RACISMO COMO INSTRUMENTO EPISTEMOLÓGICO E POLÍTICO PARA O ENTENDIMENTO DA SITUAÇÃO DA POPULAÇÃO NEGRA NA SOCIEDADE BRASILEIRA

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    RACISMO COMO INSTRUMENTO EPISTEMOLGICO EPOLTICO PARA O ENTENDIMENTO DA SITUAO DA

    POPULAO NEGRA NA SOCIEDADE BRASILEIRAMrio Luiz de Souza1

    Resumo: Esse artigo debate a utilizao da categoria racismo nos estudos sobre a condio dapopulao negra, tendo como objetivo central demonstrar a sua importncia para a construodesse conhecimento e da luta poltica que tais estudos possam ensejar. Nesse sentido,comungamos com os pesquisadores que apontam que a excluso e a dificuldade econmica esocial vivida pela maioria dos negros no obra do acaso, ou de um processo natural, mas frutode relaes concretas que se constituram na formao da nossa sociedade, sendo o racismo umadeterminao fundamental para o entendimento de tal processo. Contudo, apontamos que o usodessa categoria, para dar um resultado profcuo, no pode ser transformado num instrumentoterico que engesse o estudo sobre a questo do negro, retirando do campo de estudo outrasimportantes contribuies sobre as condies da populao negra.

    Palavras-chave:Negro. Racismo. Raa. Teoria.

    RACISM AS A POLITICAL AND EPISTEMOLOGICAL TOOL FOR THEUNDERSTANDING OF THE SITUATION OF THE BLACK POPULATION IN

    THE BRAZILIAN SOCIETY

    Abstract:This article discusses the use of category racism in studies about the condition of theblack population, with a main objective of demonstrate its importance to the construction of thisknowledge and political struggle that such studies may give rise. In this sense, we share withresearchers pointing that exclusion and economic and social difficulties experienced by mostblacks is no accident, or a natural process, but the result of specific relationships that are formedin the construction of our society, where racism is a fundamental determination tounderstanding this process. However, we point out that the use of this category to give ameaningful result cannot be transformed into a theoretical instrument with no dynamic for thestudy on the black question, taking from the field of study other important contributions on theconditions of the black population.

    Keywords:Black. Racism. Race. Theory.

    RACISME COMME UN OUTIL PISTMOLOGIQUE ET POLITIQUE POURLA COMPREHENSION DE LA SITUATION DE LA POPULATION NOIRE

    DANS LA SOCITE BRSILIENNE

    Rsum:Cet article traite de l'utilisation de la catgorie racisme dans les tudes sur l'tat de lapopulation noire, en aient comment principal objectif de dmontrer leur importance pour laconstruction de cette connaissance et de la lutte politique que de telles tudes peuvent donner

    1

    Professor do Mestrado tnico-racial do Centro Federal de Educao Tecnolgica Celso Suchow daFonseca- CEFET-RJ. E-mail:[email protected]

    mailto:[email protected]:[email protected]
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    opportunit. En ce sens, nous partageons avec les chercheurs pointent que l'exclusion et lesdifficults conomiques et sociales vcue par la plupart des Noirs n'est pas un accident, ou unprocessus naturel, mais le rsultat de relations spcifiques qui sont forms dans la formation denotre socit, tant le racisme une dtermination fondamentale pour comprendre ce processus.Toutefois, nous rappelons que l'utilisation de cette catgorie, par donner un rsultat significatifne peut pas tre transform en une instrument thorique que pltre ltude sur la question noire,prenant du camp dtude autres contributions importantes sur les conditions de la populationnoire.

    Mots-cls:Noir.Le racisme.Race.Thorie.

    RACISMO COMO INSTRUMENTO ESPISTEMOLGICO Y POLTICOPARA EL ENTENDIMIENTO DE LA SITUACIN DE LA POBLACIN

    NEGRA EN LA SOCIEDAD BRASILEA

    Resumen: Este artculo debate la utilizacin de la categora racismo en los estudios sobre lacondicin de la poblacin negra, lleva como objetivo central ensear su importancia para laconstruccin de este conocimiento y de la lucha poltica que tales estudios puedan representar.En este sentido, comulgamos con los pesquisadores que apuntan que la exclusin y la dificultadeconmica y social vivida por la mayora de los negros no es obra del acaso, o sea de un procesonatural, ms fruto de las relaciones concretas que se constituan en la formacin de nuestrasociedad, siendo que el racismo es una determinacin fundamental para el entendimiento de talproceso. Pero, apuntamos que el uso de esta categora, para dar un resultado proficuo, no puedevolverse en un instrumento terico que ENGESSE el estudio sobre las cuestiones del negro,retirando del campo de estudio otras importantes contribuciones sobre las condiciones de la

    poblacin negra.

    Palabras-clave: Negro. Racismo. Raza. Teora.

    O RACISMO COMO CATEGORIA FUNDAMENTAL

    Os baixos ndices socioeconmicos que retratam as condies da maioria da

    populao negra, desde o perodo ps-abolio, um fenmeno social que atesta o graude explorao e excluso reinante na sociedade brasileira. Sejam nos relatos histricos

    ou nos mais diversos levantamentos, constata-se o quanto populao negra vem

    sofrendo em termos de escolaridade, mortalidade infantil, violncia urbana, local de

    moradia, saneamento bsico, mercado de trabalho, concentrao de renda e outros

    aspectos reveladores da cidadania de um povo. Somado a isso, a comparao histrica

    desses aspectos com os da populao branca, demonstra a persistncia de uma

    disparidade racial em termos socioeconmicos, que nem mesmo a sensvel melhora da

    populao negra, no tocante a esses ndices, nos ltimos 15 anos, conseguiu reverter.

