mais o rapsodista do eterno, mas o estrategista da vida e da morte."35 Como um professor que teve a Cátedra de História dos Sistemas de Pensa­mento no College de France, Foucault evidentemente acumulou certo prestígio, mas ele obviamente não é "um estrategista da vida e da morte". ainda que tenha se tomado seu historiador.

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Foucault também não participou do jogo parisiense ao redor do assim chamado "escritor"; nos últimos anos o "escritor" substituiu o intelectual universal. Embora não tenham mais o poder e a influên­cia de Emile Zola, Victor Hugo ou mesmo André Gide, tais figuras, os escritores, ainda são pessoas visíveis e influentes na França contemporânea. O novo regime socialista, muito consciente das suas relações com os intelectuais e o seu lugar na história, optou por dar proeminência a dois tipos de intelectuais: escritores e tecnocratas. Um dos primeiros atos do presidente François Mitterrand foi outor­gar, em nome do universalismo francês, a cidadania a dois escritores exilados de regimes totalitários; seu influente e ambicioso ministro de pesquisas celebrou os tecnocratas franceses, declarando que a energia nuclear e a engenharia biológica são os setores-chave a

serem desenvolvidos pelo socialismo. Se a sua autoridade não emana da Razão, da Justiça, da Ciência,

da Arte Cortesã, de onde então ela emana? No seu ensaio "O que é um Autor?", Foucault apresenta alguns elementos para uma possível resposta. Ele faz uma distinção exemplar entre a cambiante impor­tância histórica do autor na literatura e na ciência. Ele indica que, no Ocidente, até o século XVII, o texto científico era associado ao autor, e legitimado pela sua celebridade e autoridade: "Estes textos que nós hoje chamaríamos de científicos, os que lidam com a cosmologia e os céus, a medicina e as doenças, as ciências naturais e a geografia, eram aceitos na Idade Média como sendo 'verdadei­ros' somente quando estavam marcados como nome do seu autor."36 Esta situação obviamente mudou. Uma vez que estas disciplinas cruzaram o limiar da "formalização", isto é, desenvolveram com sucesso procedimentos conceituais, evidências, verificações, etc., o nome do autor deixou de ser central à autoridade do texto, a verdade

tornou-se mais anônima. Simplificando, na literatura encontramos uma trajetória inversa.

Durante a Idade Média "os textos que nós hoje chamamos de "literatura" (narrativas, estórias, épicos, tragédias, comédias) eram aceitos, postos em' circulação e valorizados sem quaisquer questio­namentos acerca da identidade dos seus autores~ seu anonimato não causava dificuldades, já que sua antigüidade, real ou imaginada, era considerada como uma garantia suficiente do seu status."3? Entre­tanto, a partir do século XIX, a literatura com L maiúsculo emergiu

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como uma atividade autônoma e altamente valorizada, com um lugar próprio na cena intelectual (vide Writing Degree Zero de Roland Barthes). A autoridade do autor continuou a crescer nas produções literárias. A identificação e a avaliação de um trabalho literário estão intimamente ligadas à fama, à posição e à reputação do seu autor, bem como ao mundo intelectual que gravita em direção ao poder.

Foucault alude brevemente a um terceiro tipo de localização autoral: os "fundadores de discursividade" são estas figuras raras, pensadores sociais. Ele menciona especificamente Karl Marx e Sigmund Freud. Para Foucault, estes "fundadores" são figuras que oferecem um conjunto paradigmático de termos, imagens e concei­tos que organizam o pensamento e a experiência do passado, do presente e do futuro da sociedade, e fazem isso de uma maneira que enigmaticamente ultrapassa as reivindicações específicas que eles propõem. Este status é específico às ciências sociais. Enquanto os textos originais das ciências biológicas ou físicas (por exemplo, as equações de James Clerk Maxwell ou de Albert Einstein) são com­pletamente absorvidos e ultrapassados pelo trabalho científico que os sucede, este não é o caso das ciências humanas,

FoucauIt não está insinuando que o progresso é uni linear nas ciências naturais, ele somente enfatiza que certo tipo de sistema discursivo é característico destas disciplinas, e que outro sistema é característico das ciências humanas contemporâneas. Nestas, en­contra-se um retomo constante aos textos de certos "fundadores de discursividade", a despeito de avanços no conteúdo factual, na verificação de hipóteses e no método. Mostrar as inconsistências em Freud ou o fracasso das predições de Marx não destruiu a psicanálise nem o marxismo. Foucault observa: "Expandir um tipo de discursi­vidade, tal como a psicanálise fundada por Freud, não implica em lhe conferir uma generalidade formal que ela não teria permitido desde o princípio, mas implica abri-la para um certo número de aplicações ... Além do mais as proposições básicas destes fundadores não são declaradas falsas, apenas as afirmações que não são perti­nentes são postas de lado ... Reexaminar textos de Freud modifica a própria psicanálise, assim como a releitura de Marx modificaria o marxismo."3' Foucault não está endossando, celebrando ou lamen-

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tando esta curiosa formação discursiva nas ciências humanas, ele está indicando a sua existência e nisto ele é, de novo, original.

Aposto que o próprio Michel Foucault bem poderia ser um destes "fundadores de discursividade", Tendo sido feito este julgamento, ele deve ser imediatamente modificado, Se, no futuro, o trabalho de Foucault funcionar de fato como um organizador central de discur­sos sociais, isto será feito de uma maneira discursiva, institucional, política, e eu arriscaria dizer psicológica, radicalmente diferente dos trabalhos de Marx e Freud, Não vejo Foucault como a única figura com tal status; comparações interessantes podem ser feitas com Thomas Kuhn e Max Weber (nenhum deles teve influência direta sobre Foucault),

Existem paralelos flagrantes no conteúdo dos trabalhos de Fou­cault e de Kuhn, nas suas ênfases sobre como a reflexão e a pesquisa científica são organizadas, operam e mudam,39 Ainda que ambos tenham sido entusiasticamente recebidos, eles evitaram a constru­ção de impérios, Ao mesmo tempo, uma rajada de críticas negativas e hostis, correções mesquinhas têm acompanhado a crescente in­fluência das novas indagações oriundas do trabalho de ambos, Esta reação parece indicar tanto uma importante mudança no nosso estilo discursivo contemporâneo quanto o surgimento de uma maneira radicalmente diferente de se fazer pesquisa, As perguntas de Kuhn e de Foucault se estendem das ciências humanas sobre as suposta­mente sólidas e imparciais ciências naturais. O que mais enfurece os empiricistas "pé no chão" é que o pensamento de Foucault e de Kuhn surgiu da habilidade sistemática de compreender exatamente aqueles fenômenos de "práticas compartilhadas", "matrizes discipli­nadaras", "malícias mesquinhas" que constituem parcialmente a atividade científica, embora não a esgotem,

Qualquer que seja o impacto a longo prazo do trabalho de Kuhn, seu escopo e temas são mais limitados e inerentemente diferentes dos de Foucault, e é neste contexto que apresento a comparação com Max Weber. Foucault e Weber têm uma clareza sobre o nosso pesadelo histórico; nos termos de Weber, o "poderoso cosmos da ordem econômica moderna", a gaiola de ferro na qual especialistas sem espírito, sensualistas sem coração estão presos na ilusão de que alcançaram um nível de desenvolvimento nunca antes atingido pela humanidade,"4o É historicamente significativo que Weber tenha

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vindo da tradição nacionalista liberal da academia alemã e Foucault dos estilhaços radicais da intelligentsia francesa, mas isto não impe­de a comparação, pois nenhum destes homens pode ser capturado por - ou reduzido a - estas caracterizações. Weber, embora fre­qüentemente tido como um conservador, oferece um relato devasta­dor do capitalismo moderno que certamente não sugere que ele quisesse preservá-lo na sua totalidade, Foucault é tido como um conservador por ter-se oposto sistematicamente ao marxismo fran­cês moderno, ao "socialismo existente", e àquelas utopias e pesade­los associados com esta tradição,

Mas tais rótulos nos dizem muito pouco, O que tanto Weber quanto Foucault apresentam, de uma maneira pessimista e lúgubre no caso de Weber e de uma maneira esquiva e momentaneamente livre em Foucault, é uma recusa heróica de senti mentalizar o passa­do ou de evitar a necessidade de confrontar o futuro como sendo perigoso, mas aberto, Ambos comprometeram suas vidas com a escrupulosa, senão ortodoxa, confecção de instrumentos intelectuais para a análise da racionalidade, da organização social e econômicá e da subjetividade moderna, Ambos consideram um certo historicis­mo crítico como sendo o único caminho para se preservar a razão e a obrigação, entendida diferentemente por Weber e por Foucault, de forjar uma ética ascética de responsabilidade científica e política como sendo a mais alta tarefa do intelectual maduro.

Notas

I. In Paul Rabinow (ed.), The Foucault Reader, New York, Pantheon Books. '1984.

2. "Human Nature: Justice versus Power - A Discussion between Michel Foucault and Noam Chomsky" in Fons Elder (ed.), Reflexive Water: The Basie Coneerns of Mankind, London, Souvenir Press, 1974.

3. Ibidem, p. 136, 140. 4. Ibidem, p. 140, 160. 5. Ibidem, p. 172. 6. Ibidem, p. 171. 7. Ibidem, p. 187. 8. Michel Foucault, "Nietzsche, Genealogy, History" in D.E Bouchard (ed.),

Language, Counter-Memory, Praetiee: Seleeted Essays and Interviews,

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52 • Antropologia da Razão

Ithaca, Comell University Press, 1977, p. 163. Vide também Paul Rabinow, The Foucault Reader, New York, Pantheon Books, 1984, p. 95.

9. Michel Foucault, "Howison Lectures", Berkeley, 20 de outubro de 1980. 10. Michel Foucault, 'lhe Subject and Power", in Hubert Dreyfus e Paul

Rabinow, Michel Foucault: Beyond Structuralism and Hermeneutics, Chi­cago, University ofChicago Press, 1982, p. 208.

I!. Idem. 12. Idem. 13. Idem. 14. Foucault, "Howison Lectures". 15. Colin Gordon, "Afterword", in PowerlKnowledge. New York, Pantheon

Books, 1980, p. 230, 231. 16. Vide Jürgen Habermas "Modernity versus Postrnodernity", New German

Critique, n° 22, Winter 1981, p. 13. 17. Foucault, 'íbe Subject and Power", p. 210. 18. Michel Foucault, ·'Space. Knowledge and Power: An Interview with Mi­

chel Foucault by Paul Rabinow", Skyline, março de 1982, p. 19; vide também Rabinow, The Foucault Reader, p. 239.

19. Foucault, "The Subject and Power", p. 213. 20. Michel Foucault, "On Governmentality" in Ideology and Consciousness,

nO 6,1979, p. 8,10. 21. Ibidem, p. 10, I!. 22. Ibidem, p. lI. 23. Michel Foucault, The History of Sexuality, Vol. I. New York, Pantheon

Books, 1978, p. 143 (também no Foucoult Reoder, p. 164-65). 24. Michel Foucault, Discipline and Punish, New York, Vintage Books, 1979,

p.198. 25. Ibidem, p. 221; também no Foucoult Reader, p. 209, 210. 26. Ibidem, p. 205. 27. Ibidem, p. 200. 28. Michel Foucault, 'lhe Eye of Power", in PowerlKnowledge. p. 156. 29. Michel Foucault in Michelle Perrot, L'lmpossible Prison, Paris, Editions

du Seuil, 1980, p. 37. 30. Foucault, History of Sexuality, Volume I, New York, Vintage Books, 1980,

p. 144 (também no Foucoult Reoder, p. 266, 267). 31. Foucault, "Subject and Power", p. 212. 32. Foucault, History of Sexuality, p. 48 (também no Foucau/t Reader, p. 327,

328). 33. Foucault, Discipline and Punish. p. 190 (também no Foucau/t Reader, p.

202,203). 34. Foucault, "The Subject and Power", p. 216. 35. Michel Foucault, 'lruth and Power" in PowerlKnowledge, p. 129 (também

no Foucau/t Reader. p. 70).

Sujeito, saber/poder, governamentalidade • 53

36. Michel Foucault, "What is an Author?" in Josue V. Harari, ed., Textual Strategies, Ithaca. ComeU University Press, 1979, p. 149 (também no Foucoult Reoder, p. 108, 109).

37. Idem. 38. Ibidem, p. 156, 157 (também no Foucou/t Reoder, p. 116, 117). 39. Para uma discussão mais detalhada destas questões vide Dreyfus e Rabi­

nOw, Michel Foucault: Beyond Structuralism and Hermeneutics, Berkeley, University of Califomia Press, 1983.

40. Max Weber, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, New York, Scribner's & Sons, 1948, p. 182.

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o que é maturidade? Habermas e Foucault sobre

"O que é Iluminismo?" 1

Duzentos anos atrás, em 1784, Kant respondeu à questão formulada por um jornal de Berlim: "O que é Iluminismo?" equacionando-o à obtenção da maturidade através do uso da

razão. Desde então, o significado desta asserção tem sido debatido periodicamente. Hoje esta questão foi novamente posta na arena pública pelos dois pensadores que poderiam ser legitimamente cha­mados de herdeiros do debate, porque representam duas maneiras igualmente sérias e persuasivas de reinterpretar a vida filosófica através da compreensão da relação entre a razão e o momento histórico. A questão também é debatida por aqueles antipensadores que, em nome do pós-iluminismo e do discurso pós-moderno, ques­tionam a seriedade em geral. Este artigo lida prioritariamente com o confronto acerca da noção de seriedade que tem oposto Michel Foucault e Jürgen Habermas em vista do legado do Iluminismo. A morte recente de Foucault interrompeu repentinamente este emer­gente e importante debate sobre a relação entre sociedade, razão crítica e modernidade. Entretanto, ainda que Foucault estivesse vivo, este debate provavelmente não se tomaria um verdadeiro diálogo, porque tanto ele quanto Habermas entendem estes termos e seu relacionamento de maneira incompatível. Ambos consideram que a sociedade é de certa maneira algo fundamental, mas diferem profundamente quanto ao que é a sociedade moderna e ao que ela poderia ser. Ambos reconhecem que o entendimento da razão crítica é uma tarefa essencial da filosofia contemporânea, mas entendem a

55

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56 • Antropologia da Razão

crítica e a razão de modos radicalmente diferentes. Ambos concor­dam com Kant que a maturidade é a tarefa da era moderna, porém os conceitos de modernidade e maturidade de Habermas e de Fou­cault estão em clara oposição; finalmente os dois opõem-se aos antipensadores.

Foucault e Habermas concordam com Kant que a razão crítica começa com a rejeição do projeto ocidental de desenvolver uma teoria que refletisse verdades universais substantivas a respeito da natureza humana; também concordam com Kant que o problema da ação moral e dos vínculos sociais deve ser encarado de outra forma, uma vez revelada a perda da autoridade da religião e da metafísica. Foucault e Habermas concordam que a maturidade consiste no fato do homem assumir a responsabilidade de sua racionalidade crítica e que a racionalidade crítica consiste no firme exame das nossas mais preciosas e confortadoras suposições. Desta maneira. Kant foi capaz de articular uma mudança fundamental que estava ocorrendo no pensamento ocidental - o que ainda garante à sua filosofia uma contemporânea relevância.

Daqui em diante, a interpretação de Foucault e a de Habermas do significado de razão crítica, sociedade e modernidade e suas rela­ções divergem dramaticamente. Para Habermas, a modernidade de Kant consiste no seu reconhecimento dos limites da razão, isto é, na sua rejeição às pretensões dogmáticas da razão em fornecer verda­des a respeito da realidade transcendente. A maturidade em Kant consiste em nos mostrar como salvar o poder crítico e transcendental da razão e assim evidenciar a grande conquista do Iluminismo: o triunfo da razão sobre a superstição, 6costume e o despotismo.

A versão atualizada por Habermas da filosofia de Kant reivindica que a tentativa pré-crítica de oferecer um fundamento metafísico pode ser substituída por uma análise das condições nas quais uma comunidade de fala ideal (pressuposta em todos os usos da lingua­gem) pode ser realizada. Habermas argumenta que esta análise das condições nas quais a verdade é validada seria o caminho para unificar a razão crítica e as preocupações sociais, e assim responder ao desafio de Kant. Esta explicação do uso comunicativo da lingua­gem é essencialmente intelectualista. Segundo Habermas, a meta é alcançar um acordo sobre a validade de asserções, tendo por base as razões oferecidas na justificação do conteúdo proposicional, a vera-

o que é maturidade? • 57

cidade e a sinceridade da expressão intencional, e a exatidão ou adequação do ato da fala. A análise destas condições sociais univer­sais, necessárias para um uso não distorcido da linguagem, oferece o critério normativo através do qual se pode avaliar a organização social. A imaturidade para Habermas é o fracasso em reconhecer e avançar uma crescente explicitação das "suposições" subjacentes às práticas comunicativas. Isto nos deixa expostos à perigosa sedução da phronesis, arte e retórica, a modos de comunicação e de acordos que, segundo Habermas, nossa cultura tornou anacrônicos. Maturi­dade consiste em esclarecer a forma assumida pelas organizações sociais em uma dada época, julgando a sua capacidade para promo­ver a comunidade humana, e assumindo a responsabilidade tanto pela maneira como estas organizações se estruturam, como por torná-las mais adequadas.

Para Habermas, portanto, o problema da modernidade é um problema histórico singular que consiste em preservar o primado da razão, articulado mais recentemente e de forma mais completa na crítica iluminista de Kant, enquanto confrontava a perda da funda­mentação metafísica das nossas crenças substantivas. Maturidade é a descoberta da base quase transcendental da comunidade, comO sendo tudo o que temos e tudo o que necessitamos para a reflexão filosófica e a dignidade humana.

Foucault, assim como Habermas, argumenta que a nossa moder­nidade começa com a tentativa de Kant de tomar a razão crítica, isto é, de estabelecer os limites e o uso legítimo da razão. Mas a tentativa de Kant de mostrar que este uso crítico da razão é a sua verdadeira natureza universal não é o que Foucault considera como original e importante. Ele não nega que Kant tenta preservar o papel normativo da razão face ao colapso da metafísica, mas ao invés de vê-lo anunciando uma solução universal, Foucault utiliza o ensaio de Kant como um diagnóstico de uma conjuntura particular. O que Foucault percebe como distinto e perspicaz no ensaio de Kant é um filósofo, qua filósofo, dando-se conta, pela primeira vez, de que o seu pensa­mento é uma tentativa de responder à sua situação histórica. Nos termos de Kant, assumimos a nossa responsabilidaclé em relação aos atuais problemas sociais e políticos como "uma engrenagem de uma máquina" - só que fazemos isto não em termos de conteúdo, mas determinando em que medida as nossas propostas atuais promovem

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58 • Antropologia da Razão

procedimentos universais ou a racionalidade crítica. Graças a esta virada transcendental, podemos heroicamente desistir da nossa de­pendência da religião e da metafísica como base para a justificação e crítica das práticas de uma época, mantendo assim a possibilidade de um julgamento normativo universal, a-histórico, em relação à forma da nossa sociedade, apreciando as bem disciplinadas tropas de Frederico.

Foucault reinterpreta a ligação feita por Kant entre o momento histórico, a razão crítica e a sociedade como um desafio para desen­volver a versão radicalmente nova do que significa viver uma vida filosófica.

*

"A ontologia crítica de nós mesmos certamente não deve ser considerada como uma teoria, uma doutrina, ou até mesmo um corpo permanente de saber acumulativo; deve ser concebida como uma atitude, um ethos, uma vida filosófica na qual a crítica do que somos é ao mesmo tempo a análise dos limites que nos são impostos e a experimentação com a possibilidade de ir além deles."2 Esta ontologia crítica tem dois componentes separados mas relacionados: trabalhar sobre si mesmo e responder à especificidade do presente.

Como um exemplo moderno do trabalho sobre si mesmo, Fou­cault aponta para o endosso de Baudelaire "do ascetismo do dândi que faz de seu corpo, seu comportamento, seus sentimentos e paixõ­es, sua própria existência, uma obra de arte". Foucault escreve: "O homem moderno, para Baudelaire, não é aquele que procura desco­brir a si mesmo, seus segredos e sua verdade escondida; é o homem que tenta inventar a si mesmo. Esta modernidade não 'libera o homem do seu próprio ser'; ela o compele a encarar a tarefa de produzir a si mesmo."3 Como o dândi e o existencialista, Foucault parte de um ethos que renuncia ao governo da religião, da lei e da ciência, enquanto também renuncia a dedicar-se ao descobrimento da verdade profunda do self que cada uma destas esferas, à sua maneira, encoraja.

Para Foucault, uma ética não procura salvar toda uma cultura, ou, como o existencialismo, salvar o indivíduo daquilo que Kierkegaard

o que é maturidade? • 59

considerou como o irreversível nivelamento da época presente. Também distinto do primeiro Heidegger, Foucault pensa que a verdade profunda da existência humana é que não há nenhuma verdade profunda, de modo que a maturidade consiste em encarar a falta de fundamento do ser no mundo. Apesar da insinuação do ideal sartriano do sujeito doador de sentido encarando autenticamente o seu próprio nada, Foucault nunca leu a nossa situação atual como sendo a da condição humana; também não baseou a ética sobre uma vida entendida autenticamente em termos de uma presumida reali­dade humana universal. Este projeto, compartilhado pelo primeiro Heidegger, Sartre e Habermas, identifica a maturidade com a acei­tação das estruturas universais da existência humana, reveladas pela filosofia ocidental, e assim exclui o diálogo em termos igualitários com outras maneiras de ser humano, tornando a maturidade condi­cionada ao reconhecimento destas condições universais. Obviamen­te esta não é uma posição compartilhada por Foucault.

Para Baudelaire, e para Sartre no seu período inicial, inventar a si próprio não muda a sociedade mas, pelo menos, afronta-a. Foucault entretanto não está procurando fazer da sua vida um ultraje, nem fornecer um exemplo à imitação direta. Testando limites, ele procura ser sensível ao que é intolerável em nossa situação atual, a fim de estruturar o problema geral e materializar um estilo de ação que nos permita ver a existência de significativas diferenças entre os tipos de sociedade que podemos ter; e também que há maneiras de ser humano dignas de estímulo, e outras merecedoras de oposição. Habermas porém pergunta: como pode Foucault legitimamente fa­zer tais julgamentos normativos, uma vez que a maturidade é defi­nida como o abandono da dependência tanto da autoridade da lei, da religião e da ciência, quanto das pretensões universais formuladas pelos filósofos? Segundo esta perspectiva, a proposta de Foucault de uma teoria política sem justificação é puro decisionismo.

Habermas destaca essa posição aparentemente arbitrária em suas conferências sobre Foucault.4 Ele destaca o que entende ser uma tensão irresolvida entre, por um lado o intenso compromisso político e ético de Foucault, e por outro a sua habilidade qua arqueólogo de encarar as mais significativas preocupações de nossa sociedade com uma indiferença pasmada. A sofisticada e sutil - mas não muito bem conceitualizada - postura irônica de Foucault em relação ao

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60 • Antropologia da Razão

presente é fatalmente vista como paradoxal pelos que concordam com Kant em identificar a maturidade com a aceitação dos limites da razão, a fim de preservar a tradicional seriedade filosófica. Esta é uma questão que discutimos com Foucault em algumas ocasiões - uma questão tão proximamente associada ao seu trabalho e à sua vida que ele, freqüentemente, não foi claro acerca dela. Entretanto, como procuraremos mostrar, a interpretação de que Foucault faz reivindicações normativas teoricamente injustificadas e de que ele assume posições políticas não argumentadas, embora plausíveis (e por vezes encontrando eco nas suas entrevistas e conversas), não é consistente com a sua abordagem geral.

Enquanto os herdeiros da filosofia alemã atacam Foucault por ser arbitrário e sem fundamento, os pós-filósofos franceses (e seus seguidores na crítica literária americana) o atacam por não ser suficientemente arbitrário. FoucauIt, em certo momento, entendeu o papel subversivo da linguagem e do desejo, mas quando começou a investigar as práticas não discursivas e o papel produtivo do poder, tanto a forma quanto o conteúdo do seu trabalho parecem ter se aproximado de maneira perigosa das normas de clareza e análise tradicionalmente aceitas. Todavia Habermas está certo: Foucault não está seguindo a tradição filosófica de usar a linguagem para representar a realidade, nem está usando a linguagem como um veículo para uma comunicação não distorcida. Mas,pace Habennas, Foucault também não está pronto a entregar-se ao livre jogo dos significantes auto-referentes. Para aqueles que concebem a lingua­gem como falando somente para si mesma e falando sobre si mesma através de nós é, como Leo Bersani colocou numa linguagem típica desta tendência, "[como] se ele estivesse procurando uma nova e dessexualizada austeridade no próprio ato de escrever, para se esqui­var do exuberante desespero de ser pego, penetrado, e possuído, por uma linguagem ao mesmo tempo inevitavelmente íntima e estra­nha."5 Na verdade, em vez de desconstruir textos para revelar suas tentativas de esconder a auto-referência às suas próprias textualida­des, Foucault utiliza textos como indícios de outras práticas sociais. De fato, como os retóricos pré-platônicos, Foucault utiliza a lingua­gem para articular um entendimento da nossa situação que nos leve à ação.

o que é maturidade? • 61

Já emAs palavras e as coisas, ao analisar o cogito e o impensado, Foucault mostrou como a convicção filosófica de um sujeito autô­nomo doador de sentido se encontra necessariamente envolvida na tarefa infinita de elucidar as suas próprias e impensadas fundações. Ele foi claro: esta tarefa infinita levanta uma questão sobre o cogito. Mas, ao mesmo tempo, Foucault sugeriu que o que resiste à repre­sentação oferece a esperança de uma saída da analítica da finitude. Ele compartilhava a interpretação lacaniana da psicanálise como a descoberta "( ... ) da região onde a representação permanece em suspenso ( ... ) e onde conflitos e regras [encontram] suas fundações na pura abertura do desejo ... "6 Mas ele dedicou a última década da sua vida a repensar esta posição.

A partir do momento em que Foucault focalizou sua atenção na dimensão produtiva das relações de poder e formulou a hipótese repressiva como parte do problema, ele reinterpretou genealogica­mente a analítica da finitude, não meramente como uma estrutura epistêmica, mas também como um estágio na constituição do ho­mem ocidental como sujeit%bjeto. Assim, Foucault procurou se "livrar de um esquema de pensamento então corrente".7 Começou a construir uma interpretação na qual a oposição entre a lei e o desejo sem sentido era entendida como um fenômeno histórico que o tinha formado assim como todos os outros. Isto foi o que tornou aparen­temente plausível, quiçá verdadeira, a visão freudiana de que existe uma estrutura do sujeito humano; o que para Foucault significaria colocar "fora do campo histórico o desejo e o sujeito do desejo".8 Invertendo a relação entre a pergunta e a resposta, Foucault come­çou a investigar como se pressupôs que sujeitos, desejos e interdi­ções fossem tomados como conceitos para explicar a história e a sociedade. O problema interpretativo central para Foucault tomou­se a constituição de nós mesmos como homens de desejo, a partir das práticas cristãs de confissão até a hermenêutica freudiana da sexualidade.

Foucault não está tentando construir uma teoria geral, nem des­construir a possibilidade de qualquer narrativa, pelo contrário, ofe­rece uma analítica interpretativa da nossa situação atual. É a combi­nação singular de genealogia e arqueologia que lhe permite ir além da teoria e da hermenêutica e ainda considerar os problemas com seriedade. O praticante da analítica interpretativa se dá conta de que

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ele mesmo é produzido pelo que estuda, conseqüentemente nunca pode estar afastado disto. O genealogista reconhece que as práticas culturais são mais básicas do que qualquer teoria e que a seriedade da teoria só pode ser entendida como parte da dinâmica histórico­social. O passo arqueológico dado por Foucault visa perceber a estranheza das nossas práticas sociais; o que não significa que ele as considere sem sentido. Uma vez que estas práticas nos fizeram ser O que somos, temos necessariamente um fundamento comum a partir do qual procedemos, entendemos e agimos. Este ponto de apoio, no entanto, não é mais universal, garantido, verificado ou fundamentado.

Foucault não propõe uma teoria normativa; porém, como destaca Habermas, o seu trabalho certamente possui um impulso normativo. Consistente com a sua postura interpretativa. abandonou, assim como Richard Rorty e Robert Bellah, a tentativa de legitimar a organização social por meio de uma fundamentação filosófica. Ele vai além e se recusa a articular princípios normativos. Parcialmente partindo de Heidegger e de Wittgenstein, utiliza a linguagem para mudar o que vemos como o nosso meio social. De forma positiva, ele aceita o que Austin chamaria de efeito perlocutório da linguagem como um meio de nos levar em direção a uma ação conjunta. Isso implica articular preocupações comuns e encontrar uma linguagem que se torne aceita como um meio de falar sobre situações sociais, enquanto deixa aberta a possibilidade de "diálogo", ou melhor do conflito de interpretações com outras práticas discursivas usadas para articular diferentes preocupações. A abordagem interpretativa de Foucault consiste em identificar o que ele considera ser o nosso problema atual, descrevendo como essa situação se organizou, e, ao mesmo tempo, usando suas habilidades retóricas para refletir e aumentar a inquietude compartilhada face ao perigo ubíqüo exposto por sua extrapolação. Assim, a tensão entre as preferências de Foucault e seus insights em relação à impossibilidade e à indeseja­bilidade de oferecer uma teoria justificando a sua ação somente aparenta ser uma contradição; é esta tensão mesma que proporciona os elementos de um método coerente.

Como tentamos mostrar em nosso livro Michel Foucau/t: Beyond Structuralism and Hermeneutics [Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica], a abor-

o que é maturidade? • 63

dagem de Foucault não é tão subjetiva ou tão objetiva quanto pode parecer à primeira vista. Já em seu livro sobre a loucura, estava envolvido na observação das práticas sociais que considerava fonte de aflição pessoal e de perigo social. Após este livro, repudiou a hermenêutica no sentido de que ela seria capaz de desnudar as forças irracionais, tornando a racionalidade possível e, ao mesmo tempo, minimizando-a. Foucault, como Nietzsche e Heidegger em alguns trabalhos, estava oferecendo uma interpretação. A fronteira móvel entre razão e irracionalidade, saúde e doença, ciência e prazer, enquanto apresentada através de uma objetividade descolada (o positivismo feliz de Foucault) não pode ser apontada como uma questão fundamental do nosso tempo por qualquer método objetivo. Mas o interesse de Foucault em escrever a história a partir destas preocupações tampouco pode ser encarado como uma mera expres­são de sua situação pessoal.

Deste ponto de vista, o trabalho de Foucault como genealogista é tudo menos cínico. Ele seria de fato cínico se o seu propósito fosse atacar qualquer forma de poder e solapar qualquer pretensão de verdade. Entretanto ele criticou e se distanciou daqueles que falam a verdade contra o poder, como se verdade e poder fossem eviden­temente exteriores um ao outro. Distanciou-se também daqueles que acreditam que a sociedade possui um único telas, exposto pela crescente racionalização da vida; Foucault nunca assumiu esta posi­ção. Ele considera que o trabalho do intelectual é identificar as formas específicas de verdade e poder e as suas inter-relações na nossa história. Seu propósito nunca foi o de denunciar o poder per se, nem de propor a verdade, mas utilizar as suas análises para elucidar os perigos específicos produzidos em cada tipo particular de articulação de saber e poder.

Em sua análise da sociedade moderna, Foucault diagnosticou o biopoder como a forma específica de saber-poder do nosso tempo. O biopoder pode ser definido como a maneira pela qual nossas práticas contemporâneas tornam efetiva uma ordem na qual o ho­mem ocidental é tido como saudável, seguro e produtivo. Os desdo­bramentos do biopoder nos oferecem um dispositivo para entender­mos o tipo de seres humanos que somos hoje. Foucault não alega que o biopoder é a única coisa acontecendo entre nós; ele assevera

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64 • Antropologia da Razão

que se olharmos a realidade a partir desta interpretação muitas coisas começarão a fazer sentido.

Foucault concentrou sua atenção nas práticas que produzem os sujeitos modernos e descreveu-as em Vigiar e punir. A história da sexualidade I, A vontade de saber procurou traçar o desenvolvimen­to das práticas de confissão e autocontrole que nos transformaram em sujeitos que dão sentido, auto-interpretativos e autônomos. Se­gundo Foucault, estas práticas disciplinares e confessionais conver­giram, após o Iluminismo, numa forma coerente do que chamamos de vida moderna. Este ethos moderno - a lúcida e heróica habili­dade de encarar destemidamente estas crises - não é o que Foucault caracteriza como maturidade. Para ele a maturidade não consiste em uma postura heróica, mas sim numa postura irônica acerca da nossa situação presente.

O que Foucault entende por irônico não é simples, e entender esta atitude nos ajudará a distinguir a sua visão de maturidade de outras visões contemporâneas. Ser irônico implica em abandonar a serie­dade tradicional, enquanto se preserva um ativo compromisso com as preocupações do presente; é evitar preservar um status especial para uma verdade que fundamente um envolvimento sério; é tam­bém evitar a frivolidade manifestada quando se abandona toda a seriedade para se dançar sobre o túmulo de Deus, do Logos, do falocentrismo, etc.

A postura irônica resulta em procurar no presente aquelas práticas que oferecem a possibilidade de uma nova maneira de agir. Para Baudelaire, a atitude moderna significava procurar momentos de "poesia na história", poesia no feio mundo moderno, exatamente como ele é e tem de ser: "onde quer que o sol ilumine a passageira alegria do animal depravado". Htilderlin, o poeta que Heidegger admirava, reconhecia, como Baudelaire, que a tradição estava liqui­dada, e procurou preservar as sugestões de outros modos possíveis de ser que poderiam um dia estar juntos em um novo paradigma cultural- o que Heidegger, fazendo eco a Hiilderlin, chamou de um novo deus.9

Foucault não considerava estar fazendo poesia, se por poesia entendemos o que Baudelaire dela pensava: uma transformação estética das nossas percepções do tempo presente aliada à aceitação da sua monotonia e homogeneidade. Como Heidegger, também

o que é maturidade? , 65

Foucault quer mudar o nossO mundo. Entretanto, enquanto Heideg­ger considerava seus esforços um fracasso posto que não possibili­tava o surgimento de um novo deus, Foucault nunca lamentou a ausência de deuses. Também não considerou ser sua principal tarefa oferecer alternativas possíveis à ação. Ele procurava diagnosticar o perigo contemporâneo, e, em seus últimos trabalhos, apresentar elementos para uma ética moderna.

Segundo Foucault, Kant era moderno mas não maduro. Ele en­frentou heroicamente a perda da fundamentação da ação humana numa realidade metafísica; todavia procurou refundamentá-Ia numa epistemólogia. Kant compreendeu que o filósofo devia fazer a sua filosofia apoiando-se na situação presente, porém procurou um modo de reconciliar a dignidade humana com as condições sociais em vigor na sua época em vez de enfrentar os seus perigos. Não que

fosse muito cedo para alguém ter a irônica maturidade de Baudelai­re. Tucídides, por exemplo, encarou o colapso da democracia ate­niense sem repudiar a sua lealdade a Atenas e sem aceitar a supe­rioridade da disciplina espartana. Sem assumir nenhuma perspectiva normativa sobre o que constituiria a sociedade ideal, ele preservou a sua postura crítica diante da realidade. Enquanto se dava conta de que certos aspectos do desastre ateniense iriam se repetir infinita­mente, ele não perdia a esperança, e até mesmo percebia alguns traços favoráveis em certas práticas da nova democracia que preser­vavam algumas das melhores características das sociedades atenien­

se e espartana. lO

O argumento central deste artigo é que a maturidade consiste em pelo menOS estar disposto a enfrentar a possibilidade de que a ação não possa ser fundamentada em uma teoria universal e a-histórica do sujeito individual e da escrita, ou nas condições necessárias à comunidade e à fala; e que, de fato, estas tentativas fomentam exatamente aquilo que todos os pensadores concordam ser o mais problemático na nossa situação atual. Nesta interpretação, nossa modernidade começa com a tentativa de Kant de fundamentar as normas morais e as pretensões teóricas de verdade na estrutura vazia, formal, da finitude humana. Contudo, a heróica ruptura de Kant com a lei natural e a ordem cósmica, longe de possibilitar a diversidade, mudou O debate para a procura da estrutura da finitude humana que forneceria normas universais à ação humana. As últi-

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·1

I

I

I: j

66 • Antropologia da Razão

mas versões desta tentativa, agora lingüística, continuam a ser uni­versais e prescritivas. Por um lado os antipensadores. fundamenta­dos em uma teoria a-histórica do sujeito como desejo vazio consti­tuído pelo jogo arbitrário dos significantes, condenam a seriedade e insistem que todos sejam inflexivelmente irônicos; por outro lado os heróicos defensores da seriedade, fundamentados em uma teoria da comunicação. condenam o que consideram ironia irresponsável, e, em tom exasperado, procuram lembrar a todos o seu dever de conformar-se aos imperativos universais implícitos em todo ato da fala. Foucault resistia a ambas as posições filosóficas universaliza­doras. Em sua última entrevista ele afirmou: "a procura de uma forma de moralidade aceitável por todos, no sentido de que todos deveriam submeter-se a ela, parece-me catastrófica."ll

Foucaul! notou a tendência dos anti pensadores de apelar à teoria para defender o seu ataque à seriedade: "Toda a incessante teoriza­ção sobre a escrita ocorrida nos anos sessenta foi sem dúvida um canto de cisne ... foi precisamente uma questão de teoria ... que (o escritor) necessitava de credenciais científicas, baseadas na lingüís­tica, na semiologia, na psicanálise."12

Com esta mesma perspectiva interpretativa de Foucault, os de­fensores da filosofia parecem ter atingido mais sobriedade do que maturidade. Se, por exemplo, relembrarmos os argumentos através dos quais Habermas chega às suas normas universais, nós o encon­traremos assumindo duas posições cruciais de ordem interpretativa, encobertas pelo fato de constituírem o âmago de nossa tradição filosófica. Em primeiro lugar, ele assevera que "o entendimento é o telos interno da linguagem."13 Com isso privilegia o uso comunica­tivo da linguagem, sem levar em consideração a interpretação de outros filósofos. como Heidegger e Charles Taylor, que afirmam ser a linguagem aquilo que primeiro abre a arena para a ação e a comunicação ao deixar as coisas aparecerem como sendo algo. Um segundo movimento, mais tênue e conseqüente, ocorre quando, após equacionar o uso da linguagem à performance dos atos de fala, Habermas prossegue descartando o efeito perlocutório do que é dito e afirma que idealmente apenas o conteúdo ilocutório deve ter um papel no estabelecimento de um consenso. Este movimento exclui a retórica, assim como a autoridade baseada na experiência acumula­da, e, deste modo, reduz a linguagem de sua função comunicativa à

o que é maturidade? • 67

sua função apenas intelectualista. As normas comunicativas e uni­versais de Habermas são bem modernas em sua falta de fundamen­tação, na medida em que pressupõem estas duas reduções interpre­tativas.

Mais uma implicação intelectualista da pretensão de que somente o conteúdo i locutório deve ter um papel na procura por alcançar um consenso é o fato dele não levar em conta os significados culturais compartilhados no contexto em que o consenso é alcançado. Haber­mas certamente concordaria com a observação de que a discussão racional acontece no horizonte de um entendimento comum do que é importante, do que faz sentido, do que é um jogo de linguagem verdadeiro/falso, do que é considerado razão, etc. Mas a fim de sustentar sua alegação de que não se deve permitir que fatores externos ao conteúdo intencional explícito afetem e talvez distorçam a comunicação, ele precisa defender a idéia que o nosso horizonte de entendimento comum torna-se mais e mais explícito na cultura do capitalismo ocidental recente; e que, onde quer que haja um problema, o horizonte pode tornar-se suficientemente explícito, de maneira a permitir uma apreciação racional.

As dificuldades enfrentadas por esta posição podem ser vistas mais claramente no exemplo favorito da atividade racional do Ilu­minismo: a ciência natural. Um dos conflitos atuais da interpretação. concernentes à maneira como as disciplinas científicas trabalham, é que os paradigmas representam um papel essencial em suas práticas. Se Thomas Kuhn e seus seguidores estão corretos, a ciência normal é uma prática na qual os cientistas conduzem suas discussões com referência a exemplos que lhes são comuns. Além do mais, o acordo é possível precisamente porque nenhuma tentativa é feita para racio­nalizar estes paradigmas como um conjunto de suposições em co­mum, isto é, integrar o paradigma ao conteúdo intencional das assertivas que ele trata de avaliar. Em casos como estes, a falta de preocupação com O procedimento racional torna possível a comuni­cação racional acerca do conteúdo.

