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“RACISMO & RACISTAS: TRAJETÓRIA DO PENSAMENTO RACISTA NO BRASIL

+Racismo E Racistas - Trajetória Do Pensamento Racista No Brasil - Série Cursos E Eventos

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O texto, constituido por vários artigos de especialistas no pensamento social brasileiro, busca compreender as questões raciais na formação da identidade brasileira

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  • RACISMO & RACISTAS:TRAJETRIA DO PENSAMENTO

    RACISTA NO BRASIL

  • USP UNIVERSIDADE DE SO PAULOReitor: Prof. Dr. Jacques MarcovitchVice-Reitor: Prof. Dr. Adolpho Jos Melfi

    FFLCH FACULDADE DE FILOSOFIA,LETRAS E CINCIAS HUMANASDiretor: Prof. Dr. Francis Henrik AubertVice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz

    CONSELHO EDITORIAL ASSESSOR DA HUMANITASPresidente: Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento (Filosofia)Membros: Prof. Dr. Lourdes Sola (Cincias Sociais)

    Prof. Dr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura (Filosofia)Prof. Dr. Sueli Angelo Furlan (Geografia)Prof. Dr. Elias Thom Saliba (Histria)Prof. Dr. Beth Brait (Letras)

    CEDHAL CENTRO DE ESTUDOS DE DEMOGRAFIAHISTRICA DA AMRICA LATINADiretora: Profa. Dra. Eni de Mesquita Samara

    COMISSO EDITORIAL

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    Humanitas FFLCH/USP junho 2001

  • RACISMO & RACISTAS:TRAJETRIA DO PENSAMENTO

    RACISTA NO BRASIL

    Eni de Mesquita Samara(Org. da srie e do volume)

    CURSOS E EVENTOS(NOVA SRIE, N. 2)

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    2001

    ISSN 1517-8390

  • C51 Racismo & Racistas: trajetria do pensamento racista no Brasil /organizado por Eni de Mesquita Samara. . So Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001.

    100 p. (Cursos e Eventos: Nova Srie n. 2)

    ISSN 1517-8390

    1. Raa 2. Etnia 3. Preconceito 4. Impresa I. Samara, Eni de Mesquita II.Srie.

    CDD 301.412

    Copyright 2001 da Humanitas FFLCH/USP

    proibida a reproduo parcial ou integral,sem autorizao prvia dos detentores do copyright

    Servio de Biblioteca e Documentao da FFLCH/USPFicha catalogrfica: Mrcia Elisa Garcia de Grandi CRB 3608

    Editor ResponsvelProf. Dr. Milton Meira do Nascimento

    Coordenao Editorial e Projeto GrficoMa Helena G. Rodrigues MTb n. 28.840

    Projeto de Capa e Diagramao Walquir da Silva MTb n. 28.841

    Arte Final da CapaDiana Oliveira dos Santos

    RevisoAutores/ Claudenice Vinhote Costa

    HUMANITAS FFLCH/USP

    e-mail: [email protected]: 3818-4593

  • SUMRIO

    APRESENTAO ............................................................................ 7Eni de Mesquita Samara

    DANDO NOME S DIFERENAS ....................................................... 9Lilia Katri Moritz Schwarcz

    REPRESENTAES MTICAS E HISTRIA ........................................ 45Liana Trindade

    MODERNIZAO E A CULTURA DOS NEGROS EM SALVADOR .......... 63Jeferson Bacelar

    IMPRENSA E RACISMO ................................................................. 79Cremilda Medina

    IMPRENSA E ETNIA NO BRASIL ..................................................... 85Ricardo Alexino Ferreira

  • 7CURSOS E EVENTOS (NOVA SRIE, n. 2), p. 7-8, 2001

    De 18 a 29 de setembro de 1995, o Centro de Estudos de DemografiaHistrica da Amrica Latina (CEDHAL) promoveu o curso de extensouniversitria Racismo & Racistas A trajetria do pensamento racista noBrasil, organizado por Maria Luiza Tucci Carneiro. Esse curso teve granderepercusso em funo dos debates ali desenvolvidos e que despertaram ointeresse da mdia e do pblico em geral.

    Sendo assim, com o lanamento da Srie Cursos e Eventos contatamosos especialistas, que apresentaram os resultados das suas pesquisas naque-la ocasio,1 e resolvemos publicar o nmero 2 da srie, voltado para essaproblemtica.

    1 18 setembro (2 feira): Anfiteatro de Histria A construo do pensamento cientficodeterminista racial em fins do sculo XIX, Lilia Moritz Schwarcz; 19 de setembro (3feira): Anfiteatro de Geografia Palmares, cidadania e violncia institucionalizada,Kabengele Munanga; 20 de setembro (4 feira): Sala Caio Prado Representaesmticas e relaes raciais, Liana Trindade; 21 de setembro (5 feira): Sala Caio Prado Racismo: imagens e imaginrio A construo da imagem racista, Maria Luiza TucciCarneiro; O racismo caricaturizado, Marcos Silva; 22 de setembro (6 feira): Anfiteatrode Histria O racismo e a historiografia brasileira (fins do sculo XIX a 1930), NiloOdlia; 25 de setembro (2 feira): Anfiteatro de Histria Imprensa e racismo, CremildaMedina; 26 de setembro (3 feira): Anfiteatro de Histria Criminalidade negra ejustia penal, Srgio Adorno; 27 de setembro (4 feira): Anfiteatro de Histria Cul-tura e modernizao do negro em Salvador, Jeferson Bacelar; 28 de setembro (5 feira):Anfiteatro de Histria A mulher negra na sociedade brasileira contempornea; 29 desetembro (6 feira): Anfiteatro de Histria Raa Negra, Nilson de Arajo; Racismoe neonazismo: o retorno da intolerncia, Marionilde Magalhes.

    APRESENTAO

  • Apresentao

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    Dos trabalhos apresentados, conseguimos reunir aqueles que aindaestavam inditos e que compem um conjunto significativo desse debate:Dando nome s diferenas, de Lilia Katri Moritz Schwarcz, Representa-es mticas e histria, de Liana Trindade, Modernizao e a cultura dosnegros em Salvador, de Jeferson Bacelar , Imprensa e racismo, deCremilda Medina e Imprensa e etnia no Brasil, de Ricardo Alexino Ferreira.

    Assim, com esse volume, o CEDHAL retoma um assunto de gran-de importncia para a sua principal linha de pesquisa em curso, Populao,Gnero e Raa na Amrica Latina, e que integra tambm o conjunto depublicaes que sairo como parte das comemoraes dos 15 anos de exis-tncia do centro e que tem como objetivo pensar o tema das Populaes deforma ampla e multidisciplinar.

    E justamente nessa direo que organizamos esse nmero o qualanalisa as relaes tnicas numa perspectiva que reflete problemas aindamais complexos vinculados histria das diferenas, do preconceito racial,das desigualdades.

    Por tudo isso, o tema de fundamental importncia para os estudospopulacionais e se entrecruza com os propsitos de discutirmos, ao longodas comemoraes, a questo da tolerncia e da coexistncia dos diferen-tes grupos tnicos e socioeconmicos no Brasil.

    Eni de Mesquita Samara

  • 9CURSOS E EVENTOS (NOVA SRIE, n. 2), p. 9-43, 2001

    DANDO NOME S DIFERENAS

    Lilia K. Moritz Schwarcz*

    Resumo: Esse artigo trata no apenas da descoberta da noo dediferena no pas, como tambm da formalizao dessas percep-es, em finais do sculo XIX, quando a caracterstica miscigenadade nossa populao foi vista como um espetculo, como um verda-deiro laboratrio, ao mesmo tempo curioso e degradante das raas.Seria, no entanto, leviano restringir este debate ao contexto dedesmontagem do sistema escravocrata no Brasil. A reflexo sobre adiversidade entre os homens nos leva mais longe, sobretudo ao mo-mento de descoberta do Novo Mundo, quando o imaginrio europeuse volta do Oriente para o Ocidente, para essa nova terra a Am-rica com sua natureza grandiosa e suas gentes desnudas e com asvergonhas a mostra.

    Palavras-chave: Racismo; pensamento racial; diversidade humana;determinismo; darwinismo social.

    * Lilia K. Moritz Schwarcz professora do departamento de Antropologia da Universi-dade de So Paulo. Publicou, entre outros, Retrato em branco e negro: jornais, escra-vos e cidados em So Paulo no final do sculo XIX. So Paulo: Companhia das Le-tras, 1987; Os Institutos Histricos e Geogrficos. Os guardies de nossa histriaoficial. So Paulo: Vrtice/Idesp, 1989; De festa tambm se vive. Reflexes sobre ocentenrio da abolio em So Paulo. Rio de Janeiro: Papis avulsos CIEC, 1989; Oespetculo das raas. Cientistas, instituies e pensamento racial no Brasil: 1870-1930. So Paulo: Companhia das Letras, 1993; As barbas do Imperador: d. Pedro IIum monarca tropical. So Paulo: Companhia das Letras, nov. de 1998 e organizou as

  • SCHWARCZ, Lilia K. Moritz. Dando nome s diferenas

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    INTRODUO 1

    Finais de sculo sempre foram bons para pensar. De fato, nessesmomentos, utopias e prognsticos falam do futuro, se debruam sobre oporvir, como se realidade e representao caminhassem lado a lado, tornan-do difcil discernir onde termina a histria e em que lugar comea o mito.Talvez a maior utopia dos dias de hoje seja a idia de globalizao, do mun-do feito um s. Filhos da era da comunicao eletrnica, passamos a suporque frente a uma emisso poderosa existiria apenas uma nica recepopassiva. No entanto, ao lado da globalizao tem explodido o fenmenodas diferenas, a afirmao da etnicidade e mesmo a sua face mais maldita:o racismo a prpria condenao das diferenas existentes entre os ho-mens. como se, cansados ou cticos diante da igualdade e dos projetos decidadania legados pelas revolues francesa e russa, se destacasse a afirma-o de uma identidade que recupera uma determinada origem e sobretudoum passado, nesse caso racial.2

    coletneas : Raa e diversidade. So Paulo: Edusp, 1996 (com Renato Queiroz), Ne-gras imagens. Cotidiano, violncia e cultura. So Paulo: Edusp, 1996 (com LetciaVidor Reis) e Cdigo do bom-tom, de J. Incio Roquette. So Paulo: Companhia dasLetras, 1997. Organizou, ainda o volume 4 da Histria da vida privada no Brasil (Coord.Fernando Novais). So Paulo: Companhia das Letras, 1998.