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    Pelo contrrio, tal mudana, detectado pelos mais renomados institutos do pas, serviu

    para reafirmar que ainda h muito que se fazer para suplantao desse quadro. Diante

    disso, cremos que o estudo cientfico das condies socioeconmicas da populao

    negra, representa no apenas a elucidao dos mecanismos na produo e reproduo

    esse fenmeno social, como tambm podem municiar as aes polticas para o combate

    dessa desigualdade.

    Nesse sentido, concordamos com Ianni (2004) sobre sua observao a respeito

    do papel dos cientistas sociais no estudo das relaes sociais: Os cientistas sociais

    brasileiros voltam-se para o estudo das relaes raciais com finalidades eminentemente

    prticas. Trata-se de utilizar o pensamento cientfico para esclarecer a situao real dos

    diferentes grupos tnicos e raciais, em face da sociedade brasileira. (IANNI, 2004,

    p.290). Sendo que nesse processo ele destaca que:

    Todavia, paralelamente a essas preocupaes, o estudo das relaes raciais noBrasil foi incentivado por outras cogitaes. Tratava-se de desfazer as falsasimagens sociais entre os diferentes grupos tnicos e raciais, e na sociedadecomo um todo. A trama das representaes ideolgicas, sobre os atributospositivos e negativos de uns e outros, dificultavam de sobre maneira aelaborao de uma interpretao correta e construtiva da sociedade brasileira(IANNI, 2004, p. 291).

    H na observao descrita acima, uma clara aluso do quanto o racismo umadeterminao fundamental para a construo do conhecimento referente s condies

    socioeconmicas da populao negra brasileira. Contudo, antes versarmos um pouco

    mais sobre essa questo, traaremos algumas linhas sobre o conceito de racismo e raa

    que estamos adotando, partindo da definio proposta por Munanga:

    Com efeito, com base nas relaes entre raa e racismo, o racismo seriateoricamente uma ideologia essencialista que postula a diviso da humanidadeem grandes grupos chamados raas contrastadas que tm caractersticas fsicas

    hereditrias comuns, sendo estas ltimas suportes das caractersticaspsicolgicas, morais, intelectuais e estticas e se situam numa escala de valoresdesiguais. Visto deste ponto de vista, o racismo uma crena na existncia dasraas naturalmente hierarquizadas pela relao intrnseca entre o fsico e omoral, o fsico e o intelecto, o fsico e o cultural. O racista cria a raa no sentidosociolgico, ou seja, a raa no imaginrio do racista no exclusivamente umgrupo definido pelos traos fsicos. A raa na cabea dele um grupo socialcom traos culturais, lingsticos, religiosos, etc. que ele considera naturalmenteinferiores ao grupo a qual ele pertence. De outro modo, o racismo essatendncia que consiste em considerar que as caractersticas intelectuais e moraisde um dado grupo, so conseqncias diretas de suas caractersticas fsicas oubiolgicas (MUNANGA, 2010, p. 5).

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    Sem entrar na discusso da categoria raa, que haver mais frente, essa

    conceituao, que em linhas gerais tambm adotada pela maioria dos pensadores que se

    dedicam ao estudo dos impactos das questes raciais, nos indica a validade do estudo

    sobre o racismo na configurao da situao da populao negra. Como vemos, o racismo

    uma ideologia que busca dividir os indivduos por raa, imputando-lhes um conjunto de

    esteretipos ligados a determinados atributos de acordo com o grupo racial ao qual

    pertence. Sob essa lgica, a raa no apenas identifica os membros do grupo, como

    tambm gera atributos que lhes so naturais em termos morais e intelectuais.

    No caso do branco e do negro, por exemplo, a ideologia racista engendra uma

    dicotomia no qual o primeiro detm boa ndole, cultura superior, apresso ao trabalho e

    valores ticos e civilizatrios, enquanto o segundo detm m ndole, cultura inferior (ou

    no cultura) e desprezo ao trabalho e aos valores ticos e civilizatrios. Nesse caso,

    forma-se uma representao social na qual os brancos seriam dotados dos predicados para

    governar e ter acesso as melhores profisses e postos de trabalho, com os negros

    reduzidos as condies mais subalternas e inferiores da sociedade. Tudo isso sendo

    explicado como natural, em funo das raas que constituem e hierarquizam as pessoas:

    [...] Temos assim um carter marcante da ideologia racial do branco: os grupos raciais

    so colocados em plos extremos (IANNI, 2004, p.88).

    Contudo, toda essa representao social s passa ser um fator analtico relevante

    para a construo do conhecimento sobre as relaes raciais concretas, quando o racismo

    se insere dentro daquilo que Hall aponta como uma das grandes relevncias de qualquer

    processo ideolgico:

    [...] Por ideologia eu compreendo os referenciais mentais linguagens,conceitos, categorias, conjunto de imagens do pensamento e sistemas derepresentao que as diferentes classes e grupos sociais empregam para darsentido, definir, decifrar e tornar inteligvel a forma como a sociedade funciona.O problema da ideologia, portanto, concerne s formas pelas quais as idias

    diferentes tomam conta das mentes das massas e, por esse intermdio, se tornamuma fora material. [...] (grifos nossos) (HALL, 2006, p. 250).