Enquanto a insistência na frivolidade toma os antipensadores imaturos, a recusa de Habermas em admitir seu débito à interpreta­ção torna a sua posição professoral. Nenhuma das posições é madu­ra, e ambas, em nome da modernidade, excluem qualquer possibili­dade de diálogo com outras conhecidas posições interpretativas,

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68 • Antropologia da Razão

como a" de Foucault. Abraçar a tarefa de Kant dois séculos depois parece requerer a desistência de qualquer tentativa de identificar a razão crítica com uma fundamentação objetiva universal, bem como de considerar as atuais condições sociais como um passo adiante em relação às outras sociedades no caminho de uma maturidade social.

Para uma aproximação maior à tarefa kantiana de utilizar a razão crítica de forma madura e à idéia de Foucault de uma analítica interpretativa, é importante: I) descrever e interpretar nossas práti­cas atuais de maneira a compreender que aspectos de nossa moder­nidade são inescapáveis; 2) caracterizar o sentido difuso nas práticas de certas épocas de que, de uma forma generalizada, as coisas deram errado (a "angústia" de Heidegger e os "perigos" de Foucault pare­cem ser muito subjetivos ou muito objetivos para capturar esta dimensão crucial da interpretação); 3) articular também uma cons­ciência compartilhada de que a promessa do Iluminismo ainda não foi cumprida; 4) ir além dos pensadores e anti pensadores e tomar uma posição em relação ao presente que não legisle normas univer­sais vazias, mas encoraje o conflito de interpretações; 5) ir além de Foucault reforçando retoricamente as práticas pós-iluministas que são positivas, como muitos de nossos benefícios tecnológicos, le­gais e médicos, e identificando práticas pré-iluministas que tenham escapado até agora da racionalização e da normalização.

Como Foucault mostrou em seus últimos livros e em sua vida, existe um tipo de ética e integridade intelectual que, opondo-se vigorosamente a justificar sua própria ação em termos religiosos, legais, científicos ou filosóficos, ainda assim procura produzir uma nova forma de vida ética que põe em primeiro lugar a imaginação, a lucidez, o humor, o pensamento disciplinado e a sabedoria prática.

Notas

1. Paul Rabinow e Hubert Dreyfus, "What is Maturity? Habermas and Fou­cault on 'What is Enlightenment?'" in David Hoy Ced.), Foucault: A Criticai Reader, Oxford, Blackwell, 1986. A primeira versão da tradução para o português foi feita por Antônio C. Maia.

2. Michel Foucault, "What is Enlightenment?" in Paul Rabinow (ed.l, The Foucault Reader, New York. Pantheon Books, 1984, p. 50.

o que é maturidade? • 69

3. Ibidem, p. 41, 42. 4. Jürgen Habermas. Des philosophische Diskurs der Moderne. Frankfurt.

Suhrkamp, 1985. 5. Leo Bersani. "Pedagogy and pederasty", Raritan. 1985, p. 21. 6. Michel Foucault, The Order ofThings, New York, Random House, 1970.

p.374. 7. Michel Foucault, Histoire de la Sexualité: vol. 2, L'Usage des Plaisirs.

Paris, Gallimard, 1984, p. lO. 8. Idem. 9. Martin Heidegger, "What Are Poets For?" in Poetry, Language, Thought,

New York, Harper & Row, 1971, p. 94, 95. 10. Peloponnesian War. livro 8, seção 97. 11. Entrevista de Michel Foucault in "Le Retour de la Morale", Les Nouvelles.

28/06/1984, p. 37. 12. Michel Foucault in Colin Gordon. PowerlKnowledge: Selected /nterviews

and Other Writings 1972-/977, New York, Pantheon Books, p. 127. 13. Jürgen Habermas. Theorie des kommunikativen Handelns, voi. 1. Frank­

furt, Suhrkamp, 1981. "Verstãndigung wohnt aIs Telos der menschlichen

Sprache inne", p. 387.

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Representações são fatos sociais: modernidade e pós-modernidade

na antropologia!

Para além da epistemologia

No seu impo. rtante livro Philosophy and the Mirrar of Nature, Richard Rorjy argumenta que a,kpistemologia como o estu-

o do de representações mentais surgiu num dado período histórico, o século XVIU desenvolveu-se numa sociedade específi­ca, aleuropéi:l; e acabou por triunfar filosoficamente por estar forte­mente p.ssociada às reivindicações profissionais de um grupo, pro­fessores de filosofia alemães do século XIXI. Segundo Rorty, este processo não foi gratuito: "Querer uma teoria do conhecimento é querer restrições - é buscar 'fundamentos' nos quais seja possível apegar-se, molduras para além das quais não se pode vagar, objetos que se impõem, representações que não podem ser contestadas."2 Radicalizando Thomas Kuhn, Rorty retrata nossa obsessão com a epistemologia como uma mudança acidental, eventualmente estéril, na cultura ocidental.

Pragmaticamente norte-americano, o livro de Rorty tem uma moral: a moderna filosofia profissional representa o "triunfo da busca da certeza sobre a busca por razão".3 O principal culpado neste melodrama é a preocupação da filosofia ocidental com a epistemologia, a equação do conhecimento com representações in­ternas e a avaliação correta destas representações. Neste artigo eu esboço, brevemente, a argumentação de Rorty, agrego algumas especificações importantes feitas por Ian Hacking e proponho que

71

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72 • Antropologia da Razão

i Michel Foucault desenvolveu uma posição que nos capacita a suple­mentar Rorty com consistência./No restante do artigo, exploro a relevância de algumas destas linhas de pensamento para os discur­sos sobre o Outro. Na segunda parte, trato especificamente de debates recentes sobre a produção de textos etnográficos; na tercei­ra, arrolo algumas diferenças entre a antropologia feminista e o feminismo antropológico e finalmente na quarta parte apresento a minha própria linha de pesquisa.

Os filósofos coroaram a sua disciplina como a rainha das ciên­cias, argumenta Rorty. Esta coroação repousa sobre as rei vindica­ções que fazem de serem os especialistas em problemas universais e nas suas habilidades em prover um fundamento seguro para todo o conhecimento. O reino da filosofia é a mente; suas intuições privilegiadas estabelecem o propósito de ser a disciplina que julga todas as outras. Esta concepção de filosofia, no entanto, provém de um desenvolvimento histórico recente. Para os gregos, não havia divisão nítida entre a realidade externa e as representações internas. Diferente de Aristóteles, o conhecimento para Descartes depende de representações corretas num espaço interno, a mente. Rorty prova isto ao dizer que: "A inovação veio com a noção de um único espaço interno no qual sensações corporais e perceptivas (na frase de Descartes, idéias confusas de sentido e imaginação), verdades ma­temáticas, regras morais, a idéia de Deus, estados de depressão, enfim tudo o que designamos de 'mental', tornaram-se objetos quase observáveis."4 Embora nem todos estes elementos fossem novos, Descartes os combinou exitosamente numa nova problemá­tica, colocando de lado o conceito aristotélico de razão como apreensão de universalidades: a partir do século XVII, o saber tornou-se interno, representacional e peremptório. IA filosofia mo­derna nasceu quando um sujeito conhecedor, dotado de consciência e de seus conteúdos representacionais, tornou-se o problema central para o pensamento, paradigma de todo saber';

iA noção moderna da epistemologia direciona-se então para a clarificação e o julgamento das representações do sujeito.',,"Saber é representar acuradamente o que está fora da mente, entender a possibilidade e a natureza do saber é entender a maneira pel,qual a mente está apta para construir tais representações. A preocupação eterna da filosofia é ser uma teoria geral de representações, uma

Representações são fatos sociais • 73

teoria que divida a cultura em áreas que representam a realidade bem, em áreas que a representam não tão bem assim, e naquelas que de maneira alguma a representam (a despeito de pretender fazê-10)."5 O conhecimento produzido pelo exame das representações acerca da "realidade" e do "sujeito conhecedor" é tido como univer­sal. Este conhecimento universal é indubitavelmente a ciência.

Foi somente em torno do final do Iluminismo que apareceu totalmente elaborada a concepção da filosofia como juíza de todo o conhecimento possível, canonizada na obra de Immanuel Kant. Rorty argumenta: "A eventual demarcação entre a filosofia e a ciência tomou-se possível através da noção de que o núcleo da filosofia era uma 'teoria do conhecimento', distinta das ciências por servir a elas de fundação."6 Kant estabeleceu como um a priori a reivindi~ação cartesiana de que nós só temos certeza acerca de idéias. Kant, "ao assumir que tudo o que dizemos é sobre algo que constituímos, possibilitou que a epistemologia fosse pensada como uma ciência fundacional... Ele permitiu que professores de filosofia vissem a si mesmos presidindo um tribunal de razão pura, capaz de determinar se as outras disciplinas pennaneciam ou não dentro dos limites colocados pela 'estrutura' dos seus objetos."7

A filosofia como disciplina cuja atividade peculiar é fundamentar reivindicações de conhecimento foi então desenvolvida por neokan­tianos do século XIX e institucionalizada em universidades alemãs no mesmo século. Talhando um espaço entre a ideologia e a psico­logia empírica, a filosofia alemã escreveu sua própria história, produzindo nosso cânone moderno dos "grandes". Esta tarefa foi concluída no final do século XIX. Até hoje, em cursos introdutórios de filosofia, a narrativa da história da filosofia continua sendo apresentada como uma série de grandes pensadores. Entretanto, a rei vindicação da fílosofia de preeminência intelectual teve uma curta duração; por volta de 1920, somente filósofos e calouros acreditavam que a filosofia era singularmente qualificada para fun­damentar e julgar produções culturais. Nem Einstein nem Picasso estavam muito preocupados com o que Husser! talvez pudesse ter pensado sobre eles.

Embora os departamentos de filosofia continuem a ensinar epis­temologia, existe uma contratradição no pensamento moderno que seguiu por outro caminho. "Wittgenstein, Heidegger e Dewey con-

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74 • Antropologia da Razão

cordam que a noção de conhecimento como uma representação acurada, possível através de processos mentais e inteligível através de uma teoria geral da representação, precisa ser abandonada", observa Rorty,8 Estes pensadores não procuraram construir teorias melhores e alternativas da mente ou do conhecimento; o objetivo deles não era melhorar a epistemologia mas sim jogar de forma diferente. Rorty chama este jogo de he,unellêutica. Para ele, isto simplesmente significa conhecimento sem fundamentos; um saber que essencialmente é uma conversação edificantel Até agora Rorty nos disse muito pouco sobre o conteúdo desta conversação - tal vez porque haja pouco a ser dito. Como em Wittgenstein, Heidegger e de uma maneira diferente em Dewey, Rorty está confrontado com o fato preocupante, divertido talvez, de que uma vez completada a desconstrução histórica ou lógica da filosofia ocidental não reste realmente nada especial a ser feito pelos filósofos. Na evidência de que a filosofia não funda nem legitima as reivindicações de saber de outras disciplinas, sua tarefa passa a ser comentar os trabalhos destas e engajá-Ias em conversação.

Verdade versus verdade e falsidade

Ainda que se aceite a desconstrução que Rorty faz da epistemologia, as conseqüências de tal movimento permanecem abertas. Antes de explorar algumas delas, é importante frisar que'jejeitar a epistemo­logia não significa rejeitar a verdade, a razão ou padrões de julga-

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mentol Esta questão é sucintamente elaborada por Ian Hackingem Language, Truth and Reason. Se Rorty separa certeza e verdade, Hacking traça a distinção entre as filosofias envolvidas na busca da verdade e aquelas (que ele chama de estilos de pensamento a fim de não limitá-Ias à filosofia moderna) que abrem novas possibilidades, ao procederem em termos de "verdade ou falsigade".

A questão que Hacking apresenta é basicamente muito simples: 'loque é em geral tido como "verdade" depende de um evento

histórico anterior - ou seja. a emergência de uma maneira de pensar sobre verdade e falsidade estabeleceu as condições para se conside­rar, a priori, se uma proposição é capaz ~e ser verdadeira ou falsa.\ Hacking coloca a questão: "Por raciocínio eu não quero dizer lógica,

Representações são fatos sociais • 75

quero dizer justamente o opostol pois lógica é a preservação da verdade, enquanto que um estilo de raciocínio é o que introduz a possibilidade de verdade e falsidad<f ... estilos de raciocínio criam portanto a possibilidade de verdade e falsidade. Dedução e indução preservam tão somente esta possibilidade."9 Hacking não é "contra" a lógica, mas opõe-se às suas reivindicações de fundar e basear toda a verdade. A lógica funciona no seu próprio domínio, mas este

domínio é limitado. Ao fazer esta distinção, evita-se o problema de relativizar total­

mente a razão ou de transformar as diferentes concepções históricas de verdade e falsidade numa questão de subjetivismo.Jlstas_Ç,l:mc,e,p­

ções são fatos.11istósko-''--~§Q"iais. Isto é bem colocado por Hacking: "embora proposições dependam de dados para serem tidas como verdadeiras, o fato de que proposições sejam candidatas a verdades é conseqüência de um evento histórico."1O O fato de que mudaram os instrumentos que utilizamos quando investigamos um conjunto de problemas - geometria para os gregos, método experimental no século XVII, oU estatística nas ciências sociais modernas - é explicável sem que se recorra a alguma verdade condenando o relativismo. Além do mais, a ciência entendida desta maneira per­manece suficientemente objetiva "simplesmente porque os estilos de raciocínio que empregamos determinam o que conta como obje­tividade ... P!oposições que necessariamente substanciam o raciocí­nio têm uma positividade, um ser verdadeiro ou falso, somente como conseqüência dos estilos de raciocínio nos quais ocorrem."!! O que Foucault chamou de regime de verdade e falsidade é tanto um componentequanto u;;'''proctutode práticas históricas. Outros pro­cedimentos e outros objetos poderiam servir de substitutos neste jogo e serem tão verdadeiros quanto os que foram anteriormente

utilizados. Hacking distingue entre r~~!~~ínio cotidiano, senso comum que

não necessita aplicar um conjunto elaborado de razões, e aqueles domínios mais especializados,que o necessitam. Existe uma plurali­dade cultural e histórica destes domínios especializados, bem como diversos estilos a eles associados. A partir da aceitação dessa div~­sidade de estil,os, históricos-de,raciocínio, mé.todos e ,objetos, Hac­king co;;;;T~ique os pensadores geralmente entenderam cor~~tamen-

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76 • Antropologia da Razão

te, resolveram problemas e estabeleceram verdades, Ele argumenta que isto não implica que deveríamos procurar por um reino unifica­do popperiano da verdade, mas que ao investigarmos deveríamos, à la Paul Feyerabend, manter nossas opções o mais abertas possíveis, Os gregos, lembra Hacking, não tinham nem 0(~9,n~eito nem o uso da estatística, um fato que não invalida nem a ciência grega nem a estatística como taL Esta posição não é relativismo, mas também não é imperialismo, Rorty chama sua versão generalizada de tudo isto hermenêutica, Para Hacking isto é ~narc()::l'ªc,iJ:lJlªIU;l]1.o, que vem a ser ."tolerância para com outras pessoas, combinada com a disciplina dos próprios padrões de verdade e razão,"12/

Michel Foucault também considerou muitas destas questões de maneira paralela, mas não idêntica, Sua Arqueologia do saber e A ordem do discurso são talvez as mais desenvolvidas tentativas de apresentar, se não uma teoria do que Hacking denomina de "verdade e falsidade" e "estilos de pensamento", pelo men.os uma analítica das mesmas, Está além do alcance deste artigo apresentar detalhes da sistematização feita por Foucault de como objetos discursivos, modalidades enunciativas, conceitos e estratégias discursivas são formados e transformados,13 Tomemos tão-somente um exemplo como ilustração da sua relevância, Em A ordem do discurso, Fou­cault discute algumas das condições e restrições implicadas na produção de verdade, isto é, afirmações que, seriamente, podem ser consideradas verdadeiras ou falsas, Entre outras, Foucault examina a existência de disciplinas científicas, Ele diz: "Para que exista uma disciplina deve existir a possibilidade de se formular novas proposi­ções - e de assim fazer-se ad infinitum" , Estas proposições devem conformar-se a condições específicas de objetos, sujeitos, métodos, etc", Dentro de seus próprios limites, cada disciplina reconhece proposições como verdadeiras ou falsas, mas rejeita uma teratologia inteira da aprendizagem", Em suma, uma proposição deve preen­cher condições .onerosas e complexas antes que possa ser admitida dentro da disciplina, Monsieur Canguilhem diria que, antes que a proposição possa ser enunciada como verdadeira ou falsa, ela deve estar 'dentro do verdadeiro'''.14 .

Foucault cita o exemplo de Mendel: "Mendel falou de objetos, métodos utilizados e localizou-se dentro de uma perspectiva teórica

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totalmente estranha à biologia do seu tempo", Ele falou a verdade, mas não estava dans le vrai do discurso biológico contemporâ­neo,"15 A demonstração da riqueza desta maneira de pensar tem sido a grande força de Foucault, George Canguilhem, e outros praticantes franceses da história e da fil.osofia da ciência, de forma particular as

"ciências da vida". Talvez não seja acidental que ambos, Rorty e Hacking, estejam

preocupados com a história da ciência física, da matemática e da filosofia, 0'lue tem estado ausente das suas explicações é a catego­ri,. 'poder', e numa extensão menor (no caso de Hacking) a categoria 'sociedade', Estas categorias no entanto estão presentes nO interes­sante trabalho que Hacking atualmente desenvolve sobre estatísticas nO século XIX, Embora seja persuasiva na sua força desconstrutiva, a estória de Rorty não é tão convincente na sua recusa em comentar sobre como a mudança epistemológica aconteceu na sociedade oci­dentaL Outra limitação deste trabalho seria a sua incapacidade de perceber o saber como sendo mais do que livre e edificante conver­sação, Semelhante a Jürgen Habermas, embora recusando suas intenções fundacionistas, Rorty considera, a comunicação livre._ a corlY'~rsação ci vilizada..c.otno, s"lldo o objeti yo_ último, Diz Hacking: "talvez um dia a doutrina central da conversação formulada por Richard Rorty pareça uma filosofia tão lingüística quanto a análise que emanou de Oxford uma geração atrás", 16 O conteúdo da conver­sação, a maneira de trazer à tona a liberdade de tê-Ia está, no entanto,

além do domínio da filosofia, ;1 A converSação entre indivíduos e culturas somente é possível

dentro de contextos moldados e limitados por relações históricas, culturais, políticas e práticas sociais parcialmente discursivas que as constituem)O queestá_aus"Ilte da eXl'licaç,ã9~,Rorty é_ U!Ila

i.!iscussãoJipbre como o pensall1,ento "...a:sJlrátic~_soclai5,§e inter~()­~cta1!', Rorty ajuda a esvaziar as reivindicações da filosofia, mas ironicamente pára exatamente antes de levar a sério sua própria percepção: o pensamento não é nada mais e nada menos do que um conjunto de práticas historicamente localizáveis, Como considerar isto seriamente sem retornar à epistemologia ou a algum dúbio artifício do tipo superestrutura/infra-estrutura é outra questão~ uma questão na qual Rorty não está sozinho ao não resolvê-Ia,

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78 • Antropologia da Razão

Representações e sociedade

o trabalho de Michel Foucault nos oferece alguns instrumentos importantes para analisar o ~ns.am.eDto como u.U1-ª..Qrátic~ l?_~_º.Uç~_ social. Foucault aceita os principais elementos dos relatos nietzs­chIanos e heideggerianos acerca da metafísica e da epistemologia ocidental apontadas por Rorty; no entanto, derivam conclusões diferentes - conclusões estas que me parecem ser mais consistentes e interessantes que as de Rorty. Na famosa análise de Foucault sobre o quadro "Las Meninas" de Velasquez encontramos, por exemplo, muitos dos mesmos elementos mencionados na história da filosofia de Rorty: o sujeito moderno, representações e ordem. Mas existem também diferenças cruciais. Em vez de tratar o problema das repre­sentações como sendo algo específico da história das idéias, Fou­cault o trata como uma questão cultural mais generalizada, um problema trabalhado em outros domínios. Em As palavras e as coisas e em livros posteriores. Foucault demonstra como o problema

<. das representações corretas tem informado uma série de domínios e práticas sociais, que vão desde disputas botânicas a propostas para reformas penitenciárias. Para Foucault, o problema das repJesenta­çjies não é um problema que irrompeu fortuitamente na filosofia. ali dominou o pensamento por trezentos anos .. Porém, está concate­nado à grande gama de disparatadas mas inter-relacionadas práticas sociais e políticas que constituem o mundo moderno, com suas preocupações distintivas quanto à ordem, à verdade e ao sujeito.,] Foucault difere de Rorty ao'.tratar as idéias filosóficas como práticas sociais e não como mudanças gratuitas numa conversação ou na filosofia.

Foucault também discorda de muitos pensadores marxistas que vêem problemas artísticos como sendo por definição epifenômenos ou expressivos do que "realmente" acontece na sociedade. Isto nos leva brevemente à questão da ideologia. Em vários textos, Foucault sugere que uma vez posta a questão do sujeito, das representações e da verdade como práticas sociais, a vera noção de ideologia torna-se problemática.\Ele escreve: "por detrás do conceito de ideologia existe uma certa nostalgia por uma forma de saber quase transparen­te, livre de todo erro e ilusão."!7 Neste sentido,' o conceito de ideologia está intimamente ligado ao conceito de epistemologia. \.\

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Para Foucault, o conceito moderno de ideologia tem as seguintes características inter-relacionadas: (I) por definição, ideologia opõe­se a algo que se apresenta como "a verdade". como se representa­ções pudessem ser falsas; (2) a ideologia é produzida por um sujeito (individual ou coletivo) a fim de esconder a verdade; conseqüente­mente a tarefa do analista consiste em expor esta falsa repre­sentação, e revelar que (3) a ideologia é secundária a algo mais real, a uma dimensão infra-estrutural na qual a ideologia é parasitária.

Foucault rejeita todas elas. Já aludimos, em termos gerais, à crítica do sujeito e à busca da

certeza fundada em representações corretas. Agora vamos enfocar brevemente a terceira questão: '.e_-". produção da verdade é. um ~fçnômeno.deuma outra ~oisa. O projeto de Foucault não era decidir sobre a verdade ou a falsidade de reivindicações na história

." "mas ver historicamente como efeitos de verdade são produzidos dentro de discursos que, em si mesmos, não são nem verdadeiros nem falsos."!8 Foucault propõe estudar o que chama de "regime da verdade" como sendo um componente efetivo na constituição das

práticas sociais. --I Foucault propôs três hipóteses de trabalho: "( I) A verdade é para

ser entendida como um sistema de procedimentos ordenados para a regulamentação, distribuição e operação de afirmações. (2) A verda­de está conectada, numa relação circular, com sistemas de poder que a produzem e a confirmam, e com efeitos de poder que ela induz e que a estendem. (3) Este regime não é meramente ideológico ou superestrutural: foi uma condição para a formação e o desenvolvi­mento do capitalismo." Nas outras três partes deste ensaio, desen­volverei algumas das implicações destas hipóteses de trabalho.

Como Max Weber certa vez afirmou, os capitalistas do século XVII não eram somente homens econômicos que negociavam e construíam navios, eles também olhavam as pinturas de Rembrandt, desenhavam mapas do mundo, tinham concepções específicas acer­ca da natureza de outros povos, e se preocupavam com seus próprios destinos. Estas representações eram forças poderosas e efetivas no que estes homens eram e em como atuavam. Abrem-se muitas novas possibilidades para o pensamento e a ação se seguimos Rorty e abandonamos a epistemologia (ou se pelo menos a vemos pelo que tem sido: um importante movimento cultural na sociedade ociden-

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tal) e se, como Foucault, consideramos o poder como produtor e impregnador de relações sociais e da verdade no nosso atual regime de poder. Aqui estão algumas conclusões iniciais e estratégias de pesquisa que talvez possam ser derivadas desta discussão sobre epistemologia. Eu meramente as listo, antes de entrar em discussões antropológicas recentes sobre como descrever o Outro.

I. A epistemologia deve ser vista como um evento histórico - uma prática social distinta. uma entre muitas outras, articulada de novas maneiras na Europa do século XVII.

2. Não necessitamos de uma teoria de epistemologias indígenas ou de uma nova epistemologia do Outro. Devemos estar atentos à história da projeção de nossas práticas culturais sobre o Outro; o melhor que podemos fazer é mostrar como, quando e através de que meios culturais e institucionais outros povos começaram a reivindicar a epistemologia para si próprios.

3. Necessitamos antropologizar o Ocidente: mostrar quão exótica tem sido a sua constituição da realidade; enfatizar aqueles domí­nios tidos como universais (isto inclui a epistemologia e a eco­nomia); mostrá-los o mais possível como sendo historicamente peculiares; evidenciar como suas reivindicações à verdade estão conectadas a práticas sociais e se tornaram, portanto, forças efetivas no mundo social.

4. Precisamos pluralizar e diversificar nossas aproximações. Um movimento básico contra a hegemonia econômica ou filosófica pode ser diversificar centros de resistência. Devemos evitar o erro de reverter essencializações: "ocidentalismo" não é um remédio para "orientalismo".

A escrita de textos etnográficos: a fantasia da biblioteca

Existe um peculiar atraso temporal no movimento dos conceitos através das fronteiras das disciplinas. O momento em que os histo­riadores estão descobrindo a antropologia culturaf na (não-repre­sentativa) pessoa de Clifford Geertz é exatamente o momento em que ele está sendo questionado na antropologia. Assim também

Representações são fatos sociais. 81

alguns antropólogos são impulsionados a novas criações pela infu­são de idéias da crítica literária desconstrucionista, enquanto esta vem perdendo sua energia cultural em departamentos de literatura, e Derrida está descobrindo a política. Embora existam diversos porta-vozes desta hibridização (muitos presentes no Seminário de Santa Fé, além de James Boon, Stephen Webster, James Siegel, Jean-Paul Dumont e Jean J amin), há somente um "profissional", por assim dizer, na multidão. Enquanto todos os outros acima mencio­nados são antropólogos praticantes, James Clifford criou e ocupou o papel de ~.r.lQa _ex:ojícjo dos nossos rabiscos. Geertz, a figura fundante, pôde fazer pausas entre monografias para divagar sobre textos, narrativas, descrição e interpretação. Clifford toma como seus nativos e informantes aqueles antropólogos do passado e do presente cujo trabalho, conscientemente ou não. tem sido a produ­ção de textos, a escrita de etnografias. Estamos sendo observados e inscritos.

À primeira vista, o trabalho de James Clifford parece seguir naturalmente o fluxo da mudança interpretativa de Geertz. Existe, entretanto, uma diferença crucial. Geertz (como os outros antropó­logos) ainda direciona seus esforços para reinventar uma ciência antropológica cõm 'aajudadé mediações texíuai5:' A ativ-id~de prin­cipal continua sendo a descrição social do Outro, embora modifica­da por novas concepções de discurso, autor e texto. O Outro para Qifford é ",repre,~entação antropológica dooutro. I,sto significa que

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Clifford tem um controle mais firme do seu projeto, sendo simulta-neamente mais parasitário. Ele pode inventar suas questões com poucas coerções; ele precisa, no entanto, nutrir-se constantemente dos textos de outros.

Esta nova especialidade está atualmente em processo de autode­finição. O primeiro movimento para legitimar uma nova aproxima­ção é reivindicar que ela tenha um objeto de estudo, de preferência importante, que havia escapado da atenção. Paralela à reivindicação de Geertz de que os balineses interpretaram desde sempre suas brigas de galos como textos culturais, Clifford argumenta que os antropólogos têm experimentado formas de escrita, quer soubessem ou não. A mudança interpretativa em antropologia deixou sua marca (produzindo um corpo substancial de trabalhos, chegando quase a estabelecer-se como uma subespecialidade), mas ainda não está

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claro se a mudança desconstrutivista-semiótica (um rótulo admiti­damente vago) é um desatamento salutar, uma abertura para provo­cativos e novos trabalhos de grande importância, ou se é uma tática no campo da política cultural a ser entendida primariamente em termos sociológicos. Uma vez que a antropologia interpretativa deixou sua marca e é considerada uma tática, ela merece um exame mais próximo.

No seu ensaio Umafantasia da biblioteca, Michel Foucaultjoga destramente com a progressão de usos da tentação de Santo Antônio que Flaubert fez ao longo de sua vida. 19 Longe de serem os produtos ociosos de uma imaginação fértil, eram exatas as referências feitas por Flaubert à iconografia e à filologia nas suas paráfrases aparen­temente fantasmagóricas das alucinações do santo. Foucault nos mostra como Flaubert, ao longo da sua vida, voltou a esta encenação de experiência e escrita, e usou-a como um exercício ascético tanto para produzir como para manter à distância os demônios que assom­bravam o mundo de um escritor. Não foi por acidente que Flaubert terminou sua vida de escritor com aquela coleção monstruosa de lugares-comuns Bouvard et Pecuchet. Um comentário constante sobre outros textos, este livro pode ser lido como uma total domes­ticação da textualidade num exercício independente de arranjar e catalogar: a fantasia da biblioteca.

Levando em consideração este argumento, vamos justapor à antropologia interpretativa de Clifford Geertz a meta antropologia textualista de James Clifford. Se Geertz ainda está procurando invocar e capturar os demônios do exotismo - palcos teatrais, jogos de sombras, briga de galos - através do seu limitado uso de encenações ficcionais, nos quais eles podem aparecer para nós, o movimento textualista/desconstrutivista corre o perigo de inventar sistemas de catalogação sempre mais inteligentes para os textos de outros, e imaginar que o resto do mundo está arduamente trabalhan­do na mesma coisa. Para que o argumento não descambe nas suas próprias direções, devo enfatizar que não estou' dizendo que o empreendimento de Clifford até o momento tenha sido tudo menos salutar. O surgimento da consciência antropológica acerca do modo de operação textual da própria antropologia está deveras atrasado. Apesar do reconhecimento ocasional de Geertz sobre a inevitabili­dade da "ficcionalização", ele nunca levou este argumento muito

Representações são fatos sociais • 83

• longe. Esta questão parece ter carecido de uma metaposição a fim de trazer para casa sua força real. A voz da biblioteca do campus tem sido salutar. O que quero fazer neste segmento é olhar breve e fixamente para este etnógrafo de etnógrafos sentado atrás de uma mesa num café e, usando suas próprias categorias descritivas, exa- \ minar suas produções textuais.

O tema central de Clifford tem sido a construção textual da autoridade antropológica. 'Estilo indireto livre', o principal artifício literário utilizado em etnografia, foi bem analisado por Dan Sperber e não necessita ser ensaiado aqui. 20 O argumento de que os antropó­logos escrevem utilizando convenções literárias, embora seja inte­ressante não é em si mesmo provocador de crises. Muitos agora asseveram que ficção e ciência não são termos opostos mas sim complementares21 Houve avanços na nossa consciência da qualida­de ficcional (no sentido de 'feito', 'fabricado') da escrita antropoló­gica e na integração dos seus modos característicos de produção. A autoconsciência de estilo, retórica e dialética na produção de textos antropológicos deveria nos levar a uma percepção mais aguçada de outras' maneiras, mais imaginativas, de escrever.

Clifford, entretanto, parece estar dizendo mais do que isto. De forma substantiva, ele argumenta que desde Malinowski a autorida­de antropológica apóia-se sobre duas pernas textuais. A experiência 'eu estava lá' estabelece a autoridade singular do antropólogo; sua supressão do texto estabelece sua autoridade científica.22 Clifford demonstra como este artifício funciona no famoso texto de Geertz sobre a briga de galos: "O processo de pesquisa é separado dos textos gerados e do mundo ficcional que evocam. A atualidade de situações discursivas e interlocutores individuais é filtrada ... Os aspectos dialógicos, situacionais, da interpretação etnográfica ten­dem a ser banidos do texto representativo final. É evidente que não são totalmente banidos; existem topoi aprovados para a retratação do processo de pesquisa."23 Clifford apresenta a atrativa fábula de Geertz como paradigmática: o antropólogo estabelece que estava lá e então desaparece do texto.

Clifford faz um movimento paralelo com o seu próprio gênero literário. Assim como Geertz se curva ante a auto-referência (esta­belecendo uma dimensão da sua autoridade), e em nome da ciência se esquiva das suas conseqüências, também Clifford discute muito

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84 • Antropologia da Razão

acerca da inevitabilidade do diálogo (estabelecendo sua autoridade como "aberta"), mas seus textos não são dialógicos, porém escritos num modificado estilo indireto livre. Eles evocam um tom de 'eu estava lá na convenção antropológica', enquanto mantêm consisten­temente uma 'distância' f1aubertiana. Tanto Geertz quanto Clifford falham em usar a auto-referência como algo mais do que um artifício para estabelecer autoridade. A reveladora leitura que Clifford faz da luta de galos balineses como sendo uma construção pan6ptica expli­cita esta questão, mas faz a mesma omissão num outro nível. Clif­ford lê e classifica, descrevendo intenções e estabelecendo um cânone; mas ele não examina sua própria escrita e situação. Certa­mente apontar a postura textual de Clifford não invalida seus argu­mentos (não mais do que sua leitura dos movimentos textuais de Malinowski invalida a análise dos Kula), mas os situa. Voltamos dos nativos das praias das Ilhas Trobriands para a escrivaninha na biblioteca do campus24

A classificação é um movimento essencial no estabelecimento de legitimação disciplinar ou subdisciplinar. Clifford propõe quatro tipos de escrita antropológica, que apareceram mais ou menos em ordem cronológica. Ele organiza seu ensaio On Ethnographic Aut­hority ao redor desta progressão, mas também assevera que nenhum modo de autoridade é melhor do que o outro. "Os modos de autori­dade considerados neste ensaio - experimental, interpretativo, dia­lógico, polifônico - estão à disposição de todos os escritores de textos etnográficos, ocidentais e não-ocidentais. Nenhum é obsole­to, nenhum é puro: há espaço para a invenção dentro de cada paradigma."25 Esta conclusão vai contra as convenções retóricas do ensaio de Clifford. Esta tensão é importante e retornarei a ela mais adiante.

A tese central de Clifford é de que a escrita antropológica tendeu a suprimir a dimensão dialógica do trabalho de campo, dando con­trole total do texto ao antrop610go. O bojo do trabalho de Clifford tem sido dedicado a mostrar maneiras pelas quais esta eliminação textual do dialógico pode ser remediada por novas formas de escrita. Isto o leva a ler textos interpretativos e textos fundados sobre experiências como sendo monológicos e, em geral, associados ao colonialismo. "A antropologia interpretativa ... nas suas ramifica­ções realistas oficiais ... não escapa das constrições gerais daqueles

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críticos de representação colonial que, desde os anos 50, têm rejei­tado discursos que esboçam as realidades culturais de outros povos sem no entanto colocar sua própria realidade em perigo."26 Seria fácil ler esta afirmação como preferindo alguns paradigmas em detrimento de outros. É perfeitamente possível que o próprio Clif­ford seja simplesmente ambivalente. Dadas as suas próprias esco­lhas interpretativas, ele certamente caracteriza alguns modos como "emergentes" e portanto como temporariamente mais importantes. Usando um dispositivo interpretativo que ressalta a supressão do dialógico, é um tanto difícil não ler a história da escrita antropoló­gica como sendo uma frouxa progressão em direção à textualidade dialógica e polifônica.

Depois de ter apresentado os dois primeiros modos de autoridade etnográfica (experiencial e realista/interpretativa) em termos bas­tante negativos, Clifford se move em direção a uma representação muito mais entusiástica dos modos dialógico e heteroglóssico. Ele diz: "Paradigmas dialógicos e construtivistas tendem a dispersar ou repartir a autoridade etnográfica, enquanto que narrativas de inicia­ção confirmam a competência especial do investigador. Os paradig­mas de experiência e interpretação estão dando lugar a paradigmas de discurso, de diálogo e polifonia."27 A reivindicação de que tais modos estão triunfando é empiricamente dúbia; como diz Renato Rosaldo: "As tropas não estão aderindo." No entanto, existe um considerável interesse em tais questões.

O que é o dialógico? A princípio, Clifford parece estar usando o termo num sentido literal: um texto que apresenta dois sujeitos em intercâmbio discursivo. O registro literal do intercâmbio de Kevin Dwyer28 com um lavrador marroquino é o primeiro exemplo citado como texto dialógico. Entretanto, uma página adiante, Clifford acrescenta: "Afirmar que uma etnografia é composta de discursos e que seus distintos componentes estão relacionados dialogicamente não implica que sua forma textual deva ser a de um diálogo literal."29 São dadas descrições alternadas, mas não se chega a nenhuma definição final. Conseqüentemente, as características definidoras do gênero dialógico permanecem obscuras.

"Mas se a autoridade interpretativa está baseada na exclusão do diálogo, o reverso também é verdadeiro: uma autoridade puramente dialógica reprime o inescapável fato da textualização", é o que

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Clifford rapidamente nos lembra. 30 Isto é confirmado pelo tenaz distanciamento de Dwyer do que ele percebe como sendo tendências textualistas na antropologia. É difícil compreender a oposição entre interpretativo e dialógico. Algumas páginas adiante, Clifford elogia o mais conhecido representante da hermenêutica, Hans Georg Ga­damer (cujos textos certamente não contêm diálogos diretos) como aspirando a um "dialogismo radical."3l Clifford também assevera que textos dialógicos não são nada mais do que meras "representa­ções" de diálogos. O antropólogo mantém sua autoridade como sujeito constituinte e representante da cultura dominante. Textos dialógicos podem ser tão encenados e controlados quanto textos experimentais ou interpretativos. O modo não oferece garantias textuais.

Finalmente, para além dos textos dialógicos encontra-se a hete­roglossia: "uma carnavalesca arena de diversidades". Seguindo Mikhail Bakhtin, Clifford aponta para o trabalho de Dickens como um exemplo do espaço polifônico que talvez possa servir de modelo para nós. "Dickens, o ator, performer oral e polifônico, é contrastado com Flaubert, o mestre do controle autoral, que se movimenta como Deus entre os pensamentos e os sentimentos dos seus personagens. A etnografia, como a novela, luta com estas alternativas."32 Se os textos dialógicos tornam-se vítimas dos males de ajustamentos et­nográficos totalizantes, talvez isto não aconteça com textos "hetero­glóssicos" mais radicais. "A etnografia é invadida pela heteroglos­sia. Se for concedido um espaço textual autônomo às afirmações nativas. se forem extensamente transcritas, elas farão sentido 'em termos distintos daqueles empregados pelo etnógrafo que as orde­na ... Isto sugere uma estratégia textual alternativa, a utopia de uma autoria plural que concede aos colaboradores o status de escritores e não meramente de informantes independentes."33

Clifford, no entanto, acrescenta imediatamente: "as citações sem­pre são encenadas por aquele que cita ... a polifonia mais radical somente 'deslocaria a autoridade etnográfica, confirmando assim a orquestração virtuosa de um único autor de todos os discursos no seu texto."34 Novas formas de escrita, novos experimentos textuais abririam novas possibilidades, mas não as garantiriam, e isto é um incômodo para Clifford. Temporariamente entusiasmado com o dia­lógico, ele logo racionaliza seu elogio, e nos conduz à heteroglossia:

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seduzidos durante um parágrafo até vermos que também ela, desa­fortunadamente, é escrita. Clifford encerra seu ensaio proclamando: "Tenho argumentado que esta imposição de coerência sobre um processo textual desregrado é agora, inescapavelmente, uma ques- -7 tão de opção estratégica."35

A apresentação de Clifford oferece uma progressão, ainda que ao final ela seja puramente decisória. Ele, no entanto, nega explicita­mente qualquer hierarquia. A princípio eu pensei que isto era mera inconsistência, ambivalência, ou a concretização de uma tensão não resolvida mas criativa. Agora penso que Clifford, como todos os outros, estf\,dans)e vrai. Estamos num momento discursivo no qual

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as intenções do aUtór foram eliminadas ou minimizadas pelo pensa-mento crítico recente. Ou seja, fomos levados a questionar as estru­turas e contornos dos vários modos de escrever per se. Fredric Jameson identificou elementos da escrita pós-moderna (por exem­plo, recusa de hieraquia, achatamento da história, uso de imagens) que parecem caracterizar o projeto de Clifford.