    1 Esse texto foi originalmente elaborado para ser apresentado em sesso realizada nareunio da Associao Brasileira de Antropologia em Salvador (abril de 1996), intituladaPanorama da questo tnica e racial no Brasil. Em funo dessa especificidade oensaio corresponde, sobretudo, a um balano breve sobre o tema, um apanhado sobreas principais teorias e seus autores.

    2 A referncia aos recentes casos de afirmao de diferenas raciais e religiosas. Vide nessesentido as imensas manifestaes negras, em Washington (lideradas por Fahakran ), movi-mentos fundamentalistas que tm estourado em vrias partes do Oriente Mdio e queculminaram com o recente assassinato do primeiro ministro israelense (em novembro de1995). Veja-se, tambm, a publicao do livro de Richard J. Herrnstein e Charles Murray,The Bell Curve. Intelligence and class structure in american life. New York: The Free Press,1994, que apenas altera o termo raa por etnia, mas mantm a mesma postura de imputar biologia uma discriminao que poltica e social; ou mesmo a obra de Robert Wright, Oanimal moral. Porque somos como somos: a nova cincia da psicologia evolucionista. Rio

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    , portanto, no mnimo oportuno repensar a especificidade do racis-mo existente no Brasil. No basta, porm, apenas anunciar ou delatar, preciso um esforo de compreenso das particularidades desse racismocordial, dessa modalidade mais especifica de relacionamento racial conhe-cida, na oportuna expresso de Florestan Fernandes, como um preconceitoretroativo: um preconceito de ter preconceito.3

    Esse artigo trata, portanto, no apenas da descoberta da diferena entrens mas da formalizao dessas diferenas, em finais do sculo XIX, quando acaracterstica miscigenada de nossa populao foi vista como um espetculo,como um laboratrio ao mesmo tempo curioso e degradante das raas.

    Seria, no entanto, leviano comear este debate em meados do sculoXIX. A percepo das diferenas entre os homens nos leva mais longe,sobretudo ao momento de descoberta do Novo Mundo, quando o imagin-rio europeu se volta do Oriente para o Ocidente, para essa nova terra aAmrica com sua natureza grandiosa e suas gentes desnudas e com asvergonhas a mostra.

    UM BREVE PASSEIO

    A descoberta de que os homens eram profundamente diferentes en-tre si sempre levou criao de uma cartografia de termos e reaes. Osromanos chamavam de brbaro a todos aqueles que no fossem elesprprios. Ou seja, os inmeros grupos que invadiam, naquele contexto, ofrgil continente europeu e sobre os quais mal e mal se sabiam nomes ouprocedncias.4 O Ocidente cristo designou de pago ao mundo todo que

    de Janeiro: Campus, 1996, que busca explicar comportamentos culturais a partir dedeterminaos de ordem natural.

    3 Referncia expresso de Florestan Fernandes em O negro no mundo dos brancos. SoPaulo: Difel, 1972.

    4 Claude Lvi-Strauss em Raa e histria. So Paulo: Martins Fontes, 1975. p. 62, co-menta que brbaro aquele que acredita na barbrie, numa clara aluso intolernciados povos diante do desconhecido. Tambm em Jean-Jacques Rousseau, fundador

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    fugia a seu universo, como se fosse possvel dividir os homens a partir de umnico critrio religioso. Da mesma maneira, a orgulhosa cincia, deterministae positiva de finais do sculo, classificou como primitivos aos povos queno eram ocidentais, sobretudo os estranhos povos da Amrica.

    Talvez essa nossa histria das diferenas comece mesmo com a des-coberta do Novo Mundo, quando ocorre um deslocamento do paraso ter-restre da sia e da frica para a Amrica.5 Em uma poca em que era bemmelhor ouvir do que ver, a curiosidade renascentista voltava-se para esselocal da grande flora e da fauna extica, mas acima de tudo para essas novasgentes, to estranhas em seus costumes e civilizaco.

    Com relao natureza, a tendncia geral apontava para uma certaedenizao,6 marcada pela fertilidade do solo, pelo equilbrio do clima epela fora da vegetao. Por meio da natureza revivia-se a imagem do para-so terrestre, h tanto tempo perdido.7

    No tocante humanidade, porm, as divergncias eram maiores queas unanimidades. Afinal, o canibalismo, a poligamia e a nudez desses ho-mens escandalizavam as elites pensantes europias, que tinham dvidassobre a humanidade desses indgenas.8 Todorov9 quem destaca como o

    das cincias do homem . In: Antropologia estrutural dois (Rio de Janeiro: TempoBrasileiro, 1976. p.42.), o mesmo autor cita Rousseau em sua clebre passagem: Todaa terra est coberta de naes, mas s lhes conhecemos os nomes e nos atrevemos ajulgar o gnero humano.

    5 Sergio Buarque de Hollanda. Viso do paraso. So Paulo: Nacional, 1985.6 Laura de Mello e Souza. O diabo e a terra de Santa Cruz. So Paulo: Companhia das

    Letras, 1986.7 Sobre o tema vide Karen Lisboa. A nova Atlntida ou o gabinete naturalista dos douto-

    res Spix e Martius. So Paulo, 1995. Tese (mestrado) Universidade de So Paulo.8 Apesar da bula papal de 1537, que determinava que os homens so iguais e amados

    por Deus da mesma maneira, o debate estava longe de se encontrar esgotado. Vide,nesse sentido, Lewis Hanke. Bartolom de las Casas. Mxico: La Habana, 1949 emesmo Bartolom de las Casas, Brevssima relao da destruio das ndias. PortoAlegre: L&PM, 1984.

    9 Tzetan Todorov. A conquista da Amrica: a questo do outro. So Paulo: Martins Fon-tes, 1983.

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    etnocentrismo, presente nesse encontro de culturas, era patente de parte aparte. Afinal, estava em questo a essncia desse encontro: enquanto oseuropeus levavam em suas cargas alguns indgenas para apresent-los scortes europias, conjuntamente com outros animais locais, os primitivosafogavam europeus nos lagos, na tentativa de entender se se tratava de ho-mens ou deuses.

    Esse impasse toma uma forma mais delineada a partir do famosoembate que ops o religioso Bartolom de Las Casas ao jurista Juan Ginesde Seplveda, que partia de uma dvida primordial: seriam essas novasgentes homens ou bestas. Nesse caso, enquanto Las Casas defendia a infe-rioridade dos indgenas, porm assegurava sua inquebrantvel humanida-de; Seplveda reconhecia encontrar nesses primitivos uma outra humani-dade.

    Um bom termmetro dessa inquietao , sem dvida, o texto deMontaigne, Os canibais.10 Nesse pequeno ensaio, escrito em 1789, ofamoso filsofo francs realizava um verdadeiro elogio forma como osTupinambs faziam a guerra, em uma clara referncia crtica s guerras dereligio que ocorriam na mesma poca na Europa. Com efeito, para o autorera menos brbaro comer o inimigo que se reconhecia do que praticar atosde selvageria diante de um opositor que mal se delineava. No entanto, essasconcluses no pareciam ser suficientes frente ao espanto que esses homensdispertavam. Tanto que aps longo arrazoado era o prprio Montaignequem desabafava: Tudo isso em verdade interessante, mas, que diabo, essagente no usa calas!.11

    Em passos largos e desajeitados chegamos ao sculo XVIII, quando aquesto da diferena ou da desigualdade entre os homens ento retomada.De um lado, temos a postura mais reconhecida que apontava para o

    10 Montaigne. Os canibais. In: Os pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1971.11 Para uma viso mais aprofundada do tema vide Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo

    Viveiro de castro. Vingana e temporalidade entre os Tupinambs. In: Journal de lasoocit des americanistes, v. LI, p. 191-208, 1985.

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    voluntarismo iluminista e para a idia de perfectibilidade humana, sem dvi-da um dos maiores legados da Revoluo Francesa. Com efeito, foi Rousseauque, em seu Discurso sobre a origem e o fundamento da desigualdade entrehomens (1775), lanou as bases para se pensar na idia da humanidade feitauma s e para a afirmao do modelo do bom selvagem como elementofundamental para entender a civilizao decadente. Nessa verso humanista,a reflexo sobre a diversidade torna-se central quando, no sculo XVIII, apartir dos legados polticos da Revoluo Francesa e dos ensinamentos dailustrao, estabelecem-se as bases filosficas para se pensar a humanidadeenquanto totalidade. Ao mesmo tempo, Alexander von Humboldt, com suasviagens, restituia no s o sentimento de natureza e sua viso positiva daflora americana, como opunha-se s teses mais detratoras que negavam aosindgenas a capacidade de civilizao.

    Na verdade, nesse mesmo contexto tomam fora as correntes pessi-mistas, que anunciam uma viso negativa sobre os homens da Amrica. Em1749 chegam ao pblico os trs primeiros volumes da Histoire naturelle, doconde de Buffon, que lanava a tese sobre a debilidadeou imaturidadedocontinente americano. Partindo da observao do pequeno porte dos animaisexistentes na Amrica j que no se encontravam rinocerontes, camelos,dromedrios ou girafas , e do aspecto imberbe dos nativos, o naturalistaconcluia ter encontrado um continente infantil, retardado em seu desenvolvi-mento natural. Assim a designao Novo Mundo passava a referir-se mais formao telrica da Amrica do que ao momento da colonizao.12

    Mas Buffon no estava s. No ano de 1768 o abade Corneille dePauw editava, em Berlim, Recherches philosophiques sur les amricans, ouMmoires intressants pour servir lhistoire de lespce humaine, na qualretomava as idias de Buffon, porm radicalizando-as. Esse autor introdu-ziu um novo termo ao utilizar a noo de degeneraopara designar onovo continente e suas gentes. Assolados por uma incrvel preguia e pela

    12 Vide nesse sentido Roberto Ventura. Estilo tropical: histria cultural e polmicas liter-rias no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1991.

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    CURSOS E EVENTOS (NOVA SRIE, n. 2), p. 9-43, 2001

    falta de sensibilidade, instintos e fraqueza mental, esses homens seriambestasdecadas, muito longe de qualquer possibilidade de perfectibilidadeou de civilizao.13

    Mais tarde, incentivados pelo rei Maximiliano Jos I da Baviera, ozologo J. Baptiste von Spix e o botnico Carl Friedrich P. von Martiusrealizavam uma grande viagem pelo Brasil, que se iniciaria em 1817 e ter-minaria em 1820, aps terem sido percorridos mais de 10.000 km. O resul-tado uma obra de trs volumes intitulada Viagem ao Brasil e vrios sub-produtos, como O estado do direito entre os autctones do Brasil (1832).Sobretudo nesse ltimo, Martius desfila as mximas de Pauw ao concluirque permanecendo em grau inferior da humanidade, moralmente, ainda nainfncia, a civilizao no altera o primitivo, nenhum exemplo o excita enada o impulsiona para um nobre desenvolvimento progressivo (1982:11).Dessa forma apesar do elogio natureza tropical contido nos relatos dessesviajantes filsofos, a humanidade daquele local parecia representar algopor demais estranho percepo europia, mais disposta ao extico do que alteridade.14

    A Amrica no era, portanto, apenas imperfeita como sobretudo de-cada, e assim estava dado o arranque para que a tese da inferioridade docontinente, e de seus homens, viesse a se afirmar a partir do sculo XIX.