    Ao traduzirmos a ideologia racista dentro do conceito e do problema sobre

    ideologia exposto por Hall, vemos que o racismo s relevante quando se torna uma

    fora material,pautando as relaes sociais atravs de aes preconceituosas e

    discriminatrias, privilegiando um grupo em detrimento de outro. Nesse caso, o racismo

    deixa de ser uma mera diviso moral e intelectual entre grupos raciais distintos, para se

    transformar numa fonte de poder e excluso que se materializa, com objetivos e

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    interesses bem definidos, no conjunto das correlaes de foras que marcam a

    sociedade:

    Na medida em que se inserem na trama das relaes sociais, as semelhanas,

    diferenas, polarizaes e antagonismos raciais adquirem a conotao detcnicas sociais. Entram no jogo das foras sociais, propiciando codificaes oucristalizaes no s de diversidades mas de hierarquias e desigualdades. Nessesentido que as ideologias raciais podem tornar-se foras sociais no s bsicasmas decisivas, garantindo a reiterao e recriao de hierarquias edesigualdades que parecem raciais, mas que na realidade so propriamentesociais, no sentido de simultaneamente econmicas, polticas e culturais. E tudoisso se manifesta nos mais diversos crculos de convivncia, desde a fbrica e oescritrio escola e igreja, templo ou terreiro, desde a fazenda, plantation eagroindstria famlia, mdia e cultura de massa; seja na Europa, sia,Oceania, frica, Caribe ou Amricas (IANNI, 1996, p.18).

    A ideologia racista, portanto, quando adquire a perspectiva de fora material,no pode ser descartada como determinao fundamental no processo do estudo das

    relaes raciais, porque engendra uma representao social que se transforma em

    excluso social e poder, que pode estar presente nos mais diversos setores da sociedade,

    criando entraves concretos para que a populao negra possa se realizar enquanto

    cidad numa sociedade dita democrtica.

    Essa questo da categorizao do racismo nos obriga a tecer tambm algumas

    linhas sobre a categoria raa. No h como debater a questo do racismo semdefinirmos o que estamos determinando como raa, principalmente depois do vis

    poltico-ideolgico que essa abordagem sofreu no debate sobre as polticas de ao

    afirmativas no Brasil. Alguns intelectuais, fazendo uso dos estudos da gentica que

    desautorizavam o uso da diviso dos indivduos em raas, passaram a desqualificar a

    necessidade de se pr em prtica polticas pblicas de corte racial, em especial a poltica

    de cotas ao ensino pblico superior, alegando que isso seria um retrocesso porque s

    existiria uma raa: a humana.

    No obstante a validade desses estudos da gentica, h muito que a categoria

    raa deixou de ser utilizada em termos essencialmente biolgicos por muito daqueles

    que se dedicam ao estudo das relaes raciais. Entre esses pesquisadores, vigora a

    concepo da categoria raa como uma determinao poltico social cuja construo

    de fundo sociolgico, resultante de uma dada construo histrica, pelo qual os

    indivduos so identificados e classificados nas relaes sociais cotidianas. A despeito

    dos avanos da gentica, na sociedade o branco visto como branco e o negro visto

    como negro, com ambos recebendo o impacto nas relaes sociais em funo disso. Em

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    suma, se dividir os indivduos em raa perdeu seu carter cientfico-biolgico, o mesmo

    no podemos dizer de seu carter cientfico-analtico em termos sociais, em funo de

    ser um foco de representao social e de relaes de poder, excluso e direitos.

    Essas observaes sobre ideologia racista e raa, j nos fornece as condies

    maiores para sustentarmos o quanto categoria racismo importante no estudo das

    condies econmicas e sociais da populao negra brasileira, ao longo da formao da

    sociedade brasileira. A insero e a histria do negro na nossa sociedade, no pode ser

    apartada do conjunto de vises preconceituosas e discriminatrios presentes nesse

    processo. O perodo da escravido, as condies de vida aps o processo de Abolio e

    as vises predominantes sobre o negro no perodo da Primeira Repblica, ensejaram um

    conjunto de esteretipos que atriburam ao negro toda uma srie de estigmas que o

    perfilaram como um perigo e um estorvo para a sociedade, no comeo do nosso perodo

    republicano. Logo aps o fim da escravido, o negro passou a ser uma pessoa livre, mas

    vista como inferior em termos intelectuais e morais, sendo pontuado como um fardo

    para efetivao da nao e do processo civilizatrio brasileiro. De acordo com alguns

    dos principais intelectuais dessa fase da histria brasileira, como to bem demonstrou

    Schwarcz (2005), somente o branqueamento, seria a soluo para a questo negra e para

    o avano do pas, com a imigrao passando a ser o instrumento da redeno nacional.

    A partir da dcada de 1930, h uma metamorfose no trato das relaes raciais. O

    avano das relaes capitalistas no pas, impulsionado pelo processo de industrializao

    e urbanizao, engendra uma outra lgica societria, no qual o negro v ampliado sua

    insero como fora de trabalho no sistema produtivo brasileiro. Essa insero no mais

    se dar com o discurso oficial do negro enquanto estorvo para efetivao da nao

    brasileira. Pelo contrrio, se dar como uma das trs raas formadoras do povo

    brasileiro, ao lado do ndio e do europeu, e um dos responsveis pelo seu futuro. Agora,

    sob os termos da ideologia da democracia racial, passou-se a pregar que no pas nohavia um conflito racial de grande porte e, principalmente, no havia impedimentos de

    ordem racial a ascenso econmica e social do negro.

    Pior ainda, esse enfoque, por mais que ainda tenhamos seus resqucios, at

    pouco tempo, tornou-se um marco na ideologia da classe dominante e da classe

    dirigente, colocando o pas, sob a gide da democracia racial, como uma das provas de

    que no nosso pas vigora uma relao harmoniosa, de um povo feliz e pacfico, cujas

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    ideologias exticas, ou estrangeiras, procuravam desvirtuar propondo modificaes na

    nossa estrutura econmica e social, como foi demonstrado por Ianni:

    A ideologia racial predominante no Brasil , naturalmente, parte essencial da

    ideologia da classe dominante. Independente da faco que esteja no governo,os donos do poder raramente deixam de propalar que o Brasil umademocracia racial; que o brasileiro essencialmente pacfico; que a histriabrasileira uma histria sem violncia; que as relaes do Brasil com osvizinhos so de fraternidade e assim por diante. Essa ideologia exigedesdobramentos vrios, quanto as relaes econmicas e polticas e quanto scondies de convivncia social nas agrupaes culturais, recreativas,religiosas, de ensino ,etc (IANNI, 2004, 266).

