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O Livro da Intranquilidade 1 Rafael Coelho do Nascimento O LIVRO DA INTRANQUILIDADE romance

Rafael Coelho Do Nascimento - O Livro Da Intranquilidade Cap1

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O Livro da Intranquilidade

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Rafael Coelho do Nascimento

O LIVRO DA INTRANQUILIDADE

romance

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Rafael Coelho do Nascimento

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Ficha Técnica

Título: O Livro da Intranquilidade

Autor: Rafael Coelho do Nascimento

Capa: Rafael Coelho do Nascimento

Depósito Legal: 341510/12

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«Cada pessoa tem que escolher a quantidade de verdade que consegue suportar.»

Friedrich Wilhelm Nietzsche

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Prólogo

«Publicamos para não passar a vida a corrigir rascunhos. Quer dizer, a gente publica um livro para livrar-se dele.»

Jorge Luís Borges

Há dois anos, editei o meu primeiro livro, Se a Lua Viesse de Manhã, uma colectânea de poemas e de contos mais ou menos organizada. Menos de um ano depois, em Março de 2011, acabei (vinte dias depois de ter começado) de escrever o presente romance, O Livro da Intranquilidade. Certa noite, enquanto o escrevia, pensei no meu primeiro livro e, quase sem intenção, magiquei uma quadra, que tratei de gravar no meu caderno:

Sinto que sou outro em cada livro Livro passado é de um outro que já fui Só nesta condição posso ser livre Só é desta condição quem evolui

Na verdade, sentia, em relação aos meus escritos anteriores, não só distanciamento, mas mesmo algum repúdio pela ideia de me poderem ser associados. Da quadra, a única coisa sobre a qual mantenho alguma reticência é o verbo evoluir, pois a mudança talvez baste para que sejam tomadas como verdadeiras as premissas

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que a ela conduzem, sem que o juízo de valor seja necessário. Hoje, um ano depois de ter dado por terminado este livro, custa-me lê-lo, sentindo quase o mesmo que na altura senti pelo anterior, por isso mesmo: por já não me pertencer sendo minha a autoria. Há partes cuja imperfeição ainda me perturba, que evito ler sem nunca ter tido coragem de as alterar, porque a tarefa, se começada, seria infinita. Todo o livro foi escrito de seguida e sem alterações posteriores – excepção feita aos erros de cópia e a um ou outro acrescento devido a transformações da história – porque só assim me é possível escrever. Sobre o seu conteúdo, o que tinha a dizer estará lá, algures. Se alguma coisa me surgiu depois de pousada a caneta, veio já tarde, o que é indispensável para que o livro tenha algum dia capa. Não sei que futuro lhe está reservado. Provavelmente, nenhum, que não penso que se reservem futuros, mas talvez o tempo o transforme em algo que não é, que um livro acaba por ser mais o que de si se diz do que o que lá está. Nada mais depende de mim neste romance. A mim só me compete contar a história, que é a parte com menos importância.

R. C. N. 7 de Março de 2012

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Primeira Parte

CORPO INSANO, MENTE INSANA

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«A minha vida é como se me batessem com ela.»

Fernando Pessoa 1.

«A vida resume-se a isto. Somos ninguém, um todo abandalhado, composto por vários ninguéns. O resto? O resto são tretas, invenções que nos tiram as olheiras por uns dias em que a esperança nos toma. Ai, vida, vida… Oito horas para trabalhar, oito horas para dormir, oito horas de tempo de tempo livre para nós. Oito horas de quê?! Para quem?! Para nós?! Duas horas em transportes por dia estão incluídas nisso do tempo livre e para nós?! – Pronunciou livre e nós como se estivessem em itálico – Uma hora para almoçar está incluída no tempo livre e para nós?! – Repetiu a entoação, falando num tom cada vez mais colérico – Chegar a casa, dar banho ao miúdo, tratar do jantar, etc., está tudo incluído nessa merda do tempo livre e para nós? Depois o miúdo quer brincar, depois há sempre coisas para fazer, e quando dou por mim já duas horas foram roubadas às oito para dormir. E foram transferidas para onde? Para