    13 Com relao a essa discusso vide: Antonello Gerbi. La disputa del nuevo mundo.Histria de una polmica. Mxico: Fondo de Cultura Economica, 1982 e Michele Duchet.Anthropologie et histoire au sicle des lumires. Paris: Gallimard, 1971.

    14 Tambm no artigo chamado Como escrever a histria do Brasil, encomendado peloInstituto Histrico e Geogrfico Brasileiro em 1845, Martius reproduz esse tipo de per-cepo negativa com relao aos indgenas. Sobre o tema vide Karen Lisboa (1995) eLilia K. Moritz Schwarcz. O espetculo das raas. So Paulo: Companhia das Letras,1993. Vide tambm: K. F. Phillipp von Martius. Como se deve escrever a histria doBrasil. In: Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasilieiro, t.6. Rio de Janeiro:1845 e K. F. Phillip von Martius. O estado de direito entre os autctones no Brasil. SoPaulo: Edusp, 1979 (orig. 1843).

  • SCHWARCZ, Lilia K. Moritz. Dando nome s diferenas

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    O SCULO XIX E A NATURALIZAO DAS DIFERENAS

    As posies face aos enigmas que o Novo Mundo continuava a re-presentar permaneciam polarizadas. De um lado, as imagens depreciativasde Friedrich Hegel, de outro a inverso representada por Alexander vonHumboldt . Por uma parte, os tericos do monogenismo fiis s escriturasbblicas e idia de que a humanidade teria partido de um s ncleo origi-nal , por outra, os adeptos do poligenismo, que advogavam a existncia dediversos centros de origem, que por sua vez teriam levado a cises funda-mentais na humanidade. Enfim, as teses radicalizavam-se num momentoem que parecia fundamental definir a origem da humanidade.

    Por sua vez, a partir de meados do XIX, ficam cada vez mais eviden-tes os avanos da burguesia europia, que orgulhosa e arrogante passava arepartir o mundo e a colonizar os pontos mais distantes que a imaginaopermitia sonhar. Ningum duvidava do progresso de um progresso lineare determinado , assim como no se questionava a idia de que o nicomodelo de civilizao era aquele experimentado pelo Ocidente. Desse modo,e como afirma Hobsbawm,15 esse no era mesmo um bom momento para afilosofia e mesmo para a religio, que passavam a ser entendidas apenas emtermos evolutivos.

    Com efeito, em dois aspectos, esse orgulho e a afirmao da burgue-sia europia se faziam presentes de forma mais evidente. Em primeiro lu-gar, nos avanos tecnolgicos da poca, to bem representados pela ferro-via, a qual era tambm conhecida pelo sugestivo nome de os trilhos dacivilizao. Em segundo lugar, e que nos interessa mais de perto, na cin-cia positiva e determinista que se afirmava de maneira cada vez maisprepotente.

    Sobretudo a partir de 1859, com a publicao de A origem das esp-cies, de Charles Darwin, colocava-se um ponto final na disputa entremonogenistas e poligenistas, alm de se estabelecerem as bases para a afir-

    15 Eric Hobsbawm. A era do capital. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

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    mao de uma espcie de paradigma de poca, com o estabelecimento doconceito de evoluo. A novidade no estava tanto na tese anunciada,16como no modo de explicao e na terminologia accessvel utilizada pelonaturalista ingls. Dessa maneira, rapidamente, expresses como sobrevi-vncia do mais apto, adaptao, luta pela sobrevivncia escapavamdo terreno preciso da biologia e ganhavam espao nas demais cincias.17

    No que se refere s humanidades, a penetrao desse tipo de discursofoi no s ligeira como vigorosa. Herbert Spencer, em Princpios de socio-logia (1876), definia que o que valia para a vida servia para o homem e suasprodues. O passo seguinte era determinar que, assim como a natureza, asociedade era regida por leis rgidas e o progresso humano era nico, lineare inquebrantvel.

    Paralelamente, tomava fora a escola evolucionista social, quemarcava, nesse contexto, os primrdios e o nascimento de uma disciplinachamada Antropologia. Representada por tericos como Morgan (1877),Frazer e Tylor essa escola concebia o desenvolvimento humano a partir deetapas fixas e pr-determinadas e vinculava de maneira mecnica elemen-tos culturais, tecnolgicos e sociais. Dessa forma, tendo a tecnologia comondice fundamental de anlise e comparao, para os evolucionistas, a hu-manidade aparecia representada tal qual uma imensa pirmide divididaem estgios distintos, que iam da selvageria para a barbrie e desta para acivilizao , na qual a Europa aparecia destacada no topo e povos como osBotocudos na base, a representar a infncia de nossa civilizao.18 Apre-

    16 Segundo Stphen Jay Gould. Darwin e os enigmas da vida. So Paulo: Martins Fontes,1987, Darwin foi obrigado a publicar rapidamente suas concluses j que outros pes-quisadores, como Wallace, encontravam-se prximos de teses semelhantes.

    17 Charles Darwin. A origem das espcies. So Paulo: Hemus, 1859.18 Para um aprofundamento desses autores vide: Lewis Morgan. A sociedade primitiva.

    Lisboa: Presena, 1872; E. B. Tylor. Primitive Culture. New York: Harper, 1958 (orig.1878), e para uma anlise da escola George W. Stocking Jr. Race, culture and evolutionin Latin America. Ithaca: Cornell, University Press, 1968 e Adam Kuper. Antroplogose antropologia. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978.

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    sentando uma forma de saber comparativa, os evolucionistas sociais pareci-am dialogar com seu contexto, enquanto imperialistas, como Cecil Rhodes,afirmavam que pretendiam tudo dominar de pases a planetas , a utopiadesses etnlogos sociais era tudo classificar.

    Como dizamos, a partir da afirmao de uma viso evolucionistato majoritria, at no campo da religio e da filosofia as influncias soevidentes. Esta a poca do positivismo francs de Auguste Comte, o qualpretendia uma subordinao da filosofia cincia da imutabilidade. Comefeito, a partir dos trs mtodos de filosofar teolgico, metafsico e positi-vo assumia-se que a humanidade evoluia de formas pr-determinadas depensar, revelando-se, assim, uma clara correlao com as teorias hegemnicasda poca.

    No entanto, se por um lado possvel visualizar a afirmao doevolucionismo como um paradigma de poca, de outro necessrio reiterarque essas escolas reafirmavam a noo iluminista da humanidade una einquebrantvel. Muito diferente eram, no entanto, as teorias que, seguindoas pistas de detrao deixadas por C. de Pauw e pelo conde Buffon ,passaram a utilizar a idia da diferena entre os homens, dessa feita com arespeitabilidade de uma cincia positiva e determinista.

    Longe de estar esgotada, a corrente poligenista tomava, nesse con-texto, uma nova fora. Autores como Gobineau e Le Bon19 recuperavam asmximas de Darwin, porm destacando que a antiguidade na formao dasraas era tal que possibilitava estud-las como uma realidade ontolgica.Partindo da afirmao do carter essencial das raas o qual as fariamdiferir assim como as espcies , uma srie de tericos, mais conhecidoscomo darwinistas sociais, passam a qualificar a diferena e a transform-la em objeto de estudo, em objeto de cincia.

    Tambm conhecidos como deterministas sociais, em funo docarter premunitrio de seu conhecimento, esses autores poderiam ser divi-

    19 Vide nesse sentido: G. Le Bon. Les lois psychologiques de levolution des peuples.Paris: s.e., 1894 e Arthur de Gobineau. Essai sur linegalit des races humaines. Paris:Gallimard-Pleiade, 1853.

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    didos em dois tipos: deterministas geogrficos e raciais. Os primeiros pau-tavam sua anlise em fatores de ordem geogrfica o clima, o solo, a vege-tao, o vento , supondo que o futuro de uma civilizao estaria direta-mente ligado a esses fatores. Buckle, por exemplo, que escreveu uma vastaobra denominada History of the english civilization (1845), dedicou algu-mas pginas ao Brasil, nas quais conclua que nesse pas a vegetao era toabundante que pouco lugar sobraria para os homens e sua civilizao.

    O segundo grupo, talvez o mais influente, ficou conhecido a partir desuas concluses deterministas raciais. Nesse caso, tratava-se de abandonara anlise do indivduo para insistir no grupo, na medida em que o sujeito eraentendido, apenas, como uma somatria dos elementos fsicos e morais daraa qual pertencia. Portanto, com o fortalecimento desses tericos dasraas percebe-se uma espcie de perverso no prprio seio do discuso libe-ral, que naturalizara a idia da igualdade em meio a um contexto marcadopela afirmao de hierarquias e diferenas.20

    Longe do princpio da igualdade, pensadores como Gobineau (1853),Le Bon (1894) e Kid (1875) acreditavam que as raas constituiriam fen-menos finais, resultados imutveis, sendo todo cruzamento, por princpio,entendido como um erro. As decorrncias lgicas desse tipo de postuladoeram duas: enaltecer a existncia de tipos puros e compreender a miscige-nao como sinnimo de degenerao, no s racial como social.

    Opondo-se, portanto, viso humanista, os tericos das raas partiamde trs proposies bsicas. A primeira tese afirmava a realidade das raas,estabelecendo que existiria entre esses agrupamentos humanos a mesmadistncia encontrada entre o asno e o cavalo. A segunda institua uma con-tinuidade entre caracteres fsicos e morais, determinando que a diviso domundo em raas corresponderia a uma diviso entre culturas. Um terceiroaspecto apontava para a predominncia do grupo racio-cultural ou tnicono comportamento do sujeito, conformando-se enquanto uma doutrina dapsicologia coletiva, hostil idia do arbtrio do indivduo.