De modernismo a pós-modernismo na antropologia

Fredric Jameson no seu artigo "Postmodernism and Consumer So­ciety"36 oferece alguns pontos de partida úteis para situar recentes desenvolvimentos na escrita antropológica e meta antropológica. Sem procurar uma definição unívoca de pós-modernismo, Jameson delimita o escopo do texto ao propor um número de elementos-cha­ve: a localização histórica, o uso de pastiche, a importância de imagens. '-~/

Jameson localiza o pós-modernismo cultural e historicamente não somente como um termo estilístico, mas como demarcador de um período. Ao fazer isso, procura isolar e correlacionar caracterÍs­ticas da produção cultural nos anos 60 com outras transformações sociais e econômicas. O estabelecimento de critérios analíticos e suas correlações com mudanças sócio-econômicas é bastante preli­minar no relato de Jameson; mesmo assim, vale a pena marcar o lugar. O capitalismo tardio é definido por Jameson como o momento em que "os últimos vestígios da Natureza que sobreviveram ao capitalismo clássico são finalmente eliminados: o terceiro mundo e

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o inconsciente. Os anos 60 terão sido então o período de transforma­ção momentânea no qual esta reestruturação sistemática acontece numa escala global".37 Este não é o lugar para defender ou criticar a periodização de Jameson, que ele próprio reconhece como sendo provisória. Consideremos simplesmente que esta periodização nos dá a possibilidade de discutir mudanças de formas repre­sentacionais dentro de um contexto de desenvolvimentos ocidentais que chegam até a situação presente daqueles que descrevem não-re­trospectivamente, estabelecendo assim conexões textuais com escri­tores em contextos distintos, o que freqüentemente desconsidera diferenças. Por esta razão, vamos adotar esta periodização heuristi­camente.

Os vários pós-modernismos dos anos 60 vieram à tona, pelo menos em parte, como uma reação contra os movimentos moder­nistas anteriores. O modernismo clássico, para usar uma expressão que não é mais um oxímoro, surgiu no contexto do desenvolvimento capitalista e da sociedade burguesa e se colocou contra ele: "emergiu dentro da sociedade comercial dos anos dourados como escandaloso e ofensivo para o público da classe média - feio, dissonante, sexualmente chocante ... subversivo."38 Jameson contrasta a subver­siva mudança modernista do início do século XX com a natureza aplainadora e reacionária da cultura pós-moderna: "Aqueles estilos outrora subversivos e combatidos - expressionismo abstrato; a

grande poesia modernista de Pound, Elliot ou Wallace Stevens; o Estilo Internacional (Le Corbusier, Frank Lloyd Wright, Mies); Stravinsky, Joyce, Proust e Mann - que escandalizaram e chocaram nossos avós são tidos para a geração dos anos 60 como sendo o establishment e o inimigo - morto, extinto, canônico, os monu­mentos reificados que precisam ser destruídos para que algo novo possa ser feito. Isto significa que haverá tantas formas de pós-mo­dernismos quanto houve modernismos, já que estas formas inicial­mente são reações locais e específicas contra os modelos moder­nistas."39 Jameson, da mesma forma que Habermas,4o pensa que existem importantes elementos críticos no modernismo. Embo­ra provavelmente discordem sobre o que estes elementos são, Jame­son e Habermas talvez concordariam que o projeto da moder­nidade está incompleto e que algumas das suas características (sua

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tentativa de ser crítico, secular, anticapitalista, racional) merecem

ser fortalecidas. Eu acrescentaria que se o pós-modernismo surgiu nos anos 60

como uma reação à canonização acadêmica dos grandes artistas modernistas, moveu-se rapidamente e logrou êxito entrando na Academia nos anos 80. Com muito sucesso, o pós-modernismo domesticou-se e consolidou-se através da proliferação de esquemas classificatórios, construção de cânones, estabelecimento de hierar­quias, neutralização de comportamentos ofensivos, aquiescência a normas universitárias. Assim como existem agora galerias de arte para grafites em New York, também há teses sendo escritas sobre grafites, break dancing, e assim por diante nos departamentos mais vanguardistas. Até mesmo a Sorbonne aceitou uma tese sobre David

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O que é pós-modernismo? O primeiro elemento é sua localização histórica como uma contra-reação a modernismo. Indo além da já clássica definição de Lyotard42 - o fim das metanarrativas -Jameson agrega o pastiche como outro elemento constitutivo do pós-modernismo. A definição do dicionário não é suficiente: (1) uma composição artística derivada de varias fontes (2) guisado (hodge podge). Pound, por exemplo, bebeu de muitas fontes. Jame­son aponta para um uso de pastiche que perdeu as suas bases normativas, que vê a barafunda de elementos como tudo o que existe. Hodge podge é definido como "uma mistura confusa", mas provém do francês hochepot, um "recozido", e nisso reside a dife­

rença. Joyce, Hemingway, Woolf, entre outros, começaram com a pre­

sunção de uma subjetividade interiorizada e distintiva que tanto extraía como se mantinha à distância de falas e de identidades normais. Havia "uma norma lingüística contra a qual os grandes modernistas"43 poderiam ser atacados ou elogiados, mas em ambos os casos aferidos. O que aconteceria se a tensão entre a normalidade burguesa e o teste estilístico de limites por parte dos modernistas fendesse e desse vazão a uma realidade social na qual não tivésse­mos nada mais do que "diversidade e heterogeneidade estilística" sem a suposição (embora contestável) de identidade relativamente estável e normas lingüísticas? Sob tais condições, a postura contest­atória dos modernistas perderia sua força: "Tudo o que resta é imitar

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estilos mortos, falar através de máscaras e com as vozes dos estilos no museu imaginário. Mas isto significa que a arte contemporânea ou pós-moderna se produziria sobre a própria arte de uma nova maneira; significa que uma das suas mensagens essenciais envolve­ria o necessário fracasso da arte e da estética, o fracasso do novo, o aprisionamento no passado."44 Parece-me que este aprisionamento no passado é distinto de historicismo. O pós-modernismo vai além (o que agora parece ser algo confortante) do estranhamento do historicismo que olhava, de longe, outras culturas como totalidades. A dialética do self e do outro talvez tenha produzido uma relação alienada, mas era uma relação com normas, identidades e relações definíveis. Hoje, para além do estranhamento e do relativismo, está o pastiche.

Para exemplificar isto, Jameson desenvolve uma análise de fil­mes nostálgicos. Filmes contemporâneos como Chinatown ou Body Heat são caracterizados por um estilo retrospectivo, referido pelos críticos franceses como la mode rétTo. Em oposição a filmes histó­ricos tradicionais que procuram recriar a ficção de outra era como sendo outra, os filmes mode rétro evocam um tom sentimental através do uso de artifícios precisos e de estratégias estilísticas que confundem fronteiras temporais. Jameson menciona que filmes nos­tálgicos recentes freqüentemente acontecem no presente (ou no caso de Star Wars, no futuro). Uma proliferação de metarreferências a outras representações aplaina e esvazia o conteúdo dos filmes. Estes filmes são fortemente influenciados por velhas tramas: "É evidente que o plágio alusivo e elusivo de velhas tramas é um dos traços do pastiche."45 Estes filmes funcionam mais para apagar a especifici­dade do passado do que para negar o presente, confundem a linha entre o passado, o presente, e o futuro. O que estes filmes fazem é representar nossas representações de outras eras. "Se aqui resta algum realismo é o 'realismo' que nasce do choque entre compreen­der este confinamento e dar-se conta de que por razões peculiares parecemos condenados a procurar o passado histórico através das nossas imagens pop, e através de estereótipos do passado que per­manecem para sempre fora de alcance."46 Esta aproximação selecio­na como seu principal problema a escolha estratégica de representa­ções de representações.

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Embora Jameson esteja escrevendo sobre consciência histórica, a mesma tendência está presente na escrita etnográfica: antropólo­gos interpretativos trabalham com o problema da representação de representações de outros; historiadores e metacríticos da antropolo­gia trabalham com a classificação, canonização, e explicitação da representação de representações de representações. O aplainamento histórico encontrado no pastiche de filmes nostálgicos reaparece no aplainamento metaetnográfico que faz todas as culturas do mundo praticantes de textualidade. Os detalhes nestas narrativas são preci­sos, as imagens evocati vas, a neutralidade exemplar, e o modo rétro.

A última característica do pós-modernismo enfatizada por Jame­son é a textualidade. Derivando das idéias lacanianas de esquizofre­nia, J ameson aponta para uma das características definidoras do movimento textual como sendo o colapso da relação entre signifi­cantes: "a esquizofrenia é uma experiência de significantes mate­riais isolados, desconectados, descontínuos que não conseguem se conectar numa seqüência coerente ... um significante que perdeu seu significado e foi, desse modo, transformado numa imagem."47 Em­bora o uso do termo esquizofrênico obscureça mais do que ilumine, a questão é convincente. Uma vez que o significante está livre da sua relação a um referente externo, ele não flutua livre de qualquer referencialidade; pelo contrário, outros textos, outras imagens tor­nam-se seus referentes. Para Jameson, os textos pós-modernos (ele se refere a Poetas da Linguagem) seguem este movimento: "Seus referentes são outras imagens, outro texto, e a unidade do poema não está de forma alguma no texto, mas sim fora, na unidade fechada de um livro ausente."48 Estamos de volta à "fantasia da biblioteca", desta vez não como uma paródia amarga, mas como um pastiche celebratório.

É óbvio que isto não significa que a atual crise de representações possa ser resolvida por decreto. Um retorno a modos anteriores de representação não auto-reflexivos é uma posição incoerente (embo­ra esta notícia ainda não tenha chegado à maioria dos departamentos de antropologia). Mas também não podemos resolver a crise igno­rando as relações entre formas representacionais e práticas sociais. Se tentarmos eliminar a refereneialidade social, outros referentes vão ocupar o espaço vazio. Então, a réplica do informante marroqui­no de Dwyer (quando perguntado sobre que parte do diálogo lhe

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havia interessado mais) de que ele não se interessara por nenhuma questão colocada por Dwyer, não é preocupante na medida em que outros antropólogos lêem o livro e o incluem nos seus discursos. Obviamente, nem Dwyer nem Clifford estariam satisfeitos com esta reação; suas intenções e estratégias discursivas divergem, e são estas estratégias que parecem ter-se desencaminhado.

Comunidades interpretativas, relações de poder, ética

"Os jovens conservadores .. , reivindicam como suas as revelações de uma subjetividade descentralizada, emancipada dos imperativos de trabalho e utilidade. e com esta experiência eles saem do mundo moderno .. , Eles remetem os poderes espontâneos da imaginação, da auto.experiência e da emoção para uma esfera longínqua e arcaica,"

- Jürgen Habermas, Modernity - An lncomplete Project

Na década passada, uma variedade de escritos importantes explorou as relações históricas entre a macropolítica mundial e a antropolo­gia: o Ocidente versus o Resto, Imperialismo, Colonialismo, Neo­colonialismo. Trabalhos como o de Talal Asad sobre o colonialismo e a antropologia, e de Edward Said sobre o discurso ocidental e o Outro, colocaram COm precisão estas questões na agenda do debate contemporâneo. Entretanto, como aponta Talal Asad no seu ensaio para este volume de Writing Culture,49 isto de maneira alguma implica em que estas condições macropolíticas e econômicas te­nham sido significativamente afetadas pelo que acontece nos deba­tes antropológicos. Hoje em dia também sabemos bastante acer­ca das relações de poder e discurso que vigoram entre o antropólogo e as pessoas com as quais ele trabalha. Finalmente, as macro e microrrelações de poder e discurso entre a antropologia e o seu outro estão abertas à investigação. Nós sabemos algumas das per­guntas que valem a pena ser feitas e perguntá-Ias toma-se parte da disciplina.

As metarreflexões sobre a crise de representação na escrita etno­gráfica indicam uma mudança da concentração nas relações COm outras culturas para uma preocupação não-tematizada COm tradições

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de representação e metatradições de metarrepresentações na nossa cultura (estou usando a metaposição de Clifford como pedra-tle-to­que). Ele não fala prioritariamente sobre as relações com o Outro, pelo contrário, sua preocupação analítica central é com os tropos discursivos e as estratégias utilizadas para descrever estas relações. Isto nos ensinou coisas importantes; esta aproximação contém, no entanto, uma cegueira específica, uma recusa de auto-reflexão. A análise da cultura pós-moderna feita por Fredric J ameson foi intro­duzida como um tipo de perspectiva antropológica sobre este desen­volvimento cultural. Certo ou errado (na minha visão mais certo do que errado), Jameson sugere maneiras de pensar o aparecimento desta nova crise de representações como um evento histórico, com seus limites históricos específicos. Ou seja, Jameson nos capacita a ver que o pós-modernista, distinto de outras instâncias críticas (que têm os seus próprios nós-cegos), é cego quanto à sua própria situação e "situacionalidade". Isto porque o pós-modernista como tal está comprometido com uma doutrina de parcialidade e fluxo na qual até mesmo coisas como as próprias situações individuais são tão instáveis e sem identidade, que não podem servir como objetos de reflexão prolongada. 50 O pastiche pós-modernista é tanto uma posição crítica quanto uma dimensão do mundo contemporâ­neo. A análise de J ameson nos ajuda a estabelecer uma compreensão das interconexões pós-modernistas - e através disto evita a nostal­gia e o erro de universalizar e ontologizar uma situação histórica particular.

O que está em jogo nos recentes debates sobre o escrever não é diretamente político no sentido convencional deste termo. Argu­mentei em outro lugar5l que a política aqui envolvida é a acadêmica, e que este nível de política não havia sido explorado antes. O trabalho de Pierre Bourdieu ajuda a levantar questões acerca da política da cultura.52 Bourdieu nos ensina a perguntar em que campo de poder e em que posição neste campo o autor escreve. Sua nova sociologia da produção cultural não procura reduzir o saber à posi­ção ou ao interesse social per se, mas coloca todos os tipos de variáveis dentro de limites complexos - o habitus de Bourdieu -nos quais elas são produzidas e recebidas. Bourdieu presta atenção especial às estratégias de poder cultural que avançam através da

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negação de conexões com fins políticos imediatos e, assim, acumu­lam capital simbólico e elevada posição estrutural.

O trabalho de Bourdieu nos leva a suspeitar que as proclamações acadêmicas contemporâneas de anticolonialismo, ainda que admirá­veis, não expressam tudo o que está em jogo. Estas proclamações devem ser vistas como movimentos políticos dentro da comunidade acadêmica. Nem Clifford nem qualquer um de nós está escrevendo no final dos anos 50. Seu público não é composto por funcionários coloniais nem por pessoas trabalhando sobre a égide do poder colonial. O nosso campo político é mais familiar: o campus univer­sitário nos anos 80. Portanto, situar a crise das representações dentro do contexto de ruptura pós-colonial, ainda que não totalmente falso, é basicamente irrelevante dada a maneira como a coisa é tratada. Isto é verdade na medida em que a antropologia reflete o curso dos eventos mundiais e, especificamente, a mudança das relações histó­ricas com os grupos que estuda. Asseverar que uma nova escrita etnográfica emergiu por causa da descolonização, termina por omitir aquelas mediações que dariam um sentido histórico ao presente objeto de estudo.

Somos, pois, levados a considerar a política de interpretação na academia hoje. Pode parecer sem importância perguntar se textos longos, dispersivos, multiautorais vão render credenciamento aca­dêmico. Nietzsche no entanto nos exoitou a prestar atenção escru­pulosa a estas dimensões das relações de poder. Não há dúvida quanto à existência e à influência deste tipo de relação de poder na produção de textos. Devemos estar atentos a tais condições menos glamourosas e imediatamente mais limitantes. O tabu contra espe­cificá-las é muito maior do que as restrições contra denunciar o colonialismo; uma antropologia da antropologia deveria incluir tais questões. Assim como anteriormente havia um nó discursivo que prevenia a discussão das práticas de campo que definiam a autorida­de do antropólogo, e que foi agora desatado, 53 também as microprá­ticas da academia merecem algum escrutínio.

Outra maneira de colocar este problema é referir-se à conversa de corredor. Por muitos anos, os antropólogos discutiram seus traba­lhos de campo informalmente entre si. Mexericos acerca destas experiências eram um componente importante da reputação do an­tropólogo. Mas até pouco tempo atrás não se escrevia seriamente

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sobre tais questões; os mexericos permaneciam nos corredores e nos clubes docentes. Os domínios que não podem ser analisados ou refutados, ainda que sejam centrais à hierarquia, não deveriam ser considerados como inocentes ou irrelevantes. Sabemos que uma das táticas mais comuns de um grupo de elite é a recusa em discutir questões que lhe são desconfortáveis, classificando-as de vulgares ou desinteressantes. Quando as conversas de corredor sobre as pesquisas de campo tornarem-se discursos, isto é, quando estes domínios privilegiados de alguns poucos tomarem-se objetos cien­

tíficos, certamente aprenderemos bastante. Minha aposta é de que olhar para as condições sob as quais as

pessoas são contratadas, credenciam-se academicamente, publicam, recebem bolsas de estudo e são restringidas pagaria o esforço.54 Qual é a diferença da onda desconstrutivista da outra grande tendên­cia na academia na década passada, o feminismo?55 Como se fazem carreiras? Como são destruídas? Quais são os limites do gosto? Quem estabelece e quem coloca em vigor maneiras civilizadas? Nós certamente sabemos que as condições materiais em meio às quais o movimento textual floresceu inclui a universidade, sua micropolíti­ca, suas tendências. Nós sabemos que este nível de relação de poder existe, nos afeta, influencia nossos temas, formas, conteúdos e públicos. Devemos prestar atenção a estas questões, ainda que tão-somente para estabelecer o seu peso relativo. Então, a exemplo do que aconteceu com a pesquisa de campo, quem sabe seremos

capazes de lidar com questões mais globais.

Pára de fazer sentido: diálogo e identidade

Marilyn Strathem, no seu desafiador ensaio,56 deu um importante passo ao situar a estratégia da recente escrita textualista comparan­do-a com os trabalhos recentes de feministas antropológicas. Strat­hem distingue a antropologia feminista (urna subdisciplina contri­buindo ao avanço da disciplina) do feminismo antropológico que objetiva construir uma comunidade feminista cujas premissas e objetivos diferem da e se opõem à antropologia. Neste último em­preendimento, os termos valorizados são diferença e conflito, como condições históricas de identidade e saber, e não ciência e harmonia.

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Strathern reflete sobre o seu mal-estar quando um colega "titular" elogia a antropologia feminista por enriquecer a disciplina. Ele disse: "Que mil flores floresçam." Ela diz: "De uma maneira geral, é verdade que a crítica feminista enriqueceu a antropologia, abriu novas compreensões sobre ideologia, construção de sistemas simbó­licos, administração de bens, conceitos a respeito de propriedade e assim por diante." Dentro da sua abertura e do seu ecletismo relati­vo, a antropologia integrou estes avanços científicos, primeiro de forma relutante, depois avidamente. Valendo-se do conceito kuhnia­no de paradigma, Strathernaponta que a ciência normalmente traba­lha assim. A tolerância masculina que permite "que mil flores flo­resçam" produziu um desconforto em Strathern. Mais tarde, ela compreendeu que este desconforto derivava da impressão de que as feministas deveriam estar trabalhando em outros campos e não acrescentando flores à disciplina da antropologia.

Strathern aponta como a sua prática se diferencia do modelo científico normal. Primeiro, reivindica que a ciência social e a ciência natural são diferentes: "não simplesmente porque dentro de qualquer disciplina encontram-se diversas 'escolas' (o que também é verdade na ciência), mas pelo fato de que suas premissas são construídas em competição umas com as outras." Segundo, esta competição não lida somente com questões epistemológicas, mas em última análise com diferenças políticas e éticas. No seu ensaio What Makes an lnterpretation Acceptable?, Stanley Fish elabora uma questão similar, embora o faça com objetivos distintos.57 Ele argumenta que todas as afirmações são interpretações e que todos os apelos ao texto, ou aos fatos, são eles mesmos baseados em interpretações; estas interpretações são assuntos comunitários e não subjetivos (ou individuais), ou seja, os significados são culturais e estão socialmente disponíveis, não são inventados ex nihilo por um único intérprete. Finalmente, todas as interpretações, principalmen­te as que negam seu status de interpretações, somente são possíveis com base em outras interpretações, cujas regras elas terminam por afirmar, ao anunciar sua negação.

Fish argumenta que nós nunca resolvemos desacordos apelando a fatos ou ao texto porque "os fatos somente emergem no contexto de algum ponto de vista. Conseqüentemente, deve haver desacordos entre aqueles que mantêm ou são mantidos por diferentes pontos de

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vista. O que está em jogo num desacordo é o direito de especificar o que os fatos serão a partir de então."58 Strathern esclarece destra­mente estas questões ao contrastar o feminismo antropológico aos

antropólogos experimentais. Para aqueles interessados em escrita etnográfica experimental,

argumenta Strathern, é fundamental uma atitude dialógica: "O esfor­ço está em criar uma relação com o Outro, procurar um meio de expressão que ofereça uma interpretação mútua, talvez visualizada como um texto comum, ou como algo semelhante a um discurso." Para Strathern, o feminismo está baseado no fato primeiro e inassi­milável da dominação. A tentativa de incorporar perspectivas femi­nistas numa melhorada ciência antropológica ou numa nova retórica de diálogo é tida como um ato adicional de violência. A antropologia feminista está tentando mudar o discurso e não melhorar um para­digma: "quer dizer, ela altera o tipo de audiência, os modos de interação entre a autora e o leitor; também altera o conteúdo da conversação de maneira a permitir que outros falem, o que se fala e com quem se fala." Strathern não está procurando inventar uma nova síntese; ela fortalece a diferença.

As ironias aqui são inspiradoras. Os experimentalistas (quase todos homens) são maternais e otimistas, com um toque de senti­mentalismo. Clifford reivindica estar trabalhando com uma combi­nação de idealismo dos anos 60 e ironia dos anos 80. Os textualistas radicais procuram estabelecer relações, demonstrar a importância de conexão e abertura, criar possibilidades de repartir e de compreen­são mútua; ao mesmo tempo são obscuros acerca do poder e das realidades dos limites sócio-econômicos. O feminismo antropológi­co de Strathern insiste em não perder de vista diferenças fundamen­tais, relações de poder, dominação hierárquica. Ela procura articular uma identidade comum com base em conflito, separação e antago­nismo: em parte como defesa contra a ameaça de incorporação por um paradigma de amor, mutualidade e compreensão no qual ela vê outros motivos e interesses; em parte como estratégia para preservar a diferença significativa como um valor distintivo per se.

As diferenças aparecem em dois níveis: entre as feministas e a antropologia, e dentro da comunidade feminista. Na superfície, os valores mais importantes são a resistência e a não-assimilação. Dentro desta nova comunidade interpretativa. no entanto, as virtu-

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des das relações dialógicas têm sido afirmadas. Internamente, as feministas discordam e competem entre si. "É precisamente porque a teoria feminista não constitui o seu passado como um 'texto' que ela não pode simplesmente adicionar ou suplantar a antropologia. Se as feministas mantêm sempre uma separação do Outro, por contras­te, elas criam entre si algo muito mais próximo de um discurso do que de um texto. O caráter deste discurso aproxima-se do produto comum interlocutório, o que é a meta da nova etnografia." Enquanto os tropos estão à disposição para serem utilizados por todos, a maneira como são utilizados faz toda a diferença.

Ética e modernidade

"A emergência de facções dentro de uma atividade outrora interditada é um sinal seguro de que ela atingiu o status de uma ortodoxia."

- Stanley Fish, "What Makes an Interpretation Acceptable?"

Discussões recentes sobre a confecção de textos etnográficos têm revelado divergências bem como importantes áreas de consenso. Utilizando outra expressão de Geertz, nós podemos, e é o que temos feito, contrariar uns aos outros e lucrar com isto: a pedra de toque do avanço interpretativo. Nesta última parte, através dajustaposição esquemática das três posições anteriormente esboçadas, proporei minha própria posição. Embora crítico de aspectos de cada uma destas posições, eu as considero membros se não de uma comunida­de interpretativa, pelo menos de uma federação interpretativa à qual pertenço.

Antropólogos, críticos, feministas e intelectuais críticos, todos estão preocupados com questões acerca da verdade e sua localização social, imaginação e problemas formais de representação, domina­ção e resistência, o sujeito ético e técnicas para se vir a sê-lo. Estes tópicos são entretanto interpretados de maneiras divergentes, dife­rentes perigos e diferentes possibilidades são identificadas, diferen­tes hierarquias são defendidas entre estas categorias.

1. Antropólogos interpretativos. Os temas dominantes são a verda­de e a ciência entendidas como práticas interpretativas. Tanto o

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antropólogo quanto o nativo estão engajados na interpretação do sentido do cotidiano. Problemas de representação são centrais para ambos e são o locus da imaginação cultural. As representa­ções no entanto não são sui generis; elas servem como meio para dar sentido aos mundos da vida (em cuja construção são instru­mentais) e, conseqüentemente, elas diferem em suas funções. As metas do antropólogo e do nativo são distintas. Por exemplo, a ciência e a religião como sistemas culturais diferem em estraté­gia, ethos e fins. As posições políticas e éticas são âncoras importantes, ainda que largamente implícitas. Os ideais gêmeos weberianos de ciência e política como vocações produziriam, caso incorporadas pelo pesquisador, o sujeito ético para esta posição. Conceitualmente, o coração deste projeto é a especifi­cação científica da diferença cultural. O grande perigo, visto de dentro, é a confusão entre a ciência e a política. A grande fraqueza, vista de fora, é o cordão sanitário histórico, político e experimental traçado ao redor da ciência interpretativa.

2. Críticos. O princípio condutor é formal. O texto é primário. A atenção aos tropos e às estratégias retóricas através das quais a autoridade é construída permite introduzir temas como domina­ção, exclusão e desigualdade. Mas estes temas são somente matéria-prima. Eles recebem forma através do crítico/escritor, seja ele antropólogo ou nativo: "Outras tribos, outros escribas." Nós mudamos, primariamente, através de construções imagina­tivas. Os tipos de seres que queremos ser são abertos, permeá­veis, desconfiados de metanarrativas, pluralizadores. O controle autoral, no entanto, parece cegar a auto-reflexão e o impulso dialógico. O perigo: a obliteração de diferenças significativas, o que Weber apontou como a "museologização" do mundo. A verdade de que a experiência e o sentido são mediados represen­tacionalmente pode ser estendida a ponto de a experiência e o sentido serem confundidos com a dimensão formal da repre­sentação.

3. Sujeitos políticos. O princípio condutor é a constituição de uma subjetividade política comunitariamente baseada. As feministas antropológicas trabalham contra um Outro percebido como es­sencialmente diferente e violento. Dentro da comunidade, a procura pela verdade assim como pela experimentação social e

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100 • Antropologia da Razão

estética são guiadas por um desejo dialógico. O Outro fictício permite o aparecimento de uma gama pluralista de diferenças. O risco é de que estas ficções capacitadoras sejam reificadas e assim redupliquem as opressivas formas sociais que pretendem minar. Strathern aponta para esta questão: "Se o feminismo agora escarnece a pretensão antropológica de criar um produto multi­autoral, então a antropologia escarnece a pretensão das feminis­tas de conseguirem a separação que desejam."

4. Intelectuais críticos, cosmopolitas. Eu enfatizei os perigos da ciência interpretativa e do intérprete soberano sobre tudo, e estou excluído da participação direta no diálogo feminista. Proponho uma quarta posição, um cosmopolitismo crítico. O princípio condutor é ético. Esta é uma posição oposicionista, desconfiada de poderes soberanos, verdades universais, precisão relativizada em demasia, autenticidade local, moralismo de cima e de baixo. Entendimento é o seu outro valor, mas um entendimento descon­fiado de suas tendências imperialistas. Esta posição presta aten­ção às - e respeita - diferenças, mas também está alerta à tendência de essencializá-las. O que hoje temos em comum como condição de existência, agudizada por nossa habilidade e por vezes ânsia de obliteração mútua, é uma especificidade de experiência e lugar histórico complexos e contestáveis assim como uma macrointerdependência mundial incorporando qual­quer particularidade local. Quer gostemos ou não, estamos todos nesta situação. Tomando emprestado e modificando um termo aplicado durante épocas distintas a cristãos, aristocratas, merca­dores, judeus, homossexuais e intelectuais, chamo de cosmopo­litismo a aceitação desta valorização gêmea. O cosmopolitismo é pois um ethos de macrointerdependências, com uma consciên­cia perspicaz, muitas vezes imposta sobre as pessoas, das fatali­dades e particularidades de lugares, sujeitos, trajetórias históri­cas e destinos. Embora todos sejamos cosmopolitas, o Romo sapiens tem deixado muito a desejar na sua interpretação desta condição. Parece que temos problemas com o balanceamento, preferindo rei ficar identidades locais ou construir identidades universais. Nós vivemos in-between, no meio de. Os sofistas oferecem uma figura fictícia para este interstício: eminentemente grego, ainda que muitas vezes excluído da cidadania de várias

Representações sãO fatos sociais • 101

pólis; estranhos residentes cosmopolitas de um mundo histórico­cultural particular; não membros de um regime universal proje­tado (sob Deus, o império, ou as leis da razão); devotos da retórica e portanto totalmente conscientes dos seus abusos; preo­cupados com os eventos do dia, mas fortalecidos por uma reserva

irônica.

As relações problemáticas de subjetividade, verdade, modernidade e representações têm estado no centro do meu próprio trabalho. Ciente de que as considerações sobre poder e representação estavam por demais localizadas na minha pesquisa anterior no Marrocos, trabalho agora com um tópico que utiliza estas categorias de uma forma mais ampla. Mais à vontade numa postura oposicionista, optei por estudar um grupo de administradores da elite francesa, funcio­nários dos governos coloniais, bem como reformadores sociais, todos preocupados com planejamento urbano nos anos 20. Ao estu­dar estas instâncias, encontrei-me numa posição mais confortável do que estaria caso "desse voz" a grupos dominados ou marginais. Escolhi um grupo de homens poderosos preocupados com questões de política e forma: nem heróis nem vilões, eles me pareciam permitir a distância antropológica necessária. Eu estava separado o suficiente para evitar uma identificação fácil, próximo o suficiente para compreender de uma forma benevolente, embora crítica.

A disciplina do urbanismo moderno foi posta em prática nas colônias francesas, particularmente no Marrocos sob o governo de Hubert Lyautey (1912-25). Os planejadores arquitetônicos e os funcionários do governo colonial que os contrataram tomaram as cidades nas quais trabalhavam como laboratórios sociais e estéticos. Estes locais ofereciam a ambos os grupos a oportunidade de pôr à prova novos conceitos de planificação e testar a eficiência política destes planos para sua aplicação tanto nas colônias quanto eventual­

mente em casa. Até pouco tempo atrás, os estudos sobre o colonialismo eram

feitos quase que exclusivamente em termos da dialética de domina­ção, exploração e resistência. Esta dialética é e foi extremamente importante. Tomada unicamente em si mesma, ela negligencia duas das principais dimensões da situação colonial: a cultura e o campo político nos quais foi possível. Isto levou a várias conseqüências

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102 • Antropologia da Razão

surpreendentes; de forma estranha, nas colônias, o grupo a receber menos atenção nos estudos históricos e sociológicos são os próprios colonizadores. Felizmente este retrato está começando a mudar. Os variados sistemas de estratificação social e a complexidade da vida colonial, nas suas variações de lugar para lugar em diferentes perío­dos históricos, estão começando a ser melhor entendidos.

Enquanto uma visão mais complexa da cultura colonial está sendo articulada, penso que também necessitamos de uma com­preensão mais complexa do poder nas colônias; os dois estão conec­tados. Freqüentemente, o poder é compreendido como uma força personificada: a posse de um único grupo, os colonizadores. Esta concepção é inadequada por diversas razões. Primeiro, os próprios colonizadores eram fracionados e estratificados entre si. Segundo, o Estado (particularmente o colonial) é algo sobre o qual precisamos saber muito mais. Terceiro, foi seriamente posta em questão a visão de poder que o toma por uma coisa, uma posse, como emanando uni direcional mente de cima para baixo, ou operando primariamente através da aplicação da força. Vinte mil soldados franceses domina­ram a Indochina nos anos 20 com um grau de controle que os quinhentos mil americanos, cinqüenta anos mais tarde, nunca alcan­çaram. O poder acarreta muito mais do que armas, embora certa­mente não as exclua.

O trabalho de Michel Foucault sobre relações de poder nos oferece importantes ferramentas analíticas. Foucault distingue entre exploração, dominação e sujeiçãoS9 Ele argumenta que a maioria das análises de poder concentram-se quase que exclusivamente nas relações de dominação e exploração: quem controla quem e quem extrai os frutos da produção dos trabalhadores. O terceiro termo, sujeição, enfoca aquele aspecto do poder mais distante da aplicação direta da força. Esta dimensão das relações de poder é onde a identidade de indivíduos e grupos está em jogo, e onde ordem num sentido amplo toma forma. Este é o espaço no qual cultura e poder estão mais proximamente interconectados. Algumas vezes Foucault chama estas relações de "govemamentalidade", e o termo é útil.

Seguindo Foucault, Iacques Donzelot argumenta que durante a última parte do século XIX foi construído um novo campo relacio­nal de grande importância histórica: Donzelot o chama de "social".60 Áreas específicas como higiene, estrutura familiar e sexualidade,

Representações são fatos sociais. 103

geralmente fora do alcance da política, tomaram-se alvos de inter­venção estatal. O social to~ou-se um conjunto demarcado e objeti­ficado de práticas parcialmente construídas e parcialmente entendi­das através dos métodos e instituições emergentes das novas disciplinas das ciências sociais. O "social" foi um locus privilegiado para experimentação com novas formas de racionalidade política.

A sofisticada visão colonizadora de Lyautey voltou-se à necessi­

dade de trazer grupos sociais para um campo de relações de poder, distinto do que havia previamente existido nas colônias. Segundo ele, isto somente poderia ser alcançado através de um amplo plane­jamento social, no qual o urbanismo desempenhava um papel cen­tral. Como Lyautey disse num elogio ao seu planejador-mor, Renri Prost: "A arte e a ciência do urbanismo que floresceu durante a idade clássica parecem ter sofrido um total eclipse a partir do Segundo Império. O urbanismo, a arte e a ciência de desenvolver aglomera­ções humanas, volta à vida sob as mãos de Pros!. Nesta era mecâni­ca, Prost é o guardião do 'humanismo'. Ele não trabalhou somente com coisas, mas também com seres humanos, diferentes tipos de seres humanos, a quem la Cité deve mais do que estradas, canais, esgotos e um sistema de transportes" 6 I Para Lyautey e seus arquite­tos, o novo humanismo aplicava-se apropriadamente não somente a coisas, mas a pessoas, e não somente a pessoas em geral, não se tratava do humanismo de Le Corbusier, mas pessoas em circunstân­cias históricas e sociais diferentes. O problema era acomodar esta diversidade. Para estes arquitetos, planejadores e administradores, a tarefa com a qual se confrontavam era conceber e produzir uma nova

ordonnance social. Eis a razão pela qual as cidades do Marrocos eram tão importan­

tes aos olhos de Lyautey. Elas pareciam oferecer esperança, uma maneira de evitar os impasses tanto da França quanto da Argélia. O famoso dito de Lyautey tinha significado literal: "Um local de construção vale uma batalha." Lyautey temia que se os franceses continuassem a fazer política como vinham fazendo, os resultados continuariam a ser catastróficos. Uma solução diretamente política no entanto não estava à mão. Urgentemente necessária era uma nova arte social, científica e estratégica; somente assim a política poderia

ser evitada e o poder verdadeiramente ordonné.

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104 • Antropologia da Razão

Estes homens, como tantos outros no século XX, procuravam escapar da política. Isto no entanto não significa que eles não estavam preocupados com relações de poder, longe disto. Seu obje­tivo, um tipo de autocolonização tecnocrática, era desenvolver no­vas relações de poder que viessem a gerar saudáveis relações so­ciais, econômicas e culturais. Para os planejadores urbanos, era necessário inventar uma nova governamentaJidade através da qual as tendências fatalmente decadentes e individualistas dos franceses pudessem ser remodeladas. Eles construíram e articularam novas representações de uma ordem moderna, assim como tecnologias para a sua implementação. Estas representações são fatos sociais modernos.

Este texto esboçou alguns dos elementos dos discursos e das práticas da representação moderna. A relação desta análise com a prática política foi somente vista de relance. O quê, como e quem pode ser representado por aqueles que mantêm uma visão similar das coisas escapa das nossas categorias convencionais de atores sociais e de retórica política. Para encerrar, eu simplesmente marco o espaço. Acusado de ter perdido o direito de representar quaisquer pessoas ou valores já que recusa a filiar-se a algum grupo político localizável e identificado, Foucault respondeu: "Richard Rorty men­ciona que nestas análises eu não apelo para nenhum 'nós', para nenhum daqueles 'nós' cujo consenso, valores e tradições consti­tuem o arcabouço para um pensamento e definem as condições nas quais este pensamento pode ser validado. Na verdade, o problema é decidir se é realmente adequado localizar-se a si mesmo dentro de um 'nós' a fim de assegurar os princípios reconhecidos e os valores aceitos, ou se, ao contrário, pão é necessário fazer a futura formação de um 'nós' possível através da elaboração de questionamentos."62

Notas

I. Paul Rabinow, "Representations are Social Facts: Modemity and Post-Mo­dernity in Anthropology" in James Clifford e George Marcus (eds.), Wri· ting Culture: The Polities and Poetics of Ethnography, Berkeley, Universi­ty of Califomia Press, 1986.

Representações são fatos sociais • 105

2. Richard Rorty, Philosophy and the Mirrar of Nature, Princeton, Princeton University Press, 1979, p. 315. [Ed. bras.: A filosofia e o espelho da natureza, Rio de Janeiro, Editora Relume-Dumará, 1995}.

3. Ibidem. p. 61. 4. Ibidem, p. 50. 5. Ibidem, p. 3. 6. Ibidem. p. i32. 7. Ibidem, p. i39. 8. Ibidem, p. 6. 9. lan Hacking, "Language, Truth, and Reason" in R. Hollis e S. Lukes (eds.),

Rationality and Relativism, Cambridge, MIT Press, 1982, p. 56, 57.

10. Ibidem. p. 56. ii. Ibidem, p. 49. 65. i2. Ibidem, p. 65. 13. Vide Dreyfus e Rabinow. Michel Foueault: Beyond Structuralism and

Hermeneutics, p. 44-79. 14. Michel Foucault, "The Discourse on Language" in The Archaelogy of

Knowledge, New York, Harper and Row, i976, p. 223, 224.

i5. Ibidem, p. 224. 16. lan Hacking. "Five Parables" in Richard Rorty et alii (eds.), Philosophy in

History, Cambridge, Cambridge University Press, 1984. p. 109. 17. Michel Foucault, ''Truth and Power" in PowerlKnowLedge, New York,

Pantheon Books, i980, p. li7. i8. Michei Foucault, ibidem, p. 13i-133. 19. Michel Foucault, "Fantasia of the Library" in D. Bouchard (ed.), Langua­

ge, Counter-Memory, Practice, Ithaca, Cornell University Press, 1977. 20. Dan Sperber. "Ethnographie interprétative et anthropologie théorique"'in

Le Savoir des Anthropologues, Paris, Hermann, 1982. 21. Vide Michel de Certeau, "History: Ethics, Science, and Fiction" in R.

Bellah, N. Hahn, P. Rabinow, W. Sullivan (eds.), Social Science as Moral lnquiry, New York, Columbia University Press, 1983.

22. A importância deste duplo movimento é um dos argumentos centrais do meu livro "Reflections on Fie1dwork in Moroceo" (1977).

23. James Clifford, "On Ethnographic Authority" in Representalions, voI. 1, nO

2, i983. p. i32. 24. Gostaria de agradecer a ajuda de Arjun Appadurai em clarificar esta e outras

questões. 25. Ibidem, p. i42. 26. Ibidem, p. i33. 27. Ibidem, p. i33. 28. Ibidem, p. i34. 29. Ibidem, p. 135. }(l. Ibidem, p. 134.

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106 • Antropologia da Razão

31. Ibidem, p. 142. 32. Ibidem, p. 137. 33. Ibidem, p. 140. 34. Ibidem, p. 139. 35. Ibidem, p. 142.

36. Fredric Jameson. "Postmodernism and Consumer Society" in H. Foster Ced.), The Anti-Aesthetic Essays on Postmodern Culture, Port Townsend, Bay Press, 1983.

37. Predric Jameson, "Periodizing the 60s" in S. Aronowitz, F. Jameson, S. Sayers, A. Stephanson (eds.), The Sixties Without Apologies, Minneapolis, University of Minnesota Press. 1984. p. 207.