    E isso s refora a questo racial como mais um mecanismo nas relaes de poder e

    excluso:

    Como as manifestaes discriminatrias geralmente fazem parte de tcnicas depreservao de interesses e privilgios, elas podem ser tomadas, ao nvelinterpretativo, como elementos que impedem os dificultam a instaurao ouexpanso de relaes democrticas, obstruindo a circulao das pessoas,segundo a sua competncia ou qualificao. Nesse sentido, o mito dademocracia racial uma expresso ideolgica em uma sociedade que no deixanem pode deixar avanar a democracia. Operando reversivamente sobre ascondies reais da existncia, sobre os padres organizados das relaes entreos homens, esse mito, ao mesmo tempo que nega a desigualdade racial,implicitamente a reafirma, reconhecendo que o negro pode tornar-se branco,

    (...) Mas essa metamorfose, concebida ideologicamente, apenas ocorre no nveldo indivduos, porque coletivamente continuaro a ser chamados negros (....).(IANNI, 2004, 331),

    Entretanto, essa pretensa igualdade racial, engendrada por essa ideologia,

    sempre se mostrou uma falcia. Segundo Ianni (2004), sob o signo da Revoluo

    Burguesa, o negro passou por fases no qual deixou de ser escravo e passou a ser

    inserido, no sistema produtivo brasileiro, como fora de trabalho livre, tendo que se

    adequar a vender a sua capacidade fsica e mental, enquanto o empresrio tambm teve

    que se adequar a comprar essa fora nacional. No transcorrer da dcada de 1930, e nos

    anos posteriores, tal processo se complementou de forma definitiva, mas isso no

    representou ser incorporado na sociedade como cidado, com a questo racial sendo

    uma marca dessa situao:

    Nesse sentido que a revoluo burguesa no resolveu o problema racial.Transformou o negro, ndio e imigrante em trabalhadores; mas no ostransformou em cidados. Nos institutos jurdicos obviamente estestabelecido o princpio de que todos so iguais perante as leis, independentede raa, sexo, religio, classe e outras diversidades sociais. Mas essa

    igualdade jurdica formal, abstrata, ilusria, quando se trata de campons,operrio, empregados, funcionrios, na fazenda, fbrica, escritrio. Na

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    prtica, h uma larga desigualdade racial, entre outras desigualdades sociais,alm das diferenas de classes. No mximo, uns e outros aparecem comocidados para vender e comprar mercadorias; destacando-se a fora detrabalho. Por isso o povo no se constitui, seno com muitos obstculos.Todos so cidados de categoria inferior, apenas para exercerem sua funode trabalhadores. [...] (IANNI, 2004, p. 355).

    Desde o perodo da Frente Negra (1931), se formos nos prender as instituies

    negras mais consistentes, o Movimento Negro vem realizando diversas aes

    denunciando o quando o preconceito e a discriminao racial no local de trabalho, na

    polcia e em diversos setores da sociedade uma fora social real que se contrape a

    realizao do negro na sociedade capitalista brasileira. O desmascaramento da ideologia

    da democracia racial, o combate ao racismo em todas as suas dimenses e o

    estabelecimento de polticas pblicas que possam favorecer o negro a suplantar os

    problemas histricos gerados pelo problema racial, so bandeiras do Movimento Negro

    desde 1945.

    Na rea acadmica, desde a dcada de 1950, h uma produo de estudos e

    pesquisas atacando a democracia racial e o discurso oficial sobre as relaes raciais no

    pas. Autores como Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Fernando Henrique, Roger

    Batista, Carlos Hasenbalg, Antonio Guimares, Lilia Schwarcz, Kabengele Munanga e

    outros, mesmo com abordagens tericas e ideolgicas distintas, realizaram trabalhos

    consistentes desmistificando a questo da democracia racial e a distoro ideolgica de

    que no Brasil o preconceito racial no um impeditivo para a realizao social do

    negro. Em tais obras h todo um conjunto terico e metodolgico, que mostra o quanto

    se faz necessrio o estudo das relaes raciais e do racismo em espaos como mercado

    de trabalho, setor jurdico, ao policial, esttica, polticas pblicas, escolas, mdia, local

    de trabalho e muitos outros.

    Tais estudos so importantes, para no cairmos nas distores da ideologia da

    democracia racial ou num certo discurso mecanicista de esquerda que sustenta que os

    problemas dos negros so nicos, ou mais, de classe do que de raa. Sobre esse ltimo

    aspecto, inclusive, cabe fazermos uso dos ensinamentos de um dos maiores marxistas

    brasileiros, para mostrar o erro terico dessa perspectiva: [...] o preconceito racial no

    se confunde com o de classe. Se confundisse, no teramos as atitudes e comportamento

    discriminatrio entre indivduos pertencentes mesma classe (IANNI, 2004, p.66). A

    essa colocao, apresentamos outra do mesmo autor sobre o quanto no podemos cair

    no reducionismo dos problemas raciais aos problemas de classe:

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    Conforme revela a maioria dos estudos sociolgicos e antropolgicos sobre asituao racial brasileira, as variaes na distribuio econmico-social daspessoas e grupos tnicos e raciais no nem ocasional, nem funo estrita dahierarquia de classes. Isto , os elementos tnicos e raciais traos genotpicos,idioma, religio e outros tendem a identificar as pessoas dos grupos. Averdade que o preconceito, a discriminao e abarreira social de base tnica ouracial pode manifestar-se nas relaes de trabalho e familiares, na escola, igrejase seitas, em crculos polticos e assim por diante. (IANNI, 2004, p. 265)

    Somado a essas observaes de Ianni, podemos acrescentar uma de Florestan

    Fernandes, outro importante marxista brasileiro:

