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31 RAÍZES DO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO FERNANDO PEDRÃO 1994

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RAÍZES DO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO FERNANDO PEDRÃO 1994

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Sumário Introdução I Parte: Aspectos Essenciais do Capitalismo 1. As características da sociedade econômica 1.1. Privilégios e interesses nas sociedades econômicas; 1.2. O controle de capital e da formação de capital 1.3. O controle do consumo; 1.4. O controle do trabalho; 1.5. O controle de recursos naturais; 1.6. Experiências e valores. 2. Aspectos de método e interpretação 2.1. Objeto e método de estudo; 2.2. Interesse, privilégio, tradição; 2.3. O componente histórico e o psicológico. 3. Os modos operacionais do capitalismo 3.1. Práticas e instituições da produção;3.2.A mercantilização e os usos do tempo;3.3. O tratamento do risco; 3.4. A especulação; 3.5. A diversificação do consumo; 3.6. A universalização do crédito. II Parte: A Formação Antiga 4. Os modos antigos do capitalismo 4.1. Profundidade histórica e atualidade; 3.2. A perspectiva secular da interpretação; 3.3. Uma possível periodização; 4.4. A antiguidade mercantil; 3.5. Os grandes movimentos da Idade Média. 5. Unificação e expansão do mercado mundial 5.1. A expansão do horizonte mercantil; 5.2. O escravismo e as demais formas de servidão;5.3. Os efeitos da estruturação da produção. 6. A transição ao capitalismo moderno 6.1. Os significados de modernidade;6.2. Modernidade, racionalidade e capitalismo; 6.3.Controle social e dominação; 6.4. As contradições da transição.

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7. O colonialismo escravista e as economias de fronteira 7.1. A composição do sistema periférioco; 7.2. O sistema de produção transformador das colonias; 7.3. A formação de regiões e de Estados nacionais; 7.4. O papel das economias de fronteira. III Parte: A Formação do Quadro Atual 8. A formação da sociedade econômica moderna 8.1. A identificação dos interesses econômicos nos tempos modernos; 8.2. As transformações econômicas e políticas do século XVIII. 9. Os agentes econômicos e as classes sociais 9.1. Os novos protagonistas: as empresas, os trabalhadores e o Estado; 9.2. A formação das classes sociais e a produção; 9.3. A formação social extra classes. 10. A ascensão do capital industrial no século XIX. 10.1. A articulação industrial da produção; 10.2. O modo fabril e o inter-setorial de produção; 10.3. Expansionismo e concentração de capital; 10.4. A divisão internacional do trabalho; 10.5. A divisão inter-regional do trabalho. 11. As transformações no século XX 11.1. O capital financeiro e o controle dos mercados; 11.2. Transformações políticas, revoluções e autoritarismo; 11.3. Os custos da tecnificação e da qualificação; 11.4. A concentração bancária e a centralização financeira; 11.5. Informações, comunicação e redução dos tempos das decisões. 12. O capitalismo na periferia latino-americana. 12.1. Os resultados da formação colonial e mercantil; 12.2. O período de 1870 a 1914; 12.2. Da primeira guerra mundial à crise de 1930;12.3. Da crise de 1930 à segunda guerra mundial;12.4. O panorama após a segunda guerra mundial; 12.5.Internacionalização e expansão das fronteiras internas. 13. Os modos colaterais de produção 13.1. O panorama da produção subordinada;13.2. A produção primitiva; 13.3. A produção camponesa; 13.4. A informalidade. 14. As estruturações sociais do trabalho

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14.1. Concentração e associação de trabalhadores; 14.2. Classe, estamento e organização local; 14.3. Mecanismos de proteção e de discriminação; 14.4. Horizontes de inserção na produção e no consumo; 14.5. Mobilidade e exclusão. 15. Os novos dilemas 15.1. Aspectos superficiais e profundos da crise; 15.2. Os novos perfís dos interesses privados; 15.3. A esfera pública; 15.4. As pressões sociais. Bibliografia selecionada