38. Fredric Jameson, "Postmodernism and Consumer Society", p. 124. 39. Ibidem. p. 111. 112.

40. Jürgen Habermas, "Modernity - An Incomplete Project" in H. Foster (ed.), op. cit.

41. Como noticiado no Le Nouvel Observateur, 16-22 de novembro de 1984. 42. Jean François Lyotard, La Condition Postmoderne, Paris, Editions du

Minuit,1979.

43. Fredric Jameson, "Postmodemism and Consumer Society", p. 114. 44. Ibidem. p. 115, 116. 45. Ibidem. p. 117. 46. Ibidem, p. 118. 47. Ibidem, p. 120. 48. Ibidem, p. 123.

49. TalaI Asad, ''The Concept of Cultural Translation in British Social Anthro­pology" in J. Clifford e G. Marcus, Writing Culture - The Poetics and Politics of Ethnography, Berkeley, University of Califomia Press, 1986.

50. Agradeço a James Faubion por levantar esta questão. 51. Paul Rabinow, "Discourse and Power: 00 the Limits of Ethnographic

Texts" in Joumal ofDialectical Anthropology, vaI. 9, n° 10,1985. 52. Vide os livros de Pierre Bourdieu: Distinction, Cambridge. Harvard Uni­

versity Press, 1984; Romo Academicus, Paris, Éditions de Minuit. 1984. 53. Vide Paul Rabinow, Reflections on Fieldwork in Morocco, Berkeley, Uni­

versity of California Press. 1977.

54. Martin Finkelstein (1984) apresenta um importante resumo sobre como algumas destas questões são vistas nas ciências sociais. In: The American Academic Profession: A Synthesis of Social Scientific Inquiry Since World War 11. Columbus: Ohio State University. 1984.

55. Estas questões estão sendo desenvolvidas por. Deborah Gordon na sua tese de doutoramento na Universidade da Califórnia em Santa Cruz.

56. Marilyn Strathern, "Dislodging a World View: Challenge and Counter­Challenge in the Relationship Between Feminism and Anthropology",

Representações são fatos sociais • 107

palestra proferida no "Research Center for Woman's Studies", University

of Adelaide, 04 de julho de 1984. 57. Stanley Fish. "What Mak.es ao Interpretation Possible?" in ls There a Text

in This Class?, Cambridge, Harvard Uoiversity Press, 1980.

58. Ibidem, p. 338. 59. Michel Foucault, "The Subject and Power" in H. Dreyfus e P. Rabinow,

Michel Foucault: Beyond Structuralism and Hermeneutics, Chicago. Chi­

cago University Press, 1982. 60. Jacques Donzelot, The Policing of Families, New York, Pantheon Books,

1979. 61. In Marrast, Jean Ced.), L'(Euvre de Henri Prost: Architecture et Urbanisme,

Paris, Imprimerie de Compagnonnage, 1960, p. 119. 62. Michel Foucault, "Polemics, Politics, and Problematizations" in P. Rabi­

now (ed.), The Foucault Reader, New York, Pantheon Books, 1984, p. 385.

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Antropologia como nominalismo!

O momento experimental na antropologia tem gerado muitas discussões, algumas até salutares, que incluem uma cons­ciência aguçada do texto e do discurso, da posição do

antropólogo como etnógrafo e crítico, da polifonia pós-moderna de vozes, do suposto fim das metanarrativas, de dispersão e subversão, de metáforas, alegorias e tropos: de Oriente e Ocidente. Entremen­tes, será que a antropologia se dispersou em etnografia, vozes deslocaram análises, tropos triunfaram sobre conceitos?

E se a antropologia, o estudo do Homem, aquele ser que é sujeito e objeto do seu próprio saber, mostrou-se mais duradoura do que as melodiosas denúncias, os ruídos efêmeros, e a tropificação dos trópicos? Os artigos deste volume de Cultural Anthropology suge­rem tal possibilidade. A fim de introduzi-los, voltemo-nos primeiro a Michel Foucault, uma figura ausente, por exemplo, do livro Antro­pologia como Crítica Cultural2

Em 1961, Foucault publicou sua tese para o doctorat des lettres, Histoire de lafolie à l'âge classique, bem como uma these complé­mentaire intitulada Introdução à antropologia de Kant, um COmen­tário ao texto de Kant "Antropologia de um ponto de vista pragmá­tico" (traduzido pelo próprio Foucault). Durante sua carreira acadêmica, Kant lecionou somente dois cursos com regularidade por mais de trinta anos: geografia física - o mundo como natureza (bastante popular entre os estudantes), proposto desde 1756; e an­tropologia, o mundo como sendo humano, ensinado desde 1772, durante os últimos vinte e cinco anos de sua carreira como professor.

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11 o • Antropologia da Razão

Este último foi somente publicado em 1798, pouco depois de Kant se aposentar.3 Embora a antropologia de Kant, algo certamente curioso, não tenha sido objeto de comentários extensivos em histó­rias contemporâneas do pensamento social crítico (Norbert Elias a menciona4), Foucault privilegiou sua modernidade potencial, vendo nela uma refração das três críticas de Kant no nível de uma pragmá­tica do cotidiano. Pragmática é a palavra-chave. Kant distingue os seguintes pontos de vista: o prático que lida com a comunidade moral dos seres pensantes (esprits); o jurídico que trata a sociedade civil como sendo composta por sujeitos legais; o pragmático que trata o homem como um "cidadão do mundo", como um universal concreto.5 Foucault concluiu que a antropologia de Kant ocupou uma posição estratégica visto que tratava a verdade crítica sobre o Homem (a realidade irredutível das diversas formas do concreto) como filha (assim segue a frase em francês) da crítica da verdade. A antropologia, filha da filosofia, estava destinada a ser mais moderna do que seu pai.

As reflexões de Kant sobre a antropologia que culminaram na sua Antropologia de um ponto de vista pragmático, atravessam sua filosofia pré-crítica e crítica. Esta antropologia estabelece uma pon­te entre o período cosmológico do pensamento de Kant, no qual o todo é entendido como tendo uma ordem já dada, aparentando leis, e o período cosmopolita, no qual o mundo aparece como aquilo que já está no tempo e é portanto um domínio sem origem, a ser continuamente construído, quer dizer, em nosso vocabulário, desde sempre histórico e cultural. A partir da perspectiva cosmopolita, nós sempre estamos num mundo dado, já aqui à nossa frente. Enquanto que, por definição, há somente um universo, existem diversos mun­dos - "es mag viele Welte sein".6 Estes mundos são totalidades, mas não tudo: não "AlJes" mas "einer Ganze".7

Dada esta perspectiva pragmática, a pergunta de Kant "O que é o Homem?" somente pode ser respondida de uma forma não transcen­dental, mas através da análise complementar de formas concretas, daquilo que Kant chama de 'jogar", spielen, o domínio onde a liberdade e a natureza, o universal e o particular, estão inextricavel­mente interconectados. Kant chama este domínio de Gebrauch; Foucault o traduz como "uso". Hoje nós provavelmente o chamaría­mos de práticas. Práticas ocupam o domínio das relações pragmáti­cas já dadas em relação ao self, aos outros e às coisas. Estas relações

Para além da etnografia • 111

são singulares nos seus conteúdos, mas universais nas suas formas; elas são, na terminologia de Kant, populares e sistemáticas. Enquan­to que a dimensão sistemática é a matéria das três críticas, a dimen­são popular é a matéria da antropologia. A tarefa, segundo Foucault, é: "A elucidação desta línguajá constituída, explícita ou silenciosa, através da qual os homens se abrem para as coisas e, entre si, uma rede de intercâmbios, de reciprocidade, de uma compreensão abafa­da, que não forma, é verdade, nem a cidade dos espíritos nem a total desapropriação da natureza, mas a habitação universal dos homens

no mundo."8 Estes mundos aparecem somente a partir do horizonte do presen-

te cujas fronteiras eles formam; funcionam como limites do que somos e do que podemos saber, esperar e fazer. Estes mundos, junto com as estruturas da nossa razão, constituem os limites da nossa experiência. Por esta razão, a antropologia tomada pragmaticamente ocupa aquele lugar onde os humanos aprendem a reconhecer suas próprias culturas como I' école du monde, um tipo de Bildungsroman da vida cotidiana, uma escola na qual a universalidade e a particula­ridade unem-se numa relação singular. Embora Kant não tenha dado o passo seguinte, pode-se considerar o domínio dos universais não mais separado dos particulares e regulando-os num sentido trans­cendental _ mas, ao contrário, o domínio dos universais pode ser considerado como uma prática cosmopolita pragmática. "O univer­sal nascendo no milieu da experiência no movimento do verdadeira­mente temporal e do que foi de fato intercambiado."9

Foi necessário um longo conjunto de mudanças históricas e culturais antes que tal possibilidade aparecesse, antes que a cultura no sentido antropológico americano moderno tomasse forma e se tornasse um conceito normativo. Hoje. enquanto presenciamos o triunfo parcial e o declínio contemporâneo de tal conceito de cultura, permanecemos com a pergunta que Kant fez à antropologia (mas

não respondeu): o que podemos esperar do Homem?

A Razão depois de Weber

Traçar o surgimento do conceito de cultura e das práticas que acompanharam este surgimento, bem como sua crise atual, obvia­mente está além do escopo deste texto. No entanto, ensaiar alguns

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112 • Antropologia da Razão

passos pode ser útil para situar discussões posteriores do conceito de cultura. Digna de nota é a atellção de Kant à empiricidade, subjetividade e historicidade da vida cotidiana, seu incestuoso aca­salamento do empírico e do transcendental. Estes temas foram e continuam sendo levantados pelo pensamento alemão, se não exclu­siva pelo menos significativamente. A prática pluralizadora dos românticos que vieram após Kant (Herder, Schiller, etc.) foi ambí­gua desde o princípio, estando numa posição se não oposta, no mínimo desconfortável em relação a discursos sintetizadores e uni­versalizantes. Relações possíveis entre normas e formas, entre pen­samento e fatos receberam muito pouco tratamento paradigmático pelo pensamento social ocidental. De grande pertinência aqui é a divisão entre aqueles que atribuíram à cultura um grau significativo de autonomia (e caráter) das circunstâncias sociais e econômicas entre as quais surgiu, e aqueles que lhe atribuíram uma relação hierárquica determinista em relação a estas variáveis. Traçando o mapa desta maneira, encontramos alguns como Marx e Durkheim para os quais "crença é basicamente uma emanação de circunstân­cias sociais", e outros como Nietzsche, Weber e Foucault que pro­blematizaram as relações entre estes níveis sem chegarem, verdade seja dita, a uma analítica estável sobre suas inter-relações. 10

Considerando a mais importante das formações culturais do oci­dente e novamente simplificando, tanto Marx quanto Durkheim entenderam a religião em termos socialmente funcionais (embora lhe designassem diferentes funções) e a ciência como o veículo universalmente adequado para representar a realidade. A despeito da magnitude dos esforços requeridos, era possível para eles descobrir uma verdade determinada e articulá-Ia em termos essencialmente não-problemáticos. Além do mais, a procura pela verdade e os resultados desta procura eram tidos como coisas boas tanto no plano ético quanto no político. O verdadeiro, o bom e o belo permanece­ram isomórficos: a consciência permaneceu feliz, ainda que didática e escassa. Marx e Durkheim concordavam que a autoridade surgiu deste isomorfismo de ciência e política, ainda que discordassem sobre o que era este isomorfismo. O papel do cientista não foi problematizado por estes pensadores; história, caráter e verdade eram pelo menos potencialmente transparentes. A vida cotidiana poderia ser lida pelo cientista que sabia seu telos, sua estrutura, seu

Para além da etnografia • 113

significado. De maneira distinta, para Nietzsche e Weber (mencio­nando tão-somente a questão do caráter), o pesquisador para enten­der deveria - era obrigado a - alcançar um certo grau de autono­mia da formação social do seu tempo: "Ambos, Nietzsche e Weber, crêem que a individualidade da pessoa somente pode ser realizada através de uma adesão a convicções que estão à parte das considera­ções práticas cotidianas. Ou, em outras palavras, a individualidade autêntica existe somente na medida em que o ajustamento à neces­

sidade mundana é superado."" Enquanto as antropologias de Durkheim e de Marx mantiveram

um certo otimismo e universalismo iluminista, o diagnóstico de Nietzsche e de Weber da vida do mundo moderno foi desolador. Também retiveram numa forma distinta o que Foucault chamou de "a vantagem de quem fala" - o direito, o prazer e o dever de anunciar uma verdade difícil a um mundo resistente e filisteu. Apura subjetividade dos seus valores foi precisamente o que lhes permitiu um posicionamento contrário ao banalizado, burocratizado e desen­cantado mundo cristão capitalista, caracterizado por ambos como moderno. Não deve ser subestimado o preço em sofrimento psíquico que tanto Weber quanto Nietzsche pagaram por este privilégio.

12

Como Nietzsche e Adorno, "Weber é parte da longa tradição de uma ilustrada classe média para quem a cultura e a sensibilidade tiveram um lugar proeminente ... a integridade de uma personalidade complexa requer o apoio de uma sociedade patrimonial, pois são os patrimônios que tornam viáveis as várias ordens de vida através das quais o indivíduo adquire sua identidade como um ser cultural."13

A autoridade era ética. A ética era baseada na classe social. Nesse sentido, enquanto é possível argumentar que Weber era mais moder­no do que Durkheim na sua problematização da ciência e da religião, ele reteve - e se manteve apegado a - um velho valor pré-ilumi­nista: o caráter ético do conhecedor como requerimento e garantia de verdade. Nas ciências naturais, a separação entre a ética do cientista e as condições objetivas de conhecimento, entre o caráter e a natureza física, foi uma das condições para a decolagem científica. Parecia razoável crer que tal disjunção nas ciências do homem produziria uma decolagem similar. Ainda que seja argumentável que tal decolagem tenha acontecido em tecnologias sociais de controle, poucos plausivelmente argumentariam que um limite científico pa-

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114 • Antropologia da Razão

raleIo tenha sido cruzado; os crentes na chegada desta clencia permanecem numerosos. Seguindo o rumo da trans-avaliação de valores de Nietzsche, Max Weber sociologizou a razão para sempre, Nós hoje podemos ver que o poderoso esquema institucional e comparativo de Weber carregava consigo uma bagagem metafísica. A sua interpretação sobre a modernidade, de que o telos do mundo levou a uma total racionalização da vida, ainda que obviamente de grande alcance sociológico, provou Ser menos compreensível do que ele próprio temia.

Etnografia: escreva, ele disse

o questionamento antropológico de Kant permanece sem resposta. Se por um lado algumas perspectivas colocam fins instrumentais no topo de sua hierarquia de valores - por exemplo, a economia política, liberal ou marxista procura mudar as coisas (segundo o tropo "altere o mundo, não o interprete"), o que ocasiona uma perspectiva instrumental da razão e da cultura - por outro lado, a antropologia cultural promete nos ensinar alguma coisa. 14 Se o objetivo da antropologia não é a manipulação das coisas mas sim a prática como apprentissage, então, quem sabe, é preciso aprender alguma coisa. Para Kant, assim como para Goethe, e de uma maneira tênue para Nietzsche e Weber, esta alguma-coisa era encontrada no espaço entre a cultura clássica e a modernidade. Ainda que crítico, o humanismo antropológico, ou seja, o primeiro século e meio do pensamento acerca da modernidade, reivindicava, de forma paradig­mática, o homem como a norma para a compreensão. O fato de que desde a Primeira Guerra Mundial não surgiram pensadores propon­do um modelo teórico capaz de alterar nossa percepção da sociedade - é Heidegger a exceção que prova a regra? - pode muito bem estar conectado com este paradigma. Como pode ser superada a fragmentação da cultura burguesa através da subversão das suas reivindicações de universalidade nas quais a antropologia cultural desempenhou um importante papel, e então, abrir-se para horizontes mundiais?

O desenvolvimento das ciências do homem assumiu um caráter particular nos Estados Unidos. Muitos fatores poderiam ser aponta-

Para além da etnografia • 115

dos nesta metamorfose da Geisteswissenschaften alemã na antropo­logia cultural americana. Uma das variáveis que tem recebido muita atenção ultimamente é a pesquisa de campo, embora seu status como variável independente seja sugerido pela igualmente forte valoriza­ção da pesquisa de campo na antropologia social britânica, que não resultou em teoria cultural. l5 Como argumentei em outra ocasião, durante duas gerações o conteúdo da agenda ética, política e cientí­fica de Boas foi gradualmente esvaziado: por exemplo, a valoriza­ção da diferença cultural contra hierarquias raciais tornou-se a valorização da diferença cultural per se; a autoridade científica e ética da pesquisa de campo antropológica, originalmente jogada contra as autoridades do missionário e do viajante, tornou-se uma questão generalizada de deconstrução autoral, um fim em si mes­mo.16 O humanismo tende para o niilismo enquanto sÓ é valorizado o próprio processo do humanismo. Quando a sensibilidade e o gosto

. são tudo o que resta em termos de autoridade, é freqüentemente difícil traçar a linha entre um certo estoicismo heróico, a tendência autocongratulatória e a invenção inspirada. Seguindo Pierre Bour­dieu, poderíamos dizer como uma regra geral que, quanto mais poro e mais associologicamente não-reflexivo o "gosto" e o "estilo". mais eles são expressões de distinção, status social e táticas 10cais.J7

Para Geertz e seus sobrinhos textualistas, a autoridade mudou para a terceira das esferas de vida weberianas. Depois de residir na verdade, em seguida na ética, a autoridade agora tornou-se estéti­ca.IS Se concordamos que a arte modernista Ué o resultado do colapso interno de uma convencional vida artística mundial" e que "seus produtos constituem um nivelamento da paisagem local, e criam um sentido completamente diferente e novo do indivíduo", 19 então seu heroísmo está em confrontar suas próprias "fracassadas representações de totalidade" .20 É difícil encontrar este heroísmo da vida modernista, ou pelo menos ironia quanto aos seus limites, quando a estética torna-se meramente um sentido de estilo (em oposição à forma), uma habilidade de escrever (em oposição à mudança de linguagem), uma expressão de imagens (ao invés de contestação de representações modelares), uma evocação (ao invés de provocação). Etnografia autoral: o que era uma parte tornou-se o todo. O que temos à mão são etnografias que não têm nada a ensinar a não ser resíduos de piedades burguesas (piedades por causa de sua

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nostalgia, não porque sejam sem valor, pelo contrário): o cultivo do self do antropólogo é o princípio, oscilando ambiguamente entre a virtude e O valor da tolerância. O foco em nada é a grande limitação, a desilusão da antropologia geertziana. Embora tenhamos aprendido desta antropologia o quão diferentes as coisas podem ser, ela cala sobre quem somos. Quando abandonou suas questões weberianas e retirou-se para questões neokantianas, tomou-se involuta e árida, aplainou-se, e justamente quando um maremoto textual sobre esta posição modernista veio através do Atlântico, ela cessou de teorizar a si mesma. Nós permanecemos fora do tempo não somente no sentido de uma recusa de contemporaneidade com o Outro nos termos de Fabian, mas, num sentido estrito, numa recusa de contem­poraneidade conosco mesmos. Esta antropologia é duplamente acrí­tica: não oferece diagnóstico do que vê no mundo e falha em se pronunciar com respeito à promessa (kantiana, boasina, benedicti­na) de nos ensinar "alguma coisa" de importância cosmopolita. Escreva, ele disse. Sobre o quê?, perguntou o fantasma de Kant.

Nominalismo: razão e sociedade

Eu trabalho com a hipótese de que é possível analisar a razão da mesma maneira geral que outros objetos etnográficos são analisa­dos, ou seja, como um conjunto de práticas sociais em complexas relações pragmáticas com uma congeneridade de símbolos. Nesse sentido, as práticas de racionalidade constituem um amplo âmbito ainda não-mapeado. Estas práticas, particularmente os discursos das ciências sociais, têm sido um componente essencial da vida no mundo moderno; sem elas o capitalismo tardio, o socialismo e a sociedade de assistência social são literalmente impensáveis e im­praticáveis. A razão, a despeito de qualquer outra coisa que possa ser, é uma relação social historicamente localizável, uma ação no mundo - um conjunto de práticas. No livro French Modem: Norms and Forms ofthe Social Environment demonstro algumas das impli­cações de tal análise antropológica.

Sociedade é outro termo cujas práticas e símbolos não têm sido considerados suficientemente de forma nominalista. Embora aceite­mos mais ou menos "sociedade" como um termo quase natural ou

Para além da etnografia • 117

universal, ele de fato adquiriu seu significado corrente na Europa durante as primeiras décadas do século XIX. Uma abordagem etno­gráfica da sociedade consiste numa história de um nova objeto (realmente um conjunto de objetos) e aqueles autorizados a fazer reivindicações de verdade dentro e acerca dele; estes relatos se concentram ao redor do símbolo-chave "normas", bem como ao redor daquelas práticas e símbolos que tentaram localizar e, portan­to, regular e representar a nova realidade, isto é, "formas". Uma vez estabelecido que a sociedade, assim como o corpo, era repre­sentável, o problema para os pensadores sociais, reformadores, arquitetos, engenheiros e imperadores passou a ser como unir o normativo e sua forma numa "moldura" comum, que tanto repre­sentaria e regularia a sociedade quanto produziria uma ordem fun­cionaI saudável, eficiente e produtiva. Os elementos da sociedade, composta por saberes, formas, símbolos e práticas, emergiram sepa­radamente durante o cursO do século XIX: primeiro nas transforma­ções da medicina, depois a arquitetura, a estatística, a biologia, a geografia, a história, o colonialismo e, finalmente, suas combina­ções na final do século, no urbanismo moderno. Esta síntese de elementos históricos e naturais num objeto representável, a cidade planejada como um regulador da sociedade moderna, pode ser vista como uma das mais complexas exemplificações da modernidade. Em nome do bem-estar da população, tal síntese foi exemplar na sua demonstração da habilidade humana de operacionalizar, numa com­preensiva forma funcional, elementos previamente naturalizados (geografia, demografia, higiene) como questões de saber pragmáti­co. Também foi exemplar na sua compreensão da história (monu­mentos, estilos, culturas) como a base de legitimação para uma

sociedade futura coesa. O urbanismo é um espaço particularmente privilegiado para a

exploração das interconexões de práticas e símbolos de razão, rep­resentação, sociedade, modernidade e modernismo. Entre 1899 e 1909 um grupo de premiados arquitetos treinados na École des Beaux Arts, dentre os quais Tony Garnier é o mais famoso, reunido na Villa Médicis em Roma, articulou os princípios do urbanismo. moderno na França. Os seus projetos iam desde a renomada Cité Industrielle de Garnier à reconstrução de Constantinopla de Henri Prost (futuro chefe de urbanismo em Marrocos, Istambul, e criador

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118 • Antropologia da Razão

do primeiro plano regional para Paris), à proposta de Emest Hebrard (planejador-chefe em Tessalônica, Indochina, e ativo no planeja­mento socialista da Cidade Jardim ao redor de Paris) para uma capital mundial universal, um centro de ciência, arte e indústria. Para Garnier, a situação industrial contemporânea ditava uma res­posta de bem-estar socialista; Prost, de maneira literal e politica­mente mais conservadora, olhava para a história e para a cultura como um reservatório de elementos a serem utilizados para se alcançar uma ordem socialmente saudável; para Hebrard, a história revelava uma trajetória específica em direção à centralização, paz, interdependência, e o triunfo de normas universais para a humani­dade. Cada um destes arquitetos tentou operacionalizar variáveis históricas, econômicas, naturais e culturais numa fonna social e espacial representável. Eram modernos mas não modernistas; eles têm sido amplamente ignorados nos livros-texto modernistas de história arquitetônica porque não questionaram os princípios COID­

posicionais das Beaux Arts ou o estilo neoclássico, mas tão-somente seus níveis de aplicação. Ao fazê-lo no entanto, abriram caminho para uma importante reinterpretação de espaços e sociedades.

A literatura secundaria tem enfatizado a relação de Garnier com a tradição da utopia socialista de Cabet e Fourier. Eu interpreto o plano de Gamier como o paralelo urbano do Panóptico de Bentham. Foucault não leu o Panóptico de Bentham como um tipo ideal weberiano, ou seja, a abstração generalizada do sociólogo das várias correntes de atividades empíricas de uma época. Ele enfatizou ou­trossim um uso alternativo de tais planos como exemplares estraté­gicos, como meio de iluminar não toda uma era, mas núcleos particulares de saber e poder. O plano de Gamier para uma Cidade Industrial foi uma tentativa de encapsular os princípios urbanos da era industrial. Seu objetivo não era a eficiente disciplina de indiví­duos mas a transformação do meio histórico-natural num meio-am­biente saudável, pacífico e produtivo. O plano juntou, coerentemen­te, específicas considerações geográficas, sociológicas, econômicas, educacionais, atléticas, administrativas, domésticas, históricas, higiênicas e arquitetônicas num esquema geral no qual a forma era conduzida pelas últimas normas científicas. Este esquema era guiado pelo bem-estar da população, incorporando assim uma estratégia que inventava e regulava a ordem social de maneira que

Para além da etnografia • 119

força e política se tomariam desnecessárias. O esquema de Garnier era moderno na sua tentativa de juntar o social e o individual dentro de um conjunto comum de nonnas auto-reguladoras e formas extraí­das dos últimos avanços científicos e específicas condições históri­

cas e naturais que eram então usadas como base. O triunfo foi provisório. A procura constante por meios científica,

espacial e estilisticamente mais compreensivos, através dos quais era possível representar e regular uma sociedade devotada à eficiên­cia, à produção e ao bem-estar de sua população, levou a uma segunda série de dissoluções e transformações. Este segundo passo. acelerado após a Primeira Guerra Mundial, acarretou a transforma­ção do objeto a ser trabalhado de um meio histórico-natural para um meio sócio-técnico. Este novO objeto pode ser chamado de moder­nista: a sociedade tornou-se seu próprio referente a ser trabalhado através de procedimentos técnicos que tornavam-se assim árbitros do que contava como socialmente real. Tanto normas quanto formas foram ficando mais e mais autônomas de restrições prévias, defini­das por suas próprias operações; praticantes e normas reivindicando

um universalismo a-histórico e acultural.

Cada

Muitos de nós endossam o mandato irônico de Baudelaire, "você não tem o direito de desprezar o presente" ,21 interpretando-o hoje comO um chamado a escrever a "história do presente"22 Esta tarefa acarreta o tipo de consciência crítica, auto-reflexiva, mencionada acima. Também significa pesquisa, uma nova investigação antropo­lógica, peripatéticas indagações "anarco-racionalistas", fazendo sua

apprentissage na éco/e du monde.

Notas

1. Paul Rabinow, "Beyond Ethnography: Anthropology as Nominalism" in CulturalAnthropology. voI. 3, n° 4, 1988. Rabinow organizou este número; o tema foi "A antropologia e a análise da modernidade".

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120 • Antropologia da Razão

2. O nome de Foucault não figura no índex do livro de George Marcus e Michael Fischer, Anthropologyas Cultural Critique, Chicago, The Uni ver· sity of Chicago Press, 1986. Michel de Certeau também está ausente.

3. Michel FoucauIt. lntroduction à I'Anthropologie de Kant, These complé. mentaire pour le Doctorat des lettres, Université de Paris, Faculté des Lettres et de Sciences Humaines, Directeur d'Études: Jean Hyppolite, 1961.

4. Norbert Elias, History of Manners: The Civilizing Process, New York, Pantheon Books, 1982.

5. Foucault, op. cit., p. 27. 6. Ibidem, p. 74. 7. Ibidem, p. 5. 8. Ibidem, p. 94. 9. Ibidem, p. 102.

10. Ralph Schroeder, "Nietzsche and Weber: Two 'Prophets' of the Modem World" in S. Whimster e S. Lash. Max Weber: Rationality and Modernity, London, Allen & Unwin, 1987, p. 212.

11. Ibidem, p. 213.

12. Wolfgang Mommsen, Max Weberand German Politics, 1890·1920, Chica­go, Chicago University Press, 1984.

13. Sam Whimster, ''The Secular Ethic and Modemism" in Lash e Whimster (eds.), Max Weber: Rationality and Modernity, London. Allen & Unwin, 1987, p. 261, 266.

14. Vide Louis Dumont, From Mandeville to Marx: The Genesis and Triumph of Economic Ideology, Chicago, Chicago University Press, 1977; e Mars­hall Sahlins, Culture and Practical Reason, Chicago, Chicago University Press, 1978.

15. Um importante relato desta história, ainda que em outros termos, pode ser encontrado no texto de George Stocking Jr. in VictorianAnthropology, New York, The Free Press, 1987.

16. Paul Rabinow, "Humanism as Nihilism: The Bracketing of Truth and Seriousness in American Cultural Anthropology" in R. Bellah (ed.), Social Science as Moral Enquiry, New York, Columbia University Press, 1983.

17. Pierre Bourdieu, Distinction: A Social Critique ofthe Judgement ofTaste. Cambridge, Harvard University Press, 1984.

18. Jürgen Habermas, The Theory of Communicative Action: Reason and lhe Rationalization of Society, Vol. I. 80ston, Beacon Press, 1984.

19. Whimster, op. cit., p. 288.

20. Esta citação é oriunda dos comentários de Susan Steward no painel "Trans­national Practices", apresentados na reunião da American Academy of Anthropology, AAR, em Chicago, 1987; vide Martin Jay, Marxism and Totality: The Adventures of a conceptfrom Lukács to Habermas, Berkeley, University of Califomia Press. 1984.

Para além da etnografia • 121

21. Charles Baudelaire, The Mirror of Arts, Critical Studies, London, Paidon,

1955. 22. Esta expressão é de Michel Foucault, Discipline anti Punish: The Birth of

the Prison, New York, Vintage Books, 1979.

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Vida, normas e erros: o trabalho de Georges Canguilhem

Georges Canguilhem nasceu a 4 de junho de 1904, em Castel­naudary, no sudeste da França. Embora seu pai fosse alfaia­te, Canguilhem gosta de referir-se a si mesmo, com certo

humor, como sendo de origem camponesa. A narrativa da sua edu­cação sentimental é clássica: enraizada na vida harmoniosa e cíclica do solo e das estações, sua sensibilidade formada pelos retornos das frutas às árvores. O excelente desempenho de Canguilhem nos exames nacionais de admissão para os liceus levou-o ao prestigiado Liceu Henri IV, em Paris. Em 1924, depois de ali completar com grande sucesso seus estudos, Canguilhem ingressou na instituição educacional da elite francesa, a École Normale Supérieure. Seus colegas de curso foram Jean-Paul Sartre, Raymond Aron e Paul Nizan; Maurice Merleau-Ponty ingressou na École um ano depois. Já então Canguilhem interessava-se por temas aos quais retomaria e desenvolveria ao longo da sua vida intelectual. Por exemplo: o ensaio sobre a teoria da ordem e progresso de Augusto Comte -submetido para a obtenção de um diploma, apresenta os primórdios do interesse persistente de Canguilhem pela relação entre razão e sociedade _ um interesse que ele compartilhou com seus ilustres colegas. mas que desenvolveu de maneira extremamente original. Em 1924, o filósofo Alain referiu-se a Canguilhem como "vivaz,

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124 • Antropologia da Razão

resoluto e contente"; esta caracterização ainda hoje faz jus ao seu espírito.'

Em 1927, o jovem Canguilhem tornou-se professor adjunto de filosofia, começando sua jornada de ensino por liceus provinciais. Esta era uma obrigação de todos os graduados da École Normale em retribuição à educação subvencionada pelo Estado. Suas peregrina­ções terminaram em 1936, em Toulouse, onde além de ensinar no

liceu começou a estudar medicina. Em 1940, Canguilhem demitiu­se da função docente porque, como escreveu ao reitor da Academia de Toulouse, não se tornara um agregé em filosofia para pregar a doutrina do regime Vichy.' Aproveitou o tempo livre para concluir seu treinamento médico. Profeticamente, tanto em sentido político quanto filosófico, Canguilhem substituiu na Universidade de Estras­burgo (relocada em 1941 para Clermond-Ferrand, após a anexação de Estrasburgo pelo Reich) Jean Cavaillés, filósofo da matemática, que fora chamado para a Sorbonne. Cavaillés participou da forma­ção de um importante grupo de resistência. Enfim, como dizem os franceses, "mais uma vida neste século": a exemplo de muitos de seus compatriotas, a vida de Canguilhem ganhou forma em meio à conjuntura das tradicionais instituições francesas e à contingência dos eventos do seu tempo.

Em 1943, Canguilhem defendeu sua tese de medicina, Essais sur Que/ques Problernes Concernant le Normal et le Pathologique. A continuada relevância e a excepcional durabilidade deste trabalho é comprovada pelo fato de que, vinte anos mais tarde, o próprio Canguilhem o revisou, e pelo fato de ter sido traduzido décadas mais tarde para o inglês como The Normal and the Pathological.3 Após a guerra, ele reassumiu seu cargo na Universidade de Estrasburgo, onde permaneceu até 1948. Depois de uma recusa inicial durante a Libération, Canguilhem finalmente aceitou, em 1948, o importante cargo administrativo de inspecteur général de philosophie. Ocupou esta posição até 1955, quando assumiu a cátedra de História e Filosofia das Ciências na Sorbonne e sucedeu a Gaston Bachelard como diretor do Institut d'Historie des Sciences et des Techniques. Sua reputação de examinador feroz perdura até hoje em Paris, junto como uma profunda afeição pelo apoio intelectual e institucional que ele proporcionou durante décadas.4

Formas, experiências e saberes errantes • 125

História e filosofia da ciência

Louis Althusser elogiou Canguilhem (bem como Cavaillés, Bache­lard, Jules Vuillemin e Michel FoucauIt) ao compará-lo a um antro­pólogo que entra no seu campo de trabalho armado com "um escru- Y"

puloso respeito pela realidade da ciência real"5 A comparação é reveladora, ainda que não seja uma descrição precisa do método de Canguilhem. Estudos etnográficos posteriores mais restritos às prá­ticas de laboratório, como os de Bruno Latour, além de corrigirem uma compreensão positivista e idealista da ciência como uma ativi­dade unificada que alcança uma compreensão cumulativa da nature-za, também tinham como objetivo desmantelar a própria idéia de 4-"

ciência _ posição não endossada por Canguilhem como se pode ;. imaginar. No entanto, a afirmação de Althusser apreende o movi­mento iniciado por Bachelard, longe do universalismo estático que o sistema universitário francês havia sacralizado nas suas aborda­gens racionalista e idealista da ciência{Para Bachelard, o novo papel da filosofia era analisar o desenvolvimento histórico das práticas produtoras de verdade.)A filosofia da ciência tornou-se o estudo de epistemologia. regionais, a reflexão histórica sobre a elaboração de teorias e conceitos por cientistas, físicos, químicos, patologistas, anatomistas, etc. O objetivo não .era atacar a ciência mas mostrá-la

em ação na sua especificidade e pluralidade. Para Canguilhem, era evidente que embora a filosofia tivesse

perdido sua soberania e autonomia, ainda assim ela tinha um traba­lho a realizar. Diferente da tarefa do cientista, o problema do episte­mólogo é estabelecer "~. ordemdQJl!S'gri'Sso c,on~eitual, que é visível apenas depois do fato, e da qual a presente noç[jo de verdade científica é apenas um ponto de culminação provisório."6 Verdades são encontradas nas práticas da ciência; a filosofia analisa a plurali­dade destas verdades, suas historicidades, e, conseqüentemente, a provisoriedade destas verdades, enquanto afirma (e não legisla, como a velha filosofia da ciência francesa procurava fazer) suas normatividades. A epistemologia não é uma lista de resultados finais, mas uma descrição rigorosa do processo no qual a verdade é elaborada. O elogio de Althusser pressupõe que a ciência existe e . que detém um status privilegiado; Canguilhem, Foucault e Bourdieu ,~

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126 • Antropologia da Razão

nunca duvidaram disto: "Tomar como objeto de investigação apenas fontes, invenções, influências, prioridades, simultaneidades e suces­sões impossibilita a distinção entre a ciência e outros aspectos da cultura."7 Este pressuposto - identificado por Bruno Latour como o símbolo-chave da filosofia e da história da ciência francesa - é a pedra fundamental de toda a arquitetura da casa da razão habitada por Canguilhem.8 A ciência, para Canguilhem, é "um discurso veri­ficado num setor delimitado da experiência."9 A ciência é uma '=­exploração da norma da racionalidade em ação. 1!º fi~e quant() .~ umilcrença _na ciência, percebe-se aí uma crença na sua historicida-de e pluralidade. Diversas ciências em ação somente existem em momentos históricos particulares: física não é biologia; a história natural do século XVIII não é a genética do final deste século.

Assim, para Canguilhem, "a história da ciência é a história de um objeto - discurso - que é uma história e tem uma história, enquan­to que a ciência é a ciência de um objeto que não é uma história, que não tem história."1O Ao utilizar seu método, a ciência divide a natureza em objetos. Estes objetos são, em certo sentido, secundá­rios, mas não derivados; pode-se dizer que são tanto construídos quanto descobertos. A história da ciência desempenha um conjunto semelhante de operações sobre objetos científicos. O objeto do discurso histórico é "a historicidade do discurso científico na medi­da em que esta história executa um projeto guiado por suas próprias normas internas, mas atravessado por acidentes interrompidos por crises, ou seja, por momentos de juízo e verdade." II Estas verdades são sempre contestáveis e estão em processo, mas não são menos "reais" devido à sua contingência. A história da ciência não é uma história natural: ela não identifica as ciências com o cientista, os cientistas com suas biografias, ou as ciências com seus resultados, nem os resultados com o seu uso pedagógico atual. As reivindica­ções epistemológicas e históricas assumidas por esta noção de his­tória da ciência são autoritárias e estão na contramão do que é assumido como doxa contemporânea pelos estudos sociais da ciên­cia. Canguilhem nunca reuniu suas investigações em um único livro "coerente", mas preferiu, após 1943, a forma de ensaios, repletos de sentenças precisas, quase afor!sticas, muitas delas com a densidade da criptonita. 12

Formas, experiências e saberes errantes • 127

o normal e o patológico

Embora Canguilhem tenha publicado, no final da década de 30, um tratado filosófico sobre ética e epistemologia, Traité de Logique et de Morale, concebido como um livro-texto não convencional para os estudantes dos liceus, o trabalho que o tornou mais conhecido é a sua tese de medicina, na qual investiga a própria definição do normal e do patológico. Este trabalho sinalizou uma grande mudan­ça no pensar sobre a saúde. Antes disto, o treinamento médico na França privilegiava o normal; doença ou disfunção eram entendidas como desvios de uma norma fixa, tida como constante. A prática médica estava direcionada a estabelecer cientificamente estas nor­mas e - a prática seguindo a teoria - ao retorno do paciente à saúde, restabelecendo a norma da qual o paciente se desviara.

François Dadognet, filósofo da biologia, observou, de forma lúcida, que Canguilhem deslanchou um ataque frontal "àquele edi­fício da normalização" tão essencial aos procedimentos da ciência e da medicina positivistasl 3 Ele fez isso recolocando a questão do organismo como um ser vivo que não existe numa harmonia prees­tabelecida com seu ambiente. É o sofrimento, e não medições nor­mativas e desvios-padrão, que estabelece o estado de doença. A normatividade começa com o ser vivo, e com este ser vem a diver­sidade. Cada paciente tratado por um médico toma presente um caso diferente; cada caso exibe sua própria particularidade. Um dos famosos aforismos de Canguilhem explicita esta questão: "Uma anomalia não é uma anormalidade. Diversidade não significa doen­ça." Para os seres vivos, normalidade é uma atividade e não um estado fixo. Seguindo o raciocínio de Canguilhem, o resultado é que "um número, mesmo um número constante, traduz um estilo, hábi­tos, uma civilização, até mesmo a vitalidade básica da vida."14 Esta questão é demonstrada pela recente descoberta de que a temperatura do corpo humano tem uma variação mais ampla de normalidade do que se concebia até então. A normalidade - um dos temas constan­tes de Canguilhem - significa a habilidade de adaptar-se a circuns­tâncias em mudança, e a ambientes variados e em variação. A doença é uma redução a constantes, as próprias normas pelas quais medimos a nós mesmos como sendo normais. Normalidade equivale a ativi-

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128 • Antropologia da Razão

dade e a flexibilidade. Portanto, não existe patologia puramente objetiva; pelo contrário, a unidade básica é um ser vivo que existe em relações móveis com um ambiente em mudança. Para Cangui­Ihem, em última instância, a doença é defmida pelos próprios termos que definiram saúde, ou seja, normas estáveis, valores invariáveis. 15

A vida não é estase, um conjunto fixo de leis naturais, previamente estabelecidas e iguais para todos, às quais deve-se aderir a fim de sobreviver. Ao contrário, a vida é ação, mobilidade e palhos, o esforço constante, mas apenas parcialmente exitoso, de resistir à morte, usando a famosa definição de Bichat: "A vida é a coleção de funções que resistem à morte."