    20 Louis Dumont. Homo hierarchucus. Essai sur les systme des castes. Paris: Mspero,1971.

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    Esse saber sobre as raas implicou, por sua vez, num ideal polti-co, um diagnstico sobre a submisso ou possvel eliminao das raasinferiores, o qual se converteu em uma espcie de prtica avanada dodarwinismo social a eugenia , cuja meta era intervir na reproduo daspopulaes. O termo eugenia eu: boa; genus: gerao , criado em1883 pelo cientista britnico Francis Galton, lidava com a idia de que acapacidade humana estava exclusivamente ligada hereditariedade e pou-co devia educao.21

    Dessa maneira, tomava fora um tipo de modelo que, abrindo modo indivduo, centrava-se apenas no grupo e em suas potencialidades. essa, por exemplo, a base da antropologia criminal, cujo pensador de maioreminncia, Cesare Lombroso, afirmava em Luomo delinquente (1876)22ser a criminalidade um fennemo fsico e hereditrio e, como tal, um ele-mento detectvel nas diferentes sociedades. Partindo da teoria dos estig-mas, a antropologia criminal acreditava poder capturar o criminosos antesque cometesse o delito, detectar o desviante antes que praticasse o ato. Grandeutopia de um saber de tipo determinista, as mximas da escola de criminologiaitaliana alardeavam a preveno, que se antecipava contraveno. Poroutro lado, adeptos da frenologia e da craniometria, como Paul Broca(1864) e Samuel G. Morton (1844), estabeleciam, a partir da mensuraode crnios, correlaes com as potencialidades fsicas e morais dos homens,povos e civilizaes.23

    Enfim, se primeira vista, a noo de evoluo, em finais do sculoXIX, surgia como um conceito que parecia apagar diferenas e oposies, naprtica reforou perpectivas opostas: de um lado os evolucionistas sociais,

    21 No livro O espetculo das raas (1993), tive oportunidade de desenvolver com maisvagar esse tipo de questo. Veja tambm Francis Galton. Herencia y eugenia. Madrid:Alianza, 1869.

    22 C. Lombroso. Luomo delinquente. Roma: s.e., 1876.23 Para um maior desenvolvimento do tema vide: Stephen Jay Gould. Darwin e os gran-

    des enigmas da vida. So Paulo: Martins Fontes, 1987 e Lilia K. Moritz Schwarcz. Oespetculo das raas. So Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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    que reafirmavam a existncia de hierarquias entre os homens, porm acredi-tavam numa unidade fundamental entre estes; de outro os darwinistas sociais,que entendiam a diferena entre as raas como uma questo essencial. Restasaber porque no Brasil entraram sobretudo as idias dos tericos da raa, osquais, como vimos, no apenas reforavam as variaes ontolgicas entreos grupos como condenavam sumariamente a miscigenao, j muito avan-ada entre ns.

    EIS O BRASIL. UM EXEMPLO DE PAS MISCIGENADO

    O Brasil, em finais do sculo, vivia um ambiente conturbado. A es-cravido acabara em 1888 e j em 1889 caa o Imprio, um regime bastantearraigado na lgica e nas instituies do pas. Com essas mudanas inicia-va-se, tambm, o debate sobre os critrios de cidadania e acerca da introdu-o dessa imensa mo-de-obra, agora oficialmente livre, no mercado detrabalho.

    No entanto, em meio a esse ambiente, em que a democracia america-na parecia ser um modelo suficiente para comparao, a discusso racialpareceu abortar o debate sobre as condies de cidadania. Com efeito, desdesos anos de 1870, teorias raciais passam a ser largamente adotadas no pas sobretudo nas instituies de pesquisa e de ensino brasileiras predominan-tes na poca , em uma clara demonstrao de que os critrios polticosestavam longe dos parmetros cientficos de anlise. Percebe-se, ento, umaclara seleo de modelos, na medida em que, frente a uma variedade delinhas, nota-se uma evidente insistncia na traduo de autores darwinistassociais que, como vimos, destacavam o carter essencial das raas e, sobre-tudo, o lado nefasto da miscigenao.

    A seleo no era em si aleatria, na medida em que o tema racial jfora explorado durante o Imprio, sobretudo por meio do projeto romnticonativista, que selecionara o indgena como smbolo de singularidade e iden-tidade nacionais. Com efeito, em 1844, o prestigioso Instituto Histrico eGeogrfico Brasileiro realizava um concurso intitulado Como escrever a

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    histria do Brasil, que premiaria o afamado naturalista alemo Karl vonMartius. Mais interessante do que o vencedor a tese defendida: Devia serponto capital para o historiador reflexivo mostrar como no desenvolvimen-to sucessivo do Brasil se acham estabelecidas as condies para o aperfei-oamento das trs raas humanas que nesse pas so colocadas uma ao ladoda outra, de uma maneira desconhecida da histria antiga, e que devemservir-se mutuamente de meio e fim.24 Utilizando-se da metfora de umpoderoso rio, correspondendo herana portuguesa, que deveria absorveros pequenos confluentes das raas India e Ethiopica, 25 o Brasil surgiarepresentado a partir da particularidade de sua miscigenao. No aciden-tal o fato da monarquia brasileira, recm instalada, investir em umasimbologia tropical, a qual misturava elementos das tradicionais monarqui-as europias com indgenas, negros e muitas frutas coloridas. Assim, se eracomplicado destacar a participao negra, j que lembrava a escravido,nem por isso a realeza abriu mo de pintar um pas que se caracterizava porsua colorao racial distinta.26

    diferente, no entanto, a interpretao realista dos anos de 1870.Surgindo em oposio ao projeto romntico, os autores de final do sculoinverteram os termos da equao ao destacar os perigos da miscigenaoe a impossibilidade da cidadania universal.

    J em maio de 1888, saa em vrios jornais brasileiros um artigopolmico, assinado por Nina Rodrigues, no qual o famoso mdico da escolabaiana conclua que os homens no nascem iguais. Supe-se uma igualda-de jurdica entre as raas, sem a qual no existiria o Direito. Dessa manei-ra, e solapando o discurso da lei , esse homem de sciencia, logo aps a

    24 Carl Friedrich P. von Martius. O estado de direito entre os autctones do Brasil. SoPaulo: Edusp, 1991. p. 34.

    25 Martius. O estado de direito. p. 383.26 No momento venho desenvolvendo pesquisa acerca da corte no Brasil e seu carter

    tropical. Contando com uma ampla base iconogrfica, o trabalho tem se centrado noSegundo Reinado e na ritualstica em torno de D. Pedro II, primando por reelaborar eretraduzir costumes dos Bragana e dos Bourbons em um contexto tropical.

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    abolio formal da escravido, passava a desconhecer a igualdade e o pr-prio livre arbtrio, em nome de um determinismo cientfico e racial. Aposio no se limitava aos jornais. Nina Rodrigues publicava em 1894 Asraas humanas e a responsabilidade penal no Brasil, no qual defendia nos a proeminncia do mdico na atuao penal como advogava a existnciade dois cdigos no pas um para negros, outro para brancos , correspon-dentes aos diferentes graus de evoluo apresentados por esses dois grupos.

    Falando, portanto, de um lugar respeitado e privilegiado, esses inte-lectuais entendiam a questo nacional a partir da raa e do indivduo, mas-carando uma discusso mais abrangente sobre a cidadania, que se impunhano contexto de implantao da jovem Repblica. No entanto, a adoo des-ses modelos no era to imediata. Implicava em um verdadeiro n cultu-ral, na medida em que levava a concluir que uma nao de raas mistas,como a nossa, era invivel e estava fadada ao fracasso.

    Aos olhos de fora, o Brasil h muito tempo era visto com uma esp-cie de laboratrio racial, como um local onde a mistura de raas era maisinteressante de ser observada do que a prpria natureza. Agassiz, por exem-plo, suio que esteve no Brasil em 1865, assim concluia seu relato: quequalquer um que duvide dos males da mistura de raas, e inclua por mal-entendida filantropia, a botar abaixo todas as barreiras que a separam, ve-nha ao Brasil. No poder negar a deteriorao decorrente da amlgama dasraas mais geral aqui do que em qualquer outro pas do mundo, e que vaiapagando rapidamente as melhores qualidades do branco, do negro e dondio deixando um tipo indefinido, hibrido, deficiente em energia e capa-cidade mental.27 Gobineau, que permaneceu no Brasil durante 15 mesescomo enviado francs, queixava-se: Trata-se de uma populao totalmen-te mulata, viciada no sangue e no esprito e assustadoramente feia.28 GustaveAimard, que andou pelo pas no ano de 1887, assim descrevia o espetcu-lo das raasa que assistia: Eu destaco um fato singular que s observei no

    27 Louis Agassiz. A journey. In: Brazil. Boston: s.e., 1868. p. 71.28 Georges Raeders. O conde Gobineau no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 96.

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    Brasil: a mudana que se opera na populao por meio do cruzamento dasraas, eles so os filhos do sol.

    No se trata aqui de acumular exemplos, mas apenas de convencercomo, nesse contexto, a mestiagem existente no Brasil no era s descritacomo adjetivada, constituindo uma pista para explicar o atraso ou uma pos-svel inviabilidade da nao. Dessa forma, ao lado de um discurso de cunholiberal, tomava fora, em finais do sculo XIX, um modelo racial de anli-se, respaldado por uma percepo bastante consensual de que esse era, defato, um pas miscigenado.29

    Analisada com ceticismo pelos viajantes americanos e europeus, te-mida pelas elites, a questo racial parecia se converter, ao poucos, em umtema central para a compreenso dos destinos dessa nao. Mas se por umlado sua introduo era interessante, pois permitia naturalizar diferenassociais, polticas e culturais; por outro gerava problemas: qual seria o futurode um pas evidentemente mestio?

    A sada foi imaginar uma redescoberta da mesma nao, selecionar edigerir certas partes da teoria, com a evidente obliterao de outras; enfim,prever um modelo racial particular. nesse sentido que vale mais insistirna originalidade da cpia do que descart-la a priori entender a singulari-dade de sua utilizao e a relevncia desse debate.30

    Na verdade, a questo racial ressuscitada no Brasil, j que na Euro-pa, nesse momento, pouco sucesso fazia. Arendt revela, por exemplo, como

    29 Os censos revelavam que, enquanto a populao escrava reduzia rapidamente, a popu-lao negra e mestia tendia progressivamente a aumentar: 55% em 1872.

    30 Durante muito tempo tendeu-se a simplesmente descartar esse tipo de produo emfuno do dilogo que ela evidentemente estabelecia com as teorias raciais, sobretudoeuropias, que serviram, entre outros, aos propsitos do imperialismo poltico de finaisdo XIX. Para uma discusso mais pormenorizada dessas posies vide: Lilia K MoritzSchwarcz. O espetculo das raas. So Paulo: Companhia das Letras, 1993; ThomasSkidmore. Preto no branco. Raa e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1976; Joo Cruz Costa. Contribuio histria das idias noBrasil. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1967.