    [...] O operrios podem interromper um movimento porque conquistaram oaumento salarial, a introduo de comisses no local de trabalho, a readmissesde colegas demitidos, liberdade de greve e de organizao sindical etc. Noobstante, os trabalhadores negros podero ter reivindicaes adicionais:eliminaes de barreiras raciais na seleo e promoes dentro da, convivncia

    igualitria com os colegas, supresso de bode expiatrio na represso dentro dafbrica e fora dela, acesso livre as oportunidades educacionais para os filhosetc. A moral da histria que, embora o trabalho seja uma mercadoria, onde huma composio multirracial nem sempre os trabalhadores iguais somercadorias iguais ... Nas lutas dentro da ordem, a solidariedade de classe nopode deixar frestas. As greves e outras modalidades de conflito, que viso opadro de vida e das condies de solidariedade para o trabalhador, no podeadmitir a reproduo das desigualdades e formas de opresso que transcendem classe. (FERNANDES, 1989. p. 62)

    Porm, o uso do racismo como determinao para construo do conhecimento

    sobre as condies da populao negra, no so fundamentais apenas em funo dos

    estigmas que passam a se materializar em aes discriminatrias nas relaes sociais,

    efetuados por outros grupos sociais. Um ponto essencial do trabalho com a categoria

    racismo repousa no impacto que tais representaes sociais acabam tendo na prpria

    psique do negro atuando em sua autoestima, engendrando sentimentos de inferioridade.

    Pior ainda, quando o prprio negro incorpora essas distores ideolgicas como

    verdades pelas quais deve ordenar sua vida, como Hall nos convida a pensar: [...] uma

    das caractersticas mais comuns e menos explicadas do racismo: a submisso das

    vtimas do racismo aos embustes das prprias ideologias racistas que as aprisionam e

    definem (HALL, 2006, p.314).

    No caso do Brasil, a ideologia do branqueamento um dos maiores exemplos

    desse processo desubmisso apontado por Hall. Essa ideologia, fruto das contradies e

    complexidades das metamorfoses e da forma como o racismo se materializou na

    sociedade brasileira, somado as condies econmicas e sociais concretas as quais o

    negro era submetido, acabou sendo adotada por uma parcela substancial da populao

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    negra, como forma de tentativa de insero e ascenso social. Mas o branqueamento, na

    verdade, mostrou-se uma ao social que ampliou o processo de alienao do negro e

    reforou os estigmas da ideologia racista, porque requisitou ao negro a rejeio do ser

    negro em termos fenotpico, cultural e coletivo. Tanto que Munanga (1999) defende que

    o branqueamento tambm deve ser visto como uns dos fatores que sempre dificultou a

    luta poltica coletiva para superao dos problemas socioeconmicos da populao

    negra, porque representou uma forma individual de resoluo dessa problemtica. Na

    verdade, o branqueamento, em ltima anlise, representou o mximo da distoro

    ideolgica do pensamento racista no Brasil, ao fazer com que o negro tenha preconceito

    de ser negro.

    A abordagem que fizemos at o momento, demonstra o quanto a categoria

    racismo uma determinao fundamental no estudo das condies reais que a maioria

    da populao negra vive na sociedade brasileira. O uso dessa categoria permite ampliar

    e dar um carter qualitativo na construo do conhecimento sobre esse fenmeno social,

    em diversos aspectos dos quais destacamos alguns. O primeiro seria que no podemos

    reduzir o problema da populao negra a questes macro como a questo de classe ou

    de um desenvolvimento econmico maior do pas. O segundo reside na ampliao dos

    objetos de pesquisa e as formas metodolgicas para o estudo da questo do negro, pois

    se o racismo operante como elemento na situao socioeconmica da populao

    negra. No podemos pensar que existem espaos imunes a sua ao, podendo estar

    presente na escola, no trabalho, no setor judicial, na religio e outros espaos da

    sociedade.

    O terceiro repousa na necessidade de efetuarmos estudos e anlises baseadas em

    pesquisas empricas, atuando sempre de forma cientfica, para se verificar o quanto o

    racismo realmente operante na sociedade e em qual intensidade. O quarto, ampliar o

    conhecimento sobre o quanto a ideologia racista cria e recria uma conformao de umaviso de mundo, tendo como foco as relaes raciais, gerando srios entraves para a

    populao negra. E por fim, podemos fazer uso de uma citao de Ianni para demonstrar

    o quanto esse processo fundamental para prpria construo de uma verdadeira

    democracia no nosso pas:

    [...] o estudo cientfico das relaes raciais no Brasil so um a contribuio aodesmascaramento ideolgico de padres que obstam o processo da sociedade nadireo da democracia. A formao da personalidade democrtica dependenecessariamente de uma cultura democrtica. [...]

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    Mas a utilizao da categoria racismo no estudo das condies socioeconmicas

    da populao negra, no se reduz apenas a elucidar esse fenmeno para termos um

    conhecimento acadmico bem estruturado. Por mais que isso seja relevante, o estudo

    desse fenmeno social toma uma maior relevncia social, ao servir de apoio luta na

    sociedade civil e na sociedade poltica por aes concretas para que o racismo seja

    combatido e a situao da populao negra passe por melhores condies. Para isso, a

    comprovao cientfica da operacionalidade do racismo importante para servir de

    orientao e legitimao de demandas nesse sentido. Por exemplo, o Estado no Brasil s

    comeou a efetivar polticas de ao afirmativa, quando abandonou o discurso oficial da

    democracia racial e colocou em suas bases que existia um problema racial que gerava

    constrangimento a populao negra. Esse talvez seja a principal funo do trabalho com

    a categoria racismo, municiar uma ao poltica na sociedade civil e no Estado na

    tentativa de combater os males que se abatem sobre a populao negra.