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as horas de tempo livre e para nós? Ah, ah. Agora sim, consegui parar e arranjar uma hora para mim. E para quê? Para pensar que não existem horas para mim! Desde que acordo até que chego ao trabalho – tempo que está incluído nas horas de tempo livre e para nós – não existo, tal como não existo à hora de almoço ou desde que chego a casa até me deitar. Não existo completamente, sempre e a toda a hora, porque não existo a dormir nem a trabalhar. Existo agora porque consegui, sem existir, arranjar uma hora para mim, para assim poder dizer que não existo. Não existo para mim, existo só como parcela de um sistema. E mesmo quando penso que existo para mim, mesmo quando penso que estou a fazer algo de mim, por mim e para mim, continuo a ser a parcela que devolve o que o sistema lhe emprestou. É tão fascinante como deprimente. Somos umas autênticas ferramentas e deixamo-nos enganar por gajos que nos dizem “Temos oito horas por dia de tempo livre e para nós!”. Nasço, cresço e quando dou por mim sou um adolescente com tudo pela frente; tudo menos a fase preparatória: a infância. E durante uns anos, parece estar sempre tudo pela frente. Mas a cada fracção de segundo está um ponto da linha da vida a deixar de estar pela frente, sem darmos por isso. Todos os dias lavamos dentes iguais, todos os dias vendo uma cara igual ao espelho; todos os dias repetimos uma faixa de um disco sem imaginar que o disco se está a desgastar. E é num dia que ninguém sabe precisar, de uma maneira

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que ninguém sabe descrever, que vemos que a nossa cara está diferente, mais velha, assim como o nosso corpo; que os nossos dentes ganharam manchas sem darmos por isso; e é aí que reparamos que afinal já não está tudo pela frente. E é mais tarde, se lá chegarmos, também numa data incerta, que vemos que não é possível dizer “daqui a dez anos…”, ou mesmo “daqui a um…”, porque a morte se tornou uma ameaça diária e o medo ou o desprezo (o pensamento, seja como for) algo em que a nossa mente pega todos os dias. E essa perspectiva da morte iminente é como os dentes que amarelaram ou a cara que se tornou velha: chegou sem se saber quando ou como, porque não chegou, foi chegando. É assim a morte: não chega, vai chegando; é assim a vida: não acaba, vai acabando. Vai acabando desde que começa. E é assim: tudo se limita a isto. Portanto, merda para isto tudo, nada vale nada. Ou, melhor: tudo vale nada. Tanto faz, puta que pariu.»

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2. Acabado o discurso mais ou menos filosófico e embriagado, José ingeriu o fio de whisky que restava no copo e levantou-se da cadeira, abandonando o pequeno quintal das traseiras da sua casa, onde ficaram a mulher, o copo, as teias de aranha e a supervisão da lua cheia. Eram habituais as discussões políticas entre José e a mulher, Maria Amélia (cujo segundo nome evidencio por não ser o nome próprio suficientemente distintivo), em que participavam em igual proporção, falando um o tempo todo, ouvindo o outro todo o tempo, mas não era habitual um discurso desta natureza, um discurso em que a injustiça existencial se misturava com a social numa massa pestilenta e, para a mulher, difícil de entender. Sim, embora estivesse estritamente ligado a questões políticas e sociais, era um discurso particularmente existencial, não se debruçando, como era habitual, sobre questões pragmáticas ligadas à organização do mundo, ao modelo que vigora numa cidade ou num país, na polis, ou seja, sobre questões práticas ligadas àquela palavra que parece já não estar ligada à sua etimologia: a política. Se fosse um discurso habitual, numa situação normal de uma usual noite de sábado, falar-se-ia de relações de trabalho, do valor da troca, da possibilidade de o mundo se organizar de maneira diferente, das injustiças sociais, etc., mas esta noite não foi usual (no