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    Gobineau era por demais pessimista em suas concluses diante de umaEuropa orgulhosa com suas conquistas e realizaes (1973). Hackel, Buckel31e outros autores do darwinismo social so importados e traduzidos no Bra-sil, permanecendo bastante desconhecidos em seus pases de origem. Tudoparece revelar, portanto, uma seleo e no a mera cpia, alm de indicarcomo raa aparece como um conceito, ao mesmo tempo que negociado, emcontnua construo.

    ESSES HOMENS DE SCIENCIA COM SUAS INSTITUIES MARAVILHOSAS.NELAS, RAA UM CONCEITO NEGOCIADO

    A histria das instituies cientficas brasileiras data da vinda da fa-mlia real, quando revelou-se urgente a instalao de uma srie de centrosde saber e de pesquisa, a fim de lidar com os impasses que a nova situaogerava.32 No entanto, se a fundao antiga, a maior parte desses estabele-cimentos viveu momentos de maturidade e de aparelhamento institucionala partir dos anos 70 , quando se percebe no s uma maior autonomia comoum papel mais destacado de diferentes instituies brasileiras, como as fa-culdades de medicina e de direito, os institutos histricos e geogrficos e osmuseus de etnografia. Nesses locais, se os interesses e os debates no fo-ram, por certo, unvocos, a questo racial esteve presente ora como tema deanlise ora como objeto de preocupao. Ao uni-los havia a certeza de queos destinos da nao passavam por suas mos e a confiana de que eranecessrio transformar seus conceitos em instrumentos de ao e de modi-ficao da prpria realidade. Com efeito, para esses homens, na maior parte

    31 Ernesto Haeckel. Histoire de la cration des tres organiss daprs les lois naturelles.Paris: C. Reiwald, 1884 e Henry Thomas Buckel. History of the English civilization.London: s.e., 1845.

    32 Uma anlise mais cuidadosa acerca do contexto de estabelecimento da famlia realpode ser encontrada em Lilia K. Moritz Schwarcz. O espetculo das raas. So Paulo:Companhia das Letras, 1993.

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    das vezes, se a realidade no se casava com as suas idias era ela que estavaerrada e deveria ser modificada e no a teoria, que, por suposto, estavaacima e alm do contexto imediato. Um bando de idias novas, era assimque Silvio Romero definia o seu momento intelectual e era dessa maneiraque marcava a ciso que aqueles procuravam representar frente geraoromntica que lhe antecedera.

    Mas vamos por partes.33 Comecemos pelas faculdades de Direito, cujalgica est atrelada prpria emancipao poltica de 1822. Criadas em 1827,as duas escolas de Direito uma em Recife, outra em So Paulo visavamatender s diferentes regies do pas e criar uma intelligentsia nacional capazde responder s demandas de autonomia da nova nao. Tendo vivido, cadauma a sua maneira, momentos de difcil afirmao, a partir dos anos 70 essasescolas encontram-se mais aptas a interferir no panorama intelectual nacio-nal. No entanto, nesse caso, a fachada institucional encobria diversidades sig-nificativas, as quais diziam respeito orientao terica, assim como ao perfilprofissional caracterstico de cada uma dessas instituies. Enquanto a facul-dade de So Paulo foi mais influenciada por um modelo poltico liberal, a deRecife, mais atenta ao problema racial, teve nas escolas darwinista social eevolucionista seus grandes modelos de anlise. Tudo isso sem falar do cartermais doutrinrio dos intelectuais da faculdade de Recife, perfil que se destacaprincipalmente quando contrastado com o grande nmero de polticos quepartiam majoritariamente de So Paulo.

    Na verdade, se partiram de Pernambuco as grandes teorias sobre amestiagem, foi em So Paulo, como veremos, que houve preocupao emimplement-las, a partir dos projetos de importao de mo-de-obra euro-pia. Com efeito, para entender a relevncia de Recife no cenrio intelectualnacional, no h como deixar de lado a figura de Silvio Romero, o qual foi o

    33 preciso esclarecer que para efeito desse artigo faremos uma caracterizao breve decada uma das instituies analisadas. Para uma viso mais ampla vide: SimonSchartzman. Formao da comunidade cientfica no Brasil. So Paulo: Nacional, 1979e Lilia K. Moritz Schwarcz. O espetculo das raas. So Paulo: Companhia dasLetras, 1993.

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    primeiro a afirmar que ramos uma sociedade de raas cruzadas (1895);mestios se no no sangue ao menos na alma (1888). Para esse intelectual,a novidade estava no s na argumentao, to distante dos modelos ro-mnticos e europeizantes at ento adotados, como no critrio etnogrfico,que surgia como a chave para abrir e desvendar problemas nacionais. Nele,o princpio biolgico da raa aparecia como denominador comum para todoconhecimento. O caldeamento das trs raas formadoras transformava-se,dessa maneira, em uma espcie de arianismo de convenincia. Afinal, ser-via para a eleio de uma raa mais forte, sem que no entanto se incorressenos supostos dessa postura que se preocupava em denunciar o carter letaldo cruzamento. Com afirmaes do tipo somos mestios isso um fato ebasta (1888), Romero no s radiografava nossa posio como acreditavaver em um branqueamento evolutivo e darwiniano, ou externamente moti-vado via imigrao europia branca, nosso futuro e soluo. Defensor daidia darwinista social de que os homens so de fato diferentes, Romeropreocupou-se em lidar com a mestiagem com os instrumentos que pos-sua: afirm-la para ento combat-la. uma desigualdade original, brota-da do laboratrio da natureza, aonde a distino e a diferena entre as raasaparecem como fatos primordiais, frente ao apelo da avanada ethnografiano h como deixar de concluir que os homens nascem e so diferentes(1895, XXXVII).

    Interessante e complementar a posio da escola paulista. Suposta-mente distante, a faculdade de Direito de So Paulo, nas pginas de suarevista, pouco se preocupou em tratar do tema sob uma perspectiva racial.No entanto, paradoxalmente, foi So Paulo a provncia que adotou a pol-tica de imigrao mais restritiva, no que se refere entrada de orientais eafricanos. Ou seja, a bancada paulista limitou a admisso de trabalhadores aapenas alguns pases da Europa, a saber: italianos, suecos, alemes, holan-deses, noruegueses, dinamarqueses, ingleses, austracos e espanhis , umaclara indicao da colorao que se pretendia para a populao local. Nembem iguais, nem bem diferentes, Recife e So Paulo mostraram na teoria ena prtica como se lidava com as teorias europias, assimilando-as quandopossvel, obliterando-as quando necessrio.

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    Bastante diverso era o horizonte das escolas mdicas nacionais. Tam-bm vinculadas vinda da famlia real, as primeiras escolas de medicinabrasileiras foram criadas logo em 1808, j que a vinda sbita das 15 milpessoas da corte portuguesa significara um enorme problema sanitrio paraa pequena corte carioca. No entanto, os primeiros quarenta anos das facul-dades de medicina brasileiras foram caracterizados por um esforo de insti-tucionalizao em detrimento de um projeto cientfico original. Os cronis-tas so unnimes, porm, em datar a dcada de 1870 como um momento deguinada no perfil e na produo cientfica das escolas de medicina nacio-nais. A partir de ento, publicaes so criadas, novos cursos so organiza-dos, grupos de interesse comeam a se aglutinar.

    O contexto era tambm significativo. As recentes epidemias de cle-ra, febre amarela e varola, entre tantas outras, chamavam ateno para amisso higinicaque se reservava aos mdicos. Por outro lado, com aGuerra do Paraguai, afluiam em massa doentes e aleijados que exigiam aatuao dos novos cirurgies. Nesse contexto ganhava fora a figura domdico missionrio, cujo desempenho seria distinto nas duas faculdadesnacionais: enquanto no Rio de Janeiro atentava-se para a doena, na Bahiatratava-se de olhar para o doente.

    Com efeito, a relao entre as duas escolas mdicas brasileiras foiquase complementar. Se a escola do Rio de Janeiro lidou, sobretudo, com asepidemias que grassavam no pas; j na Bahia, a ateno centrou-se, emprimeiro lugar, nos casos de criminologia e, a partir dos anos de 1890, nosestudos de alienao.

    Na Bahia, em finais do sculo, as teses sobre medicina legal predo-minaram. Nelas, o objeto privilegiado no era mais a doena ou o crime,mas o criminoso. Sob a liderana de Nina Rodrigues, a faculdade baianapassou a seguir de perto os ensinamentos da escola de criminologia italiana,que destacava os estigmas prprios dos criminosos: era preciso reservar oolhar mais para o sujeito do que para o crime. Para esses cientistas, no foidifcil vincular os traos lombrosianos ao perfil dos mestios to maltrata-dos pelos teorias da poca e a encontrar um modelo para explicar a nossadegenerao racial. Os exemplos de embriaguez, alienao, epilepsia, vio-

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    lncia ou amoralidade passavam a comprovar os modelos darwinistas soci-ais em sua condenao do cruzamento, em seu alerta imperfeio dahereditariedade mista. Sinistra originalidade encontrada pelos peritosbaianos, o enfraquecimento da raa permitia no s a exaltao de umaespecificidade da pesquisa nacional, como uma identidade do grupo profis-sional.

    A partir dessas concluses, esses mdicos passaram a criticar o C-digo Penal, desconfiando do jus-naturalismo e da igualdade entre as raas,apregoada pela letra da lei. O cdigo penal est errado, v crime e nocriminoso ... No pode ser admissvel em absoluto a igualdade de direitos,sem que haja ao mesmo tempo, pelo menos, igualdade na evoluo ... Nohomem alguma cousa mais existe alm do indivduo. Individualmente sobcertos aspectos, dois homens podero ser considerados iguaes; jamais osero porm se se attender s suas funes physiologicas. Fazer-se do indi-vduo o princpio e o fim da sociedade, conferir-lhe uma liberdade semlimitaes, como sendo o verdadeiro esprito da democracia, um exageroda demagogia, uma aberrao do principio da utilidade pblica. A Revo-luo Franceza inscreveu na sua bandeira o lemma insinuante que procla-mava as ideas de Voltaire, Rousseau e Diderot as quais ate hoje no se pude-ram concilliar pois abherrant inter se....34

    O livre-arbtrio transformava-se, portanto, em um pressupostoespiritualista,35 em uma falsa questo, como se a igualdade fosse criaoprpria dos homens de lei, sem nenhum embasamento cientfico. A partirde incios do sculo XX, so os estudos de alienao e a defesa dos mani-cmios judicirios que passam a fazer parte da agenda local, aliando a

    34 Gazeta Mdica da Bahia, 1906. p. 256-7.35 Mariza Corra. As iluses da liberdade. A escola Nina Rodrigues e a antropologia no

    Brasil. So Paulo, 1983. p.64. Tese (Doutorado) Vide tambm: Nina Rodrigues. Asraas humanas e a responsabilidade penal na Bahia. Bahia: Progresso, 1888; e domesmo autor Os mestios brasileiros. In: Brazil mdico. Rio de Janeiro: s.e., 1890 eMtissage, dgnerescense et crime. In: Archives danthropologie criminelle. Lyon,1899.