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INTRODUÇÃO Para entender a organização e as transformações atuais da sociedade econômica, torna-se necessário enfrentar complexos problemas de método, bem como rever a compreensão do objeto de estudo. Principalmente, é preciso distinguir o que é significativo em cada ponto-momento; e aquilo cuja importância transcende aquele ponto-momento; e influi nas progressões dos acontecimentos. Assim, é necessário trabalhar com os acontecimentos que foram, em algum momento, relevantes para a transformação econômica, fossem grandes eventos - como batalhas e tratados - que sempre ocuparam os estudiosos, ou fossem mudanças de hábito, ou ainda, modificações no horizonte de conhecimento de cada sociedade e de grupos sociais. A análise histórica da produção tem, como principal função, a de expor os deslocamentos e ajustes entre a estruturação social e a estruturação técnica da economia; e deste modo, mostrar o significado desses processos nas condições de vida de grupos e de pessoas. A formação histórica da produção é o trajeto de um conjunto de experiências desigualmente comunicadas umas com as outras, que se tornam progressivamente mais conhecidas ao longo do tempo - embora com perdas consideráveis, de experiências que se perdem, ou que não chegam a ser conhecidas. O conhecimento da história, portanto, a capacidade de interpretala, decorre dessa capacidade de apreender o acontecido; e transforma-lo em diferenciação, em relação com todos aqueles que não têm os meios para interpretar. Assim, o conhecimento da história é diferenciador. E as interpretações históricas revelam pontos de vista dos que estudam e dos que são estudados; e põem em contacto os diversos pontos de vista e as experiências em que eles se apoiam, avaliando as conseqüências do desenvolvimento dos pontos de vista na modulação da realidade social. Do registro da pluralidade de pontos de vista dependem as possibilidades de divergência e de contestação dos pontos de vista predominantes. Esta, a principal razão para apoiar a análise crítica da gênese do sistema de produção. Mas, para chegar a ela, há um problema, relativo ao aumento das informações necessárias para alcançar uma compreensão relevante do universo econômico atual, assim como, para garantir comparações adequadas com épocas anteriores, em que o sistema de produção era menor; e era muito menor o conhecimento entre os integrantes dos diferentes sistemas nacionais ou regionais de produção.

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Paralelamente, há outro problema, relativo à crescente dificuldade de contar com informações comparáveis sobre os diversos aspectos do processo econômico, na atualidade ou para comparações entre fenômenos de diversas épocas. Assim, é preciso trabalhar, assumidamente, com um saber desigual; e manejar a questão da cientificidade da análise do mesmo modo como se maneja a relação atual entre o conhecimento demonstrado e o não demonstrável. A incorporação de conhecimento implica, sempre, em manejar mais fatos que os já arquivados, e problemas desiguais de demonstração. Qualquer pretensão adicional, de garantir um mesmo nível de rigor de toda a análise, significa uma distorção deliberada da realidade. Nesta tentativa de interpretação histórica, inclui-se uma primeira parte com os principais traços da produção de tipo capitalista da antiguidade até a Idade Média; e reúnem-se alguns elementos essenciais da transição entre a Idade Média e os Tempos Modernos. A segunda parte abrange a ascensão do capitalismo industrial até o período de rupturas do funcionamento da economia mundial entre as duas guerras mundiais. A terceira parte concentra-se no funcionamento da produção capitalista mundial a partir da década de 1950, focalizando na formação da empresa e na do Estado; e entre essas transformações e as mudanças no quadro da tecnologia e do financiamento.

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I Parte: ASPECTOS ESSENCIAIS DO CAPITALISMO

1. As Características da Sociedade Econômica 1.1. Privilégios e interesses nas sociedades econômicas A sociedade econômica contemporânea funciona sobre combinações de interesses atuais e privilégios adquiridos, que são o resultado de trajetórias de experiências, onde se combinam o controle de capital ativo e de patrimônio com o controle legal e político da produção. A expressão sociedade econômica designa o modo de estruturação das sociedades, determinado pela perspectiva da atividade econômica, entendendo-se, entretanto, que a organização da economia é inseparável da cultural e da política; e que a própria atividade econômica está penetrada de institucionalidade, que se revela no modo como se conjugam as práticas no cotidiano, com as instituições em cujo âmbito elas se realizam. Assim, de fato, a expressão sociedade econômica é genérica, e abrange as diversas sociedades históricas concretas, desde as mais simples até as mais complexas. Essas sociedades complexas têm elementos de controle igualmente complexos, que resultam do modo como nelas se realizou a composição dos movimentos de transformação com os de estabilização, respectivamente, no meio urbano e no rural; e de como essas composições permitiram que as formas pretéritas de estruturação - tais como aquelas claramente tribais, e aquelas outras mais ou menos de castas - se desdobrassem nos modos industriais urbanos. Isto, obviamente, varia muito, entre as experiências dos países que conduziram a modernização e que realizaram a colonização; e os países que emergiram, depois de avançada a industrialização. O fato de que o primeiro desses grupos de países dirigiu a literatura sobre o tema, e produziu a maior parte dela, fez com que as interpretações ficassem ancoradas em suas experiências, de tal modo que elas se tornassem uma referência histórica dominante e, em alguns aspectos, exclusiva. O desenvolvimento da reflexão das ciências sociais nos países mais recentemente modernizados, bem como uma compreensão mais clara da pluralidade de situações e percepções em que consiste o universo dos países mais velhos, desloca, de volta, essa compreensão da representatividade histórica das teorias sociais.