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seu conteúdo), nem a situação normal (na sua essência), pois o discurso, o conteúdo e a essência da noite e da situação, não foram habituais. E isso desencadeara uma reacção na parte mais importante de qualquer discurso: o alocutário, Maria Amélia, que num qualquer outro sábado teria abandonado o quintal para ir atrás do marido em passo rápido, passando-lhe à frente com o objectivo de chegar primeiro ao quarto para lhe abrir a cama. Hoje ficara no quintal, absorvendo a informação depois do marido se ter calado, com um olhar estranho de tão sereno e assustado que era simultaneamente. A situação, de estranha, causara reacções estranhas, que causaram, por sua vez, outras reacções estranhas, num choque em cadeia: a esposa não se ter levantado e não ter chegado primeiro à cama que José, para assim lha abrir, fez com que este voltasse ao quintal. - Então, hoje vais ficar aí a dormir? Maria Amélia deu um pequeno pulo durante o qual o foco dos olhos se transferiu do interior para o exterior e disse, como se pedisse desculpas, enquanto tentava agarrar objectos inexistentes, até agarrar o copo que ficara em cima da pequena mesa: - Não, não. Vou já, vou já. Estava só a pensar no que disseste. José pôs a cabeça na parte de dentro da linha da porta de casa, fez as pálpebras vibrarem, apontou os olhos para cima, arrebitou as sobrancelhas, num gesto de

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desespero, de saturação, e murmurou em palavras arrastadas para que a mulher não ouvisse: - Como se tu pensasses. Maria Amélia vinha atrás dele e de olhos bem abertos numa cara em que a alienação se deixava exprimir, perguntou: - O quê? - Nada, nada – respondeu o homem com naturalidade. – Viste os meus chinelos?

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3. Maria Amélia tinha quarenta e seis anos. O seu marido “vira” mais duas voltas no movimento de translação da Terra. Tinha portanto quarenta e oito. Do matrimónio havia apenas um fruto, tardio: Leandro, de nove anos, personagem do momento mais estranho entre todas as estranhezas do episódio anteriormente narrado, como se verá. Este, o filho, deitava-se todos os dias às dez e meia da noite, aproximadamente, após o que ficava estendido da cama a ler bandas desenhadas do Lucky Luke durante uma ou meia hora. Depois ficava sempre a pensar se seria realmente possível ser-se mais rápido que a própria sombra, fazia experiências, imaginava, mas nunca chegava a nenhuma conclusão nem perguntava a ninguém por querer ele próprio resolver o enigma. E, desta forma, acabava por nunca adormecer antes da meia-noite. Mas nesta noite foi visitado pela insónia, o que acontecia de vez em quando, mantendo-o acordado durante muito tempo. Às duas da manhã ainda os seus olhos se encontravam completamente despertos, o que naturalmente o chateou e o fez agir como qualquer criança da sua idade. Tirou o pesado cobertor de cima de si, pôs as pernas magras de fora da cama, saltou agilmente para o chão de madeira e caminhou em direcção à porta do quintal, indo primeiro ao frigorífico (a cozinha era a divisão que dava acesso ao quintal)

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buscar leite fresco, que pôs num copo e bebeu de seguida. Foi quando acabou de o beber, deixando o vidro do copo esbranquiçado e soltando um expiro com som, um “Aahh” afónico – não daqueles de satisfação, mas daqueles que saem naturalmente, como se fossem necessários no fim de cada gole gigante – que começou a ouvir a voz do pai, o que lhe prendeu os pés ao chão numa curiosidade natural e infantil. Parou de piscar os olhos, que se esbugalharam; imobilizou dentro das suas possibilidades qualquer parte do corpo e os seus ouvidos deixaram entrar a brisa fresca que vinha da porta do quintal, que se encontrava entreaberta, com a qual vinham as palavras vociferadas pelo pai. Depois o miúdo quer brincar… e quando dou por mim já duas horas foram roubadas às oito para dormir. E foram transferidas para onde? Para as horas de tempo livre e para nós? Ah, ah. Agora sim, consegui parar e arranjar uma hora para mim. E para quê? Para pensar que não existem horas para mim! Foi a primeira parte que ouviu do discurso, a primeira parte com princípio que apanhou e que o fez desde logo pensar. Ficou estranho: os seus olhos semicerraram-se primeiro, depois abriram-se como nunca, ao mesmo tempo que a sua boca. A sua cabeça aproximou-se lentamente do seu ombro esquerdo, o que estava do lado da porta, para ouvir melhor. Ouvia igualmente, mas pensava na mesma ouvir melhor. não existo