O trabalho de Canguilhem tem sido uma demonstração histórica consistente e disciplinada destes princípios, assim como um arranjo das suas conseqüências. A vida tem sua especificidade: "A vida, seja qual for a sua forma, implica em autopreservação através de auto­regulação." 16 Esta especificidade pode - de fato, deve - ser perpetuamente elaborada, mas nunca evadida. Os ensaios históricos, precisos, de Canguilhem não são uma filosofia da vida, como os de Hans Jonas ou Maurice Merleau-Ponty, que procuram fixar uma compreensão da vida num único conjunto de conceitos. As compac­tas incursões didáticas de Canguilhem mostram, no entanto, como as ciências da vida, inclusive as terap'êuticas, simultaneamente ela­boraram conceitos de vida e as maneiras como estes conceitos devem ser vistos como uma parte integrada do fenómeno em estudo: a vida e suas normas.

Embora Canguilhem tenha tido o cuidado de não fazer destas explorações um panegírico de vitalismo, ele demonstra a presença constante de noções avaliadoras tais como "preservação", "regula­ção", "adaptação" e "normalidade", seja nas abordagens cotidiana ou científica da vida. "É a própria vida, e não o juízo médico, que faz o normal biológico um conceito de valor e não um conceito de realidade estatística."I? A especificidade da humanidade não está no fato de que é separada do resto da natureza, mas sim no fato de que ela criou um conhecimento sistemático e instrumentos que a ajudam a lidar ativamente com O ambiente. Esta ação, testagem, enfrenta­mento com a patologia, esta mobilidade normativa e habilidade projetiva constituem a carreira conceitual da humanidade - central

Formas, experiências e saberes errantes • 129

à sua saúde. "Ser saudável significa não apenas ser normal em determinada situação, mas também ser normativo nesta e em outras eventuais situações. O que caracteriza a saúde é a possibilidade de transcender a norma que defme o normal momentâneo, a possibili­dade de tolerar infrações da norma habitual e instituir novas normas em novas situações."18 A vida é uma atividade que segue uma norma. Mas saúde não é ser normal; saúde é ser normativo.

As reflexões sobre as relações entre conceitos e vida revelam o fato de que pelo menos duas ordens distintas estão sendo investiga­das. Primeiro, existe vida como forma, vida como "organização universal de matéria" [le vivant]; segundo, existe vida como a expe­riência de um ser vivo singular, consciente de sua vida (te vécu). Em francês "vida" pode significar tanto le vivant, o particípio presente do verbo viver [vivre], ou o particípio passado le vécu. Canguilhem é inequívoco nesta questão: o primeiro nível de vida, a forma, controla o segundo, a experiência. Embora o primeiro nível (as dimensões de poder e de dar forma) constitua o tema explícito do seu trabalho, a presença do segundo é freqüentemente percebida19

A clareza assertiva desta reivindicação de prioridade mascara sutil­mente a aguda percepção de sofrimento e procura - numa palavra: palhas - que é o duplo. experiencial, companhia constante do insistente conceitualismo de Canguilhem. O palhas da existência está sempre próximo, à mão, deste médico, filósofo e pedagogo.

A concepção de medicina de Canguilhem é coberta por sombras de um existencialismo nem tão latente, ainda que de maneira distin­tiva e idiossincrática. Facilmente ouvem-se ecos dos primeiros te­mas de Sartre e Merleau-Ponty, transpostos para um outro registro e tocados com um talento peculiar. As variações de "condenados à liberdade" e da "estrutura do comportamento" são compostas num tom diferente. O indivíduo, conforme Canguilhem, é condenado a adaptar-se a um ambiente e a agir usando conceitos e instrumentos que não têm afinidades preestablecidas com seu mundo circundante. "A vida torna-se uma inteligência engenhosa e flexível do mundo, enquanto a razão emerge como algo mais vital: ela finalmente desenvolve uma lógica que é mais do que uma mera lógica de identidade. "20 Razão e vida não se opõem; estão interconectadas, mas nenhuma controla a outra.

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130 • Antropologia da Razão

Uma nova compreensão da vida: erro

Tornou-se lugar-comum dizer que o reconhecimento de Canguilhem pelo público de fala inglesa, além de poucos especialistas na história das ciências da vida, acontece na esteira do sucesso de Michel Foucault, um de seus alunos e amigos prediletos. Ainda que não completamente falsa, esta apreciação torna-se insuficiente se não perguntarmos quais foram as questões trabalhadas por Canguilhem que suscitaram o interesse de Foucault. Além disto, são estas ques­tões ainda hoje pertinentes para uma audiência norte-americana? Por que lê-lo hoje? A resposta está parcialmente dada em outro lugar-comum. Bachelard, o antecessor de Canguilhem, inventou um método para uma nova história das "ciências exatas" da química, física e matemática; seu aluno Foucault trabalhou com as "ciências dúbias" do Homem; Canguilhem passou sua vida investigando os delineamentos de uma história dos conceitos das ciências da vida. Parece-me que hoje são as biociências - com uma renovada elabo­ração de conceitos, tais como normas e vida, morte e informação­que ocupam o centro do palco nas arenas científica e pública; daí a renovada relevância de Georges Canguilhem.

No ensaio Le Concepl el la Vie, de 1966, Canguilhem analisou a revolução na genética e na biologia molecular que então estavam a caminho. Este ensaio - um histórico lour de force - esboça o conceito de vida como forma (e experiência) bem como o saber desta forma, de Aristóteles até o presente. Canguilhem demonstra a continuidade da problematização e a descontinuidade das respostas na história do conceito de vida. Esta reconstrução histórica fornece a base para uma análise da nossa conceitualização contemporânea de vida. Canguilhem entende a descoberta da estrutura da hélice dupla por James D. Watson e Francis Crick como um sistema de informação, no qual o código e o meio (celular) estão em constante interação. Não existe relação causal simples e uni direcional entre informação genética e seus efeitos. A nova compreensão da vida não está nem na estruturação da matéria, nem na regulação de funções, mas numa mudança de escala e posição - da mecânica à teoria da informação e comunicaçã02 ! Esta nova compreensão da vida como informação aproxima-se de Aristóteles na medida em que a coloca como um logos "inscrito, convertido e transmitido" na matéria

Formas, experiências e saberes errantes • 131

viva.22 É evidente que empreendemos um grande percurso desde então. Se um telas contemplativo designa um lugar especial para a reflexão e a incerteza, o telos da vida mais comumente proposto hoje, tem um caráter etológico. Este telos considera o comportamen­to como sendo determinado e os seres humanos mais como animais. O código é o dogma central tanto para biólogos sociais quanto para muitos defensores do Projeto Genoma.

Canguilhem rejeita este telas. Se o homo sapiens é tão rigidamen­te programado como pensam os etologistas (ou muitos biólogos moleculares), então, pergunta Canguilhem, como podemos explicar o erro, a história dos erros e a história das tentativas de superá-los? Erros genéticos são hoje compreendidos como erros de informação. No entanto, muitos destes erros surgem de uma má-adaptação ao meio. Mais uma vez Canguilhem traz à tona o tema da normalidade como uma ação situada, e não como uma condição previamente dada. Nós nos movemos, erramos, nos adaptamos para sobreviver. Esta condição de "errar e vagar" não é meramente acidental ou externa à vida, mas é a forma fundamental da vida. O saber, confor­me esta compreensão da vida, é uma procura inquieta [une recherche inquiete 1 pela informação correta. Esta informação pode ser apenas parcialmente encontrada nos genes. Por que e como o código gené­tico é ativado e funciona, e quais são os resultados, são questões que só podem ser colocadas ou respondidas adequadamente no contexto da vida, le vivant, e da experiência, le vécu.

Conclusão

Michel Foucault, no ensaio dedicado a Canguilhem, La Vie, I' Expé­rience et la Science, caracterizou o pensamento francês como divi­dido entre abordagens sobre o sujeito que enfatizam sentido e experiência, e aquelas filosofias que tomam racionalidade e concei­tos como seu objeto de saber23 O efeito retórico desta caracterização foi notável. Enquanto Sartre e Merleau-Ponty eram conhecidos pelo público em geral, poucas pessoas, além de um restrito círculo de especialistas, haviam de fato lido o trabalho de Cavaillés sobre a filosofia da teoria dos conjuntos, na matemática, ou a história do arco-reflexo de Canguilhem.24 A ironia tornou-se ainda mais intri-

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gante pela contraposição das atividades resolutas e de forte impàcto da Resistência (Cavaillés foi morto pelos nazistas depois de formar a rede de resistência à qual Canguilhem juntou-se), às atividades daqueles que viviam em Paris escrevendo panfletos. Nesse caso, Foucault nos revelava uma relação oculta entre verdade e política, sinalizando um tipo de intelectual para o qual totalidade e autentici­dade assumiam formas e normas distintas. Vinte anos antes, Cangui­Ihem usara as mesmas distinções aplicando-as às atividades de Cavaillés na década de 30, enquanto zombava daqueles que dedu­ziam que a filosofia sem um sujeito estava fadada à passividade e à falta de ação. Canguilhem conta que Cavaillés empreendeu uma jornada filosófica à Alemanha naquela década e, já então, alertou para os perigos que lá se constituíam, não hesitando quando a guerra irrompeu.25 Ao invés de escrever um tratado moral para fundamen­tar suas ações, Cavaillés juntou-se à Resistência, enquanto termina­va seu trabalho sobre lógica da melhor maneira possível naquelas circunstâncias. Para estes pensadores de conceitos, verdade e políti­ca eram áreas distintas; era-se obrigado a agir eticamente em ambas, não perdendo de vista a especificidade de cada uma. O exemplo de pensamento rigoroso e ação guiada por princípios de Cavaillés, ainda hoje admirável (especialmente à luz da desenfreada incom­preensão e leitura moralizante do pensamento francês seja do outro lado do Reno, do Canal, ou do Atlântico), parece demandar uma nova conceitualização. A ascensão e glória efêmera do estruturalis­mo e do althusserianismo demonstram que a remoção do sujeito humanista das ciências sociais não garante um salto epistemológico da ideologia à ciência, nem uma ação política mais efetiva (nem mesmo a reinserção de um sujeito quase-transcendental ofereceria tais garantias). Ainda que o trabalho de Canguilhem nos capacite a pensar e a repensar tais problemas, ele obviamente não oferece respostas-padrão para o futuro. Canguilhem nos ensinou que é um grande erro utilizar soluções-padrão do passado quando a históriajá foi adiante, os conceitos mudaram e os milieux se alteraram - um erro igualado em gravidade por aqueles que procuram anular a história, obscurecer conceitos e homogeneizar ambientes. Seres vivos são capazes de corrigir seus erros, e a obra de Canguilhem nos apresenta instrumentos para começar, novamente, este processo.

rormas. experiências e saberes errantes. 133

Notas

1. Jean-François Sirinelli, Génération intellectuelle: Khágneaux et norma­liens dans l'entre-deux-guerres, Paris, Payard, 1980, p. 465.

2. Ibidem, p. 599. 3. Georges Canguilhem, Le Normal el le Pathologique, Paris, Presses Uni ver­

sitaires de France, 1966; The Normal and lhe Palhological, New York, Zone Books, 1989.

4. Jean-Jacques SaIomon. "George Canguilhem ou la Modernité", Revue de Mélaphysique el de Morale, 1 (1985).

5. Louis Althusser, "Présentation", in Pierre Machery, "La Philosophie de la Seienee de Georges Cangui1hem", La Pensée 113(1964), p. 51.

6. Canguilhem, "Introduction: The Role of Epistemology in Contemporary History of Science" in /deology and Ralionality in lhe His/ol) of lhe Life Sciences. Cambridge, MA. MITPress, 1988, p. 9.

7. Ibidem, p. 3. 8. Bruno Latour e George Bowker, "A Booming Discipline Short of Discipli­

ne: (Social) Studies of Science in France", Social Studies of Science 17 (1987).

9. Canguilhem. "L' objet de l'histoire des sciences" (1968), in Érudes d' His-toire el de Philosophie des Sciences, Paris, Vrin, 1983, p. 11.

lO. Ibidem, p. 16. 11. Ibidem, p. 18. 12. A tese de Canguilhem para o Doctoral d'Étal foi La Formation du concept

de réflexe aux XVJJ et XVJJ/ siecles, Paris, Presses Universitaires de France. 1955 (reeditada em 1977 pela editora Vrin de Paris).

13. François Dagognet, "Une CEuvre en trais temps", Revue de Mélaphysique et de Morale, 1 (1985), p. 30.

14. Ibidem, p. 31. 15. Ibidem, p. 37. 16. Canguilhem, "The Question of Normality in the History of Biological

Thought" (1973) in Ideology and Ralionality, p. 128. 17. Canguilhem, The Normal and lhe Palhological, p. 131.

18. Ibidem, p. 196-97. 19. Canguilhem, "Le Concept et la Vie" in Études d'Histoire et de Philosophie

des Sciences, p. 335. 20. Dagognet, "Une CEvre", p. 32. 21. "Le Coneept...", p. 360. 22. Ibidem, p. 362. 23. Michel Foucault, "La Vie, J'Expérience et la Science". Revue de Métaphy­

sique el de Morale, 1 (1985) (traduzido para o inglês como a introdução ao livro de Canguilhem, The Normal and lhe Pathological).

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24. Jean CavailIés, Méthode axiomatique etformalisme: Essai sur te probleme dufondement des mathématiques, Paris, Hermann, 1938; Remarques sur la fonnation de la théorie abstraite des ensembles. Paris, Hermann, 1939.

Z~J Cavaillés, "Protestantisme et HitIerisme: La Crise du Protestantisme alIe­mand". Esprit, novembro de 1933.

Artificialidade e iluminismo: da sociobiologia à biossociabilidade I

Michel Foucault identificou o poder "biotécnico" como a forma caracteristicamente moderna de poder. Biopoder, escreve ele, designa "aquilo que faz com que a vida e seus

mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana."2 Histo­ricamente, as práticas e discursos do biopoder agruparam-se em dois pólos distintos: a "anátomopolítica do corpo humano", âncora e alvo das tecnologias disciplinares, e um pólo regulador centrado na população com uma panóplia de estratégias concentradas no saber, no controle e no bem-estar] Minha pesquisa atual focaliza uma nova articulação dos discursos e práticas do biopoder, simbolizada de maneira geral - embora não restrita a ele - pelo Projeto Genoma [Human Genome InitiativeJ,4 Neste texto esboçarei algumas das maneiras pelas quais acredito que os dois pólos, corpo e população, estão sendo rearticulados naquilo que se poderia chamar de uma racionalidade pós-disciplinar.5

No anexo ao livro de sua autoria sobre Michel Foucault -intitulado L'homme tend à liberer en lui la vie, le travail et le langage -, Gilles Deleuze apresenta um esquema de três formas­força, para usar seu jargão, que são grosso modo equivalentes às três epistemes de Foucault. Na forma clássica, infinidade e perfeição são as forças que moldam os seres; os seres possuem uma forma pela qual eles se empenham. e a tarefa da ciência é descrever corretamen­te essas formas de uma maneira enciclopédica. Na forma moderna,

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finitude estabelece um campo de vida, trabalho e linguagem dentro do qual o Homem aparece como um ser distinto, que é tanto o sujeito quanto o objeto de seu próprio saber, um saber que nunca está completo por sua própria estrutura. Finalmente, nos dias de hoje, um campo do surhomme, que eu prefiro chamar de após-homem [after­man], no qual a finitude, enquanto empiricidade, dá lugar a um jogo de forças e formas que Deleuze classifica de fini-illimité. 6 Nesta nova constelação os seres não possuem nem uma forma aperfeiçoa­da nem uma opacidade essencial. O melhor exemplo deste finito-ili­mitado é o DNA: uma infinidade de seres pode surgir, e surgiu, a partir das quatro bases que constituem o DNA. François Jacob, biólogo ganhador do Prêmio Nobel, faz uma observação semelhante quando diz: "uma quantidade limitada de informação genética na linha germinativa produz um número enorme de estruturas protéicas [ ... ] no soma [ ... ] a natureza atua para criar diversidade ao combinar infinitamente pedaços e partes"7 Permanece aberta a questão sobre se Deleuze apreendeu ou não o significado das observações de Jacob. Entretanto, só podemos ficar intrigados quando algo tão enigmático quanto a fórmula de Rimbaud de que "lI est chargé de l'humanité des animaux même". adquire um significado perfeita­mente material, como veremos quando passarmos ao conceito de organismo-modelo na nova genética.8

Deleuze argumenta, de maneira convincente, que Foucault per­deu sua aposta de que seria a linguagem da tríade antropológica­vida, trabalho, linguagem - que abriria caminho para uma nova episteme, desfazendo a imagem do Homem como uma onda que apaga um desenho na areia. O próprio Foucault reconheceu que seu prognóstico estava errado quando, uma década depois da publicação de As palavras e as coisas ridicularizou a "teorização implacável da escrita", não como o surgimento de uma nova era, mas como os estertores de uma velha época9 O argumento de Deleuze não é o de que a linguagem é irrelevante, mas sim de que novas práticas que vão marcar época estão surgindo nos domínios do trabalho e da vida. Novamente, se Deleuze compreendeu 011 não corretamente o signi­ficado dessas novas práticas é algo a se ver; independentemente disso, elas são nitidamente importantes. Parece prudente abordar esses termos heuristicamente, considerando-os isoladamente e como uma série de pares de base unidos - trabalho e vida, vida e

Artificialidade e iluminismo • 137

linguagem, linguagem e trabalho -, para verificar aonde eles le­vam.

Minha estratégia de pesquisa concentra-se nas práticas de vida como o lugar atual mais potente de novos saberes e poderes. O lugar mais lógico para verificar essas mudanças é o Projeto Genoma, patrocinado pelos Institutos Nacionais de Saúde [National Institutes of Health] e pelo Departamento de Energia [Energy Department], cuja atribuição é produzir um mapa de nosso DNA. O Projeto Genoma é um projeto técnico-científico em dois sentidos. Como a maior parte da ciência moderna, o Projeto está profundamente im­bricado com avanços tecnológicos no sentido mais literal, neste caso a confiança em que será inventada uma maquinaria qualitativamente mais rápida, precisa e eficiente se houver dinheiro disponível. Isso já está acontecendo. O segundo sentido de tecnológico é o mais importante e interessante; o objeto a ser pesquisado - o Genoma Humano - será conhecido de tal maneira que possa ser transforma­do. Essa dimensão é completamente moderna, poder-se-ia até dizer que ela exemplifica a definição de racionalidade moderna. Repre­sentação e intervenção, saber e poder, compreensão e reforma são construídos simultaneamente, a partir do início, como metas e meios.

Minha postura inicial em relação ao Projeto Genoma e às institui­ções e práticas a ele associadas é muito tradicionalmente etnográfi­ca: nem completamente comprometido nem me opondo, estou pro­curando descrever o que está acontecendo. Concordo com Foucault quando ele diz: "Devemos experimentar a razão? A meu ver nada seria mais estéril. Primeiro, porque o assunto não tem nada a ver com culpa ou inocência. O que nós temos que fazer é analisar racionalidades específicas ao invés de sempre invocar o progresso da racionalização em geral."IO Minha questão etnográfica é: como irão mudar nossas práticas e éticas sociais à medida que este projeto avance? Pretendo abordar essa questão numa série de níveis e em vários lugares. Em primeiro lugar, há o próprio Projeto Genoma. Em segundo lugar, há empresas e instituições adjacentes, nas quais e pelas quais certamente serão articulados novos entendimentos, no­vas práticas e novas tecnologias de vida e trabalho: entre estas, a principal é a indústria de biotecnologia. Finalmente, o aparecimento da bioética e da ética ambiental, abrigadas em várias instituições

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138 • Antropologia da Razão

diferentes, irá sustentar a atividade de observação como um locus­chave da reforma discursiva.

o Projeto Genoma

O que é o Projeto Genoma? Um gen~lIlª-f."a tOJalidade.d_o~IJl-"!eJi!l1

g~n~º.çQl}(LÇ.ºnj!!_l!~<?~4~.,.ÇIqm.<tS§.oql,OS_ d~ __ l!ITl_ ºrgan~sD}_~ ~~I?~~ti­ço" .11 O o"NA é composto de quatro bases que se ligam em dois tipos de pares espiralados na famosa hélice dupla. A e.stil1lativa atual é que nós temos aproximadamente três bilhões de pares de bases em nosso DNA; o camundongo tem aproximadamente o mesmo número, enquanto o milho ou a salamandra têm em seu DNA mais de trinta vezes o número que nós temos. Ninguém sabe por quê. Arnai<lr ]larte cloPNAl)ão.telll fllllçã(uonhecida. Acredita-se, não sem um certo desconforto, que 90% do DNA humano seja "junk". O renomado

. biólogo molecular de Cambridge, Sydney Brenner, faz uma útil distinção entre ''junk'' ["refugo", "porcaria"] e "garbage" ["lixo"]. QarlJage é algo esgotado e inútil que se joga fora;junk é algQ.,9,uese põe de lado para alguma finalidade futura não especificada. Parece muito improvável que 90% de nosso DNA seja irrelevante do ponto de vista da evolução, mas atualmente não se sabe precisamente o que seja essa relevância.

Portanto, nossos genes constituem os 10% restantes do DNA. O que sJo genes? São segmentos dO DNA que codificam proteínas. Os genes aparentemente variam de tamanho de cerca de dez mil até dois milhões de pares de base. Os genes, ou de qualquer maneira a maioria dos genes hoje conhecidos (I % do total presumido), não são simplesmente unidades espaciais no sentido de uma s~qüência con­tínua de pares de base; eles são regiões do DNA formadas por espaços chamados exons intercalados por regiões chamadas in/rans. Quando um gene é ativado (e pouco se sabe sobre como esse processo funciona), o segmento de DNA é transcrito para um tipo de RNA. Os introns são eliminados, e os exons são agrupados para formar o RNA mensageiro. Esse segmento é então traduzido para codificar uma proteína.

Não sabemos quantos genes nós temos. Estima-se que o homo sapiens possua entre cinqüenta mil e cem mil genes - uma margem

Artificialidade e iluminismo • 139

de erro muito grande. Também não sabemos onde está a maioria desses genes; nem em qual cromossomo eles se encontram, ou onde eles estão localizados no cromossomo. Q.Projeto GenQmase destina a mudar tudo isto: a mape~r, literalmente,nossos Ren~s. ~sso levqnta_ duas questões óbvias: o que é um mapa? E quem é o NÓS em

"n(}ssos" genes? Quanto à primeira questão, atualmente, há t@~ ti1'-0s diferentes_de

mapas: de linkage, físico [physical] e de seqüência [sequence]. Os mapas de (inka;;l! são os mais conhecidos por nós através da genética de Mendel que aprendemos no colégio. Eles se baseiam emamplos "studos de genealogias de família(os arquivos históricos mórmon fornecem a documentação histórica mais completa, e os francesas possuem um projeto semelhante), e mostram como o conjunto de características em linkage l2 é herdado. Os mapas de linkage mos­tram quais os genes que são herdados por gerações sucessivas, e grosso modo onde eles estão localizados nos cromossomos. Este é um primeiro passo muito útil na identificação da localização prová­vel de genes deletérios em termos gerais, mas apenas um primeiro passo. N a procura do gene da fibrose cística, por exemplo, os mapas de linkage delimitam a área a ser explorada antes que os outros tipos de mapeamento completem a tarefa.

Há vários tipos de mapas físicos: '\1}11_mapa físico é arepre­sentação da localização de marcas identificáveis .no DNA."13 A descoberta de enzimas de restrição significou um avanço importante na capacidade de mapeamento. Essas proteínas servem para cortar o DNA em pedaços, em lugares específicos. É possível então clonar [produzir uma cópia idêntica] o DNA, fazer uma análise química de sua composição, e depois reconstruí-lo em sua ordem original no genoma. Esses mapas são físicos no sentido literal de que se toma um pedaço de DNA e se identifica nele a localização do gene. Estes pedaços foram reunidos em "bibliotecas". O problema é localizar estes pedaços físicos num mapa cromossômico maior. As técnicas de clonagem envolvendo bactérias, que são mais demoradas, foram usadas por vários anos, mas estão sendo substituídas por novas técnicas, tais como "técnicas de hibridização in situ".

A PCR, polymerase chain reaction, reduz a necessidade de clo­nagem e de bibliotecas físicas. Um dos motivos para a clonagem dos segmentos de DNA foi a necessidade de obter um número de cópias

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idênticas suficiente para análise. Esta multiplicação pode agora ser realizada mais rápida e eficientemente, fazendo-se com que o pró­prio DNA trabalhe. O método funciona da seguinte maneira: em primeiro lugar, constrói-se um pequeno pedaço de DNA, do tama­nho aproximado de vinte pares de base, chamado primer. O primer, um oligonucleotídeo, está sendo agora fabricado comercialmente para fins específicos. A matéria-prima da qual os pares de base são obtidos é o esperma do salmão ou o resíduo de matéria orgânica obtido nos processos de fermentação. Uma fonte particularmente rica são os subprodutos do molho de soja; logo, os japoneses pos­suem uma vantagem neste mercado. Esse DNA é refinado, obtendo­se bases isoladas ou nucleosídeos, e depois recombinado, de acordo com as especificações desejadas, a um custo aproximado de um dólar por ligação [pareamento] em um sintetizador de DNA. Os nucleosídeos poderiam ser feitos sinteticamente, mas hoje é mais barato, devido às pequenas quantidades necessárias - a maioria dos primers tem o tamanho aproximado de vinte bases -, utilizar o esperma do salmão e os subprodutos do molho de soja. Atualmente, a produção mundial anual de DNA é de cerca de alguns gramas. À medida que a demanda cresça, haverá um mercado crescente para os Qligonucleotídeos, fitas de DNA feitas sob encomenda. Como diz Gerald Zon, bioquímica da Applied Biosystems Incorporated: o sonho da companhia é ser o fornecedor mundial de DNA sintético.'4

Doi's primers são selecionados para se unirem ao DNA em luga­res específicos chamados STS ou sequence-/agged si/es [lugares marcados para seqüenciamento]. Esses primers, então, simplesmen­te instruem a fita única de DNA 15 para que ela se reproduza sem a necessidade de ser inserida em outro organismo: isto é a PCR. Portanto, ao invés de precisar clonar fisicamente um gene, alguém pode simplesmente dizer a Seus amigos em Osaka ou Omaha quais primers construir, onde aplicá-los, e eles próprios podem fazer o trabalho (eventualmente incluindo-se a preparação do DNA, que será automatizada). A principal vantagem da técnica RCP-STS é que ela produz informação que pode ser descrita como "informação em um banco de dados." "lJm cientista que desejasse ensaiar uma ~mostra de DNA não precisaria ter acesso aos materiais biológicos que levariam à definição ou ao mapeamento de um STS."16 O computador informaria em que laboratório procurar, qual primer

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construir e, em 24 horas, o cientista teria o pedaço de DNA desejado. Tais segmentos poderiam, então, ser seqüenciados por laboratórios em qualquer parte do mundo e armazenados em um banco de dados. Estes desenvolvimentos abririam caminho para o que promete ser "uma linguagem comum para o mapeamento físico do genoma humano".17

Seqüenciar significa na verdade identificar a série de pares de base no mapa físico. Há uma grande controvérsia sobre a necessida­de ou não de se ter uma seqüência completa do genoma (afinal, há grandes regiões de DNAjunk cujo papel é hoje desconhecido), ou o conjunto completo de genes (não se sabe o que a maioria dos genes faz), ou simplesmente a seqüência dos genes "ativados" (isto é, aqueles genes cujos produtos protéicos são conhecidos). Embora existam formidáveis problemas tecnológicos envolvidos em tudo isto - e soluções tecnológicas igualmente formidáveis estão apare­cendo com a rapidez prevista -, os princípios e o objetivo estão suficientemente claros. "Tornaram-se disponíveis os meios técnicos para assentar firmemente o mapa físico do genoma humano na própria seqüência de DNA. A informação de seqüência é a lingua­gem natural do mapeamento físico."18 É claro que o banco de dados não é uma linguagem, mas um código de computador, e com "natu­ral" nosso cientista provavelmente quer dizer mais útil.

Ainda assim, mesmo quango todo o génoma humano estiver ~apeado, e até seqüenciado, nós não saberemos nadª sobre se\.! funcionamento, como disse Charles Cantor, chefe do Projeto Geno­ma pelo Departamento de Energia.1 9 1'erernosuma espécie de estru­tura sem função. Há muito mais trabalho a ser feito - e já está sendo feito atualmente - sobre intricados problemas científicos: estrutura de proteína, níveis emergentes de complexidade, e muitos outros; cabe lembrar que toda informação genética que constitui um ser humano é encontrada na maioria de nossas células; não se sabe atualmente como uma célula se toma uma célula do cérebro e não do dedo, por exemplo. O que teremos daqui a uma década é a seqüência material do fini-illimité, um mapa de seqüência dos três bilhões de pares de base e dos cinqüenta mil a cem mil genes.

Quanto à segunda questão: ~\tem é ,es.se genoma? Obviamente, nem todas as pessoas têm exatamente os mesmos genes ou DNA junk ou nós não apenas seríamos idênticos como, provavelmente,

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_~staríamos extintos. Houve um certo debate no início deste projeto sobre de quem era exatamente o genoma que estava sendo mapeado; surgiu uma proposta, não muito séria, de uma pessoa muito rica financiar a análise de seu próprio genoma.20 O programa está agora literalmente arquivado nas bibliotecas de clones. O padrão coletivo consiste em diferentes pedaços físicos mapeados em centros ao redor do mundo. çªntorjl~sillala_'lu,,-, dada a maneira com_o os_genes ~ão atualmente localizados nos cromossomos,isto é, pormeiode mapas de linkage, o genoma mais fácil de mapear e seqüenciar seria

A- aquele composto pelo maior número de genes anormais. O patolg­gico seria o caminho para a norma.

Finalmente, n_em todos os genes seqüenciados têm que provir de seres humanos. Os genomas de outros organismos também estão sendo mapeados. Muitos desses organismos, sobre os quais já se sabe muito, foram designados para serem sistemas-modelo. Muitos genes trabalham da mesma maneira em qualquer ser vivo em que sejam encontrados. Assim, em princípio, em qualquer lugar onde encontremos uma determinada proteína, poderemos dizer qual se­qüência de DNA a produziu. Este "código genético" não mudou durante a evolução, portanto os genes dos organismos mais simples são basicamente os mesmos do organismo humano. Já que por razões óbvias organismos mais simples são mais fáceis de estudar, muito do que sabemos sobre a genética humana provém da genética de sistemas-modelo, como O fermento e os camundongos. As mos­cas-de-fruta se mostraram um sistema-modelo extremamente útil. "Uma seqüência de DNA, chamada homeo-box, foi identificada primeiramente nos genes de moscas-de-fruta, e mais tarde nos de organismos superiores, incluindo os seres humanos."2l Esta peque­na cadeia de nucleotídeos (com uma seqüência quase regular) parece cumprir um papel na ativação e desativação dos genes.

Comparações com organismos ainda mais simples são úteis na identificação de genes que codificam proteínas essenciais à vida. A elaboração de seqüências de proteínas e de suas diferenças levou a novas classificações e a um nova entendimento sobre relacionamen­tos e processos evolutivos. O relatório do Office of Technology Assessment declara laconicamente a utilidade de comparações das seqüências de DNA de seres humanos e de camundongos, para a "identificação de genes que só aparecem em organismos superiores,

Artificialidade e iluminismo • 143

porque os genes de camundongos são mais homólogos ao genes humanos do que os de qualquer outro organismo bem caracteriza­do"22 A l!11steriosa afirmação de Rimbaud de que o "Il est charge de l'humanité, des animaux même" parece de fato correta se nós a}iltúpretarmos como significando que saberíamos com certo deta­lhe como evoluímos, e o que conservamos e adicionamos nesse E~~_cesso.

Do estigma ao risco: deficiências normais

~il1ha.$uposi,,ªo é que a nova gellética deverá remodelar a socieda­de e .. a vida.com uma força infinitamente maior do que a revolução na física jamais teve, porque será impl,,-ntacla_ernJoQQ_QJ.eçj4QS_QQal pqr práticas médicas e uma série de out~O$_ disclJI_~9s.l\_nova gené­tica será portadora de suas próprias promessas e perigos.23 Os projetos eugênicos anteriores foram projetos sociais moldados em metáforas biológicas. Seus efeitos sociais estenderam-se da higiene pública ao holocausto, mas nenhum deles tinha muito a ver com os discursos sérios da biologia, ainda que todos estivessem profunda­mente imbricados nos discursos da verdade.24 A sociobiologia, como mostraram Marshall Sahlins e muitos outros, _é um projeto social: das intervenções filantrópicas liberais, destinadas a morali­zar e disciplinar os pobres e degenerados, à rassenhygien e suas extirpações sociais, à sociobiologia empresarial, com seu sadismo social ligado à oferta [supply-sidel, o que esteve em jogo foi a construção da sociedade25 Muito em~~a_.UllgeIlL1Ltenha sido freqüentemente professada por cientistas conceituadQ_s, extrema­mente bem situados, quero declarar aqui - e pretendo debater o assunto em outro lugar - que 0~91?Ii.os projeto§ "specíficosnão "mergiram de dentro da prática científica; eles nunca estiveram dans le vrai, para usar a expressão notável de Georges Canguilhem.

No futuro, a nova genética deixará de ser uma metáfora biológica para a sociedade moderna, e se tornará uma rede de circulação de termos de identidade e lugares de restrição, em torno da qual e através da qual surgirá um tipo verdadeiramente novo de autoprodu­ção: vamos chamá-lo de biossociabilidade. ~e a _sPciobiologia é c_ultura construíd<:!- com base numa metáfora da natureza, então na

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144 • Antropologia da Razão

biossociabilidade a natureza será modelada na cultura compreendi­da como prática; ela será conhecida e refeita através da técnica, ;:t

natureza finalmente se tomará artificial, exatamente como a cuJtll:ra se tornou natural. Se este projeto chegasse a ser realizado, ele seria a base para superar a separação entre natureza e cultura.

Um Rasso decisivo para superar a separação entre natureza e cultura s-';rá a dissolução da categoria do social. O que entendo por sociedade não é um universal naturalizado - que é encontrado em todo lugar, e é estudado por sociólogos e antropólogos simplesmente porque está lá, como um objeto esperando para ser descrito -, mas algo mais específico. Em meu último livro, French Modem: Norms and Forms of the Social Environment, argumentei que, se para nós sociedade significa algo semelhante ao que significava para Ray­mond Williams na primeira edição de seu livro sobre lugares-co­muns modernos, Keywords - a totalidade do modo de vida de um povo, aberta à análise empírica e à mudança planejada -, a socie­dade e as ciências sociais são o plano de base para a modernidade26

A propósito, não há entrada para "vida" em Keywords. Podemos ver os inícios da dissolução da sociedade moderna

acontecendo nas transformações recentes do conceito de risco. Ro­bert Castel, em seu livro A gestão dos riscos, de 1981, apresenta uma perspectiva de análise cujo alcance vai muito além de suas preocupações específicas com a psiquiatria, iluminando particular­mente as tendências atuars das biociências.27 O livro de Castel é uma interrogação sobre a sociedade pós-disciplinar, que ele caracteriza por: (I) uma mutação de tecnologias sociais que minimiza .inter­venção terapêutica direta, enfatizando, ao contrário, um gereIJG.i.a­mento administrativo preventivo de populações de risco; (2JlIjlro­moção do trabalho de cada um sobre si próprio de uma maneira contínua, a fim de produzir um sujeito eficiente e adaptável. Estas tendências se distanciam das abordagens holísticas do sujeito ou do contextualismo social, passando a uma abordagem instrumentaliza­da, tanto do ambiente quanto do indivíduo, como uma soma de fatores diversos acessíveis à análise pelos especialistas. A caracte­rística mais saliente para a presente argumentação é um crescente hiato institucional entre diagnóstico e terapêutica. O potencial para a expansão deste hiato, que certamente não é totalmente novo, põe hoje, não obstante, uma nova gama de problemas sociais, éticos e

I ! li 1 ! l I I,

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culturais que se tornarão mais proeminentes com o progresso da biossociabilidade.

Ap.LeY@Çã9 moderna é antes de tudo o mapeamento de riscos. O risco não é o resultado de perigos específicos colocados pela presen­ça imediata de uma pessoa ou um grupo de pessoas, mas sim a fusão de "fatores" impessoais que tornam um risco provável. Assim, a prev~nção ~ a _yigilância, não do indiyíduo, mas sim de prováveis ocorrências de doenças, anomalias, comportamentos desviantes a serem minimizados, e de comportamentos saudáveis a serem maxi­mizados. Estamos aos poucos abandonando a antiga vigilância face­a-face de indivíduos e grupos já conhecidos como perigosos ou doentes, com finalidades disciplinares ou terapêuticas, e passando a projetar fatores de risco que desconstroem e reconstroem o sujeito individual ou grupal, ao antecipar possíveis loei de irrupções de perigos, através da identificação de lugares estatisticamente locali­záveis em relação a normas e médias. Por meio do uso de computa­dores, os indivíduos que compartilham certas características ou conjunto de características podem ser agrupados de uma maneira que é não apenas descontextualizada de seu ambiente social, mas também não-subjetiva - no duplo sentido de atingida objetivamen­te e de não se aplicar a um sujeito em nada semelhante ao antigo sentido da palavra, isto é, o sofrimento, significativamente situado, integrador de experiências sociais, históricas e corporais. Castel denomina essa tendência de "administração tecnOcrática de diferen­ças". Séries computadorizadas dissolvem o sujeito tradicional e retêm apenas os dados abstratos considerados como parte de fatores de uma série. O-"lvonã()é JlII1apessoa, mas uII1aJLQRulação de.ris.co. Como disse um grupo de portadores de AIDS franceses: o que lhe põe em risco não é quem você é, mas o que você faz. Suas práticas não são totalizadoras, embora possam ser mortais. 28

Embora os métodos epidemiológicos de acompanhamento social tenham sido implementados pela primeira vez de uma forma abran­gente na campanha da tuberculose, foi em outro momento que eles alcançaram sua maturidade contemporânea. A ~djsJinção...q.u_e .. Cª§lel ressal ta como sintomática dessa mU.9a!lÇlue. verific.a.entre.daenç1Le defü:iência. De acordo com um relatório do governo francês, de á~toria de um tecnocrata altamente respeitado, [email protected]!çoi~Illoch·.Lai­

Il". uma d"fi"i~Jl-"Laé "qual'LU~LC()Jljji.çã9 . .fí~il;.a,.IIl1'ntal Qu.si.tuaciq,

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nªl que produza fraqueza ou problema em relação àquilo que é considerado normal; o normal é definido como a média de capaci­dades e chances da maioria dos indivíduos na mesma sociedade".29 O conceito de deficiência foi utilizado oficialmente pela primeira vez na Inglaterra, durante a II Guerra Mundial, como um meio de avaliar a força de trabalho disponível, de modo a incluir o maior número possível de pessoas. Deficiências eram déficits a serem compensados socialmente, psicologicamente e espacialmente] e n~o doenças a serem tratadas: ortopedia, não terapêutica. "O conceito de deficiência naturaliza a história do sujeito, e assimila os níveis de desempenho esperados em um dado momento histórico a uma nor­malidade naturalizada."30 De fato, esse indivíduo em particular é cego, ou surdo, ou mudo, ou baixo, ou alto, ou paralítico, mas pode manejar o torno, atender o telefone, tomar conta da porta, operar computadores; se não for assim, o que podemos fazer com eles, com o trabalho, ou com o ambiente, para tornar isto possível? Desempe­nho é um termo relativo. As práticas fazem a pessoa: ou melhor, apenas fazem os praticantes.31

Foi dado, de fato, um grande passo histórico, da rica teia de significados pessoais e sociais que a cultura ocidental inscreveu na tuberculose, à rede inclusiva do estado do bem-estar, que ainda deve inspirar muita poesia ou produzir um bildungsroman de sucesso, embora tenha aumentando a expectativa de vida e produzido milhõ­es de documentos, muitos deles inscritos em silicone. O objetivismo dos fatores sociais está agora dando lugar a uma nova genética e aos inícios de uma redefinição e eventual operacionalização da nature­za.