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    certeza do carter negativo da miscigenao, incidncia de casos deloucura nessas populaes. Em Mestiagem, crime e degenerescncia(1899), Nina Rodrigues analisava casos de alienao estabelecendo umacorrelao quase mecnica entre miscigenao racial e loucura. Era a facepessimista do racismo brasileiro, que diagnosticava no cruzamento a faln-cia nacional e a primazia dos mdicos sobre os demais profissionais.

    No Rio de Janeiro, por sua vez, as pesquisas insistiam na questo dahigiene pblica e, sobretudo, na anlise e combate das grandes epidemiasque tanto preocupavam as elites nacionais. O Brasil, nessa poca, surgiarepresentado interna e externamente como o campeo da Tuberculose, oparaso das doenas contagiosas. Sobretudo a tuberculose assustava a po-pulao local,36 sendo comuns os artigos que comentavam, com apreenso,sobre os progressos da molstia: Cada um de ns presente nesse recinto,cada um de todos os habitantes desta cidade um tuberculoso ou j o foi, ouh de ser ainda.37 nesse ambiente de medo que os mdicos cariocas voentender as doenas tropicaisno s como seu maior desafio, mas comosua grande originalidade. nesse sentido que o combate vitorioso febreamarela responsvel por boa parte dos bitos no ano de 1903 e j em 1906praticamente debelada vai dar nova fora a esses cientistas, que passam adefender um projeto cada vez mais autoritrio e agressivo de intervenosocial. Chamada popularmente de ditadura sanitria, essa nova atitudedos profissionais mdicos visava sair dos espaos pblicos de atuao eganhar os locais privados, impondo hbitos, costumes e mesmo atitudes.No se trata aqui de negar a realidade das epidemias e a oportunidade docombate, mas apenas de destacar uma nova forma de interveno e a cons-

    36 Em primeiro lugar, nos ndices de mortalidade encontrava-se a tuberculose respons-vel por 15% das mortes no Rio de Janeiro. A ela seguiam-se, em ordem de grandeza, oscasos de febre amarela, varola, malria, clera, beribri, febre tifide, sarampo, coque-luche, peste, lepra, escarlatina, os quais, todos juntos, representavam 42% do total demortes registradas nessa cidade.

    37 Brazil mdico. Rio de Janeiro, 1916. p. 65.

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    truo de um discurso radical que tinha na prtica mdica sua base de inter-veno.38

    O passo para a eugenia e para o combate miscigenao racial foiquase que imediato. Afinal, as doenas teriam vindo da frica, assim comoo nosso enfraquecimento biolgico seria resultado da mistura racial. as-sim que a partir de incios do sculo XX, uma srie de artigos especializadospassam a vincular a questo da higiene pobreza e populao mestia enegra, defendendo mtodos eugnicos de conteno e separao da popula-o. Nova cincia a eugenia consiste no conhecer as causas explicativasda decadencia ou levantamento das raas, visando a perfectibilidade daespecie humana, no s no que se refere o phisico como o intellectual. Osmtodos tem por objetivo o cruzamento dos sos, procurando educar o ins-tinto sexual. Impedir a reproduo dos defeituosos que transmitem taras aosdescendentes. Fazer exames preventivos pelos quais se determine a siphilis,a tuberculose o alcoolismo, a trindade provocadora da degenerao. Nessestermos a eugenia no outra cousa sino o esforo para obter uma raa purae forte ... Os nossos males provieram do povoamento, para tanto basta sane-ar o que no nos pertence.39 Esse texto no se limitava, portanto, a repro-duzir as mximas da eugenia como estabelecia correlaes entre a imigra-o e a entrada de molstias estranhas a nosso meio. Isso tudo num contextoem que os negros, agora ex-escravos, transformavam-se mais e mais emestrangeiros: nos africanos residentes no Brasil.40

    Interpretao at ento arriscada nesses meios, ela se casa com areinvindicao poltica, engrossada pelos acadmicos da faculdade de Di-

    38 Data dessa poca a insurreio conhecida como Revolta da Vacina. O estopim quedeflagrou o movimento foi a publicao do decreto de 1904, que declarava obrigatriaa vacinao. Sobre o tema vide: Sidney Chalhoub. The politics of disease control:yellow fever and race in nineteenth-century, manuscrito, 1993 e Nicolau Sevcenko. Arevolta da vacina; mentes insanas em corpos rebeldes. So Paulo: Brasiliense, 1984.

    39 Brazil mdico. Rio de Janeiro: 1918 p. 118-9.40 Sobre o tema vide Lilia K. Moritz Schwarcz. O espetculo das raas, So Paulo: Com-

    panhia das Letras, 1987.

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    reito de So Paulo, que buscavam impedir a entrada de imigrantes asiticose africanos. nesse ambiente que os mdicos cariocas passam a fazer elogi-os rasgados poltica de imigrao empregada na frica do Sul que saceita individuos physica e moralmente sos, exigindo delles exame medi-co minuciosos ... para que se forme uma raa sadia e vigorosa ... e se fecheas portas s escrias, aos medocres de corpo e de intelligencia41 fazemprojetos de controle eugnico; ou do apoio leis de esterilizao aplicadasem Nova Jersey: Si fosse possvel dar um balano em nossa populao,entre os que produzem, que impulsionam a roda do progresso de um lado ede outro os parasitas, os indigentes, criminosos e doentes que nada fazem,que esto nas prises, nos hospitais e nos asylos, os mendigos que peram-bulam pelas ruas ... os amoraes, os loucos, a prole de gente intil que vivedo jogo, do vcio, da libertinagem, da trapaa ... A porcentagem dessesultimos verdadeiramente apavorante ... Os mdicos e eugenistas conven-cidos dessa triste realidade procuram a soluo para esse problema e decomo evitar esse processo de degenerao ... preciso evitar a proliferaodesses doentes, incapazes e loucos ... Aps a guerra s epidemias as refor-mas mdico sociais e eugenicas entram em efervecncia ... Com esses exem-plos chego concluso eugenica: a esterilizao far desaparecer os ele-mentos cacoplatos da especie humana, ou melhor a sua proporo ser re-duzida...42

    De fato, o professor Renato Kehl, autor dessas frases, representavaum setor da escola que se afastava da viso positiva sobre a mistura racial evia o pas enquanto uma repblica desmoralizada e carente de homensvalidos.43 Para esses cientistas, familiarizados com os projetos eugenistasalemes e em especial com a poltica restritiva adotada nos EUA, que cul-minou com a aprovao da lei de imigrao de 1924, no existiria outra

    41 Brazil mdico. Rio de Janeiro: 1912. p. 24-542 Renato Kehl. Brazil mdico. Rio de Janeiro, 1921. p. 155-6. Veja tambm Renato

    Khel. A cura da fealdade. So Paulo: s.e., 1923.43 Vide Nancy Stepan. The hour of eugenics: Race, gender and nation in Latin America.

    Ithaca: Cornell University Press, 1991. p. 158.

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    sada para o pas seno aquela que previsse medidas radicais de controle dapopulao. Vemos assim como o pas da democracia racial estava a umpasso do apartheid scio-racial, s vencido por polticas opostas que come-am a ser impantadas a partir dos anos 30.

    Antes delas, porm, preciso que fique claro como, apesar do predo-mnio desses dois espaos institucionais as faculdades de medicina e dedireito , a discusso racial no se restringiu a eles. Nos Institutos Histri-cos e Geogrficos, por exemplo, um saber evolucionista, positivo e catlicose afirmou, como se fosse possvel adotar os modelos raciais de anlise,mas prever um futuro branco e sem conflitos. J comentamos o carterexemplar do concurso organizado pelo Instituto Histrico e GeogrficoBrasileiro, cujo ttulo Como escrever a histria do Brasil revelava amissoda instituio. No artigo em questo, o cientista bvaro dava oprimeiro pontap na famosa lenda das trs raas, ou seja, nessa interpre-tao consensual que entende a particularidade da histria brasileira a partirda sua formao tnica singular. Mesmo revelando um verdadeiro horroraos indgenas e s suas prticas canibais que mais o aproximava s tesesde de Pauw e um profundo desconhecimento frente situao dos negros,Martius no deixava de concluir seu ensaio, reafirmando a posio que oIHGB deveria guardar: a construo de uma histria branca, patritica eoficial, na qual as contradies internas apareciam amenizadas diante deuma naturalizao das questes sociais mais contundentes.44

    Por outro lado, nos museus etnogrficos uma produo paralela de-senvolvia-se. Local de debate com a produo que vinha de fora, boa partedessas instituies pouco dialogou com as questes internas do pas. Naverdade, os trs grandes museus brasileiros Nacional (Rio de Janeiro),Ypiranga (So Paulo) e Goeldi (Par) , detiveram-se mais sobre os grandes

    44 Muito poderia ser dito sobre os Institutos Histricos Brasileiros e sua evidente tentativade inaugurar uma histria oficial brasileira. Essas observaes, porm, iriam alm dosobjetivos desse ensaio. Para um aprofundamento do tema vide: Lilia K. Moritz Schwarcz.O espetculo das raas. So Paulo: Companhia das Letras, 1993; Karen M. Lisboa. Anova Atlntida ou o gabinete naturalista dos doutores Spix e Martius. So Paulo, 1995.Tese (Mestrado) Universidade de So Paulo.

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    enigmas do pensamento evolucionista europeu e americano do que seimiscuiram no debate local sobre critrios de cidadadania ou acerca do carterdo Estado brasileiro. Sede de um saber classificatrio, os museus nacionaisesmeraram-se em oferecer material, por exemplo, sobre o estgio infantil dosBotocudos; sobre ossaturas de povos extintos; crnios de grupos atrasados.

    Existiu, no entanto, pelo menos um momento em que o diretor domuseu paulista veio a pblico revelar suas concepes sobre o destino daspopulaes no brancas residentes no Brasil. Ficou famosa a polmica noqual se involveu H. von Ihering, em 1911, por causa do problema criado pelaconstruo da estrada de ferro Noroeste do Brasil, que deveria passar exata-mente nas terras dos Kaingang. Nessa ocasio, o zologo teria utilizado aspginas do jornal O Estado de S. Paulo para pedir o extermnio desse grupo,o qual, por habitar no caminho da estrada, impedia o desenrolar do progres-so e da civilizao. Nesses momentos selecionados que se percebe como osaber distante da cincia ao se encontrar com as questes mais imediatas emundanas pode ser impiedoso em sua condenao ao atraso e diferena.