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O seu coração, pequeno e em vias de desenvolvimento, acelerou, duplicando a velocidade dos batimentos ou o seu número no mesmo espaço de tempo. Tudo lhe parecia demasiado estranho. O pai primeiro referira-se a ele como alguém que lhe rouba horas, algo que o ultrapassava embora não lhe parecesse bom devido à ideia naturalmente negativa que criara em volta da palavra “roubar” e ao tom em que as palavras percorriam o espaço. Mas a cada fracção de tempo está um ponto da linha da vida a deixar de estar pela frente, sem darmos por isso. Foi ouvindo, apanhando palavras soltas, percebendo tudo muito vagamente, criando imagens demasiado abstractas para serem comentadas mas suficientemente significantes para serem sentidas. E o que lhe viria a fazer mais confusão foi dito. É assim a morte: não chega, vai chegando; é assim a vida: não acaba, vai acabando. Vai acabando desde que começa. E é assim: tudo se limita a isto. Portanto, merda para isto tudo, nada vale nada. Ou, melhor: tudo vale nada. Tanto faz, puta que pariu. A esta altura, tudo o que pairara sobre si se aprofundou e agravou. Seus olhos cansaram-se da posição demasiadamente aberta e começaram a piscar, de pálpebras vibrantes; os seus membros inquietaram-se e seu queixo subiu, fazendo com que os lábios de encostassem num abraço sem braços, sofrendo juntos em tremeliques. Pousou o copo muito rapidamente por ter ouvido barulhos que indicavam a volta dos pais para

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casa e correu cuidadosamente para o quarto, onde a fiel cama o esperava, quieta e aberta para receber o seu corpo.

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4. Recebeu o seu corpo e, com ele, que se deixara cair todo aberto com cada membro distanciado o máximo possível do seu gémeo, as suas lágrimas que caiam sem que Leandro soubesse bem porquê. Como já disse, todas aquelas palavras chegavam-lhe como besouros, de que fugimos mesmo sem saber o que nos podem fazer, mesmo sem fazermos ideia do porquê da nossa fuga. Fugimos instintivamente do estranho, tememos naturalmente o desconhecido. A ele aterrorizaram-no aquelas palavras, muitas conhecidas mas cuja ligação morfológica chegava como um dilúvio, tirando os contornos, escondendo a cara, tornando-as tão assustadoras como o tom que as envolvia, fazendo vibrar as imagens já tremidas pela tempestade que eram as frases. A sua cabeça boiava entre ondas de estranheza e confusão. Rilhava bolas de pasmo, agitação e pavor que não conseguia engolir. As suas pernas já não estavam afastadas, estavam juntinhas, tremendo, e suas mãos tapavam a boca, com ranho e baba e tudo o que fossem sucos sofregamente expulsos em pranto.

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5. Primeiramente, o excerto retido que mais atenção mereceu foi o que parecia acusá-lo de furto, tratando as unidades temporais como propriedade privada: Depois o miúdo quer brincar… e quando dou por mim já duas horas foram roubadas às oito para dormir. E foram transferidas para onde? Para as horas de tempo livre e para nós? Ah, ah. Agora sim, consegui parar e arranjar uma hora para mim. E para quê? Para pensar que não existem horas para mim! Merecera mais atenção e lágrimas, parecendo-lhe que o pai o tratava como a um estranho que chega a casa de uma pessoa de pistola empunhada para lhe roubar umas horas. Estava aterrorizado, repito. Depois os miúdos querem brincar… e quando dou por mim já duas horas foram roubadas às oito para dormir. «Eu, por querer brincar, roubo horas “para dormir” ao meu pai?», perguntava-se, reconstruindo as frases para as entender melhor. Melhor e de melhor maneira, de uma maneira que o favorecesse. Tentava tirar gravidade às coisas ditas, de uma forma inconsciente. Repentinamente, veio-lhe outro excerto à cabeça, fazendo-o encolher-se todo e soluçar loucamente: É assim a morte: não chega, vai chegando; é assim a vida: não acaba, vai acabando. Vai acabando desde que começa. E é assim: tudo se limita a isto. Portanto, merda para isto tudo, nada vale nada. Ou, melhor: tudo vale nada. Tanto faz, puta que pariu.