    OS CUIDADOS COM O USO DA CATEGORIA RACISMO

    Apesar de sua importncia no estudo das condies socioeconmicas da

    populao negra, o uso da categoria racismo s trar resultados qualitativos se for

    trabalhado com o rigor terico e metodolgico que se exige qualquer trabalho cientfico.

    Nesse caso, vamos nos ater a dois aspectos tericos, que tem chamada a nossa ateno

    junto aos jovens pesquisadores do mestrado tnico-racial, onde atuamos, em funo dos

    problemas que podem acarretar no trabalho com a questo racial no nosso pas.

    O primeiro que gostaria de destacar que nesse estudo o pesquisador no pode

    deixar de se ater questo da especificidade do racismo no Brasil, no sentido de como

    se constituiu, a sua forma e seus efeitos, ao se debruar sobre o seu objeto de pesquisa.A categoria da particularidade importante no estudo de fenmenos sociais que tambm

    esto presentes em outras realidades sociais, para que determinadas generalizaes no

    impeam, ou deturpem, a compreenso de caractersticas e especificidades que ajudam a

    elucidar o fenmeno na sociedade estudada. Segundo Hall, o estudo sobre o racismo

    no deve fugir desse pressuposto terico:

    Primeiramente, gostaria de sublinhar a nfase sobre a especificidade histrica.Sem dvida, o racismo possui caractersticas gerais. Mas ainda mais

    significantes so as formas pelas quais essas caractersticas gerais somodificadas e transformadas pela especificidade histrica dos contextos e

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    ambientes nos quais elas se tornam ativas. Na anlise de formas histricas deracismo, seria melhor operar em nvel mais concreto e historicizado deabstrao (isto , no o racismo em geral, mas os racismos). [...] precisomuito pouco para que sejamos persuadidos a aceitar a opinio enganosa de que,por ser em toda parte considerada uma prtica profundamente anti-humana eanti-social, o racismo igualem todas as situaesseja em suas formas, suasrelaes com as outras estruturas e processos ou em seus efeitos. [...] (HALL,2006, p.308).

    No caso do Brasil, por exemplo, se no efetuarmos um processo de

    historicizao e ficarmos atentos particularidade que h no racismo brasileiro, no h

    como entendermos como a ideologia do branqueamento conseguiu ser to operante junto

    a parcelas da populao negra. De acordo com Munanga (1999), a ideologia do

    branqueamento s conseguiu se instalar no nosso pas devido s diferenas que se

    estabeleceu aqui, com relao a ser negro e a forma como o racismo se materializou nosEUA e na frica do Sul. Como nesses pases, um filho de negro sempre ser um negro,

    independente da tonalidade de sua cor, e as leis de segregao racial ordenavam as

    relaes raciais, a ideologia do branqueamento no poderia se desenvolver.

    Se Munanga ficasse preso ao erro terico de ver o racismo como algo que se

    reproduz nas sociedades da mesma forma e com os mesmos efeitos especficos, no

    apreenderia as condies concretas para o branqueamento existir na sociedade brasileira e

    no na americana. Essa mesma perspectiva, por sinal, vemos ser reproduzida numaentrevista onde Munanga aponta a especificidade do racismo no Brasil, como um dos

    fatores para entendermos a dificuldade para se estabelecer uma ao poltica coletiva

    envolvendo a populao negra, contra a questo do preconceito e da discriminao

    existente na sociedade:

    Revista Frum - Quando voc tem um sistema como o sul-africano ou umsistema de restrio de direitos como houve nos EUA, o inimigo est claro. Nocaso brasileiro mais difcil combat-lo...Kabengele - Claro, mais difcil. Porque voc no identifica seu opressor. Nos

    EUA era mais fcil porque comeava pelas leis. A primeira reivindicao: o fimdas leis racistas. Depois, se luta para implementar polticas pblicas quebusquem a promoo da igualdade racial. Aqui mais difcil, porque no tinhalei nem pra discriminar, nem pra proteger. As leis pra proteger esto na novaConstituio que diz que o racismo um crime inafianvel. Antes disso tinha alei Afonso Arinos, de 1951. De acordo com essa lei, a prtica do racismo noera um crime, era uma contraveno. A populao negra e indgena viveu muitotempo sem leis nem para discriminar nem para proteger. (MUNANGA, 2009)

    Sabemos que h entre alguns estudantes e militantes da questo racial, uma forte

    resistncia de se trabalhar sob a lgica da especificidade do racismo no Brasil,

    principalmente na analogia com os EUA e a frica do Sul, alegando que isso s

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    fortalece o discurso da democracia racial de que no nosso pas no h um problema

    racial sobre a populao negra. Cremos que essa postura parte de um princpio

    equivocado nessa analogia sobre o racismo, pois valoriza a forma ao invs do resultado,

    ou seja, o efetivo papel do racismo no processo de excluso, explorao e poder na

    sociedade. Sob essa tica, o racismo no Brasil, nos EUA e na frica do Sul, mesmo

    tomando forma diferenciada, foi igualmente exitoso, como vemos nessa observao

    Munanga:

    Existe realmente um racismo no Brasil, diferenciado daquele praticado nafrica do Sul durante o regime do apartheid, diferente tambm do racismopraticado nos EUA, principalmente no Sul. Porque nosso racismo , utilizandouma palavra bem conhecida, sutil. Ele velado. Pelo fato de ser sutil e veladoisso no quer dizer que faa menos vtimas do que aquele que aberto. Fazvtimas de qualquer maneira. (MUNANGA, 2009)

    Nessa mesma posio h num trecho de um dos textos de Fernandes:

    [...] A questo de ser o racismo institucional ou camuflado possui menorimportncia do que ele representa na reproduo da desigualdade racial, daconcentrao racial da riqueza, da cultura e do poder, da submisso do negro,como raa, explorao econmica, excluso dos empregos e dos melhoressalrios, das escolas, da competio social com os brancos da mesma classesocial etc., reduo da maioria da massa negra ao trabalho sujo e acondies de vida que confirmam o esteretipo que o negro no serve mesmopara outra coisa. (FERNANDES, 1989. p. 36)

    Em suma, a historicizao e a forma particular do racismo no Brasil so

    componentes importantes no trabalho dos mais diversos temas, como a forma e a

    difuso da ideologia racial, a questo da mestiagem, a participao dos negros na luta

    poltica coletiva contra o racismo, a insero do negro do mercado de trabalho, a

    discusso da identidade racial e outros.