Em um capítulo intitulado "What is (going) to be dane?", em seu li vro Proceed with Caution: Predicting Genetic Risk in the Reeom­binant DNA Era, Neil A. Holtzman registra as maneiras pelas quais esse esquadrinhamento genético será usado nos próximos anos, quando seu aleance e sensibilidade forem aumentados dramatica­mente por avanços tecnológicos tais como a PCR, que reduzirá custo, tempo e oposição. Já existem testes para condições como anemia de célula faleiforme, e estão previstos diagnósticos para fibrose cística e mal de Alzheimer. Estas doenças estão entre as estimadas quatro miJ disfunções monogenéticas. Há um número muito maior de doenças, disfunções e incômodos que são poligené-

Artificialidade e iluminismo • 147

ticos. Em pouco tempo o teste genético estará alcançando áreas em que o teste pré-sintomático será de grande valia. Assim, Holtzman sugere que, uma vez que exista um teste disponível para a identifi­cação de um "genótipo" responsável pela propensão ao câncer do seio, mamografias mais precoces e mais freqüentes seriam recomen­dadas ou até mesmo exigidas (para fins de seguro).32 Ele acrescenta: "Poderia ser benefício monitorar aqueles indivíduos com predispo­sição genética a diabetes mellitus (que pode levar à dependência de insulina), câncer colorretal, neurofibromatose, retinoblastoma ou tumor de Wilms, com a finalidade de detectar manifestações preco­ces da doença. A descoberta de pessoas com predisposições genéti­cas poderia ser complementada tanto por um amplo esquadrinha­mento da população como, de modo menos completo, testando-se famílias nas quais a doençajá houvesse aparecido."33 Há um grande número de questões envolvidas, mas Q que quero realçar aqui é que seguramente haverá a formação de novas identidades e práticas individuais e grupais, surgidas destas novas verdades. Haverá gru­pos portadores de neurofibromatose que irão se encontrar para partilhar suas experiências, fazer tobby em torno de questões ligadas a suas doenças, educar seus filhos, refazer seus ambientes familia­res, etc. É isto o que entendo por biossociabilidade. Nós não estamos falando de algum gene hipotético responsável pela agressão ou pelo altruísmo. Haverá, sim, grupos formados em tomo do cromossomo 17, toeus 16.256, sítio 654.376, alelo com substituição de uma guanina. Esses grupos terão especialistas médicos, laboratórios, histórias, tradições e uma forte intervenção dos agentes protetores para ajudá-los a experimentar, partilhar, intervir e "entender" seu destino.

E será mesmo destino. Ele não será portador de nenhuma profun­didade. Não há absolutamente nenhum sentido em se procurar o significado da falta de uma base de guanina, porque isso não tem significado algum. O relacionamento de alguém com seu pai ou sua mãe está aqui oculto nas profundezas do discurso, ele é material até mesmo quando é ambiental - Seu pai fumava? Sua mãe tomava DES?34 Você pode ter certeza de que eles não sabiam o que estavam fazendo. Conseqüentemente outras formas de proteção irão se tornar mais proeminentes, seja para superar a deficiência, seja para prepa-

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rar para os riscos. Essas terapias para os normais irão variar de modificações no comportamento, ao gerenciamento do estresse, a terapias interacionais de todos os tipOS.35 Poderíamos pensar até mesmo num retomo da tragédia em forma pós-moderna, embora provavelmente não iremos simplesmente afrontar os deuses, mas seremos impelidos a superar nossos destinos através de mais tecno­ciência: os anos 90 são a década da genética, da imunologia e do ambientalismo, claramente os carros-chefes da disseminação da tecnociência, do capitalismo e da cultura naquilo que os modernos chamaram de "natureza".

D(mna Haraway denomina essas mudanças de morte da clínica: "Os métodos da clínica necessitavam de corpos e trabalhos: nós temos textos e aparências. Nossas autoridades não trabalham m~is por medicalização e normalização; trabalham com o estabel«cim_en­to de redes [networkingl, a remodelação da comunicação, o geren­ciamento do estresse."36 Concordo só em parte; continuam a existir uma multiplicação e uma imbricação complexa de racionalidades. Formas antigas de classificação cultural da bioidentidade, como raça, gênero e idade, obviamente não desapareceram, não mais do que a medicalização e a normalização, embora os significados e as práticas que as constituem estejam certamente mudando. J'ráticas pQs-disciplinares irão coexistir com tecnologias disciplinares; classificaçõespós-sócio-biológicas irão colonizar apenas gradual­mente contextos culturais ~ais antigos. Assim, Troy DusteX.llJ.Q~Jrou como o teste de anemia de célula falei forme reforçou_ categorias raciais e sociais preexistentes, muito embora a distribuição .dQgene seja muito mais ampla do que a "comunidade afro-americana".~7 Por caminhos complicados, e freqüentemente traiçoeiros, as categorias mais antigas podem até ganhar uma força renovada, à medida que a nova genética comece a se disseminar, não apenas no racismo óbvio tão desenfreado hoje em dia, mas de uma forma mais sutil em estudos, por exemplo, sobre a maior susceptibilidade dos negros à tuberculose. ~ell_argumento éJóiJl!J)l~lTI-"nte gl!e __ eSS~~ classifica­ções c.ulturais_ mais antigas serão. reunidas num vasto arranjo de novas classificações que irãp se sobrepor, parcialmente substituir, e eventualmente redefinir as categorias mais antigas de diversas _ma­neiras, que vale muito a pena monitorar.

Artificialidade e iluminismo • 149

Trabalho e vida

O surgimento da alimentação moderna, isto é, industrialmente pro­cessada para enfatizar a uniformidade, e transformada em mercado­ria como parte de uma internacionalização da agricultura e da distribuição mundial, pode ser datada do período 1870-1914.38 A refinação do açúcar e a moagem da farinha para a produção do pão branco são alguns dos primeiros exemplos de necessidades construí­das pelo consumidor em conexão com a propaganda, a expansão do sistema de transportes, um conjunto de técnicas de processamento e preservação - assim como também, circunstancialmente, em cone­xão com o surgimento do modernismo na arquitetura (os silos de Buffalo, os elevadores de grãos de Mineápolis, como Reyner Ba­nham demonstrou)39 Com estas mudanças, os produtos agrícolas iriam se tornar meramente um insumo na produção de alimentos. Os alimentos iriam se tomar uma "mercadoria heterogênea dotada de propriedades distintas conferidas por técnicas de processamento, diferenciação e merchandising de produtos".4o Esses processos se aceleraram durante a I Guerra Mundial, que aqui, como em muitos outros domínios, forneceu condições laboratoriais para investir, testar e melhorar produtos alimentícios em uma escala verdadeira­mente de massa. Milhões de habitantes se acostumaram com produ­tos naturais transformados, como o leite evaporado, bem como no­vos produtos como a margarina, na qual um produto industrial transformado substituía um produto "rural": gordura vegetal em lugar de manteiga. Utilizando-se métodos desenvolvidos na indús­tria têxtil, era agora possível produzir alimentos em níveis indus­triais, tão restringidos'pelos "ritmos naturais" ou pelas qualidades biológicas inerentes (mesmo se estas tivessem sido ocasionadas pelo homem), e conseguir pessoas para comprá-los e consumi-los.

A reação cultural contra os alimentos classificados como artifi­ciais ou processados foi disseminada nos anos entre as guerras por uma variedade de grupos reformistas do estilo de vida, satirizados por George Orwell (foi daí que o estilo de vida se originou?). E também, de modo mais sistemático, pelas campanhas ecológicas e ambientalistas em favor de uma volta aos alimentos naturais (espe­cialmente pão integral), da abolição da vivissecção, da proibição do fumo em lugares públicos, da investigação dos efeitos das toxinas

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ambientais sobre o material genético humano conduzidas em escala nacional pelos nazistas com seu vigor característico. Hitler, afinal de contas, não fumava nem bebia, e era vegetariano.41 Como vimos nas últimas décadas, a demanda por alimentos integrais e a obsessão com a saúde e o ambientalismo não apenas não significaram um retomo aos produtos e processos "tradicionais" - mesmo quando a imagem da tradição está sendo comercializada, poucas pessoas iriam realmente defender um retomo total às coisas verdadeiras, com seus reservatórios de água poluída, baixo rendimento, e assim por diante -, como também acelerou, e continuará a acelerar, a melhora, o refinamento da natureza, utilizando a tradiçã9 .. como. _U!ll recurso a ser seletivamente melhorado.

Vma vez que a natureza começou a ser sistematicamente modifi­cada para atender a normas industrias e de consumo - tem havido um grande progresso neste campo nas últimas décadas, cujo melhor exemplo talvez seja o tomate perfeito, com forma, cor e tamanho certos, criado para não quebrar ou estragar no caminho para o mercado, faltando apenas seu antigo sabor, o que espantou alguns e agradou outros -, ela pode ser redefinida e refeita para satisfazer outras especificações biopolíticas, como "nutrição". O valor do alimento é agora calculado não apenas em quanto ele imita o alimen­to natural integral em frescor e aparência, mas também em tennos do valor para a saúde dos ingredientes de seus componentes -vitaminas, colesterol, fibra, sal. Pela primeira vez nós temos um mercado em que os alimentos processados, balanceados, cujos in­gredientes são escolhidos de acordo com critérios nutricionais ou de saúde, podem ser apresentados como alternativas superiores aos naturais. O gado está sendo alimentado com óleo de canola com gorduras não saturadas, com menos colesterol: "uma vez que as necessidades biológicas básicas para a sobrevivência são satisfeitas, o conteúdo 'natural' do alimento se torna paradoxalmente um obs­táculo ao consumo. "42

Com essa redefinição cultural e essa organização industrial sendo aceitas, então: "A .!l_atureza, seja a terra, o espaço ou a reprodução biológica, não impõe mais uma restrição obrigatória à transforrn~­ção capitalista do processo de produção e da divisão do trabalho."43 A tendência é para a diminuição da importância da qualidade da terra e do ambiente físico-químico como determinantes do rendimento e

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da produtividade. Bernardo Sorj e seus co-autores afirmam que "o processo de trabalho rural está agora não tanto ritmado pela máqui­na, mas governado pela capacidade dos capitais industriais de mo­dificar os ritmos mais fundamentais do tempo biológico."44 Esse processo leva a um maior controle sobre todos os aspectos do processo de produção de alimentos, procurando torná-lo uma indús­tria como qualquer outra. Novas técnicas biotecnológicas que têm como objetivo o controle industrial da biologia do vegetal, aumen­tam a manipulação direta das propriedades nutricionais e funcionais das plantas, acelerando as tendências à racionalização e à integração vertical da produção e comercialização requeridas pela eficiência. Os avanços biotecnológicos, como a fixação de nitrogênio ou a resistência a herbicidas de plantas recentemente projetadas, e even­tualmente de espécies animais, diminuem a influência da qualidade da terra e do ambiente físico-químico como determinantes dos rendimentos e da produtividade.

A Calgene, uma importante empresa agrobiotecnológica da Cali­fórnia, localizada em Davis, está orgulhosa de suas sementes de tomate PGI. Seu relatório anual de 1989 comparou favoravelmente seus tomates processados geneticamente a um grupo de controle não submetido a engenharia genética. A engenharia à qual a Calgene se refere não é uma engenharia comum, mesmo segundo padrões biotecnológicos. Os tomates da Cal gene utilizam uma técnica "anti­sense" considerada uma das realizações de fronteira nos campos farmacêutico e terapêutico. Anti-sense significa destruir a mensa­gem genética de um gene, interferindo-se na síntese do RNA men­sageiro, ou no próximo nível antes que ele esteja totalmente ativado, ou seja, antes que as instruções para produção de um aminoácido sejam executadas. Embora O conceito seja simples, o desenvolvi­mento de técnicas precisas e específicas o suficiente para a obtenção de resultados necessários não é. O relatório anual diz que os testes de campo "verificaram a capacidade do gene 'ant;-sense' (AS-I) da Calgene de reduzir o apodrecimento de frutas, melhorando ao mes­mo tempo o conteúdo sólido, a viscosidade e a consistência."45 O gene reduz significativamente a manifestação de uma enzima que causa uma precipitação de pectina nas paredes das células das frutas, diminuindo assim a vida da casca. "Esta nova tecnologia fornece uma alternativa natural ao processamento artificial, o que significa

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",

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que no futuro os tomates entregues ao consumidor prollletern.'êstar mais próximos daqueles culti vados em casa, no que se refere a solidez, cor e sabor."46 O tomate da Calgene tem boa aparência, resiste bem ao transporte, e muito em breve poderá ter o sabor que, de acordo com quem já os comeu, os tomates deveriam ter.

S_abores traº!cionais colocam um desafio, e não uma ameaça à tecnociência; quanto mais se especifica aquilo que está faltando no nOvo produto, mais avança o processo civilizador47 Os tomates não são como eram antes? Mas você também não gosta de micróbios, vamos ver o que pode ser feito. Uma empresa de Menlo Park está aperfeiçoando uma baunilha bioprojetada, uma das mais complexas em aroma e sabor. Os cientistas estão indo a museus munidos com a técnica PCR, que lhes possibilita pegar pequenos pedaços de DNA e ampliá-los milhões de vezes.48 Este DNA recuperado poderia então, pelo menos em princípio, ser reintroduzido em produtos contemporâneos. Se os tomates do século XVIII são sua fantasia, não há uma razão a priori pela qual, um dia, uma rede de butiques biotecnológicas, visando o mercado de Berkeley ou Cambridge, não poderia produzir um produto resistente a pesticida, ao transporte e realmente delicioso para você - e para pessoas como você. Em resumo, os 110YQS saberes já começaram a modificar as prática~e trabalho e os processos de vida naquilo que os botânicos da illlstra­ção chamavam de segundo reino da natureza".49

Em louvor da artificialidade

O que devemos fazer disto tudo? Antes de precipitar um julgamento, parece mais sábio prosseguirmos com prudência e é/ano A poderosa interpretação de l2'ed Jameson do pós:moderno, como send9._.0 rt:J,omento em que o capitalismo petletr~no inco.rtsciente e na natur~­za, pode ser suplementada pelas percepções de Donna Haraway e François Dagognet.50 Tanto Dagognet quanto Haraway vêem !lo desafio ao discurso sobre o inconsciente e sobre a natureza - como o mais embutido dos dados - uma oportunidade potencialmente memorável, para além da triste marcha da instrumentalização e da objetificação (embora seja também isso). Eles vêem presente hoje

Artificialidade e iluminismo • 153

um p0Jellcial nietzschiano para nos livrarmos de algumas de nossas mentiras mais duradouras.

Donna Haraway conclui seu iconoclástico e ilustrado "A Mani­festo for Cyborgs", de 1985, argumentando que "assumir a respon­sabilidade pelas relações sociais da ciência e da tecnologia significa recusar uma metafísica anticiência, uma demonologia da tecnologia, e portanto significa abraçar a delicada tarefa de reconstruir os limites da vida cotidiana, em conexão parcial com outras, em comu­nicação com todas as nossas partes."51 Ela aplaude a subversão de "miríades de todos orgânicos (por exemplo, o poema, a cultura primitiva, o organismo biológico)", e declara que "a certeza daquilo que conta enquanto natureza - uma fonte de inspiração e uma promessa de inocência - está minada, talvez fatalmente ... O cyborg não reconheceria o Jardim do Éden."s2 Assim como a natureza, assim também com a cultura.

François !l!!WgRCt, um prolífico e fascinante filósofQd.a úêllCia fr,mcês, um l11aterialista no estilo do século XVIII - seu último livro é em louvor dos plásticos, mas ele também escreveu sobre a extraordinária diversidade das formas das folhas - identifica três r~voluções principais nas nossas atitudes em relação ao mundo; ~ primeira foi a possibilidade de uma mecanização do mundo, asso­ciada a Galileu; a segunda foi a Revolução Francesa, que mostrou à humanidade que suas instituições lhe pertenciam, e conseqüente­mente os homens poderiam se tornar "senhores das relações .so­ciais"; a terceira, que está agora à mercê da nossa vontade, não se refere nem ao universo nem. à sociedade, mas à própria vida.s3

Para Dagognet, o principal obstáculo para a total exploração e aproveitamento dos potenciais da vida é um naturalismo residual. Ele atribui as origens do "naturalismo" aos gregos. O artesão ou artista, sustentavam eles, imita o que é - a natureza. Embora o homem trabalhe na natureza, ele não a muda ontologicamente por­que a produção humana nunca contém um princípio interno de criação. Esse naturalismo permaneceu. Dos gregos até o presente, vários naturalismos se prenderam aos seguintes axiomas: (I) O artificial nunca é tão bom quanto o natural; (2) A criação fornece a prova da vida; vida é autoprodução; (3) A homeostase (auto-regula­ção) é a regra de ouro 54 Julgamentos normativos contemporâneos continuam a afirmar a superioridade do biológico; a transitoriedade

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dos trabalhos humanos; os riscos ligados à artificialidade; a certeza de que a situação original - o Golden Pond ou as Sierras - era incomparavelmente melhor.

Dagognet argumenta que durante milênios a natureza não foi natural, no sentido de pura e intocada pelo trabalho humano. De modo mais provocativo, ele afirma que a maleabilidade da natureza demonstra um "convite" ao artificial. A natureza. é _um bricoleur cego, uma lógica elementar de combinações, produzindo uma infi­nidade de diferenças potenciais. Estas diferenças não estão prefigu­radas por causas finais, não há uma perfeição latente buscando a homeostase. Se a palavra "nalUxeza" deve reter algum sentido, ela deve significar uma polifenomenaUdade explícita de apresentação. Uma vez compreendida nestes termos, a única atitude natural do homem seria facilitar, estimular, acelerar sua expansão: variação temática, não rigor mortis. Dagognet nos lança um desafio de feição consumadamente moderna: "ou caminhamos para uma espécie de veneração ante a imensidão 'daquilo que é' ou aceitamos a possibi­lidade de manipulação."55 O termo manipulação é apropriadamente ambíguo; infere tanto um desejo de dominar e disciplinar, quanto um imperativo de aperfeiçoar o orgânico. Confrontar esta complexidade constitui o desafio da artificialidade e do Iluminismo.

Notas

1. Paul Rabinow, "Artificiality and Enlightenment: From Sociobiology to Biosociality" in Janathan Crary (ed.), Zone 6: lncorporations, Cambridge, MIT Press, 1992. Este texto foi traduzido para o português por Otacnio Nunes, "Artificialidade e ilustração: Da sociobiologia à biossociabilidade" in Novos Estudos do CEBRAP, São Paulo, CEBRAP, 1991. O autor agra­dece a Vincent Sarich, Jenny Gumperz. Frank Rothschild, Guy Micco, Humbert Dreyfus e Thomas White.

2. Cf. Michel Foucault, História da sexualidade, I - A vontade de saber, tradução de Maria Thereza C. Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque, RJ, Graal, 1984 (5' edição), p. 134 - N.T.

3. Michel FoucauIt, The History of Sexuality, Voi. I: An Introduclion, Nova York, Pantheon Books. 1978, p. 139.

4. Mapping Our Genes, Genome Projects: How Big, How Fast?, Washington, D.C., Office ofTechnology Assessment, 1988.

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5. A prop6sito, não penso que p6s·disciplinar possa ser equiparado a pós-mo· derno.

6. Giles Deleuze, Foucaull, Paris, Éditions du Minuit, 1986, "L'homme tend a liberer eo lui la vie, le travail et le langage", p. 140. A versão de Foucault é encontrada em The Order of Things: Art Archaelogy of the Human Sciences. Nova York, Vintage Books. 1966. Sobre a história natural na era clássica: Henri Daudin, Cuvier et Lamarck: les classes zoologiques et l'idée de série animale, Paris, Librairie Felix Alcan. 1926. Sobre o entendimento filosófico do Homem: Jules Vuillemin, L'Heritage Kantien et la Révolution Copernicienne: Fichte, Cohen, Heidegger, Paris, PUF, 1954.

7. François Jacob, The Possible and lhe Actual, Nova York, Pantheon Books, 1982, p. 39.

8. Deleuze, Foucault, p. 141.

9. Michel Foucau!t, ''Truth and Power", in Paul Rabinow, ed., The Foucault Reader, p. 127; idem, TheOrderofThings, p. 387.

10. Michel Foucault, ''The Subject and Power", em Dreyfus e Rabinow, Michel Foucault Beyond Structuralism and Hermeneutics, Chicago, University of Chicago Press, 1983, p. 210.

11. Mapping our Genes, p. 21. 12. Isto é, características que aparecem ligadas. por exemplo, hemofilia e

daltonismo - NT.

13. lbid, p. 30.

14. Entrevista, 19 de março de 1990.

15. Esta fita única é o DNA "desnaturado", isto é, com as hélices separadas­

NT. 16. Mapping our Genes, p. 1434.

17. Maynard Olson; Leroy Hood; Charles Cantor; David Botstein: "A Com· moo Language for Physical Mapping of the Human Genome", Science, voI. 245,29 de setembro de 1989.

18. Mapping our Genes, p. 1435. As linguagens naturais existem em um contexto de cultura e práticas anteriores. Os c6digos são representacionais. mas apenas no sentido de grau zero de representação da transparência e da arbitrariedade definidora. Pretendo lidar com "linguagem" e sua relação com "trabalho" e "vida" em outro texto.

19. Charles Cantor, "Opening Remarks", Human Genome: I. San Diego, 10 de

outubro de 1989. 20. Se, como argumentam de modo convincente AlIan Wilson e sua equipe,

existiu uma "Eva original", a mãe de todos n6s, há aproximadamente duzentos mil anos na África, haveria um argumento para considerar um genoma africano como um padrão a partir do qual outros grupos variaram. A.C. Wilson, E.A. Zimmer, E.M. Prager, T.D. Kocher, "Restriction Map· ping in the Molecular Systematics of Mammals: A Retrospective Salute",

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156 • Antropologia da Razão

em B. Fernholm, K. Bremer, H. Jornvall, orgs., The Hierarchy of Life, Amsterdam, EIsevier Publishing Co., pp. 407-419.

21. Mapping lhe Human Genome, p. 67.

22. Ibidem, p. 68.

23. Tanto Daniel J. Kevies quanto John Heilbron concordaram com a impor­tância do impacto social do Projeto Genoma. Heilbron: "Oh. mil vezes mais importante", 14 de fevereiro de 1990.

24. Para esta distinção ver Huhert Dreyfus e Paul Rabinow, Michel Foucault, Beyond Structuralism and Hermeneutics, 2' ed., Chicago, University of Chicago Press, capo 3.

25. Marshall Sahlins, The Use and Abuse of Biology: An Anlhropological Critique of Sociobiology, Ano Arhor, University of Michigan Press. 1976. Robert N. Proctar, Racial Hygiene: Medicine under lhe Nazis, Cambridge, University of Harvard Press, 1988. Daniel J. Kevles. In lhe Name of Eugenics: Genetics and the Uses of Human Heredity, Berkeley, University ofCalifornia Press, 1985. Benno Muller-Hill, Murderous Science, Elimina­tion byScientific Selection of Jews, Gypsies, and others, Germany 1933-45, Oxford, Oxford University Press, 1988.

26. Paul Rabinow, French Modem: Norms and Forms of the Social Environ­ment, Cambridge, MIT Press, 1989; Raymond Williams, Keywords: A Vocabulary of Culture and Society, New York, Oxford University Press, 1976.

27. Robert Castel, La Gestion des Risques, de I'anti-psychiatrie à l'apres psychanalyse, Paris, Minuit, 1981.

28. O terceiro termo aqui é a genética. Se, como se indica, houvesse um componente genético na propensão a contrair a AIDS, a equação seria mais completa.

29. François Bloch-Laine, Étude du Probleme Général de l'lnadaplation des Personnes Handicapées, la Documentation Française, 1969, p. 111, citado em Castel, p. 117.

30. Ibidem, p. 122.

31. Devo a James Faubion a clareza sobre esse ponto.

32. Tom White ressalta corretamente que todos estes desenvolvimentos pode­riam ser, e provavelmente serão, contestados.

33. Neil A. Holtzman, Proceed with Caution: Predictin Genetic Risks in lhe Recombinant DNA Era, Baltimore e Londres, Johns Hopkins University Press, 1989, pp. 235-6.

34. O DES é um remédio usado por mulheres grávidas para prevenir o aborto natural, com eficácia comprovada. Entretanto, descobriu-se mais tarde que ele causava câncer de cólo nas filhas das mulheres que o tinham tomado.

35. Robert Castel, Advanced Psychiatric Society, Berkeley, University of Ca­lifornia Press, 1986.

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36. Donna Haraway, "A Manifesto for Cyborgs" Socialist Review, vol. 15, n° 2, março-abril de 1985, p. 69.

37. Troy Duster, Backdoor to Eugenics. Londres, Routledge, ,1990. 38. Um tratamento mais completo desta questão teria que lidar com a produção

animal e a agricultura em perspectiva evolucionária. Agradeço a Tom White pelas discussões sobre este e outros pontos.

39. Reyner Banham, A Concrete Atlantis, U.S. Industrial Building and Euro­pean Modem Architecture 1900-1925, Cambridge, MIT Press. 1986.

40. David Goodman, Bernardo SOIj e John Wilkinson, From Farming lo Biotechnology. A Theory of Agro-Industrial Developmem, Oxford, Basil Blackwell, 1987, p. 60.

41. Vide Proctar, Racial Hygiene, capo 8, 'lhe 'Organic Vision' ofNazi Racial Science".

42. Goldman et alli, From Farming to Biotechnology. p. 193. 43. Ibidem, p. 58. 44. Ibidem, p. 47. 45. Planning for the Future, Calgene, Annual Report, 1989, p. 14. 46. Idem. 47. Keith Thomas, Man and the Natural World. A History of the Modem

Sensibility, New York, Pantheon Books, 1983. 48. Norman Arnheim,.Tom White e William E. Rainey, "Application of peR:

Organismal and Population Biology", BioScience, voI. 40, n° 3, pp. 174-183.

49. François Delaporte, Nature's Second Kingdom, Cambridge, MIT Press, 1982. Pretendo tratar de engenharia animal, seres transgênicos e similares em outro texto.

50. Fredric Jameson, "Postmodernism, or the Cultural Logic of Late Capita-lism", New Lefl Review, 146 Uulho-agosto 1984), pp. 53-92.

51. Haraway, op. cit., p. 100. 52. Ibidem, pp. 67, 70. 53. François Dagognet, La Maitrise du Vivam. Paris, Hachette, 1988, p. 22. 54. Ibidem, p. 41. 55. Ibidem, p. 12.

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Cortando os laços: fragmentação e dignidade na modernidade ta rdia 1

A íntima vinculação entre as duas principais arenas simbóli­cas, "o corpo" e "a pessoa", teria que figurar com destaque em qualquer lista de traços caracteristicamente ocidentais.

Seguindo o rumo indicado pelos ensaios pioneiros de MareeI Mauss sobre Les Techniques du Corps e La Personne, primeiro os antropó­logos, depois os historiadores documentaram a diversidade de prá­ticas implicando em "corporalidade" e "pessoalidade". James Clif­ford, em sua competente biografia de Maurice Leenhardt, o antropólogo e missionário francês que trabalhou na Nova Caledônia e produziu algumas das mais sensíveis análises etnográficas da "pessoa", escreve:

Leenhardt jamais se cansava de contar uma conversa com Boesoou Erijisi em que havia sugerido a seu mais antigo convertido: "Em suma, o que introduzimos em seu pensamento foi a noção de espírito. " Afirma­ção essa imediatamente corrigida: "Espírito? Ora! Sempre estivemos informados sobre o espírito. O que vocês trouxeram/oi o COrpo."2

Leenhardt, pastor missionário e etnógrafo, partilhava com MareeI Mauss - judeu, socialista e antropólogo teórico - uma profunda desconfiança em relação à modernidade. O preço a ser pago em solidariedade humana pelo ascenso do "indivíduo" e do "corpo" era um importante tema para esses dois modernos recalcitrantes, embo­ra ambos considerassem a ascensão do indivíduo como um passo

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evolutivo impossível de ser alterado. Mauss escreveu A dádiva para demonstrar quão única e tardia na história do mundo era a categoria do "econômico" e quanta solidariedade social e moral se perdera ao longo de seu triunfo.3 Leenhardt especulava se uma pessoa despro­vida de sustentáculos "participatórios" não estaria condenada a andar à direita, alienada e fechada para a communitas.

O caso de John Moore versus Conselho da Universidade da Califórnia encerra muitos dos elementos fundamentais dos debates contemporãneos sobre o corpo - quais os seus limites, a quem ele pertence e por que esses debates despertam nossa curiosidade. John Moore acionou a Universidade da Califórnia depois que médicos do Centro Médico da U.C.L.A. utilizaram material retirado de seu corpo para produzir uma linhagem de células imortal, que em segui­da patentearam. Moore exigiu uma parte dos lucros, argumentando que as células eram propriedade sua. O Supremo Tribunal da Cali­fórnia discordou de Moore. Embora neste caso a lei tivesse se manifestado claramente, as questões culturais mais amplas - do corpo e da pessoa, da ética, da economia e da ciência - permane­cem em grande medida abertas ao detalhe e ao esclarecimento.

Um dos argumentos centrais do presente artigo é o de que não é exatamente verdadeiro, como tantas vezes se diz, que o que nos deixa culturalmente despreparados é a "novidade" da tecnologia contemporãnea. Nosso despreparo também decorre da obliteração da "antigüidade" de tantas dentre as suposições e práticas sobre as quais se apóia essa tecnologia contemporãnea, suposições e práticas que espreitam à margem, inquestionadas, nesses casos que contex­tualizam a tecnologia e modelam as questões e respostas que formu­lamos. Identificar, em parte, esse pano de fundo, pode contribuir para realçar elementos da inquietação desarticulada que muitos dentre nós sentimos em relação à cultura moderna tardia. Dito de um modo mais grosseiro, a necessidade de optar entre, de um lado, o resíduo há muito encoberto mas ainda presente das crenças cristãs que consideram "o corpo" um receptáculo sagrado e, de outro, os princípios do "ator racional" da cultura de mercado, que vê a pessoa humana como um negociador contratual; opções inadvertidamente apresentadas por diversos juízes do Supremo Tribunal da Califórnia em seus pareceres sobre o caso Moore induzem à melancolia ou ao estresse, dependendo da disposição do freguês. Hoje, as duas ten-

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dências (a cristã e a liberal) se inserem na estrutura do capitalismo tardio, caracterizado em parte por Fredric Jameson como a "prodi­giosa expansão do capital para áreas até então intocadas", especifi­camente a natureza.4 Minha preocupação é com o arcabouço cultural desse evento em curso.

Ao mesmo tempo, o caso Moore contém outro eixo de mudança. A reformulação das leis das patentes de invenção cristalizaram e catalisaram mudanças nas práticas e na autocaracterização dos cien­tistas, particularmente no domínio das biociências. Não apenas o limite entre ciência teórica e ciência prática vai ficando cada vez mais difícil de se estabelecer, como as conquistas e recompensas são medidas cada vez mais em termos de capital real, em acréscimo ao capital simbólico e à autoridade em que se baseava o antigo sistema. A narrativa moral sobre a corrupção da ciência pela indústria é desmentida, ou pelo menos tomada mais complexa, pelo empenho esmagador dos líderes desta área em assegurar os seus primeiros avanços. Esse desenvolvimento é uma culminação contingente de processos culturais mais antigos, um passo adiante num processo acelerado em que verdade e virtude há muito foram separadas. Essa separação epistemológica, porém, só retardadamente está recebendo uma forma cultural. Seu reconhecimento, ao qual se toma cada vez mais difícil resistir, apresenta importantes problemas em torno da autoridade da ciência na sociedade moderna atual.

Este artigo é, em suma, uma tentativa de mapear o regestaltea­mento da verdade e da virtude, do corpo e da pessoa, através da análise de um estudo de caso. Adotando a linha de Max Weber e Michel Foucaul!, quero recensear as formas de regulamentação da vida e a produção de valor emergentes hoje em dia entre aqueles a quem investimos com o direito de falar a verdade sobre a vida. O presente ensaio faz parte de um projeto mais amplo, de analisar o que Shapin e Schaeffer, seguindo Wittgenstein, denominaram "for­ma de vida", associando tecnologias materiais, discursivas e sociais. Ao passo que seu objeto era a primitiva matriz social moderna, em que a "vida experimental" triunfava sobre o leviatã de Hobbes, o meu é a sociedade/cultura moderna recente, em que as fronteiras da vida experimental, bem como de suas estruturas de autoridade mais antigas, estão rapidamente sendo revogadas5

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Novas formas e normas de verdade e virtude

Em 1980, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos decidiu por cinco votos contra quatro que as novas formas de vida estavam sob a jurisdição da lei federal de patentes, O microbiologista da General Electric, Ananda Chakrabarty, desenvolvera uma nova linhagem de bactérias capazes de digerir filmes de petróleo, Chakrabarty modi­ficou uma bactéria já existente mediante a introdução de plasmídios de DNA (cadeias circulares de DNA com um gene específico) nas células dessas bactérias, o que dava ao organismo a capacidade de destruir os componentes do petróleo cru, Ao fazer isso, ele produziu um novo ser, um ser com características acentuadamente diferentes das de qualquer outro encontrado na natureza e com uma significa­tiva utilidade potenciaL Com a deliberação de que Chakrabarty inventara algo "novo" e "útil", o Tribunal julgou adequado proteger essa invenção com uma patente.

Um relatório do U,S, Offiee of Technology Assessment (OTA) sublinhava o alcance da decisão do Tribunal que mais retivera a atenção do público: "O fato de uma invenção abarcar ou não a matéria viva é irrelevante para efeitos de patenteabilidade, desde que a invenção seja decorrente de uma intervenção humana", Em­bora seja verdade que mesmo antes (desde 1930) já fosse possível patentear formas vegetais, diversos fatores - que iam da organiza­ção da indústria de sementes à capacidade limitada de intervir rápida e eficientemente nas variedades vegetais antes do advento da enge­nharia genética - contiveram o alcance e o impacto dessas patentes até recentemente.

A decisão Chakrabarty foi menos um marco legal que um evento simbólico da ocorrência de alterações econômicas, políticas e cultu­rais mais amplas, A retumbante declaração do Supremo Tribunal (de que "o Congresso pretendia que o material estatutário incluísse tudo o que existe sob o sol feito pelo homem"), tendo sido feita, como foi, no mesmo ano da eleição de Ronald Reagan para presidente dos Estados Unidos e da injeção maciça de capital de risco no mundo da tecnologia, pode ser legitimamente considerada uma data-marco para uma nova constelação emergente de saber e poder, Embora o estímulo à transferência de tecnologia, os avanços na engenharia genética, os precedentes na lei de patentes e a forte pressão biparti-

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dária no sentido de que se refonnasse a lei para proteger os negócios norte-americanos tivessem todos uma história (bipartidária) mais antiga, também se pode argumentar que todos esses elementos confluíram com força renovada em 1980,

Neste mesmo ano, o Congresso aprovou a Lei de Patentes e Marcas com o objetivo de "envidar esforços no sentido de desenvol­ver uma política homogênea de patentes que venha estimular o estabelecimento de relações cooperativas entre as universidades e a indústria e, em última análise, tirar da prateleira e colocar no merca­do invenções financiadas pelo governo", Na época, o governo tinha cerca de 25 diferentes políticas de patentes, Esse matagal de regulamentações tendia a desestimular os acordos de licenciamento exclusivo que tornavam o investimento industrial no desenvolvi­mento de produtos menos prováveL O objetivo da nova política era estimular o avanço tecnológico e um vínculo mais íntimo entre a pesquisa desenvolvida na universidade e a indústria, De acordo com os dispositivos dessa lei, as universidades ficavam obrigadas a comunicar toda invenção potencialmente patenteáveL A reação das universidades foi entusiástica, Um relatório do Office sobre Novos desenvolvimentos em biotecnologia: propriedade de tecidos e célu­las humanos informa que de 1980 a 1984 os requerimentos de patentes oriundos das universidades em áreas biológicas humanas relevantes aumentaram em trezentos por cento, A criação do Tribu­nal de Apelações do Circuito Federal, uma das primeiras realizações da administração Reagan, foi um evento emblemático em sua con­solidação e sistematização de casos de patentes, A lei de patentes estava sendo uniformizada e unificada.

Um patamar fora cruzado; a década de 80 assistiu a uma mudança radical nas relações institucionais e normativas entre as universida­des norte-americanas e o mundo da indústria. Um estudo desenvol­vido por uma equipe de Harvard sobre o impacto desses desenvol­vimentos e outros correlatos sobre a organização social da ciência e sua estrutura normativa. mostrava que, em 1986, as empresas indus­triais estavam financiando um quarto da pesquisa em biotecnologia desenvolvida nas instituições de ensino superior, e que quase um quarto dos cientistas da universidade pertencentes a departamentos relevantes para a biotecnologia contavam com algum tipo de apoio da indústria6 De acordo com esse estudo, quando comparados a

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seus colegas sem ligações com a indústria, os cientistas que manti­nham vínculos com a indústria apresentavam uma probabilidade cinco vezes maior de não publicar os resultados de suas pesquisas.7

Num artigo de 1991 intitulado "Laços acadêmico-corporativos na área de biotecnologia: um Estudo Quantitativo", Sheldon Krimsky et aI. ampliam o período considerado e a abrangência do estudo de Harward, documentando a aceleração da tendência para o aumento da interconexão entre as biociências sediadas na universidade e a indústria. Usando uma definição restrita de "laços com o mundo dos negócios" (que exige participar de algum conselho consultivo cien­tífico, ocupar um cargo administrativo, ter participação substancial ou pertencer ao conselho diretor), o estudo indica que, em 1988, 37% dos cientistas biomédicos e geneticistas pertencentes à Acade­mia Nacional de Ciências mantinham laços formais com a indústria biotecnológica. No entanto, visto que a filiação à Academia é vita­lícia e que talvez seus membros mais velhos estivessem menos envolvidos na nova cultura científico-corporativa, Krimsky acredita que a porcentagem de membros ativos que possuam laços substan­ciais com a indústria possa chegar a 50%.8 A inferência de que a elite da pesquisa em biociências nos Estados Unidos tomou para si a transição da separação entre indústria e universidade para a depen­dência mútua é confirmada pela demonstração de Krimsky do papel preponderante dos departamentos mais prestigiosos nos conselhos consultivos das empresas da área da biotecnologia.

Krimsky apresenta duas generalizações pertinentes:

Em menos de uma década, os campos da biologia molecular, genética e bioquímica nos Estados Unidos passaram por uma dupla transformação. Em primeiro lugar, foram transformadas enquanto ciências básicas na esteira das descobertas do splicing e da síntese dos genes. Em segundo lugar, foram transformadas enquanto instituições sociais à medida que se consumava o casamento entre a academia e a ciência industrial (Krimsky etal.,1991:285).

Esse casamento alterou os dois parceiros: a supostamente serena e pura universidade ingressava de cabeça no mundo comercial; e a ala biotecnológica do mundo industrial, tal como antes acontecera com setores da indústria da computação, inventava uma esfera industrial modificada, incorporando elementos da vida universitária conside-

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rados necessários para atrair e conservar pesquisadores de primeira qualidade (jovens, muitas vezes). Em geral existe um consenso de que, pelo menos na área das biociências, o limite entre pesquisa básica e aplicada foi redefinido. Rebecca Einsenberg, proeminente especialista jurídica em lei de patentes, escreve:

Não só a defasagem histórica entre as duas desmoronou como se tornou difícil caracterizar certos problemas da pesquisa como pertencentes a uma ou outra categoria. ( ... ) Notáveis descobertas científicas são feitas em laboratórios industriais e invenções patenteáveis são feitas nos labo­ratórios das universidades (1987: 195-6).