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Daqui percebeu pouco, mas reteve o essencial: a vida é estranha e não presta. E foi isso que deu cabo de si: chorou durante muito tempo, não sei quanto, mas muito, mesmo, até quase ficar com as peles engelhadas de desidratação. Se a vida vai acabando desde que começa, se tudo se limita a isto, se merda para isto tudo, se nada vale nada ou tudo vale nada, se tanto faz, se puta que pariu, porque teria o pai feito com que ele nascesse? Sofreu com esta questão que ficaria a pairar sobre si por tempo indeterminado como uma aura diabólica. Pensou sentindo todo o sofrimento que é possível sentir: “Se tudo é mau, se nada presta, ninguém cá põe crianças gostando delas. O meu pai fez-me só para não gostar de mim.” E continuou a borbulhar na sua cabeça a fala: tudo se limita a isto; tudo se limita a isto; tudo se limita a isto…

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6. Joana tinha um vício que a distraia: escrever sem deixar escrito. Todos já escrevemos pensamentos, todos os que aprendemos a escrever. Todos já tivemos uma espécie de diário, nem que tenha durado apenas um dia. Joana escrevia com o dedo sobre a perna, imaginando as letras invisíveis a formarem-se. Os seus textos eram sentidos e comoventes, mas ninguém nunca os pôde vislumbrar a não ser os privilegiados leitores deste livro, pois nenhuma letra chegou a existir senão na sua mente. Só existia o ponto de contacto entre o dedo e a perna. Ao andar, a linha que ficava para trás era uma linha que não ficava para trás a não ser na imaginação de Joana, que não existia a não ser para ela. Mas o que escrevia eram desabafos como os de qualquer diário, com a particularidade de nunca poderem ser revistos pela autora ou vistos por terceiros. Porquê? Porque é que ele me bate? Porque é que ele me bate tanto? Devo ser terrivelmente má para merecer isto. As palavras sem rasto tinham a capacidade possível de descrição perante o aflição imposta pelas emoções que a forçavam a esquecer a enumeração dos actos, lembrando-se apenas de sons e visões contemporâneas do momento de terror, seguidas do nojo e, posteriormente, de uma sensação de vazio, de absurdo, em que a nada se podia agarrar se não a uma resiliência, a uma capacidade brutal de adaptação, de

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focagem nos momentos em que nada acontecia, em que estudo estava temporariamente calmo e tranquilo. Joana pensava, escrevia sem deixar escrito, matutava, passava o dedo pela perna, jogava as cartas com a consciência, sempre na procura de respostas para a barbaridade do pai, que nunca encontrava por não existirem. Pelo menos respostas concretas, concisas e definitivas. Ainda assim, as suas cogitações descambavam sempre para uma atenção demasiada e natural a si própria, odiando-se, sentindo um profundo e cáustico nojo por si, culpando-se pela humilhação que a sua pele transpirava. Desconhecia ser apenas uma vítima do destino, inocente no seu nascimento, sem culpas na sua ascendência. Via-se obrigada a reflectir todos os dias sobre o mesmo, percorrendo todos os dias uma estrada em que todos os dias encontrava a falta de um fim que pudesse agarrar. Pensava diariamente e diariamente imaginava as suas pernas ficarem negras de uma tinta ficcional saída do seu dedo. Episódios que não sucederam uma vez, nem duas, nem três. Episódios que não cabem em números nem em imaginários, de infinitamente grandes e dolorosos que são.