    O segundo aspecto terico que gostaramos de destacar, reside na problemtica

    de passar o racismo de determinao fundamental, para nica determinao para o

    entendimento das condies socioeconmicas da populao negra. Essa abordagemacaba se configurando numa lgica sob a qual os problemas da populao negra devem-

    se apenas as questes de fundo racial, com o racismo gerando um conjunto de aes

    polticas, econmicas, culturais e sociais excludente nas relaes sociais. Sob esse

    prisma, o racismo torna-se o nico elemento a ser estudado na compreenso das

    condies socioeconmicas da populao negra, desautorizando, ou desestimulando, o

    trabalho com outros fatores que tambm contribuem para o entendimento da realidade

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    da populao negra, como a prpria forma de estrutura e reproduo do capitalismo no

    nosso pas, favorecendo as classes dominantes.

    Essa premissa parte de um erro terico fundamental: esvazia o negro de sua

    totalidade social, retirando-lhe da participao em outros papeis, grupos e classes

    sociais, em prol de uma abstrao no qual o reduz apenas a ser negro. Nessa

    perspectiva, o negro no tem gnero, sexualidade, faixa etria, profisso ou condio

    econmica. No importa se homem, mulher, homossexual, adolescente, idoso,

    deficiente fsico, empresrio, trabalhador, favelado, pobre ou membro da classe mdia.

    Em todos esses casos, sofrer apenas com o racismo e no com as determinaes que

    tambm atinge a situao e o grupo social no qual est inserido. Nesses termos, um

    estudo sobre as condies das mulheres negras se ateria questo do racismo e pouco,

    ou nenhuma, ateno daria a realidade de vivermos numa sociedade machista e sexista,

    porque sob essa lgica o problema reside no entrave de ordem racial.

    Constitui-se, assim, uma dimenso terica, que ao excluir essa totalidade social,

    acaba suprimindo um aspecto vital para a construo do conhecimento das condies

    socioeconmicas da populao negra, ao no dar a devida ateno aos impactos sobre o

    negro de outras determinaes que nada tem de fundo racial na sua essncia. No

    podemos dizer que todos os problemas socioeconmicos que se abatem sobre a

    populao negra sejam de fundo racial, por mais que isso crie uma cadeia que se

    retroalimenta. Por exemplo, no podemos dizer que o fato de boa parte da populao

    negra morar em comunidades carentes seja fruto unicamente de questes raciais, mas

    com certeza esse fato refora os estigmas e esteretipos contra a populao negra,

    reforando o racismo. Ento, apesar de uma coisa no ser necessariamente a resposta

    para a outra, o racismo e as condies socioeconmicas de boa parte da populao negra

    mantm uma forte ligao em termos de representao social no senso comum sobre o

    negro.Contudo, o cientista social deve ter o cuidado ao trabalhar com essas duas

    variveis, para no cair em reducionismos e determinismos que impliquem numa

    restrio a construo do conhecimento sobre os fatores para o entendimento das

    condies da populao negra. Para tornar essa nossa posio mais clara, vamos ilustrar

    o que estamos querendo dizer, trabalhando com o fato de boa parte dos negros

    pertencerem classe trabalhadora.

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    No seu trajeto como trabalhador, o negro pode sofrer, como j deixamos

    entender, uma gama de preconceitos e discriminao no transcorrer desse processo.

    Poder sofrer preconceito na escola, na busca por uma vaga no mercado de trabalho, na

    relao com os colegas de trabalho, na hora do aumento salarial por mrito ou na

    definio de uma vaga para gerncia, na direo da firma e na lista de daqueles que

    sero dispensados. Como vemos, esses so exemplos claros no qual o racismo opera

    condies concretas contra o trabalhador negro, ao conseguir que esse deixe de ser visto

    por sua capacidade real e passe a ser julgado por uma viso assentada nos estigmas

    relacionados ao seu fenotpico. Mas apesar desse ser um grande problema para o

    trabalhador negro, um erro terico descartar os impactos que esse tambm sofre por

    ser membro da classe trabalhadora.

    Vejamos isso atravs de quatro exemplos de polticas que podem ser adotadas

    pelo Estado que acabam atingindo o negro, no por questes raciais, mas por fazer parte

    da classe trabalhadora. Uma seria, a adoo de uma poltica de estabilizao econmica

    de fundo contracionista, baseada no aumento das taxas de juros e falta de estmulo s

    atividades econmicas, que normalmente geram a diminuio de ofertas de emprego ou

    fechamento de postos de trabalho, aumentando as margens de desemprego entre a massa

    trabalhadora.

    Outra reside, na implementao de uma poltica de controle inflacionrio,

    baseado na conteno do consumo, gerando restrio aumentos reais no salrio

    mnimo, revertendo em diminuio do poder de comprar dos trabalhadores e outras

    dificuldades de cunho financeiro. A terceira a falta de um servio pblico gratuito de

    qualidade na rea de educao e sade, que poderia gerar grandes benefcios para toda

    classe trabalhadora em termos de realizao na sociedade. Por ltimo, citamos a adoo

    de polticas neoliberais pelo Estado, fato esse que dedicaremos um nmero maior de

    algumas linhas nessa nossa exposio, devido a fora que essa ideologia passou a deterna nossa sociedade.