Os sociólogos e historiadores que escrevem sobre essas novas rela­ções institucionais têm tendência (corretamente, sem dúvida) a con­siderar que as normas institucionais gerais da indústria da biotecno­logia são, basicamente, tal como outros negócios, regidas pelo lucro, pela eficiência e pela produti vidade. Enquanto a atenção se manteve focalizada no impacto dos modelos industriais sobre a academia, os intercâmbios opostos foram ignorados. O mundo da biotecnologia (repetindo: tal como antes a indústria dos computadores) tem suas próprias particularidades. Muitas empresas incorporaram "bibliote­cas", "conferências", "edições", "seminários", "professores visitan­tes" e outras coisas do gênero para atrair e fixar cientistas talentosos e produtivos. Ao menos na região da baía de São Francisco - com sua alta concentração de cientistas universitários, empresas de bio­tecnologia e instalações médicas - boa parte da movimentação de um para o outro lado da fronteira universidade-indústria foi facilita­da pelo fato de que a academia se tomou mais industrial, enquanto esse setor da indústria tratava de imitar elementos da vida acadêmica nas biociências. Tal adaptação recíproca tem diversos aspectos que merecem ser estudados, entre os quais a forma como ela facilitou o traslado do status acadêmico para a legitimidade industrial no mun­do do capital de risco, um mundo que possibilitou a indústria sob sua forma atual. Os cientistas mais respeitados são também os mais requisitados e aparentemente os mais abertos à corte que lhes fazem. Novas empresas carentes de legitimidade científica para levantar capital de risco têm maior probabilidade de contar com conselhos consultivos científicos de peso, e esses conselhos têm mais probabi­lidade de pertencer às universidades mais renomadas. Como obser-

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va Rebecca Eisenberg: "Os mercados de capital estão atribuindo um valor monetário à propriedade intelectual muito antes de um produto estar pronto para o mercado. Os prospectos utilizados pelas empre­sas de alta tecnologia para atrair capitais de investimento apregoam a associação da empresa com instalações universitárias e pesquisa­dores universitários."9 De acordo com Pierre Bourdieu, podemos dizer que até recentemente os produtores da verdade nas biociências eram recompensados principalmente com um capital simbólico que os tomava "membros dominados da classe dominante". Durante a década de 80 desenvolveram-se maneiras de transformar o capital simbólico em capital monetário e vice-versa. A conversão de uma para outra forma foi facilitada e acelerada no interior desse setor do campo do poder e da cultura. Um importante elemento da cultura burguesa mais tradicional foi modernizado (tardiamente).

Krimsky et alii 10 salientam três áreas de controvérsia decorrentes da nova situação: conflitos de interesse, alterações na programação das pesquisas e obstáculos potenciais ao intercâmbio intelectual. Aparentemente há alguma hesitação residual acerca das novas nor­mas e práticas, visto que hoje, não raro, a participação em um conselho consultivo científico é classificada como informação pri­vada. Algumas empresas estabelecem acordos de participação COm seus consultores. A existência de vínculos indústria-universidade nas biociências é tão difundida que Krimsky et aliill escrevem que isso "nos ajuda a explicar a emergência de um novo clima na biologia, em que o tratamento confidencial substitui a comunicação franca e aberta" (1991 :284). Qualquer pessoa que tenha lido o relato de J ames Watson sobre a corrida para descobrir a estrutura da molécula do DNA pode muito bem imaginar o quanto a situação foi franca e aberta. O que mudou foi a entrada em cena de dinheiro e patentes. Watson e Crick estavam numa corrida louca por verdade, prestígio e garotas francesas au pairo Hoje, se David Baltimore ou Lee Hood tivessem que escrever sua autobiografia, patentes, acor­dos de licenciamento exclusivo e salários de consultores seriam acrescentados à narrativa.

A avaliação acadêmica pelos pares é fundamental ao sistema normativo da ciência moderna. Uma avaliação objetiva e imparcial, associada a uma ética do anonimato, ocupa o âmago da autolegiti­mação da ciência moderna. Hoje, quando tantos avaliadores de pares

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mantêm vínculos comerciais, os pesquisadores que apresentam can­didaturas a bolsas em áreas de tecnologia de ponta talvez se expo­nham a perder uma vantagem competitiva. Krimsky documenta o grande número de avaliadores acadêmicos ligados à indústria envol­vidos no julgamento do mérito científico de bolsas governamentais. Observa que não é improvável que os cientistas, eles próprios envolvidos com a indústria e cientes de que a única coisa que impede seus competidores (na função de avaliadores acadêmicos) de Se apropriarem de suas idéias é o código ético (em cuja reescritura eles próprios estão ativamente engajados), cheguem à conclusão de que não vale a pena correr o risco de perder a exclusividade. Tal risco poderia muito bem levar biocientistas famosos e arrojados a ir procurar financiamento diretamente junto às indústrias.

As duas produções universalizáveis da cultura burguesa ocidental _ a tecnociência e o capitalismo racionalizado moderno - vêm de estabelecer entre si um novo relacionamento. Esta fusão já resultou em maior eficiência e produtividade. No entanto, seu próprio suces­so recoloca a questão da autoridade para os cientistas. Depois de fazer um novo pacto de Fausto, os membros da comunidade das biociências estão mal equipados culturalmente para refletir acerca de suas próprias práticas, devido ao abandono generalizado da Bildung que praticaram (malgrado toda a discussão travada em torno da correção política, freqüentemente se esquece que as mais impor­tantes reformas curriculares foram determinadas pela eliminação das exigências de educação geral, não raro em decorrência da argu­mentação de que os cientistas não tinham tempo a perder). Agora estes cientistas se vêem obrigados a enfrentar as conseqüências de seus próprios atos, sua autoformação intencional e obstinada. Espe­cialmente no que diz respeito às biociências, o solapamento de sua própria legitimidade e autoridade é, em grande medida, uma auto­produção. Os melhores e mais brilhantes membros dessa auto-rotu­lada "comunidade meritocrática" mostraram o caminho. Os capitais simbólico, monetário e político formam agora um imbricado círculo vicioso. Julgados pelas normas "mertonianas"12 mais antigas, que muitos membros da comunidade das biociências ainda incluem em sua autocompreensão e em suas práticas legitimadoras, esses cien­tistas estão numa posição retórica fraca para chorar a honra perdida.

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o desinteresse está precisando de um novo vocábulo. Hoje. mais do que nunca, a legitimidade das biociências se apóia na pretensão de produzir saúde. Depois de ter-se inclinado de forma tão pronun­ciada na direção de fins quase utilitários ("quase" no sentido de que "saúde", tal como riqueza, é um meio simbólico sujeito a inflação e deflação), agora a comunidade das biociências corre o risco de que a mera produção de "verdade" se mostre insuficiente para comover os capitalistas detentores de capitais de risco, os escritórios de patentes e os autores científicos, dos quais as biociências dependem cada vez mais para sua recém-encontrada riqueza. No caso que estamos focalizando, John Moore versus Conselho da Universidade da Califórnia, o elemento normativo que mais irritou os juízes do Supremo Tribunal foi o "desinteresse", mesmo que a avareza e a ambição fossem peri féricos às questões jurídicas centrais ao caso. O que é perturbador para o senso comum bem informado é a existência de uma cisão entre o apregoado caráter daquele que busca a verdade e os resultados científicos.

Michel Foucault considerava a cisão entre o "sujeito ético" e o "sujeito que busca a verdade" um elemento importante da moder­nidade e uma característica distintiva da cultura ocidental. Ele ob­servou que, até o século XVII, era amplamente - senão universal­mente - sustentado que para conhecer a verdade é preciso ser virtuoso, ou seja, capaz e merecedor de ter conhecimento. A filosofia de Descartes constitui uma ruptura cultural de proporções conside­ráveis. O ponto de vista de Descartes correspondia a afirmar:

Para aceder à verdade basta eu ser qualquer sujeito capaz de ver o que é evidente ... Portanto, posso ser imoral e conhecer a verdade. Acredito que essa é uma idéia que, mais ou menos explicitamente, foi rejeitada por todas as culturas anteriores. Antes de Descartes era impossível alguém ser impuro, imoral, e conhecer a verdade. Com Descartes, basta a evidência direta. A partir dele, temos um sujeito de conhedmelllo não-as­cético. Essa mudança possibilita a institucionalização da ciência moder­na. 13

Foucault enfatiza o fato de que o pensamento ocidental estava pouco à vontade com essa ruptura, com muitos pensadores procurando restabelecer uma relação entre a busca da verdade e as normas morais. No mínimo, a partir de 1980 nos vemos confrontados com

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uma nova virada na longa história das relações entre verdade e virtude, poder e cultura. Uma coisa é igualmente clara: piedade, moralismo ou nostalgia não serão capazes de endireitar as coisas.

A linhagem de células Mo

No dia 9 de julho de 1990, o Supremo Tribunal do Estado da Califórnia tomou pública sua decisão no caso de John Moore versus Conselho da Universidade da Califórnia et aI. Um Tribunal dividido determinou que o sr. Moore não tinha direitos de propriedade sobre as células retiradas de seu corpo, transformadas em uma linhagem de células imortalizada e patenteada por uma equipe do Centro Médico da U.c.L.A. Ao mesmo tempo, o Tribunal decidia por unanimidade que John Moore tinha direito a um julgamento por perdas e danos decorrentes da traição à relação fiduciária. Nesse caso, há uma convergência de aspectos diferentes: o legal, o ético, o técnico-científico, o médico, o textual, o econômico e o da mídia. As questões legais são inúmeras, começando com a lei das perdas e danos e incluindo aspectos fiduciários até chegar ao direito de propriedade. As dimensões científicas do caso aparentemente rece­beram pouca atenção, tanto nos procedimentos do tribunal como na cobertura pela imprensa.!4

Segundo as alegações da queixa de Moore, consideradas verda­deiras pelo Supremo Tribunal da Califórnia para efeitos da decisão que tomou, os fatos essenciais são os seguintes. John Moore, um inspetor trabalhando no Alasca, recebeu o diagnóstico de que estava sofrendo de um tipo raro de leucemia. Moore procurou obter acon­selhamento médico junto a um dos três especialistas em leucemia reconhecidos internacionalmente, David W. Golde, professor de Medicina na U.C.L.A., e na época chefe do Departamento de Hema­tologia-Oncologia. Moore tomou-se paciente do Centro Médico da U.C.L.A. em agosto de 1976, quando o diagnóstico foi confirmado. O Dr. Golde aconselhou-o a extrair o baço, um procedimento cirúr­gico rotineiro, visto que tal providência aparentemente prolongava a expectativa de vida - embora por razões pouco compreendidas do ponto de vista médico. Moore concordou e assinou um formulá­rio-padrão dando seu consentimento para a cirurgia, a realizar-se no

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dia 19 de outubro de 1976, ou em data próxima. A cirurgia de extração de seu baço foi bem-sucedida. A partir daí seu estado "se estabilizou"; ou seja, embora não estivesse curado do câncer, o avanço da doença foi interrompido durante um período indetermi­nado. As células cancerosas continuavam presentes em seu sangue, só que essas células não estão proliferando nem desestabilizando seu corpo.

Após a cirurgia, voltou periodicamente ao Centro Médico da U.C.L.A. entre novembro de 1976 e setembro de 1983 (aproxima­damente dez vezes), a pedido do Dr. Golde. Em cada visita, Golde pediu amostras de sangue ou de soro sangüíneo e, em pelo menos uma ocasião, amostras de pele, de medula óssea aspirada e de esperma, dizendo a Moore que seus produtos corpóreos tinham determinadas "características únicas", com interesse potencial. para a pesquisa, bem como implicações para a "melhoria da humanida­de".ls Pelo menos uma das viagens foi paga pela U.C.L.A., com dinheiro proveniente da bolsa de estudos de Golde. Durante uma dessas visitas, em 1983, Moore recebeu um novo formulário de consentimento para assinar, cedendo à universidade os direitos de sua linhagem de células e de seus produtos corpóreos. Esse novo formulário era necessário devido ao regulamento da universidade, visto que Golde queria retirar sangue não apenas por razões terapêu­ticas mas também com o objetivo de desenvolver pesquisa científi­ca. Moore, desconfiado com o que considerou respostas evasivas às perguntas relativas ao objetivo daqueles exames por parte do Dr. Golde, recusou-se a assinar o formulário. Depois de novos pedidos a ele dirigidos pelo Dr. Golde para que assinasse o formulário, Moore contratou um advogado. 16

Os elementos mínimos necessários para uma compreensão do caso são os seguintes: pouco depois da esplenectomia, o acusado, David Golde, instruiu sua colega de pesquisa, Shirley Quan, a obter uma amostra do baço removido cirurgicamente "para estudar e caracterizar a natureza de suas células e de sua substância antes de sua destruição" (CT). Antes de agosto de 1979, Golde e Quan imortalizaram as células extraídas do baço de Moore numa nova linhagem de células que denominaram "linhagem de células Mo". Isso significa que os dois conseguiram fazer as células se reprodu­zirem indefinidamente, em vez de definharem depois de um número

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finito de divisões, uma coisa nem sempre fácil de obter. Imortalizar uma linhagem de células significa torná-Ia disponível enquanto instrumento de pesquisa. Golde estava ciente de que alguns dos produtos sangüíneos de Moore apresentavam grande valor potencial e que eles ofereceriam benefícios "competitivos, comerciais e cien­tíficos" (CT). Nenhum dos procedimentos de pesquisa estava dire­tamente relacionado com o tratamento médico de Moore. Moore foi informado em termos gerais do que Golde e sua equipe estavam fazendo e, como determinava a lei, sua permissão foi solicitada explicitamente. Em agosto de 1979, Golde deu o primeiro passo nO sentido de solicitar uma patente. A patente inclui a os subprodutos da linhagem de células Mo para a produção de determinadas proteínas. A patente foi requerida em 1979, emendada em 1983 e finalmente concedida ao Conselho da Universidade da Califórnia no dia 20 de março de 198417 O Dr. Golde tornou-se consultor remunerado do Instituto de Genética, adquirindo 75 mil ações ordinárias a um preço nominal. O Instituto de Genética passou a pagar uma parte propor­cionai do ordenado de Golde, além de benefícios adicionais, em troca do acesso exclusivo ao material e às pesquisas realizadas. A grande empresa farmacêutica multinacional Sandoz passou a parti­cipar do contrato de 1982, aumentando o reembolso de Golde e do Conselho. Como já dissemos antes, tais ajustes foram se tornando aspectos normais do panorama institucional e cultural das biociên­cias nos anos 80.

John Moore, com sua leucemia estabilizada, não alegou imperícia médica ou danos físicos. Em vez disso, afirmou que, visto que recebera acompanhamento médico por razões não apenas terapêuti­cas, deveria ter sido informado dos interesses específicos de Golde, tanto de pesquisa como financeiros. Moore também reclamava uma participação na "apropriação indébita", ou seja, dizia que estava havendo apropriação indébita de sua propriedade (suas células e seus produtos sangüíneos) com O objetivo de proporcionar lucros a terceiros. A cobertura da imprensa obscureceu as duas questões: (I) abuso da confiança fiduciária de Golde e/ou ausência de consenti­mento informado; (2) apropriação indébita de propriedade. A cober­tura pouco clara contribuiu para uma recepção confusa do caso e de suas implicações por parte do público. O Supremo Tribunal da Califórnia decidiu que embora John Moore não tivesse direitos de

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apropriação indébita, ou seja, de propriedade, havia "uma causa para um processo por descumprimento das obrigações de revelação do médico" (CT). A lei da Califórnia determina que o médico é obriga­do a "revelar interesses pessoais não-relacionados à saúde do pa­ciente, sejam eles de pesquisa ou econômicos, passíveis de interferir com as decisões médicas" (CT). A Corte julgou que Golde poderia ser acionado tanto por abuso de confiança fiduciária como por não ter obtido o consentimento informado de Moore. Golde argumentou ter informado Moore sobre o interesse de que se revestia seu caso para ele enquanto pesquisador, mas que não havia obrigação legal de que fizesse mais que isso. Como argumentou um membro do Supremo Tribunal, embora ao senso comum parecesse óbvio que Moore não fora tratado honesta e abertamente, mesmo assim era melhor não "forçar a entrada dos pinos redondos da 'privacidade' e da 'dignidade' no buraco quadrado da 'propriedade' com o objetivo de proteger o paciente, visto que as teorias do consentimento fidu­ciário e informado protegem diretamente esses interesses através da exigência de uma completa revelação" (CT). Atualmente o caso está dependente de um julgamento quanto ao descumprimento das obrigações fiduciárias de obter consentimento informado.

A decisão do Supremo Tribunal do Estado

A decisão do Supremo Tribunal do Estado fora precedida por duas decisões em instâncias inferiores. Na primeira, a Suprema Corte apoiara a Universidade ao afirmar que não havia ressalvas no con­sentimento baseado em informações limitadas assinado por Moore, permitindo a realização de intervenções médicas num hospital uni­versitário de pesquisa. Em outras palavras, lohn Moore dera entrada num hospital de pesquisa, recebera tratamento médicó adequado para sua situação e, ao assinar um formulário-padrão pennitindo a esplenectomia, dera plena liberdade aos médicos para realizar pes­quisas nas partes e substâncias retiradas de seu corpo. No segundo nível, um Tribunal de Apelações dividido inverteu a decisão do Supremo Tribunal. A opinião majoritária dos membros do tribunal era de que o tecido humano removido cirurgicamente era "proprie­dade privada corpórea" (CT) do paciente. Em decorrência, sem a

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permissão explícita de Moore, a utilização de seu tecido pela Uni­versidade constituía uma apropriação indébita. A minoria dissidente argumentou contrariamente à aplicação dos princípios da proprieda­de privada ao tecido cirúrgico, na ausência de legislação a respeito. O tema de que esse seria um novo território legal a exigir uma diretriz legislativa repercutiu no Supremo Tribunal. Pelo menos duas decisões do tribunal deixaram implícita a conclusão de que algum agravo fora cometido no caso, porém as duas divergiam quanto à localização desse agravo. Os juízes, em diversas ocasiões e em diversos níveis do sistema dos tribunais, sugerem que, tal como ocorre com a legislação relativa ao transplante de órgãos, seria conveniente que a legislação estadual estabelecesse uma política de regulamentação: afirmavam que a função dos tribunais não era fazer leis, mas apenas interpretar as leis existentes.

As questões centrais submetidas ao Supremo Tribunal da Califór­

nia foram:

1. No consentimento sem ressalvas para a realização de uma cirur­gia médica em um hospital universitário e de pesquisa está implícita a permissãO para o estudo científico do tecido removi­

do? 2. O Tribunal deveria ampliar a definição de propriedade pessoal e

a lei da apropriação indébita para que se passasse a considerar lesivo o estudo científico pós-cirúrgico de tecidos removidos com o consentimento do paciente?

Os advogados do Conselho arrazoaram que:

1. Todo paciente que desse entrada em um hospital universitário de pesquisas para obter tratamento médico estava tacitamente em busca dos benefícios das pesquisas do hospital anteriores a seu internamento. Em decorrência, havia um consentimento implíci­to justamente para procedimentos cujos benefícios o próprio paciente esperava colher, ou seja, a pesquisa científica em curso. Moore realmente admitira, corrigindo uma denúncia, que estava consciente do interesse científico de seu estado, submetendo um atestado de consentimento. Finalmente, seu silêncio durante oito

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anos após a operação reforçava ainda mais a presunção de con­sentimento.

2. O Conselho argumentou que, embora a lei reconheça inúmeros interesses em nosso próprio corpo, ela jamais criou um direito de propriedade sobre as partes do corpo removidas cirurgicamente. O precedente jurídico mais imediato é o direito do parente mais próximo sobre o corpo do falecido. A família tem direito de dispor do cadáver, mas não de vendê-lo. Esse é um quase direito de propriedade, baseado na recusa da lei comum em reconhecer qualquer direito de propriedade sobre cadáveres. A lei comum interpretou a questão como sendo religiosa, deixando-a, tradicio­nalmente, a cargo dos tribunais eclesiásticos. Visto que já não há tribunais eclesiásticos, os tribunais estaduais norte-americanos inventaram o conceito de quase-propriedade como modo de permitir que os parentes próximos dispusessem do corpo (mas não que O vendessem ou transferissem o direito sobre ele). O advogado do Conselho estendeu essa analogia ao tecido removi­do por razões terapêuticas. Há sentimentos envolvidos, dizem eles, mas não direitos de propriedade. Mais: visto que O tecido terapêutico e os corpos mortos já não abrigam a existência individual, a lei atinente à sua posse e ao seu uso está voltada para a política pública similar da saúde e da segurança da comu­nidade, sem levar em conta danos pessoais ou descumprimento da liberdade pessoal. Em decorrência, não há direito à proprie­dade, pelo paciente, do tecido extraído por razões terapêuticas. Em não havendo direito de propriedade, o corpo não pode ser objeto de apropriação indébita.

Os precedentes modernos para essa ausência de apropriação indébi­ta encontram-se nas solicitações dos hospitais para extrair córneas de pessoas falecidas com o objetivo de realizar transplantes, sem ter recebido consentimento expresso para tanto. Em diversos estados americanos, inclusive na Califórnia, os tribunais determinaram que, em questões desse tipo, os direitos individuais de propriedade, liberdade e privacidade deveriam ser considerados menos importan­tes que as considerações relativas à saúde pública. A cegueira de que sofreriam aqueles a quem tivesse sido negado o transplante é levada em consideração, em contraposição aos direitos individuais, e con-

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seqüentemente o Estado tem obrigação, do ponto de vista da saúde pública, de tornar as córneas disponíveis. O acesso científico legal aos tecidos é reconhecido e regulamentado de diversas maneiras. Na Califórnia, há quatro maneiras de obter legalmente tecidos para fins de estudo científico. A Lei da Doação Anatômica Uniforme (Uni­form Anatomical Gift Act) regulamenta as doações para o avanço da ciência médica. O Estatuto do Corpo Morto Não-Reclamado (Un­claimed Dead Body Statute) proporciona acesso a tecidos humanos para efeitos de estudo científico. O acesso legal é oferecido pela remoção dos tecidos patológicos ou daqueles utilizados para diag­nóstico no decorrer do tratamento médico (dependente de consenti­mento informado) e pela retirada de tecidos expressamente para fins de pesquisa. Somados, esses precedentes formam uma forte presun­ção pública contrária aos reclamos de propriedade privada de tecido ou de partes do corpo. Essas regulamentações garantem o uso de tecidos ou o transplante de órgãos doados. Através desses mecanis­mos regulamentadores, a saúde pública, a segurança e o avanço científico são contrapostos à liberdade e aos interesses pessoais

relacionados a perdas e danos.

A decisão Moore: não houve apropriação

A decisão da maioria determinou: "Para constatar apropriação indé­bita, o queixoso deve comprovar uma interferência efetiva em sua propriedade ou seu direito de propriedade. Quando o queixoso não tiver direito à alegada propriedade a ser indebitamente apropriada, e portanto não a possuir, não tem como manter uma ação por apropriação indébita" (CT). A legislação da Califórnia relativa a órgãos, sangue, fetos, glândulas pituitárias, tecidos de córnea e corpos mortos considera os materiais biológicos humanos objetos res nullus, regulamentando sua alienação para atender a objetivos de programas específicos. O tribunal deliberou que não há precedentes para responsabilização por apropriação indébita quando houver uso de células humanas na pesquisa médica. Estender a lei de apropria­ção indébita para essa área significaria prejudicar a pesquisa através da restrição do acesso às matérias-primas necessárias. Fazê-lo seria impor aos cientistas um dever de lesão de direito de investigar a

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genealogia consensual de cada amostra de célula humana utilizada na pesquisa. Mais: fazê-lo talvez significasse atribuir a Moore a propriedade do código genético de linfocinas que têm a mesma constituição bioquímica em todos os seres humanos. O Tribunal manifestou relutância em estender a lei de perdas e danos a esse campo, sugerindo que caso tal extensão devesse ser feita, essa seria uma atribuição do legislativo.

Concordando com ,isso, o juiz Arabian, um conservador, manifes­tou seu sentimento de agravo: de que se passara algo fundamental­mente errado do ponto de vista moral. Não obstante, argumentou que confirmar os reclamos de propriedade de Moore serviria apenas para compactuar com aquele dano moral: "O queixoso pediu-nos que reconhecêssemos e fizéssemos cumprir o direito de vender o tecido do próprio corpo com vistas a lucro. Ele nos convida a considerar o receptáculo humano - o que há de mais venerado e protegido em qualquer sociedade civilizada - equiparável à mais vil mercadoria comercial. Pede-nos que confundamos o sagrado e o profano. Pede-nos muito" (CT). Jürgen Habermas chama "neocon­servadores" aqueles que defendem as mudanças técnicas e econômi­cas e ao mesmo tempo se opõem a mudanças culturais. É um conceito que se aplica ao juiz. O juiz Arabian escreve a respeito de um receptáculo sagrado que equipara ao sujeito civilizado. Pede muito. No entanto, ao reconhecer que numa sociedade capitalista é preciso estabelecer vínculos entre o sagrado e o profano, o juiz Arabian sugere uma reparação para o seguinte sacrilégio, mais moderno, de certo modo: o bem público estaria melhor protegido num sistema legislado de divisão de lucros entre doador e pesquisa­dor. Embora um arranjo desse tipo provavelmente viesse a instaurar uma certa eqüidade, não há Como garantir que protegesse a santida­de do receptáculo.

Dignidade e imortalidade na Modernidade tardia

Num desagravo de cinqüenta páginas o juiz Mosk, um liberal, manifesta consternação moral generalizada. Em primeiro lugar, re­toma o filão do solapamento de normas supostamente tradicionais da ciência e da medicina através da sedução exercida por argumen-

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tos de caráter comercial. A afronta da Justiça gira em tomo, basica­mente, da "norma mertoniana" do desinteresse. Estabelecendo uma distinção entre um "uso autenticamente científico" e uma "explora­ção comercial desavergonhada", o juiz argumenta que embora seja fortuito quando os resultados da ciência pura casualmente encon­tram uma aplicação comercial, se a atividade científica for em busca desses ganhos desde o início, tal motivação constitui uma traição. E conclui: "Se essa ciência tomou-se ciência para obter lucros, nesse caso não vemos qualquer justificativa para excluir o paciente da participação nesses lucros" (CT). O sigilo e a cobiça não são moti­vos genuinamente científicos, conspurcando aquele que vai em busca da verdade. Uma vez que a motivação está enxovalhada por sonhos comerciais, todos têm direitos iguais de lucrar. Justiça é justiça.

A indignação do juiz Mosk também é despertada por uma outra transgressão, desta vez não apenas da ética científica, mas do que ele identifica como os valores mais nucleares da cultura: "Nossa sociedade reconhece um profundo imperativo ético de respeito ao corpo humano enquanto expressão física e temporal da persona humana em seu caráter único" (CT). Tal pesquisa tende a tratar o corpo humano como uma mercadoria - um meio de atender a fins lucrativos. Essa transformação em mercadoria viola "a dignidade e a santidade com que consideramos o todo humano - corpo, mente e alma" (CT). Talvez o juiz empregasse a dobradinha "dignidade e santidade" como tropo, com o objetivo de sublinhar a gravidade da questão. No entanto, logo depois de defender uma visão profana de mercado relativamente a paciente e médico, em contraposição ao que considerava corrupção unilateral, mesmo um tanto contrafeita, sua evocação da santidade parece estranha. Seja como for, a equação fundamental continua sendo holística: corpo, mente, espírito e pes­soa são uma coisa s6; a parte é o todo.

O termo "dignidade", com seu jeito inócuo, na realidade é sur­preendentemente heurístico. Emest Kantorowiczl8 oferece uma dis­cussão detalhada da origem do termo e de seu papel na lei e na política do Ocidente. Dignitas deriva do mito da Fênix. Segundo o antigo mito grego, havia apenas uma Fênix viva de cada vez. Passados cerca de quinhentos anos a ave tocava fogo em seu ninho, atiçava O fogo com as asas e morria em meio às chamas; simultanea-

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mente, das cinzas ainda incandescentes surgia um novo pássaro. A nova Fênix, a mesma e diferente da que havia acabado de morrer, oferecia um símbolo medular de ressurreição. Filosoficamente, a espécie inteira está preservada no indivíduo. A espécie e o indivíduo coincidiam: a espécie imortal e o indivíduo mortal. A ave Fênix era ao mesmo tempo individual e coletiva porque a espécie inteira produzia apenas um único espécime de cada vez. Dignitas no início era um atributo do Rei: o Rei está morto, longa vida ao Rei. Depois o termo migrou para a corporação medieval. Dignitas generalizou­se e recebeu um estatuto legal preciso enquanto atributo semelhante ao da ave Fênix, segundo o qual a corporação coincidia com o indivíduo exatamente porque reproduzia apenas uma individuação de cada vez - o beneficiado.

Nesse sentido, o corpo de Moore era inviolável e único, mesmo em seu estado imortalizado, simultaneamente o mesmo e diferente. De fato, Mosk parece defender exatamente este ponto de vista quando assevera que as células de Moore e sua linhagem de células são idênticas, muito embora a linhagem de células tenha um número diferente de cromossomos e exista unicamente sob condições de laboratório. O juiz Mosk bem poderia concordar com Dâmaso, um canonista que escreveu em 1215: Dignitas nunquam perit (a digni­dade jamais perece, embora os indivíduos morram diariamenteI9). A evocação deste lampejo de genealogia procura realçar a resistência de formulações culturais de longa data que aparentemente ainda têm potencial significante. As capacidades técnicas contemporâneas, porém, oferecem um leque de possibilidades para novas práticas e, em decorrência, novos significados, que transbordam dos receptá­culos mais antigos. Em tal contexto, são os receptáculos e seus atributos que justificam uma reavaliação.

Corpos ressucitados

Particularmente notável é a longa tradição de crença na ressurreição do corpo na doutrina e nas práticas cristãs. Caroline Walker Bynum nos proporciona uma rica discussão dessas questões em seu livro.2o

Ela escreve: "Os pregadores e teólogos cristãos, de Tertuliano aos eclesiásticos do século XVII, afirmavam que Deus há de reunir os

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cadáveres decompostos e fragmentados dos seres humanos no fim dos tempos e conceder-lhes vida eterna e incorruptibilidade". Esse postulado básico da fé e da prática cristã cultas ao longo de mais de mil e quinhentos anos (bem como da crença popular durante outros quinhentos anos) era entendido de forma literal. Os eruditos deba­tiam profusamente em torno do que haveria de acontecer, no dia do juízo final, com as unhas descartadas ao longo de toda uma vida. Dentre elas todas, quais estariam no corpo ressueitado? Grandes pensadores, certamente presentes nas listas de livros mais importan­tes da humanidade, por exemplo Santo Agostinho ou São Tomás de Aquino, levavam muito a sério a questão da ressurreição do corpo em sua materialidade literal. Mais ainda, a atenção dedicada a essas questões, embora pareça arcana, não pode ser descartada como "escolástica", visto que a preocupação com a ressurreição era disse­minada, não se restringindo a uma elite.

A ressurreição do corpo era um elemento incontestado da fé cristã entre os séculos II e V. Havia debates em torno dos detalhes, justamente devido ao consenso. Em 1215, aproximadamente, o Quarto Concílio de Latrão debateu a proposição de que todos volta­rão a erguer-se em seus corpos individuais. O Libri Quatuor Senten­tiarum de Pedro Lombardo é uma compilação de opiniões e doutri­nas cuja indefinição e falta de originalidade foi, aparentemente, uma das razões centrais para o prolongado destaque que desfrutou. Ri­chard McKeon escreve sobre as Sentenças: "Entre os séculos XIII e XVI, talvez nenhum outro livro tenha exercido uma influência sobre a educação e sobre o desenvolvimento das ciências filosóficas e teológicas comparável" à qual elas exerceram21 Pedro propunha questões como as seguintes: "Que idade, peso e sexo teremos no corpo ressucitado? Toda a matéria que nos passou pelo corpo ao longo da vida irá ressuscitar? Os fragmentos de matéria deverão retornar aos membros específicos (unhas e cabelos, por exemplo) onde outrora se 10calizavam?".22 A questão do canibalismo e da ressurreição, debatida a partir do século lI, observou uma espécie de renascimento no século XIII: se os seres humanos comiam outros seres humanos, em qual das duas pessoas haveria de erguer-se a matéria comum? Chegou-se à conclusão de que o alimento digerido tomava-se parte "da substância da natureza humana" e haveria de erguer-se no fim dos tempos. Tomás de Aquino refletiu sobre um

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caso mais complicado: qual seria o destino de um homem que comesse apenas embriões humanos? Visto que a matéria humana irá levantar-se apenas naquele que a possuiu em primeiro lugar, aquelas crianças jamais haveriam de ressuscitar. Fazendo eco ao título de seu livro Fragmentation and Redemption, Bynum escreve: "Os teólogos escolásticos não estavam preocupados em saber se o corpo era fundamental para a natureza humana: o que eles queriam saber era como a parte se relacionava com o todo - ou seja, como os fragmentos poderiam reunir-se, coisa que haveriam de fazer, depois da dispersão e da decomposição."23 Bynum argumenta que é preci­samente o exotismo, a aparente incongruência das crenças, práticas e debates em tomo da ressurreição do corpo que, depois de uma análise meticulosa, devem ser levadas a sério para que esses cristãos - e conseqüentemente nós mesmos - possam ser entendidos melhor. Para os· modernos cultos contemporâneos, é o caráter lite­ral e o puro materialismo daquilo que hoje se considera Idade Mé­dia espiritualista o que faz a doutrina da ressurreição parecer tão exótica.

O debate teológico chegou a um ponto crítico com a reestrutura­ção por Tomás de Aquino da definição de Aristóteles da alma como forma do corpo. Esse ponto de vista "hilemórfico" (ou seja, a união da alma e do corpo como forma para a matéria) determinou uma redução marcante dos reclamos de identidade da matéria. Se a alma é a forma de nosso corpo, então toda matéria deve estar, "por assim dizer, comprimida na alma."24 A teoria de Tomás de Aquino da forma resolveu diversos problemas: unhas individuais, por exemplo, não eram a pessoa; somente a matéria formada pela alma constituía substância e haveria de ressuscitar. A ligação à metonímia cor­po/pessoa - tal como questões de parte e todo, fragmentação e redenção - era tão difundida que, malgrado seu apelo lógico, a posição defendida por Tomás de Aquino levou séculos para obter plena autoridade, mesmo entre os teólogos. Entre os fiéis, o hilemor­fismo encontrou resistência ou foi simplesmente ignorado durante um período ainda mais longo. No século XIII, a grande popularidade do culto a relíquias praticamente impôs aos teólogos um respeito pelo corpo, mesmo fragmentado, como o Jocus duradouro da reden­ção. A crença numa identidade fundamental entre o corpo e a pessoa

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era decorrente dessas crenças e práticas populares e não haveria de ser abalada por uma firula teológica. Pedro, o venerável, escreveu:

Tenho confiança mais seguramente que em qualquer coisa humana, que não devemos sentir desprezo pelos ossos dos mártires do presente como se fossem ossos secos, mas devemos honrá·los hoje cheios de vida como se eles se encontrassem em sua futura in corrupção. ( ... ) A carnejloresce da aridez e a juventude é reconstruída da velhice.25

o cristianismo em suas reflexões sublimes e nas práticas dos piedo­sos manteve uma tensão não-resolvida entre a integridade do corpo, suas partes, a pessoa e a fatalidade, cujas fascinantes complexidades merecem uma atenção mais aprofundada. Não há dúvida de que uma das particularidades do Ocidente pode ser encontrada na tensão entre o corpo enquanto mera coisa transportada por uma ciência e uma tecnologia triunfantes, e a sensação ainda vigente de que o corpo e suas partes continuam sendo mais que coisas.

Bynum mostra que as tentativas da filosofia moderna de despojar essas discussões medievais de seu absurdo aparente, através da recusa de levá-Ias a sério, soçobram diante da resistente compreen· são cultural de que a "pessoa" está inextricavelmente ligada à pura materialidade do corpo e suas partes (com o cérebro ocupando a posição de candidato contemporâneo). Bynum demonstra que os filósofos analíticos parecem considerar impossível imaginar a so­brevivência pessoal sem a continuidade material"26 Ele cita pesqui­sas em transplantes de órgãos nos Estados Unidos que revelam uma crença difundida de que o transplante envolve mais do que a matéria organizada: algum fragmento de identidade seria transmitido para o receptor do órgão.

Hoje, porém, para outros, é a matéria fragmentada do corpo e não "o corpo" que tem valor potencial para a indústria, a ciência e o indivíduo. A abordagem do "corpo" encontrada na biotecnologia e na genética contemporânea fragmenta-o, transformando-o num re­servatório potencialmente discreto, cognoscível e explorável de produtos e acontecimentos moleculares e bioquímicas. Em decor­rência de seu comprometimento com a fragmentação, não há literal­mente concepção alguma da pessoa como um todo subjacente a essas práticas tecnológicas específicas. Em si e visto de fora, o abandono da abordagem do organismo não é bom nem mau. No

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entanto, ele aparentemente causa confusão e perturbação: em parti­cular, quando se procura enquadrá-lo em outras esferas de valor, onde vigoram diferentes narrativas de responsabilidade e pessoali­dade. Claro, devemos acrescentar sem demora que também essas narrativas estão passando por um processo de fragmentação e mu­dança.

Uma parte transformada da matéria de John Moore agora vive para sempre, duplicando-se em frascos que giram lentamente sobre as prateleiras de uma sala com temperatura controlada no estado de Maryland. A linhagem de células pode ser utilizada mediante solici­tação através de um formulário pelas instituições requerentes e o pagamento de uma pequena taxa pelo manuseio. Esses fragmentos e pedaços imortalizados podem ser utilizados para a obtenção de mais conhecimento, para proporcionar mais saúde, para produzir mais lucro. Antropologicamente, é esse ambiente característico da modernidade tardia que desperta nossa curiosidade e nossa preocu­pação.

Notas

1. Paul Rabinow. "Severing the Ties: Fragmentation and Dignity in Late Modernity" in Knowledge and Society: The Anthropology of Science and Tecltllology, voi. 9, Greenwich, lAl Press, 1992. Este texto foi traduzido para o português por Heloisa Jahn, "Cortando as amarras: fragmentação e dignidade na modernidade hoje" in Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo. ANPOCS, n' 23, vol. 8. ou1. 1993.

O autor agradece a David Hess, Michael Meranze, Tom White e. especialmente, a AlIen B. Wagner.

2. MareeI Mauss, "Essai sur le Don". in Claude Lévi-Strauss, org., Sociologie et Allthropologie, Paris. Presses Universitaires de France (original em 1937).

3. lames Clifford, Persoll and Myth: Maurice Leenhardt ill the Melanesian World, Berkeley, University of California Press, 1982, p. 172.

4. Fredric lameson, Postmodernism or lhe Cultural Logic of Late Capitalism, Durham, Duke Univcrsity Press, 1991, pp. 1-54.

5. Conf. M. Weber, "Religions Rejections of the World and their Directions". In: From Max Weber, Harss Gerth e C. Wright Mills, eds., pp. 323-369, Nova York, Oxford University Press, 1946: S. Shapin, S. Schaeffer. Leviat­han and lhe Air Pump. Princeton, Princeton University Press, 1985.

Cortando os laços • 183

6. Conf. D. Blumenthal, M. Gluck, K. Louis e D. Wise, "Industrial Support of University Research in Biotechnology", Science 231 (jan. 17):242A6; D. BJumenthal. M. Gluck, K. Louis. M. Soto e D. Wise. "University-Industry Research Relationship in Biotechnology: Implications for the University". Seienee 232 (Jun. 13):1361-66. 1986: H. Zuckerman, "Introduction: Intel­lectual Property and Diverse Rights of Ownership in Science, Science, Teehnowgyand Human Values", 13 (182):7-16,1988.

7. V. Weil, "Policy Incentives and Constraints", Science, Technologyand Human Values, 13 (182):17-26,1988.

8. S. Krimsky, J. Ennis. R. Weissman, Academic-Corporate Ties in Biotech­nology, A Quantitative Study. Science, Technology and Human ValueS', 16 (3):275-87, 1991.

9. R Eisenberg, "Proprietary Rights and the Norms of Science in Biotecno-logy Research". The Yale Law Journal97 (2): 186-97, 1987.

10. S. Kimsky, op. cit. 11. S. Kimisky, op. cit. 12. Robert K. Merton. The Sociology of Science: Theoretical and Empirical

lnvestigations, Chicago, Chicago University Press, 1973. 13. M, Foucault, "On the Genealogy of Ethics: An Ovcrview of Work in

Progress". Entrevista com Rabinow e Dreyfus em The Foucault Reader. Paul Rabinow ed., pp. 340-72. Nova York, Pantheon Books. 1984.

14. Pretendo tratar desses aspectos num próximo artigo. 15. Exceto quando indicado diferentemente, as citações deste parágrafo e das

páginas que se seguem pertencem aos autos do tribunal- Court Transcript -, e estão indicados no texto com um "CT" após a citação.

16. c.F. Cranor, "Patenting Body Parts: A Sketch of some Moral Issues". In: Owning Scientific and Technical lnformation: Value and Ethical lssues. Vivian Weil e lohn W. Snapper eds., pp. 200-212, New Brunswick, NJ., Rutgers University Press, 1989.