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7. A voz da sua mente, que ditava o que escrevia sem deixar escrito, era uma voz sem timbre. A voz dos seus pensamentos, a sua voz imaginada, era o mais inocente e silenciosa possível, como se tivesse medo que o pai ouvisse até os murmúrios mais profundos e longínquos do seu génio. Ouvidas ou não, as suas reflexões foram interrompidas, da forma pouco simpática, por cinco dedos que lhe traçaram a face, num gesto acompanhado pelo grito de uma voz que se opunha à do seu cérebro, pois esta era alta, grave e movida pela violência animal no seu auge: - A tua mãe já não te chamou para jantar?! Os olhos funestos do pai faziam lembrar os de um boi que enfrenta o encarnado da capa de um toureiro, com a diferença marcante entre as posições ocupadas por cada um deles no que diz respeito ao que humilha e ao que é humilhado.

- Desculpa, pai, ia agora mesmo… - Cala a boca e mexe-te! Joana fazia sempre os possíveis e os impossíveis

por engolir as lágrimas com os olhos, que andavam já à beira de rebentar. Tinha consciência de que quando chorava era pior. Mas nem sempre tinha força, ou não a tinha em quantidade suficiente, às vezes.

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O pai fez-se ao caminho, dirigindo-se à porta do quarto maldito. Deu três ou quatro passos antes de ouvir um soluço desejoso há tanto tempo de liberdade. Soluço que abriu a porta da goela, soltando outros como ele, que vieram às dezenas, direccionando-se a ouvidos que despertaram no seu dono uma raiva crescente, directamente proporcional à quantidade de soluços e lágrimas da filha.

Tudo parou nele antes de dar meia volta e se dirigir ao que fora o ponto de partida. Ao aproximar-se da filha, o ritmo do seu coração aumentava, como o do respirar. As calças ficaram-lhe largas. Não por repentino emagrecimento, mas por repentina ausência de cinto, que para a sua mão foi transferido. As duas pontas tocavam-se, coladas uma à outra e à palma da mão direita, que, enquanto a esquerda agarrava em compridos cabelos negros de criança, se ergueu.

Joana poderia ter proferido gritos de mover montanhas, poderia ter cantado ópera ou grunhido; o pai nada ouvia, nada ouviria, pois nada poderia ouvir. A sua cabeça, na sua loucura, avaliava Joana como sendo uma criança portadora de malignidade, que merecia sofrer no corpo o preço da sua malvadez. Era uma bruxa sacrílega, uma herege feiticeira. Não o sabia, mas nem por isso deixava de fugir da cruz.

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8. As pegadas invisíveis que o pai deixava pelo

caminho eram pisadas por Joana, que caminhava como se se mantivesse no mesmo sítio, numa passadeira rolante imaginária, enquanto a chuva, incansável e sem vontade própria ao mesmo tempo, batia violentamente na janela do quarto, que, ostentando uma melancolia natural, dividia dois mundos cinzentos, dois climas com o peso da existência, onde pessoas vizinhas se desconheciam e desprezavam.

Lá em casa a patroa era a mãe, e a mãe esperava-os, altiva como uma estátua de pedra, à mesa, equilibrando as vicissitudes humilhantes da sua arrogância: o corpo obeso e torto. Metade das banhas ficava desamparada, pendurada pelos lados da cadeira. Uma impaciência prepotente transparecia na sua cara de cisma absoluta, espalhando pelas suas pernas e braços e respectivas pontas tremeliques irritativos e irritantes.

Sem uma palavra dita ou ouvida, Joana sentou-se. Parecia calma: o susto óbvio já era atenuado pelo hábito e tinha a certeza de que nesse dia nada mais aconteceria a não ser que se recusasse a lavar a loiça ou algo do género.