    Mas von Ihering no estava s. Tambm Joo Batista Lacerda, entodiretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, quando convidado a partici-par do I Congresso Internacional das Raas, realizado em julho de 1911,defendeu uma tese clara e direta com relao ao futuro do pas. Em Sur lesmtis au Brsil Lacerda afirmava que o Brasil mestio de hoje tem nobranqueamento em um sculo sua perpectiva, sada e soluo, em umaevidente afirmao de que o presente negro de hoje seria substituido por umfuturo cada vez mais branco.45

    45 Nessa ocasio, Batista Lacerda apresentava um quadro de M. Brocos, artista da escolade Belas Artes do Rio de Janeiro, acompanhado da seguinte legenda: Le ngre passantau blanc, la troisime gnration, par leffet du croisement des races. Essa pintura,que representava uma av negra, com sua filha mulata casada com um portugus, traziaao centro uma criana branca, numa clara aluso ao processo de branqueamento defen-dido por Lacerda. (Essa obra encontra-se no museu de Belas Artes do Rio de Janeiro).Para uma averiguao da citao vide Joo Batista Lacerda. Sur les mtis au Brsil.Paris: Imprimerie Devougue, 1911.

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    Nesse como em outros casos vemos como a questo racial fazia parteda agenda desses cientistas, que a utilizavam como argumento nos maisdiversos momentos. Seu uso no era, porm, nico e pr-determinado. Apon-tava para temas diversos e questes de ordem variada.

    ESSA FRGIL CIDADANIA

    Se as teorias raciais percorreram um trajeto especfico no contextoeuropeu e norte-americano, o mesmo pode ser dito do caso brasileiro. To-maram fora e forma conjuntamente com o debate sobre a abolio da es-cravido, tansformando-se em teorias das diferenas, na medida em querecriaram particularidades e transformaram em estrangeiros aqueles que hmuito habitavam o pas. Nesse sentido, a entrada macia desse tipo de teo-ria acabou por solapar e abortar a frgil discusso da cidadania que, com aproclamao da Repblica, recm iniciara entre ns.

    Com efeito, quem pensa raa esquece o indivduo, sendo esse umbom discurso no interior de um local que primou por desconhecer o Estadoe anular suas instituies. Com efeito, nesse contexto no qual reinam asrelaes de familiaridade e de cordialidade, e em que a esfera pblica esquecida em funo da imposio das relaes de ordem privada, comoafirma46; nessa sociedade da dialtica da malandragem, na qual tudo burla, porque nada , por princpio, certo ou errado;47 o racismo no pareceser uma carta fora do baralho. Nesse ambiente em que, como bem demons-trou Roberto Da Matta, s os indivduos esto sujeitos lei, j que aspessoas encontram-se afastadas dela pode-se dizer que um racismo par-ticular imperou e se imps, como uma idia totalmente no lugar certo.48

    46 Srgio Buarque de Hollanda. Razes do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.47 Antonio Candido. O discurso e a cidade. So Paulo: Duas cidades, 1993.48 Referncia expresso de Roberto Schwarz, Ao vencedor as batatas. So Paulo: Duas

    cidades, 1977. Vide tambm Roberto Da Matta. Carnavais, malandros e heris. Rio deJaneiro: Zahar, 1981.

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    Na verdade, se esse tipo de discusso perdeu o seu lugar na acade-mia, a sua crtica terica, nos anos 20, no significou o esvaziamento daquesto. Com efeito, o tema foi expulso dos espaos oficiais e das institui-es cientficas, mas ganhou os locais de vivncia cotidiana e a esfera dasrelaes pessoais. Se hoje pouco legtimo advogar cientificamente essetipo de discusso racial, o uso de expresses e piadas revela como raavirou lugar comum entre ns.

    Foi, na verdade, na dcada de 1930 que sinais de uma certa positivaoda idia da mestiagem tornavam-se mais evidentes. Cantada em verso e pro-sa49, a miscigenao de grande mcula transformava-se em nossa mais subli-me especificidade, sem que o tema fosse, de fato, enfrentado. Nesse movi-mento, o conflito virava sinal de identidade, ao mesmo tempo em que o mitodas trs raas passava a equivaler a uma grande representao nacional.50

    Coube a Gilberto Freyre, em Casa-Grande & Senzala (1930), dealguma maneira oficializar essa imagem dispersa. Sobretudo nessa obra, amestiagem aparece como o grande carter nacional, que interfere noapenas na conformao biolgica da populao, mas, sobretudo, na produ-o cultural que nos singulariza. Inventor do famoso mito da democraciaracial brasileira, Freyre de fato adocicava o ambiente ao priorizar umacerta histria sexual brasileira, em detrimento de uma anlise cuidadosa dascontradies existentes nessa sociedade to marcada pela escravido.51

    49 No artigo Complexo de Z Carioca In: Revista Brasileira de Cincias Sociais, no 29,p. 49-63, pude desenvolver com mais cuidado o contexto dos anos 30 e a reviso doconceito de miscigenao.

    50 Vide nesse sentido, entre outros: Silvio Romero. Histria da Literatura Brasileira. Riode Janeiro: J. Olympio, 1888; Gilberto Freyre. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janei-ro: J. Olympio, 1930.

    51 Infelizmente no possvel realizar nesse ensaio uma anlise mais aprofundada da obrade Freyre. Em outros trabalhos nos detivemos mais no estudo das idias desse autor,assim como fizeram uma srie de analistas. Entre outros vide: Ricardo Benzaquem.Guerra e Paz. Rio de Janeiro: 34 Letras, 1994; Thomas Skidmore. Preto no Branco.Raa e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro, 1976; Dante MoreiraLeite. O carter nacional brasileiro. So Paulo: Pioneira, 1983.

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    Mas se a anlise de Freyre problemtica, porque qualifica positi-vamente a sociedade senhorial e v a miscigenao apenas por seu ladomais positivo e cordial desconhecendo ou pouco destacando a violnciainerente a esse sistema , contudo revela temas fundamentais. Ou seja,indica como preciso levar a srio a idia do mito. Diferente da visomaterialista, que vincula o conceito de mito noo de ideologia no sen-tido de que ambos mascarariam a realidade ; longe das anlises psicanalis-tas e simbolistas que pensam o mito a partir do que ele esconde, do que norevela; seria bom voltar perspectiva estrutural que insiste na idia de queo mito no oculta; ao contrrio, o que ele mais faz falar. Com efeito, o mitodiz muito, diz de si e de seu contedo e por isso que seu enunciado no uma mera alegoria, mas antes ilumina contradies.

    Nesse sentido, a obra de Freyre no teria sido aceita exclusivamentepelo que no dizia. Ao contrrio, sua popularidade vem da afirmao deque a questo racial fundamental entre ns e que preciso que levemos asrio a singularidade de nosso processo de socializao e de formao.52 Naverdade Freyre dava continuidade a um argumento que se desenvolvia nalonga durao e que dialogava com outros autores e contextos, os quais jdestacavam a miscigenao como uma marca local. assim que os textosdos missionrios religiosos que estiveram no Brasil durante o perodo colo-nial falam de uma sociedade de raas mistas, na qual o catolicismo no seimpe de forma previsvel. essa a opinio de vrios viajantes que aquiestiveram sobretudo no sculo XIX e descreveram, muitas vezes com hor-ror, as prticas mestias e o catolicismo adocicado. Isso para no voltar-mos a Silvio Romero, Euclides da Cunha, ou mesmo Mario de Andrade,que em 1928 revigorava o mito das trs raas, dessa vez de forma metafri-ca, fazendo Macunama, um preto retinto, virar branco, enquanto um de

    52 preciso que fique claro como, fazendo coro s crticas obra de Freyre, concordo comas anlises que refutam a viso idlica deixada por Casa-Grande & Senzala. Discordo,porm, das oposies exclusivamente ideolgicas ao livro. Acredito que o impactodessa obra uma boa pista para se pensar numa histria cultural e na singularidade desua formao, feitas as devidas ressalvas.

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    seus irmos transformava-se em ndio e o outro permanecia negro (mas bran-co na palma das mos e dos ps).53 Estamos prximos tambm da Tropicliade Gil e Caetano, da morena de Jorge Amado, do mestio de Darcy Ribeiro.

    Mais do que o cruzamento biolgico, essa uma sociedade de religiesmistas, de prticas alimentares miscigenadas, de costumes cruzados. Como umasociedade de marca, mal sabemos definir nossa cor e inventamos um verdadei-ro carrefour de termos e nomes para dar conta de nossa indefinio nessa rea.Alm disso, a variedade de expresses e o carter cotidiano de sua utilizaoatestam como esse um pas que ainda se apresenta e se identifica pela raa.

    Talvez seja hora de no s delatar o racismo, mas de refletir sobreessa situao to particular. Se, de fato, a idia de uma democracia racialpoucos adeptos tm nos dias de hoje, a constatao de que este um pasque se define pela raa no s importante como singular. Afinal, por que que todas as vezes que somos instados a falar de identidade voltamos raa? Encontramos ento uma srie de verses que repetem e re-significamuma certa ladainha que retorna raa, como o nico porto-seguro. No setrata, portanto, de apenas criticar, e jogar fora o beb com a gua do ba-nho. Nem apenas de denunciar o preconceito e o racismo, como se todas asmanifestaes desse tipo fossem sempre iguais. Assim como certo queno existem bons ou maus racismos todos so sempre ruins ; tambmevidente como as estruturas so semelhantes, mas as manifestaes so par-ticulares. Em nome da delao reducionista transformar em um o que plural, com o perigo de nada entender.

    Trata-se, portanto, de um racismo mestio e cordial54, cujaespecificidade deve ser perseguida mesmo que por contraste e comparao.

    53 Em artigo publicado na Revista Brasileira de Cincias sociais no 29 tive oportunidadede desenvolver com mais vagar o tema em questo. Sobre o ensaio em questo videLilia K. Moritz Schwarcz. Complexo de Z Carioca: notas sobre uma identidade mes-tia. In: Revista Brasileira de Cincias Sociais no 29, outubro de 1995.

    54 Referncia ao termo adotado no jornal Folha de S. Paulo no Caderno Mais de maio de1995. Vide tambm livro organizado pela Folha de S. Paulo. Racismo cordial. A maisampla anlise sobre o preconceito de cor no Brasil. So Paulo: tica, 1995.