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Ao longo do século XX, a teoria social teve que conviver com uma crescente pluralidade de experiências, que obriga a ampliar o horizonte espaço-temporal de referências históricas, ao tempo em que, relativizar as observações que se acumularam nos dois séculos anteriores. A ampliação do horizonte de referências históricas significa a incorporação de observações próprias de pontos de vista diferentes daqueles legitimados pela ciência oficial, e em todo caso, o reconhecimento de processos sociais essencialmente divergentes daqueles que sustentaram a formação de teoria. Nesse sentido, é fundamental substituir a concepção de que a expansão do capitalismo corresponde à superação de sociedades guiadas por critérios de privilégio, por outras sociedades conduzidas por critérios de interesse; pelo entendimento de que a acumulação (1) é realizada mediante uma progressão de deslocamentos na combinação de privilégios e interesses. Por extensão, reconhecer que modernização não significa superação de privilégios, mas mudança de forma e de modo de manifestação dos privilégios. Os privilégios assumem novas formas e os interesses são canalizados, para que se aproveitem os sistemas de privilégios. Diminuem aqueles explicitamente atribuídos a posições de casta e família; mas aumentam os privilégios implícitos, bem como os atribuídos aos detentores de capital, ou aos que detêm a representação de capital. É o que se observa na estrutura da propriedade do capital nas grandes empresas de hoje, em que há um elevado componente de reprodução dinástica dos interesses; e em muitas outras, em que os privilégios continuam garantidos; e onde garantem a lucratividade, tal como ocorreu na formação do capital rural e do mercantil, auspiciada pelas monarquias do século XVI e XVII (2). Essa revisão da relação entre interesse e privilégio se faz, especialmente, a partir de dados da atualidade, observando, como se conjugam movimentos de transformação da economia e de perpetuação de formas estabelecidas. A leitura histórica da atualidade mostra a permanência de diferenças de posição e de velocidade, na transição das etapas da industrialização na produção de bens e na de serviços. Assim, a compreensão da atualidade está ligada ao conhecimento da formação do sistema de produção, quando se tornam visíveis os significados desses deslocamentos de posição e de forma dos privilégios e dos interesses. O estudo das sociedades econômicas latino-americanas, desenvolvido em seqüência capaz de captar a experiência concomitante dos Estados Unidos, mostra fenômenos jamais conhecidos nas experiências européias, por isto ausentes das teorizações elaboradas naquela parte do mundo. O contraste com as experiências da Rússia e da União Soviética, da India e da China, permite estabelecer algumas comparações entre grandes, médias e pequenas

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sociedades econômicas, bem como estabelecer as peculiaridades de cada uma delas, segundo as condições em que aconteceram suas transformações. O modo como se resolveram os problemas sociais e e econômicos do controle da terra, a relação entre a problemática agrária e a da produção agrícola, as bases internas e externas da industrialização, entram, necessariamente, na constituição dessas novas sociedades econômicas. O controle da produção de matérias primas foi parte essencial do controle da produção de mercadorias, e, por esse meio, da margem de poder representada pelas relações com o exterior. Daí que o controle sobre a base rural se projetou na formação do capital industrial e de seus elementos colaterais de produção. Os interesses têm mudado de eixo ao longo do tempo, obrigando a observar sua relação com a preservação de posições na sociedade econômica pré-industrial e na industrial. Tradicionalmente, a principal fonte da estruturação econômica dos interesses foi o controle direto do capital mercantil e o indireto da terra; enquanto o controle direto da terra tinha uma expressão política mais explícita. Mas o controle do sistema fundiário deu lugar a diversas outras modalidades de controle sobre a produção, no próprio plano econômico e no político, em que os componentes indiretos geralmente superam os diretos. A capacidade de manter e reproduzir interesses revelou-se essencial no controle do processo de acumulação de capital e no de controle da inclusão e exclusão de pessoas e grupos na produção e no consumo, obrigando a levar em conta quantos puderam - e podem - participar efetivamente do sistema de produção. A América Latina tem diversos exemplos de oligarquias rurais cujo poder foi erosionado antes do aparecimento de movimentos de industrialização que criassem novos polos de interesse; e de outras que conseguiram manter posições e se reorganizarem durante a formação da indústria. Assim como há uma dinâmica de poder em cada sistema econômico em seu conjunto, há uma dinâmica localizada de poder, no âmbito do controle da terra, que distingue os que perdem posição dos que utilizam o controle da terra para alcançar participação na indústria, no comércio e nos bancos. Essa diferenciação acentuou-se ao longo das transformações da indústria, interagindo com ela, tornando-se um dos fios condutores que explicam as interrelações entre os movimentos de estabilidade e de mudança no plano econômico e no político; que, adiante, explicam algumas das razões para o retorno ao campo de capital acumulado em setores modernizados da economia em contratos com os governos. Mas, a experiência latino-americana simplesmente ilustra um aspecto dominante do capitalismo é a do controle de capital, isto é, de acervo efetivamente produtivo. A