A mãe olhava ameaçadoramente para ela, dando a impressão de estar à espera de sabe-se lá o quê; o pai olhava estupidamente para a televisão sem reter uma palavra do que era dito no noticiário e Joana olhava para a batata frita que acabara de trincar, pensando ver toda a

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vida de um indivíduo naquele pedaço amarelo que fora semente como zigoto, rebento como feto e batata de pele feita como homem de barba, vendo hoje o seu fatal destino – que, no caso da batata, não era triste nem feliz, era o que era: a morte por trituração. Via isto em quase qualquer situação em que fossem notórios o início e o fim, o que ao princípio lhe dava vontade de chorar, tendo isto passado não só pela naturalidade como começou a encarar tais sensações mas também pelo hábito de ter que se reter quando se encontrava acompanhada, pois a companhia era sempre hostil e fechada para consigo.

Imaginou o resto do percurso daquele pequeno e anónimo tubérculo, que entre mucos e sucos perderia qualidades, roubadas para bem dela, assassina Joana, até se transformarem defeitos – ou excessos – em excremento. E assim se perderia uma batata tão única em relação às outras como qualquer Ser Humano. Como pensamento derradeiro, olhou para a batata e disse em silêncio: “Tenho nove anos e é a última vez que te vejo.”

Meteu-a à boca, triturou-a pacifica e lentamente com os molares novos e engoliu-a. Em algumas horas tudo o que imaginara se daria por concluído.

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9. Depois daquela noite, Leandro passou a ver o pai

com outra cara: via-o com outra cara no sentido “com outros olhos” e no sentido conotativo, parecendo-lhe mesmo que o pai tinha outra cara, ou a mesma mas mudada, como quando vemos uma pessoa conhecida, a passamos a conhecer e nos recordamos de como a víamos quando não a conhecíamos. O mesmo acontece com ruas, etc. É diferente quando conhecemos o que não está à vista.

Com Leandro tratava-se de um retrocesso: deixara de ver a cara do pai como de alguém que conhece. Tinha claramente outros olhos, outro nariz, outra boca, outros dentes, outros maxilares, outro cabelo. Tudo ganhara singularidade e perdera a sua desimportância necessária à apreciação do conjunto enquanto conjunto. Já não parecia seu pai, já não o considerava como tal, ou não conseguia já considerá-lo como tal.

E com os novos olhos com que olhava o pai, chorava. Chorava porque o pai o odiava sem que tivesse culpa de nada, chorava porque todos os dias mergulhava numa infinitude de possibilidades do que se passaria e quase todas as que imaginava eram terríveis e obscuras, aparecendo a mãe em todas as mais verosímeis (aquelas em que se esforçava para não acreditar) como cúmplice portadora de um ódio tão grande ou maior como o que o pai lhe sentia.

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Estava sozinho no mundo, fechado numa casa com os seus piores inimigos: os seus progenitores (porque o teriam tido?!), num mundo ingrato que criara e em que, sem querer crer, acreditava religiosamente.

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10. Leandro descobriu que tinha nascido para vítima

de ódio e nada mais, ao mesmo tempo que descobriu – e esta sua verdade é realmente verdadeira – que o tempo passa e que não tardaria nada ficaria do tamanho do pai, ou – gritava de medo com a cara toda arreganhada – para que fosse morto pelo mesmo homem que o trouxera ao mundo. Poderia ser tão cruel a vida?

Os dedos começaram a doer-lhe. Os dedos, depois os braços, as pernas, o peito em que estranhas sensações o punham em estado de alerta.

Desde o dia em que cometera o improrrogável erro de ir beber leite que a sua vida era um verdadeiro vendaval de incertezas. As dúvidas, as interrogações e as respostas sempre brutais, dilaceravam imaterialmente cada uma das suas veias, cada um dos seus neurónios, tornando o seu cérebro um génio criador de fantasias hostis que o faziam arrepender-se do simples e tão desnecessário de ser pensado acto irreversível de beber um copo de leite. Mas compreendia que na realidade não havia nada de que se pudesse arrepender. Não existe culpa se não existir consciência. Havia mudado toda a sua vida, na sua cabeça. Uma vida que, se não tivesse tido azar, poderia ter sido tão calma, tão pacífica, talvez feliz.