17. O elemento científico desta história foi amplamente ignorado pelo Tribu­nal. bem como pelos meios de comunicação de massa e pelo meio acadê­mico. Examino-o em outro ensaio.

18. Ernest Kantorowics, The King's Two Bodies: A Study in Medieval Political Theology, Princeton, Princeton University Press, 1957.

19. E. Kantorowics, op. cit. 20. Caroline W. Bynum. "Material Continuity, Personal Survival, and Ressur­

rection of the Body, A Scholastic Discussion in its Medieval and Modern Contexts". In: Fragmentation and redemption: Essays on Genderand the Human Body in Medieval Religion, pp. 239-297, Nova York. Zone Books, 1991.

21. Richard McKeon, Selections from Medieval Philosophers. New York, Scribner's. 1929.

22. Mc Keon. op. cit.

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184 • Antropologia da Razão

23. C. Bynun, op. cil. 24. Idem. 25. C. Bynum. op. cit. 26. Idem.

Biotecnologia americana: fazendo a PCR, Reação em Cadeia da

Polimerase I

O que é a Reação em Cadeia da Polimerase? Digamos que, a princípio, a PCR é uma técnica que possibilita a identifica­ção de segmentos precisos de DNA e sua acurada multipli­

cação num curto período de tempo. Ou seja, a PCR torna abundante o que antes era escasso: o material genético necessário para a experimentação. Embora a resposta mais simples e conveniente seja definir a PCR como uma técnica, tal compartimentalização elimina tanto a história da invenção da PCR, quanto as diversas maneiras em que tem sido utilizada. A contingência na emergência da PCR e as práticas necessárias pata o seu funcionamento são, assim, minimi­zadas. A outra resposta mais simples é nomear um indivíduo como o inventor do conceito: o candidato óbvio é Kary B. Mullis que, em 1993, recebeu o prêmio Nobel de Química pela invenção da PCR. No entanto, como veremos adiante, este terreno é disputado. Outros cientistas (Henry Erlich, Norman Arnheim, Randall Saiki, Glen Horn, Coray Levenson, Steven Scharf, Fred Faloona e Tom White) foram essenciais à implementação da PCR. Além do mais, a análise histórica de uma invenção pode distinguir-se das definições legais do que é uma invenção (as leis européias de patente diferem das leis norte-americanas). A empresa Du Pont, por exemplo, arrolou Arthur Kornberg, outro ganhador do Prêmio Nobel, como testemunha num julgamento sobre patentes, para reivindicar, em vão, que a PCR teria existido uma década antes que Mullis a nomeasse. Uma terceira aproximação afirma que a PCR não existiu até o momento em que

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186 • Antropologia da Razão

ela funcionou num sistema experimental. Conforme esta perspecti­va, não é suficiente formular um conceito: o avanço científico inclui o árduo trabalho de demonstrar que o conceito pode ser formalizado numa prática.

Apresento pois três respostas à pergunta "O que é a PCR?", sendo que cada resposta realça um nível distinto. Embora a tríade técnica­conceito-sistema experimental esteja implicada em qualquer desco­berta científica, as relações entre estes termos são variáveis.2 No mundo da ciência e da tecnologia, as relações entre estes três ele­mentos variam. A forma assumida por esta relação num momento particular é uma questão empírica. Não há necessariamente uma progressão uni linear das técnicas aos conceitos e então aos sistemas experimentais, ou dos conceitos às técnicas e daí aos sistemas. Cada um destes três elementos pode emergir primeiro e ocasionar desen­volvimentos nos outros dois; é também possível que dois elementos emerjam juntos, ou que todos os três emerjam ao mesmo tempo. Além do mais, as técnicas que surgem num nexo de relações podem ser desenvolvidas num outro nexo. A mesma variabilidade existe entre os conceitos e os sistemas experimentais, sendo que freqüen­temente os sistemas tomam-se técnicas que são reconceitualizadas e praticadas de modos distintos.3

Apesar da tríade citada acima ser euristicamente útil e adequada, ela separa a PCR do milieu específico no qual emergiu, a Cetus Corporation nos anos 80. Tal "des-localização" talvez seja algo aceitável para um biocientista para quem a história das técnicas, conceitos e sistemas experimentais utilizados no trabalho diário deve ser colocada normalmente entre parênteses a fim de que este trabalho prossiga. No entanto, para quem procura entender o que os biocientistas normalmente fazem, isto é uma limitação inaceitável, o que é amplamente demonstrado pelos estudos sociais da ciência. Mesmo uma descrição do milieu biotecnológico omitiria uma ava­liação da particularidade da PCR. Para chegar a esta particularidade, utilizarei o termo "máquina" de uma maneira que pode parecer idiossincrática. O filósofo francês Gilles Deleuze apresenta uma descrição críptica: "Nem mecânica, nem orgânica ... a máquina é uma proximidade-coleção de seres humanos-instrumentos-animais­coisas. A máquina precede estes termos porque é a linha abstrata que os atravessa e os faz funcionar juntos."4 Nesse sentido, "máquina"

Reação em cadeia da polimerase, peR • 187

se refere a um evento complexo, heterogêneo e contingente (técnico, científico, institucional, discursivo, cultural), e aponta para a emer­gência de novas práticas e novos atores.

1. Uma técnicafacilitadora

Quando, em 1989, a prestigiosa revista Seience escolheu a PCR e a polimerase por ela empregada como a sua primeira "Molécula do Ano", o editor Daniel Koshland Ir. apresentou uma explicação sucinta: "A matéria-prima da PCR - a seqüência-alvo - é um gene ou um segmento de DNA. Numa questão de horas, esta seqüência­alvo pode ser amplificada um milhão de vezes. As fitas complemen­tares da dupla hélice da molécula de DNA são separadas através de aquecimento. Dois pedaços pequenos de DNA sintético são utiliza­dos como primers. Cada primer se liga com sua seqüência comple­mentar a uma das extremidades das fitas do DNAda seqüência-alvo. As polimerases começam em cada primer e copiam a seqüência daquela fita. Dentro de um curto período de tempo, réplicas exatas da seqüência-alvo são produzidas. As fitas de dupla hélice do DNA original e das cópias são separadas em ciclos subseqüentes; os primers se ligam de novo às seqüências complementares e a poli me­rase as replica. Ao final de muitos ciclos, a amostra está enriquecida com pequenos pedaços de DNA que têm a mesma seqüência da seqüência-alvo; esta informação genética amplificada está agora disponível para análises posteriores."5 Após descrever a PCR em termos de uma técnica biológica molecular, Koschland conclui: "Os primeiros artigos sobre a PCR foram publicados em 1985. Desde então, a PCR tornou-se uma técnica cada vez mais poderosa, versátil e útil. A explosão da PCR em 1989 pode ser considerada como o resultado de uma combinação de melhoramentos e aperfeiçoamen­tos da metodologia, introdução de novas variações do tema básico da PCR, e uma crescente consciência por parte dos cientistas sobre o que a PCR poderia oferecer. Com a PCR, pequenas porções de informação genética embutidas, às vezes escondidas, podem ser amplificadas a ponto de se poder obter grandes quantidades de material acessível, identificável e analisável."6 Em suma, para Kos­hland, a PCR é uma tecnologia facilitadora cuja existência pode ser

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traçada desde os primeiros artigos científicos publicados em 1985, sendo que demorou cerca de quatro anos para que a comunidade científica apreciasse o poder desta tecnologia.

Em 1985, Seience publicou o primeiro artigo a respeito da PCR. Em março de 1986, rejeitou um artigo submetido por Kary B. Mullis enviando-lhe uma carta-padrão: "O manuscrito passou pela seleção inicial do conselho editorial mas infelizmente as revisões mais específicas não foram tão entusiásticas como as de outros manuscri­tos submetidos no mesmo período. Devido ao nosso espaço limita­do, o artigo não pôde competir."7 Na sua história da "Molécula do Ano", Koshland não menciona Mullis, não diz absolutamente nada sobre quem inventou a PC R, ou seja, não havia "gênios" ou nomes de inventores associados. Consistente com a análise de redes ("net­works") advogada por Bruno Latour e outros nos estudos sociais da ciência, Koshland constrói a história da PCR em termos de interco­nexões crescentemente densas entre dois "atores", um tecnológico (a própria molécula) e um social (os cientistas na comunidade científica geral, fora da Cetus).8 Entre 1985 e 1989, os múltiplos potenciais desta tecnologia levaram à mobilização de um número cada vez maior de cientistas que contribuíram para a ampliação destes potenciais assim como para a invenção de múltiplos usos para aPCR.

2. Um conceito: decontextualizar e amplificar exponencialmente

Kary B. Mullis considera-se o inventor da PCR e tem sido reconhe­cido como tal por amplos segmentos da comunidade científica, como por exemplo o comitê do Prêmio Nobel de Química. Num relato ao Arquivo Biotecnológico do Instituto Smithsonian, Mullis não definiu a PCR como uma técnica específica, nem Como um conjunto de técnicas, mas como um conceito. Para Mullis, a PCR passou a existir no momento em que ele a concebeu; fazer o conceito funcionar era algo secundário, um mero detalhe. Mullis diz: "O 'Ah", o 'eureca' da PCR não foi só combinar aquelas coisas, dizendo por exemplo que se podia "desnaturalizar", "renaturalizar" e então estender... o que é notável é que se pode tirar um pequeno

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pedaço do DNA do seu contexto e isto pode ser amplificado ... Meu Deus, isto pode ser usado para isolar umfragmento do DNA, de um pedaço complexo do DNA, do seu contexto. O genial foi isso. Não se trata somente de tirar estes pequenos elementos, mas de fazer uma coisa realmente estranha com eles, ou seja, repetir isto mais e mais, algo que os bioquímicas não estavam acostumados a fazer. .. Eu tenho um tipo de mente que pode ter pequenas imagens e manipulá­las. Eu podia ver O terceiro ciclo acontecendo e o que se passava ali ... De certo modo, combinei elementos que já existiam, mas isso é o que os inventores sempre fazem. Geralmente não se pode criar novos elementos. Se havia um novo elemento era a combinação, a maneira de utilizar as coisas existentes. O fato de que eu podia fazer isto repetidamente e de que poderia fazê-lo da mesma maneira que antes fez da PCR uma invenção ... a definição legal de uma invenção é que ela 'apresenta uma solução não antecipada a um velho proble­ma', isto era a PCR ... Veja como ela foi utilizada imediatamente depois de ter sido revelada."9

A tese de Mullis é parcialmente plausível: ele está correto ao afirmar que as técnicas específicas que compuseram a PCR não eram novas per se. No entanto, a sua reivindicação geral de que novos elementos técnicos não são inventados é completamente infundada: é datável a técnica para sintetizar oligonucleotídeos, pequenas fitas de nucleotídeos com comprimento e composição definida; é datável o gel de e!etroforese utilizado para fazer migrar fragmentos de DNA através de uma corrente elétrica separando fitas de tamanhos diferentes - a migração é proporcional ao tamanho do fragmento e então fitas de diferentes tamanhos podem ser separadas; também são datáveis as técnicas agrupadas sob o nome de "Southern blot" (assim chamadas em homenagem ao seu inventor Edward Southern) usadas para transferir estas fitas para uma membrana e assim detectá-las. O conceito que combinou estas técnicas existen­tes é que foi original, poderoso e significativo.

Ademais, embora Mullis afirme que a PCR foi a solução para um problema de longa data, ele nunca diz o que era este problema. Outro cientista na Cetus, Stephen Scharf, é mais perceptivo ao afirmar que o verdadeiramente surpreendente na PCR é o fato de que ela não foi projetada para resolver um problema; só depois que a PCR passou a existir, os problemas que ela poderia resolver surgiram. 10 Uma das

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características peculiares da PCR é, inquestionavelmente, a sua extraordinária versatilidade. Esta versatilidade é mais do que a sua "aplicabilidade" em situações distintas. A PCR é um instrumento que tem o poder de criar novas situações para o seu uso.

3. Uma prática = um sistema experimental + resultados publicáveis

Henry Erlich, cientista sênior trabalhando na Rache Molecular Sys­tems, contesta tenazmente as declarações de Mullis: "Somente após ter sido elaborada é que a PCR tornou-se útil."ll Embora quase todos concordem que Kary B. Munis pensou o conceito, um grupo de ex-cientistas e técnicos da Cetus afirma que a PCR passou a existir somente após o desenvolvimento de um sistema experimental no qual o conceito pudesse ser transformado numa prática, ser forma­lizado experimentalmente e produzir resultados que fossem ao en­contro das normas de evidências publicáveis. Eles parecem concor­dar com o dito de François Jacob: "Na biologia, qualquer estudo começa com a escolha de um 'sistema'. Esta escolha depende da liberdade do experimentador de fazer manobras, da natureza das perguntas que tem a liberdade de fazer e, freqüentemente, do tipo de resposta que pode obter."l2 Segundo esta perspectiva, a PCR preci­sava ser mais do que uma série de disparatados elementos técnicos e mais do que um conceito.

Antes da PCR, Kary B. Mullis fez muitas outras viagens desen­freadas com idéias: esta foi a explicação que os cientistas da Cetus deram pela demora de mais de um ano para que começassem a levar a sério as idéias de Munis. Mullis fez poucos experimentos durante o seu primeiro ano de trabalho e os resultados destes experimentos convenciam tão-somente a ele e ao seu assistente de laboratório. Mais tarde, quando Tom White encaminhou recursos para ver se a PCR poderia ser demonstrada numa forma científica tradicional, Munis ficou extremamente ressentido por considerar esta interven­ção administrativa desnecessária e quase uma usurpação da sua invenção.

Durante 1984 e 1985, havia de fato duas equipes da Cetus traba­lhando na PCR: Munis com Fred Faloona, seu leal assistente sem

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pós-graduação, e um grupo de eminentes cientistas com os seus técnicos altamente qualificados. O grupo de cientistas e técnicos demorou meio ano para produzir resultados experimentais críveis e publicáveis; demorou cerca de dois anos para produzir um sistema de reagentes e técnicas que forneceram resultados experimentais, cuja especificidade e sensibilidade sugeriram que seria possível colocar em prática o poder e a flexibilidade prometida pelo conceito de Munis. Enfim, para que uma prática se torne científica, é neces­sário colocá-la numa forma escrita que esteja de acordo com as normas da comunidade. Não há dúvida de que resultados não con­tam como fatos científicos sem antes passarem por sistemas experi­mentais e publicações. 13

Quem inventou a peR?

Norman Arnheim, ex-cientista da Cetus, respondeu à minha pergun­ta da seguinte maneira: "Concepção, desenvolvimento e aplicação são questões científicas; invenção é uma questão tratada por advo­gados de patentes."l4 Na mesma época em que a revista Seience escolheu a PCR como a "Molécula do Ano", os advogados da empresa Du Pont abriram um processo legal contra a empresa Cetus questionando os seus direitos à patente da PCR. A Du Pont alegou que não havia nada de nova na PCR, que todos os seus componentes existiam desde os anos 60, quando foram inventados no laboratório do Prêmio Nobel, H. Gobind Khorana. Embora tenha se recusado a testemunhar no processo, Khorana deixou claro através de terceiros que concordava com esta alegação. Durante o julgamento, outro Prêmio Nobel, Arthur Kornberg, baseado no seu trabalho prévio sobre a polimerase do DNA, apoiou a reivindicação de que a PCR era algo óbvio.

O julgamento foi importante pelo que revelou acerca do papel da lei na formalização da ciência contemporânea, sobretudo o seu uso como uma tática comercial. A Du Pont achou que valia a pena investir milhões de dólares em advogados na esperança de conven­cer um júri leigo a votar a seu favor. A tática falhou. As deliberações dos jurados foram totalmente favoráveis à Cetus (também apoiada por um cientista vencedor do Prêmio Nobel); eles foram unânimes

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a respeito de cinqüenta pontos distintos, deixando claro que a PCR foi inventada na Cetus. Os direitos patenteados pela Cetus em 1987 foram enfaticamente afirmados; a questão sobre quem inventou a PCR foi assim legalmente resolvida. É significativo que, nesta instância, uma empresa relativamente pequena tenha derrotado uma grande multinacional, abrindo assim a porta para ser adquirida por uma outra multi nacional. Definitivamente, a biotecnologia estava se tornando adulta. Em dezembro de 1991, a imensa empresa farma­cêutica Hoffman - la Roche comprou os direitos da PCR por aproximadamente trezentos milhões de dólares (um convincente voto de confiança no potencial comercial da PCR). O negócio com a Roche efetivamente levou ao fim a Cetus Corporation. 15

O júri tomou a decisão correta? Se de fato a PCR não é nada mais do que um conjunto de técnicas, é pelo menos plausível pensar que as habilidades necessárias para fazer a técnica funcionar já existiam antes de Mullis conceitualizar a PCR como um processo de ampli­ficação exponencial descontextualizado. No entanto, é estranho que tenha demorado quinze anos para que os supostos inventores da PCR tentassem patenteá-Ia ou empregá-Ia a fim de facilitar os seus trabalhos científicos.1 6 Em termos de bom senso, é óbvio que a peR não existia em 1983, mas, como afirmou Arnheim, uma invenção é primeiramente uma questão a ser resolvida por advogados de patentes.

Invenção entretanto também é uma questão para jornalistas, his­toriadores, comitês do Prêmio Nobel (e os que procuram tais glórias) e antropólogos. A peR certamente poderia ter sido inventada antes por outros: as técnicas necessárias (e potenciais sistemas experi­mentais) existiam, faltava o conceito. Não havia qualquer razão inerente para que este conceito não pudesse ter sido concebido nos anos 70. O fato de que a PCR não foi então pensada nos leva a especular brevemente sobre os fatores que talvez tenham direciona­do a atenção dos biólogos moleculares e dos bioquímicos para outras áreas. A resposta mais elementar é que as técnicas para manipular o DNA ainda estavam hierarquicamente dominadas por conceitos e sistemas da biologia molecular e da bioquímica. As tradicionais distinções culturais entre a "teoria" e a "prática" ainda estavam em voga. Os cientistas e técnicos no laboratório de Khorana estavam construindo um gene, queriam múltiplas cópias deste gene.

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A prática de clonagem, surgida no início dos anos 70, forneceu os meios para atingir este fim aproveitando-se de processos biológicos conhecidos. Ainda que a clonagem não tenha originado uma ampli­ficação exponencial in vitro~ produziu um número suficiente de cópias amplificadas in vivo necessárias para construir o gene. A tecnologia então servia à biologia. Ainda que em retrospectiva pareça que o laboratório de Khorana estava perto de conceber a peR, o fato histórico é que a clonagem e outros técnicas foram suficientes para resolver os problemas ali tratados. Uma vez que as técnicas adequadas para aquela tarefa estavam disponíveis, Khorana e seus colegas pararam de explorar outros meios possíveis de ampli­ficar o DNA.

O fato de que Mullis não tinha um problema biológico para resolver foi extremamente importante. Ele foi contratado pela Cetus para sintetizar oligonucleotídeos~ uma tarefa repetitiva e demorada. Segundo Henry Erlich: "Khorana se propunha uma questão científi­ca: 'Posso sintetizar um gene?' Para fazer isto, ele não escolheu um fragmento qualquer de DNA de 158 pares de bases. Ao fazer oligo­nucleotídeos, Mullis falava sobre a síntese de um IS8-mero."17 Os genes estavam se tornando matéria bioquímica. Khorana procurava utilizar um processo biológico (a polimerização) como parte de um projeto mais amplo para fabricar uma versão artificial de uma unidade biológica, um gene. A descontextualização e amplificação exponencial concebida por Mullis era o oposto dos esforços de Khorana tentando mimicar a natureza. Mullis concebeu uma manei­ra de transformar um processo biológico (polimerização) em uma máquina de modo que a natureza estivesse a serviço da (bio)mecâ­nica.

Milieu

A biologia e a qUlmlca deixavam de ser somente moleculares, estavam se tornando biotecnológicas.

Em 1968, Khorana trabalhava num laboratório universitário. Em 1983, Mullis trabalhava num laboratório na Cetus Corporation. Neste meio tempo, muitas mudanças importantes aconteceram nas biociências, como por exemplo o descobrimento dos métodos da

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recombinação do DNA, a famosa conferência de Asilomar sobre como regular a engenharia genética e a fundação da Genentech. Durante estes quinze anos, surgiram vários fatores externos que reformularam as práticas científicas: a emergência de computadores pessoais, a mudança na lei de patentes, a entrada massiva de capital de risco na "alta tecnologia". Quais foram as implicações destas mudanças? O resto do livro A History of Biotechnology experimenta uma resposta a esta pergunta. Aqui, no entanto, enfatizo duas carac­terísticas definidoras do milieu das empresas biotecnológicas no começo dos anos 80, características geralmente tidas como menos óbvias e aparentemente secundárias.

Durante este período o financiamento e o papel institucional de empresas como a Cetus foi fluido, podendo ser chamado de "inter­disciplinaridade sem subvenções". O dinheiro da Cetus veio inicial­mente de contratos com grandes corporações, como a Chevron e a Shell, para projetos específicos. Depois que a Cetus tornou-se públi­ca (entrou na bolsa de valores), o seu dinheiro deixou de estar vinculado a projetos subcontratados e definidos por outros. Na sua segunda década, a Cetus estava amplamente organizada como um empresa orientada para resolver problemas específicos. Dentro des­ta estrutura, os cientistas e os técnicos trabalhavam juntos em equi­pes que combinavam várias disciplinas acadêmicas tradicionais: as carreiras profissionais não estavam unicamente ligadas a especiali­dades, os técnicos podiam ter idéias; a avaliação de problemas sem precedentes tomou-se um talento; não se perdia tempo com agências financiadoras. Neste ambiente, foi possível que Kary B. Mullis, cujo estilo independente teria sem dúvida encontrado desaprovação e disciplinamento em outros contextos, concebesse a PCR e tives­se os recursos necessários à sua disposição para verificar se ela funcionava.

Durante o período em que se trabalhou na PCR, formalizava-se na Cetus um conflito que pode ser caracterizado como "escaramu­çado, sem estabilidade de emprego". Conflitos habitualmente en­contrados em qualquer instituição nos dias de hoje: variedades de ciúmes, invejas, disputas entre egos, rancores, humilhações. Entre o drama adicional do fluxo e controle de capital sem vínculo direto com a produção de produtos e serviços, havia também conflitos mais incisivos através dos quais se disputava a posição que o cientista

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deveria ocupar no ainda incerto milieu biotecnológico. Ninguém de fato sabia. Estes sujeitos diversos e interdependentes inventaram uma forma híbrida, constantemente aberta ao reexame e à contest­ação; fizeram isto a despeito das desigualdades intemas de poder e dos repetidos esforços de cada um destes atores em estabilizar esta forma nas suas imagens. Muitos achavam-na mais estimulante do que os mundos acadêmicos e industriais dos quais haviam vindo.

De qualquer forma, circulavam na Cetus três tipos de respostas possíveis à pergunta pelo papel do cientista no milieu biotecnológi­co: I) A administração da Cetus, particularmente na pessoa do seu diretor executivo Robert Fildes, acreditava que um cientista numa empresa biotecnológica não era muito diferente de um cientista empregado por uma grande indústria farmacêutica. Estavam ali para solucionar problemas que teriam resultados comerciais para a em­presa, a despeito das diferenças de financiamento entre as firmas mais tradicionais e as mais recentes, bem menores, empresas biotec­no lógicas. 2) Mullis previu a possibilidade da criação de uma nova espécie de cientista, livre dos constrangimentos monetários, dos projetos para subvenções e dos carreirismos comuns ao meio acadê­mico. Neste caso, a ciência seria mantida por grandes somas de capital canalizadas para projetos promissores, e equipes de apoio seriam rápida e eficientemente mobilizadas para dar conta dos detalhes. Mullis improvisava um papel independente e, mais tarde, acrescentou seus próprios adereços no papel do gênio malandro. Ele se concebia como uma "pessoa-conceito" e entendia que tal talento era vital, merecendo portanto um papel institucional. 3) Os cientis­tas seniores que, no início de suas carreiras, haviam recebido res­ponsabilidades para a pesquisa e o desenvolvimento científico, vie­ram trabalhar numa empresa biotecnológica como a Cetus devido a uma variedade de razões pessoais. Foram confrontados com um amplo espectro de possibilidades de como definir a si mesmos, seu trabalho e suas relações com o comércio e o mundo universitário (também num processo acelerado de mudança).

Quanto aos pesquisadores e técnicos, eles são americanos inteli­gentes, trabalhadores, sérios e, de certa maneira, otimistas. Suas frustrações com Fildes e Mullis às vezes se acumularam a ponto de exasperação, resultando, em 1987, numa revolta abortada e na de­missão de Tom White e de outros cientistas. Nos relatos de suas

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experiências, no entanto, não há tragédia nem palhas. A interpreta­ção que fazem da ciência como vocação não é ecoa da busca por reformas num mundo social corrupto como fizeram, por exemplo, os "técnicos de idéias gerais" franceses, no início deste século. Tampouco contém o estoicismo trágico requerido daqueles compro­metidos com a verdade na noite glacial do capitalismo moderno, como foi indicado por Marx Weber, ou a auto-satisfação, insular e presunçosa dos cientistas ingleses, que c.P. Snow comenta. 18 Os norte-americanos são profissionais. Os cientistas da Cetus sentiam­se basicamente em casa no seu mundo comparti mentalizado e geren­ciável, um mundo moldado por suas atividades. Se a racionalidade burocrática das empresas modernas forma uma jaula, certamente não é aquela jaula de ferro prognosticada por Max Weber. O refúgio destes cientistas de um mundo (não inteiramente) sem coração era o seu trabalho e a sua identidade como cientistas, uma identidade que não produzia alienação mas sim uma conexão (sem dúvida parcial e frustrada) com um vasto mundo social, e eles acreditavam que isto contribuía para um melhoramento geral do entendimento científico e da saúde pública.

Os cientistas Henry Erlich e Norman Arnheim foram os chefes da pesquisa para o desenvolvimento da PCR. Ambos consideravam-se pesquisadores; Arnheim de fato regressou à atividade acadêmica depois de passar vários anos trabalhando na Cetus. Erlich pôde dar-se ao luxo de oscilar entre postos acadêmicos e a sua posição na Cetus. Ambos não viram conflitos inerentes ao fato de trabalharem para a indústria na medida em que a sua autonomia básica como cientistas não fosse colocada em dúvida, o que foi o caso deles. Estavam convictos de que não existia conflito de interesses entre os horizontes comerciais da PCR e o seu próprio comprometimento com a ciência e o bem-estar público. Eles viam a PCR como um instrumento potencialmente poderoso para criar testes diagnósticos (originalmente para a anemia falciforme), o que seria bom para a Cetus e ajudaria a levar adiante os objetivos da saúde pública com os quais estavam comprometidos. Um acordo tácito foi estabelecido na Cetus: cientistas como Erlich ou Arnheim ao invés de perderem tempo em atividades universitárias como ensinar, participar de reu­niões departamentais, escrever projetos para financiamentos, etc., usariam o tempo necessário para dar conta das suas responsabilida-

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des específicas (neste caso a Genética Humana). Eles dizem que não fizeram concessões e que mantiveram a sua autonomia e integridade científica.

De fato, uma das práticas características das empresas biotecno­lógicas nos anos 80 foi fomentar as conexões entre o mundo univer­sitário e a indústria a fim de minimizar as diferenças entre eles. Tais espaços permitiram que os cientistas fizessem a sua ciência (dentro dos limites dados) como se estivessem no mundo acadêmico (que impunha de forma crescente os seus próprios limites). A descrição de Chandra Mukerji dos oceanógrafos trabalhando em projetos governamentais tem ressonância na situação dos cientistas seniores da Cetus: "A idéia da autonomia científica reassegura a identidade dos cientistas quando eles confrontam o poder da voz da ciência e as suas próprias fraquezas na arena pública. Enfim, cientistas não são políticos, eles são mais tolerantes com possíveis derrotas políti­cas do que com a perda da credibilidade junto aos seus colegas. Os cientistas sentem-se potentes enquanto podem conduzir as pesquisas através das quais fazem avançar tanto a ciência quanto a sua posição dentro dela. O custo disto é que cultivam uma especialização que dá poderes a algum outro."19 No caso da Cetus e de empresas similares, estes intercâmbios contratuais não são feitos com políticos mas sim com empresários (e advogados).

A maior frustração destes cientistas na Cetus é que pessoas como Fildes exigiam constantemente que eles fizessem coisas que consi­deravam tecnicamente prematuras, não impossíveis. O problema para estes tecnocratas científico-industriais não era nem a visão de Fildes de fazer da Cetus uma companhia farmacêutica integrada e biotecnologicamente baseada, nem o fluxo desenfreado das idéias de Mullis; o problema era que Fildes e Mullis tinham uma aprecia­ção não-realista do que era necessário para atingir seus objetivos. Eles estavam apressados demais. Esta apreciação que combina­va dimensões científicas, tecnológicas, econômicas, institucionais e interpessoais era justamente o que as cabeças da pesquisa e desen­volvimento eram pagas para fornecer.

No período que se seguiu à concepção da PCR, a tarefa de avaliar sua viabilidade como tecnologia caiu nas mãos dos dois diretores de pesquisa e desenvolvimento, Jeff Price e Tom White. Ainda que ambos tivessem recebido treinamento científico do mais alto nível e

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que ambos tenham partilhado diferentes responsabilidades em pe­ríodos distintos, Price assumiu uma parte maior das responsabilida­des empresariais negociando com a chefia administrativa da Cetus enquanto que White exerceu uma crescente autoridade no desenvol­vimento e na articulação dos componentes científicos. Esta divisão de trabalho colocou White numa posição-chave durante a emergên­cia da PCR. Naquele momento crucial, White não demitiu Munis a despeito das suas irregularidades profissionais. Pelo contrário, assu­miu o risco de canalizar recursos para explorar a viabilidade funcio­naI do conceito de Munis. White então designou Erlich, Arnheim e, finalmente, outros para trabalhar com Mullis a fim de determinar em que medida a PCR era viável. Enquanto isso, os projetos tidos como "prioritários" pelos "responsáveis" na Cetus prosseguiam a todo vapor.

Máquina

Nenhuma destas técnicas, conceitos, sistemas experimentais ou mi­lieux têm uma essência em si capaz de fornecer o critério definidor para marcar e denominar uma disjunção radical com o passado. Penso que geralmente os rótulos de época (por exemplo, "uma nova era revolucionária da biomedicina" ou "uma volta à eugenia") não funcionam euristicament~. 20 Entre outras limitações. as designações de época tornam impossível a identificação e a análise da emergên­cia de múltiplas práticas desconexas e o tipo de coerência e eficácia que elas obtêm, exatamente o que constitui o objeto da minha análise.

"Máquina" é o único termo técnico que conheço na literatura das ciências humanas que se aproxima da identificação desta arena de contingências. Segundo a definição de Deleuze, os aspectos cruciais da máquina são: sua natureza híbrida; o agrupamento contingente de elementos heterogêneos num aparato funcional; sua mudança de ênfase. Por exemplo, a clonagem (o aproveitamento do trabalho mecânico das células) era uma máquina bastante refinada por volta de 1983; Mullis mudou a ênfase destes elementos e técnicas conhe­cidas e imaginou como as coisas poderiam funcionar de forma diferente. Esta mudança de ênfase - AlIan Wilson chamou a PCR

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de "clonagem sem células" - é tanto minúscula quanto tremenda; assinala a emergência de um tipo diferente de máquina biotecnoló­gica, uma máquina na qual a relação entre o mecânico e o orgânico assumiu uma nova forma e, através disso, abriu novas possibilidades e criou novos problemas.

Em resumo: I) a PCR foi primeiramente um objeto visível -Munis insiste que ele visualizou a PCR na sua imaginação enquanto viajava numa auto-estrada da Califórnia. 2) Os cientistas encarrega­dos de pesquisa e desenvolvimento na Cetus não viram o que Mullis visualizou e propuseram a articulação de um sistema experimental no qual este novo objeto pudesse ser identificado de uma forma convincente e aceitável pela ampla comunidade científica. 3) Para atingir este objetivo, eles precisaram mobilizar de uma nova manei­ra as forças à sua disposição (tempo de trabalho no laboratório, financiamento, materiais, talentos, cooperação, eventualmente es­crever, um conjunto de representações, etc.). 4) No processo de manipular o DNA, negociar com a administração da empresa, redi­gir artigos científicos, consultar advogados de patentes, minimizar conflitos, estes profissionais constituíram-se como novos sujeitos, ocupando novas posições e desempenhando práticas diferentes.

Neste sentido, a máquina focaliza aquilo que é "novo" ou "atual" e, assim, simultaneamente, realça o que é "histórico". Quando a PCR tornou-se uma prática, isto é, quando já estava articulada como uma coisa visível, formulável, administrada e identificada, a sua existência se tomou tão aparentemente auto-evidente que inúmeros cientistas altamente qualificados (apoiados por advogados igual­mente qualificados) acreditaram que a PCR já estava de fato à

disposição há muito tempo e que simplesmente aguardava ser no­meada. Tal ilusão é produzida pela máquina.

o movimento da máquina finalmente articulado

A versatilidade da Reação em Cadeia da Polimerase é, no mínimo, impressionante. Num curto período de tempo começaram a aconte­cer algumas reversões e movimentos ortogonais tão curiosos quanto espetaculares: o próprio conceito tornou-se um sistema experimen­tal; o sistema experimental transformou-se numa técnica; as técnicas

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viraram conceitos.21 Essas aceleradas variações e mudanças refer­enciais mútuas foram integradas em ambientes de pesquisa - pri­meiro na Cetus e depois, rapidamente, em muitos outros lugares, semelhantes e distintos entre si. Milhares de cientistas e técnicos começaram a usar a peR, multiplicando as suas modificações e feedback. Em menos de uma década, a peR tornou-se, simultanea­mente, uma rotina absoluta em laboratórios de biologia molecular e um instrumento em permanente mudança. A ênfase original de Mullis em "descontextualização" transformou-se numa multidão de recontextualizações que contém o potencial para ulterior decontex­tualização e invenção. A peR produzindo eventos:22 aprendendo, fazendo e refazendo; novas variações de instrumentos, práticas, espaços e discursos - uma simples pequena coisa.

Notas

1. Paul Rabinow, The Making of PCR: A Story of Biotecnology (no prelo).

2. Hans-Jorg Rheinberger. Experimelll, Differenz, Schrift - Zur Geschichte epistemischer Dinge, Warburg, Basiliskenpresse, 1992.

3. Eu desenvolvo uma analítica e não uma teoria da prática científica. Para maiores detalhes sobre esta distinção vide Dreyfus e Rabinow, Michel Foucault: Beyond Strucluralismand Hermeneutics, Chicago. University of Chicago Press, 1983.

4. Gilles Deleuze, Claire Parent, Dialogues, Paris, Éditions Flamarion, 1977, pp. 125-126.

5. Daniel E. Koshland, Jr .. "Editorial" in Seience, 22/12/1989. p. 1541. A despeito da vasta literatura sobre os estudos sociais da ciência, Koshland ainda parece acreditar numa única teoria representacional da verdade, na marcha do progresso liderada pela ciência, em tecnologia como ciência aplicada para ajudar a humanidade, na neutralidade da ciência e da tecno­logia, na sua inerente essência democrática: "A fim de simbolizar este progresso científico e de honrar a estrutura que o cria, Science decidiu nomear uma Molécula do Ano ... Este prêmio reflete o fato de que esta descoberta específica alcançou no ano da sua premiação um estágio de desenvolvimento e entendimento suficiente para estabelecer sua significân­cia a longo prazo. O prêmio deste ano vai para a molécula de polimerase do DNA e a técnica chamada PCR. A PCR tornou-se um dos mais podero­sos instrumentos da biologia moderna."

I.

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6. Ruth Levy Guyer, Daniel E. Koshland. Jr .. "The Molecule of the Year",

Seience. 2211211989, p. 1543. 7. Carta da editora Patricia A. Morgan a Kary B. Mullis, Science. 12/03/1986. 8. Bruno Latour, Science in Action: How to Follow Scientists and Engineers

Through Society, Cambridge, Harvard University Press. 1987. 9. Kary B. Mullis entrevistado por Raymond Kondratas, 11/0511992 (o grifo

é meu). Ajudei a coordenar esta entrevista para o Smithsonian Museum.

10. Stephen Scharf, comunicação pessoal.

li. Henry Erlich. comunicação pessoal. 12. François Jacob, The Slatue Within: An Autobiography. New York, Basic

Books. 1988, p. 234. 13. Michel Foucault, Hans-Georg Rheinberger, Gyorgy Markus. Francis Crick,

What Mad Pursuit: A Personal View of Scielltific Discovery, New York, Basic Books. 1988, p. 73, menciona que a produção de evidências convin­centes da existência da dupla hélice demorou de vinte a vinte e cinco anos.

14. Norman Arnheim, comunicação pessoai. 15. Os outros bens da Cetus, na sua maioria projetos terapêuticos, foram

vendidos à empresa biotecnológica vizinha, a Chiron Corporation. 16. Arthur Kornberg não menciona a PCR na primeira edição do seu "text­

book" sobre a amplificação do DNA; a PCR consta na segunda edição.

17. Henry Erlich, comunicação pessoal. 18. Paul Rabinow, French Modem: Norms and Forms ofthe Social Environ­

mellt, Cambridge, MIT Press, 1989. Vide Max Weber, The Protestant Ethic and lhe Spirit ofCapitalism, New York, Scribner's, 1958 e "Science as a Vocarion" in Gerth e Mills (eds.), From Max Weber: Essays in Sociology, New York, Oxford University Press, 1946; c.P. Snow, The Two Cultures and a Second Look, Cambridge, Cambridge U~iversity Press, 1964.

19. Chandra Mukerji, A Fragile Power, Scielltists and the State, Princeton, Princeton University Press, 1989, p. 197.

20. Muitos reivindicam definir nossa época. Os arautos do pós-modernismo consideram que todas as metanarrativas da história e da cultura se dissol­veram; no entanto, a ciência e o capitalismo nunca dantes pareceram tão universalizantes. A interpretação dos seguidores de Heidegger de que a tecnologia é "enquadradora" ("enframing") e de que a natureza é uma "reserva à disposição" ("standing reserve") é apresentada como o critério definidor de urna era da tecnologia. Liberais clássicos e neomarxistas vêem o avanço global do capitalismo (com ou sem democracia) como a caracte­rística definidora da nossa era. Embora estas linhas de pesquisa não sejam desinteressantes, elas me parecem enganosas; são muito essencializadoras, totalizantes e gerais. Cada uma destas linhas dé pesquisa sabe a priori a forma geral do desenrolar dos eventos. Aprofundo esta questão em "Mo­dern and Counter-Modern: Foucault and Heidegger" in Gary Gutting (ed.), The Foucault Companion. Cambridge, Cambridge University Press, 1993.

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III

202 • Antropologia da Razão

21. Sobre o movimento Ocidental no trabalho de "bricolage", vide Claude Levi-Strauss, La Pensée Sauvage, Paris, Plon, 1962, p. 26.

22. Segundo Kary B. Mullis: "Por ser uma simples pequena coisa, a PCR tende a se introduzir em muitos estudos. Cada qual pensa na pequena mudança que fará a fim de que a peR viabilize a resolução do seu problema específico." Vide o livro editado por Mullis, François Ferre e Richard A. Gibbs, PCR - The Polymerase Chain Reaction, Cambridge, Birkhãuser Boston, 1994, p. x.

Agradecimentos do organizador

" A Denise Coutinho, o nosso muito obrigado. O seu in-

centivo, comentários críticos e revisões foram funda­mentais para a realização deste projeto. Nossos agrade­

cimentos se extendem a todos os amigos e colegas que, no Brasil e nos Estados Unidos, ajudaram ao longo do percurso: Naomar de Almeida-Filho, Lúcia Azevedo, Noemia Biehl, Fausto e Elaide Biehl, Jessica Blatt, Contardo Calligaris, Elia­na Calligaris, Darci Dietrich, Torben Eskerod, Edilson e Mari­na B. Ferraes, Mariana Ferreira, Robert Kimball, Roberto Ma­chado, Antônio Maia, Meika Mustrangi, Ruben Oliven, Mike Panasitti, Adriana Petryna, Ronai Rocha, Milton Quintino, Marc Rabinow, Marilyn Rabinow, Ricardo Santos, Christian Scharen-Batalden, Natasha Schull, Fernanda Serralta, Maria Nazaré F. da Silva, Luís Guilherme Streb, Vítor Westhelle.

Este projeto contou com o apoio do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia e do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (processo 201088/93.2).

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