    Sem entrar numa discusso maior sobre o neoliberalismo, gostaramos de

    destacar que essa ideologia, objetivando estabelecer as condies para o crescimento da

    economia capitalista, prega um conjunto de ideias e propostas que, independente da

    questo racial, atinge a classe trabalhadora no seu todo. Entre essas, duas se destacam

    no panteo neoliberal, como essenciais para o reaquecimento das atividades

    econmicas: flexibilizao ou perda dos direitos trabalhistas; e a privatizao dos

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    servios pblicos conjugados a expanso do setor privado nesses setores. A primeira

    tenta legitimar na sociedade a viso de frias, seguro desemprego, aposentadoria e

    pagamento frente a demisses, no mais como direitos historicamente adquiridos pelos

    trabalhadores, mas sim como obstculos ao desenvolvimento das atividades

    econmicas.

    J a segunda aponta as polticas pblicas gratuitas na rea de sade, educao e

    segurana, no mais como direitos do cidado e grau de desenvolvimento de um povo,

    mas como estorvo aos gastos pblicos, devendo ser ofertados na forma de servios

    comerciais, com os indivduos tendo acesso quantidade e qualidade dentro daquilo que

    podem pagar. Esse tipo de lgica poltica vem sendo implementado, em maior ou

    menor grau, pelos governos das mais diversas tendncias, nas mais diversas partes do

    mundo, revertendo em graves problemas sociais para a classe trabalhadora,

    independente de questes raciais, como comprova a situao dos trabalhadores em

    diversas partes da Europa, desde a dcada de 1990, e mais recentemente na Espanha,

    Portugal e Grcia.

    lgico que diante das situaes descritas, o trabalhador negro pode vir a sofrer

    mais que o trabalhador branco porque alm da questo de classe, ter que lhe dar com

    os problemas raciais, que inclusive podem ser ampliados por esses problemas de classe.

    Entretanto, se nos prendermos apenas a questo racial, deixamos de compreender essas

    e outras dimenses relevantes no estudo das condies dos trabalhadores negros, e da

    populao negra em geral, nos mais diversos espaos sociais.

    O que queremos frisar que trabalhar com outras determinaes que se abatem

    sobre a populao negra, em nada representa que se est excluindo ou colocando em

    segundo plano a importncia do racismo. Como foi trabalhado na primeira parte desse

    trabalho, a categoria racismo algo imprescindvel em qualquer estudo da populao

    negra. Reafirmamos que no se pode entender a situao do negro brasileiro apartado dasituao do racismo. Apenas queremos esclarecer que como o negro no apenas negro,

    tambm sofre com a gama de diversidades e problemas que atingem a populao

    brasileira, no conjunto das tramas sociais que marcam a nossa sociedade. Sobre o negro,

    alm do racismo, se abater questes de classe, de gnero, de ordem sexual, de fundo

    religioso, de local de moradia e outros.

    Em outras palavras, colocar o racismo como nico fator para compreenso da

    situao da populao negra, pode representar o paradoxo de transformar essa

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    determinao fundamental num instrumento terico mecanicista que exclua outras

    importantes variveis para o entendimento desse fenmeno social, podendo reverter em

    graves erros no trabalho emprico e analtico do cientista social sobre seu objeto de

    pesquisa. Como Ianni nos convida a pensar, agir apenas nos horizontes da questo

    racial, pode fazer com que elementos polticos, econmicos e sociais, que afetam o

    negro sejam vistos apenas como racismo e no como fruto de uma realidade gerada por

    outros motivos e interesses:

    Na medida em que se inserem na trama das relaes sociais, as semelhanas,diferenas, polarizaes e antagonismos raciais adquirem a conotao detcnicas sociais. Entram no jogo das foras sociais, propiciando codificaes oucristalizaes no s de diversidades mas de hierarquias e desigualdades. Nessesentido que as ideologias raciais podem tornar-se foras sociais no s bsicas

    mas decisivas, garantindo a reiterao e recriao de hierarquias edesigualdades que parecem raciais, mas que na realidade so propriamente

    sociais, no sentido de simultaneamente econmicas, polticas e culturais. Etudo isso se manifesta nos mais diversos crculos de convivncia, desde afbrica e o escritrio escola e igreja, templo ou terreiro, desde afazenda, plantation e agroindstria famlia, mdia e cultura de massa;seja na Europa, sia, Oceania, frica, Caribe ou Amricas. (IANNI,1996. p. 18)

    Por fim, tambm queremos realar que ter o racismo como nica explicao para

    o entendimento da situao da populao negra, tambm gera implicaes de ordempoltica no tratamento dessa questo. Se o problema da populao negra apenas de

    ordem racial, pode fazer com que os organismos, intelectuais e militantes ligados

    questo dos negros, concentrem sua ao poltica apenas em temas de fundo racial. Sem

    sombra de dvida, cabe a esses grupos, pela especificidade de sua ao poltica, trazer a

    questo do racismo e mobilizar a populao negra, a sociedade e o Estado por aes

    concretas visando sua superao.

    Porm, isso no pode levar ao erro poltico de no dar a ateno devida a aespolticas do interesse da populao como um todo que tambm beneficiar a populao

    negra, como a luta pela implantao de servios pblicos gratuitos de qualidade na rea

    de sade e educao pblica ou a perda e a flexibilizao de direitos trabalhistas. Com

    certeza as polticas de aes afirmativas so instrumentos socioeconmicos de grande

    relevncia para a populao negra, contudo somente conjugadas a implantao de

    polticas pblicas universais de qualidade que a maioria da populao negra ter

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    condies de dar um salto qualitativo frente ao processo de explorao e excluso que

    marca sua presena na sociedade brasileira.

    BIBLIOGRAFIA

    FERNANDES, Florestan. Significado do protesto negro. So Paulo: Cortez, AutoresAssociados, 1989.

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    Recebido em novembro de 2013

    Aprovado em janeiro de 2014