Dez anos de vida em que as últimas diabólicas semanas haviam sido passadas numa tortura constante, sem um toque de violência física. Agora, a isto tudo, e

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incluindo-se em si, havia a adição de dores nos braços, nas pernas, nos dedos, no peito, no pescoço, na alma. O coração tremia-lhe em palpitações que estranhava tremendo, os ouvidos fechavam-se de vez em quando, vezes em que os sons eram mal ouvidos como se submerso se encontrasse, e encontrava-se, por vezes, imaginando-se a descer lenta mas vertiginosamente um poço em cujas paredes lia, enquanto ia ficando sem oxigénio, as palavras do pai.

E descia. Descia e envelhecia sem nunca chegar a ver o fundo por o fundo ser incerto e frívolo, confundindo-se com o meio em que se tornava abstracto. O fundo era a morte que temia enquanto o peito lhe ardia por fora e a bomba sanguínea vacilava, com saúde, lá dentro. Recordava este pesadelo nocturno em vis pensamentos diurnos e diários.

A maior crueldade desse poço, ou a maior regalia, é a ignorância de quem bate no fundo. Quem morre nunca o sabe. A morte nunca dói, a não ser aos que ficam vivos. Toda a dor que existe, existe enquanto se existe.

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11. Leandro tinha agora dezasseis anos, Joana quinze.

Tudo isto eram recordações do passado tenebroso que cada um guardava despropositadamente na memória. Relembravam-no enquanto pensavam no futuro. Pensar no futuro é quase o contrário de pensar no passado, formar imagens mentais olhando para o lado oposto da mente. O tempo é sem dúvida a coisa – se é que lhe posso chamar coisa – mais insuportável e complexa aos olhos do Homem. Porém, se nos limitarmos a dois tempos, deixando de lado o presente por não termos sequer a certeza da veracidade da sua existência – a não ser a simbólica – o tempo é fácil de conceituar: o passado é certo, existiu, embora a sua narrativa seja sempre uma construção perspectivada; o futuro é a incerteza, só. Pensar no passado é recordar, pensar no futuro é imaginar. É como falar verdade e mentir. Na primeira recorda-se, na segunda imagina-se. E um dos grandes erros do Homem é olhar o passado esquecendo que foi futuro.

Pensavam no futuro de formas diferentes, de acordo com os passados respectivos, com a identidade que haviam construído, lutando cada um contra si próprio, fazendo força (por vezes materializada) por acreditar nas possibilidades mais optimistas e vendo todas as outras como mais plausíveis e prováveis. Sonhavam com viagens extravagantes vistos em

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O Livro da Intranquilidade

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desenhos animados, cujo destino era um “lugar” inexistente, uma realidade por construir: o futuro. Queriam descobrir o que haviam de construir antes de estar construído, antes de ser real, tal como queriam voar alegremente, fugindo da respectiva casa a que cada um associava – embora essa ideia se fosse esvaindo paulatinamente – ao horror. A essência dos dois desejos é a mesma: a ânsia pelo impossível. Há quem fale com deus.

O Sol lá estava no alto. No alto, claro, da nossa perspectiva. Da dele, nós nem em baixo estamos, mas sim a pairar rodando melancolicamente em seu torno. Dava aos seres terrestres o prazer e a dor do seu calor e da sua luz. Aos estudantes, a possibilidade de gozá-los nas férias anteriores ao início do ano lectivo. Era nesse momento que se encontravam Joana e Leandro, pensando e recordando, em sítios diferentes e sem se conhecerem, numa altura de mudança, em todas as mudanças que viveriam por dentro. Entrariam para o décimo ano. Leandro não tinha objectivos delineados. Joana, porém, tinha bem deliniada na cabeça a ambição de ser veterinária. As palavras do “outro” ecoavam na cabeça de Joana por razões históricas óbvias, tornando-se o seu lema de vida: “Quanto mais conheço os Homens, mais gosto dos animais.”