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    Quais seriam as diferenas entre a manifestao evidente de racismo departe a parte existente nos E.U.A. e a modalidade retroativa de preconcei-to esse preconceito de ter preconceito imperante no Brasil? Como dialo-gar com uma populao negra que, muitas vezes, nega sua cor e que v nobranqueamento uma espcie de soluo? De que maneira lidar com osresultados de uma pesquisa a qual revela que, enquanto 98% da populaonega ter preconceito, 99% afirma conhecer pessoas que tm preconceito e,mais que isso, demontram possuir uma relao prxima com elas? Comefeito, visto dessa tica, cada brasileiro parece se auto-representar comouma ilha de democracia racial cercada de racistas por todos os lados.55

    Com o perigo de se achar que tudo que se v na verdade miragem,ou um falso espelho, preciso levar a srio as particularidades encontradasno pas e enfrent-las com vistas a lutar pela instalao de uma real demo-cracia entre ns. Se a histria e a diacronia nos ensinam a desconstruir econtextualizar os conceitos, no preciso abrir mo de se descobrir comoparalelamente, desenvolvem-se dilogos na sincronia, que revelam comoos mitos falam entre si.56

    Limitar a questo racial a um problema exclusivamente econmicopouco resolve. Afirmar que a raa se esconde na classe entender s parteda questo. Talvez seja mais produtivo enfrentar o mito, o mito da demo-cracia racial, e entender porque ele continua a repercutir e a ser re-signifi-cado entre ns.

    Mesmo sem reservar cultura um local de total autonomia, quem sabepossamos finalmente dar a ela algum espao para que dialogue com nossascertezas mais arraigadas. De fato, se a questo racial se encontra, nos dias dehoje, a lguas de distncia dos ensinamentos de nossos cientistas do sculoXIX, continua objeto de interpretao. Distantes do Z Carioca de Disney,dos anos 50, ainda nos reconhecemos a partir de nosso carter extico e mes-

    55 Trata-se de uma pesquisa realizada na Universidade de So Paulo em 1988, sob minhacoordenao.

    56 Claude Lvi-Strauss. Mito e significado. Lisboa: Edies 70, 1979.

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    tio. Para fora, como se ainda nos lembrssemos das concluses de NinaRodrigues, que nos idos de 1894 ponderava: se um pas no velho para sevenerar, ou rico para se fazer representar, precisa ao menos tornar-se interes-sante.

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    VON MARTIUS, K. F. PHILIP. Como se deve escrever a histria do Brasil. InRevista do IHGB, t. 6. Rio de Janeiro: s.e. O estado do direito entre os autc-tones do Brasil. So Paulo: Edusp, 1835 -1982. Viagem ao Brasil. So Paulo:Edusp, 1834-1979.

    Abstract: This articles deals not only with the discovery of the notionof difference in the country, but as well as the formalization of theseperceptions in the end of the nineteenth century, when the miscegenatedcharacteristic of our population was seen as a spectacle, as a reallaboratory of races, at the same time curious and degrading.It would be thoughtless, nevertheless, to restrict this debate to the contextof the disassambling of the slavocrat system in Brazil.The reflection on the diversity among men takes us farther, mainly atthe moment of the discovery of the New World, when the Europeanimaginery leaves the East towards the West, to this new land America with its impressive nature and their peoples with uncovered bodies.

    Keywords: Racism; racial thought; human diversity; determinism;social darwinism.

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    REPRESENTAES MTICAS E HISTRIA

    Liana Trindade

    Durante o perodo colonial, os africanos adotam os elementos mate-riais do sistema mtico europeu, mas reinterpretando-os por meio das estru-turas mentais ou formas organizacionais do pensamento africano.

    Os calundus coexistiram ao catolicismo no apenas no interior das insti-tuies catlicas como tambm de forma paralela, externa a estas instituies.

    As irmandades e confrarias religiosas existentes no meio urbano e assenzalas das grandes propriedades rurais constituram os espaos permiti-dos aos cultos africanos e vigilncia das autoridades clericais e legais.Mas estes espaos no foram os nicos e nem determinantes para a preser-vao e continuidade no tempo dos cultos africanos no Brasil. Estes, emsuas vrias expresses simblicas, estavam presentes de forma difusa nocotidiano urbano e rural da sociedade colonial, enquanto ethos de umaafricanidade muitas vezes no percebida.

    No mercado das casinhas e comrcio praticado nas ruas paulistanas,os escravos de ganho encontravam-se com a sua clientela para a venda deprodutos comestveis. Nestes locais eram estabelecidos as formas de socia-bilidade que permitiam a troca entre bens econmicos e simblicos.

    Nestas relaes comerciais, ocorriam as trocas entre bens de prestgio(aguardente e forno) e bens religiosos (ervas e frangos), assim como troca demensagens (receiturios para curas, informaes sobre cultos), como formas decomunicaes entre os escravos e destes com a clientela

    Conforme descreve Maria Odila, no comrcio local de So Paulo, oscantos estratgicos das vendedoras alternavam-se com as consultas religiosas.

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    Maria DAruanda e me Conga ficaram conhecidas na cidadecomo curandeiras e mes de santo, vistas com desconfiana pelasautoridades, foram perseguidas como desinquietoras de escra-vos.1

    Em servios funerrios, os negros velhos enterravam os mortos ento-ando o seguinte cntico:

    Si bocca que tanto faloSi bocca que tanto zi comeo e zi bebeo

    Si cropo que tanto trabaio

    Si perna que tanto ando

    Si p que tanto zi pizou.2

    Eduardo dos Santos, em seu livro sobre a religio dos quiocos (popu-lao do nordeste de Angola), fornece dados para a interpretao dos signi-ficados destes cnticos.

    O indivduo morre e o que dele fica na lembrana dos vivos o seuandar, o seu falar, o seu danar, o seu comer. E aqui est o funda-mento da hamba e de sua atuao, e da crena de que os espri-tos so tanto mais activo quanto mais recente a morte.3

    1 Dias, Maria Odila Leite. Anna Gertrudes de Jesus. Mulher da terra (Quotidiano e poderem So Paulo no sculo XIX), m/s So Paulo, 1982. p. 118. Tese (Livre-Docncia) Departamento de Histria da Faculdade de Filosofia Letras e Cincias Humanas, Uni-versidade de So Paulo.

    2 Martins, Antonio Egydio. So Paulo antigo (1554-1910). E. D. Official, 2 v. 1912. p.84-5.

    3 Santos, Eduardo dos. Religio dos Ouiocos. Junta de investigao do Ultramar. Estu-dos, Ensaios, Documentos. Lisboa, 1962. p. 84.

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    A manifestao da vida comer, falar, respirar, sentar, andar designada pelo mku, cujo princpio bsico encontra-se na noo dehamba, fora vital existente como matria, ao ou essncia inerente aosseres vivos e mortos, vegetais e minerais. Esta noo compreende a con-cepo genrica dos bantos de fora vital consoante a definio encontra-da por P. Tempels:4 a fora no um atributo do ser, mas ela o ser. Oser a fora, a energia. A noo de ser fora difere da noo de serda filosofia ocidental medida em que h na filosofia africana a separa-o entre ser e ao, matria e energia, em que da fora a realidadecomum a toda existncia.

    Toda fora pode crescer ou diminuir, torna-se mais fraca ou maisforte nas relaes de independncia estreita, de essncia para essncia.

    Na fora criadora (o ser contingente), o banto v uma ao causalprocedente da prpria natureza da fora criada e influenciando as outrasforas. Nenhuma delas autnoma, mas interdependente, aumentando ousendo aumentada, diminuindo ou sendo diminuda, nesta relao com outrafora, compreendida como ao causal, metafsica que deriva da prprianatureza das criaturas. A vida do homem no se limita a uma s pessoa,mas se estende a tudo que se refere sua influncia vital e a tudo que lhe ontologicamente subordinado: progenitura, a terra, seus bens.

    Na lgica banto, os seres esto divididos em espcies e classes, se-gundo o seu poder ou a sua procedncia vital. A classificao se faz pormeio do princpio de influncias vitais: em primeiro plano. Como fora su-prema, est o homem (vivo ou morto), que pode diretamente enfraquecerou fortalecer um outro homem no seu ser; em seguida, a fora vital humanapode atuar diretamente, na sua prpria essncia, seres-foras inferiores (ani-mais, vegetais ou minerais) em terceiro plano. Como fora de atuao dafora vital encontra-se a maneira indireta que um ser racional (esprito)pode agir sobre um outro ser racional, comunicando a sua influncia vital pormeio de uma fora inferior (animal, vegetal ou mineral).5

    4 Tempels. La Philosophie Bantoue. Paris: Prsece Africana, 1949.5 Santos, Eduardo dos. Op. Cit, p. 124.

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    Portanto, esta concepo da dinmica das foras vitais, que parte dapremissa da matria como energia, estende-se a toda a frica negra, consti-tuindo a estrutura bsica do conhecimento africano, enquanto forma de ela-borao, percepo, conceitualizao da noo de pessoa, da vida natural,das relaes entre o homem e os espritos ou deuses

    A noo de fora vital, concebida como energia, implica em urnacosmoviso dinmica. As foras manifestas da energia contida no mundosocial, csmico e natural, sendo transmissveis e mutveis, conduzem noo de um universo em constante transformao. O ser humano podemodificar a fora especfica que define a sua identidade pelas suas aes eem decorrncia das aes dos outros sobre ele.

    Nessa lgica do pensamento africano, o sentido de toda a ao erelao identificado nas relaes de fora. No h dualismo ou oposioentre o esprito e o corpo, vivos ou mortos, que contraponha a vida do corpoa uma vida do esprito. Na constante intercomunicao dos vivos com seusancestrais, encontra-se a continuidade das ordens biolgicas e social, querelativiza a distino entre indivduo e coletividade.

    A partir dessa estrutura bsica do pensamento africano, na qual anoo de fora vital constitui a essncia deste pensamento ou smbolo cha-ve para a compreenso do ethos do homem africano, podem-se definir asdivindades das culturas africanas corno formas diversas de manifestaodesta tora.

    Tratar-se- mais especificamente do universo mtico banto emborase constate a existncia de elementos sudaneses na cultura banto, dado oconstante processo de aculturao ocorrido no Brasil entre as vrias etniasafricanas como expresso significativa de sistemas de crenas e ritos pre-sentes na vida paulista.

    Em particular, a anlise aqui ser feita com relao aos grupos tni-cos de Angola e Congo, que forneceram os componentes bsicos para aformao, posterior, da macumba e do candombl de Angola.

    Os estudos relativamente raros sobre as culturas bantas no Brasildecorrem do pr