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acumulação de patrimônio não modifica a capacidade de acumular das sociedades. Seu patrimônio - constituído dos que elas entesouraram - não as ajuda a acumular. Para isso, dependeram sempre de sua energía militar e de seu comércio. Enquanto ganharam guerras, puderam prosseguir com seu enriquecimento; mas a própria falta de uma expansão econômica separada da militar, como no apogeu de Roma, significou que o impulso militar não gerava outros meios de produção que adiante o realimentassem, mesmo tendo efeitos de estímulo na produção de metais, ou na armamentos e munições, como aconteceu com as potências mercantís no século XVIII. Esse tipo de trajetória poz as sociedades mercantís em contradição com os objetivos do capitalismo. A acumulação capitalista desenvolve-se mediante a expansão e transformação da base econômica: precisa garantir a continuidade da acumulação. O essencial dela é que os resultados alcançados alteram as quantidades e os modos de produzir. Há uma controvérsia nesse ponto, que tem sido lida por muitos como de uma relação entre o funcionamento do comércio e o da produção. Trata-se, de fato, de confrontar a realização do lucro com as fontes das quais ele deriva. O comércio regular traduz-se em demandas de quantidades e de especificações de produtos, que exercem um efeito regulador sobre os produtores, para selecionar quais produtos podem ser revendidos e quais de suas características influem no seu preço. Mais ainda, o estabelecimento de algumas linhas regulares de comércio tem efeitos indiretos na determinação dos preços de outros produtos que aparecem de modo esporádico, mediante a associação entre uns e outros. Pelo contrário, a falta de regularidade do comércio significa uma correspondente ausência de estímulo para alterações na produção. Historicamente, a relação entre o comércio e a produção foi sempre gradual e progressiva, mesmo nas oportunidades em que se abriram bruscamente novas rotas de comunicação, como no acesso à Índia e na conquista da América. Isso se deve à identificação e adequação de novas mercadorías às demandas que podiam ampliar-se, que obviamente compreende um aspecto cultural e outro tecnológico, de adaptação do consumo e de aperfeiçoamento da produção. O sistema de produção reage, a partir de uma pluralidade de situações específicas de produção para um número muito menor de situações de comércio. Os condutores da acumulação mercantil têm, sempre, a vantagem de maior visibilidade dos diversos focos de produção, que os produtores situados em cada um desses focos. Daí, que a disputa pelo comércio tem efeitos indiretos maiores sobre a produção em seu conjunto, que as diversas disputas por pontos específicos de produção. Isso quer dizer que o capital mercantil teve, sempre, a opção de colocar-se, direta ou indiretamente, em atividades de comércio ou de produção, segundo seja circunstancialmente mais importante estimular a produção de uma ou de outra mercadoría, numa ou noutra localização; e de fomentar uma ou outra tendência de crescimento da produção.

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O comércio tem exercido esse tipo de influência desde os tempos dos gregos e dos fenícios; e a regularidade e a ampliação das trocas comerciais teve sempre um efeito indutor na produção. Frente à argüição de Marx, de que o capital mercantil só se torna capital propriamente dito, quanto se transfere ao processo produtivo, há a observar que a atitude capitalista típica de rejeição de risco faz com que o capital mercantil deseje continuar em sua forma comercial; e que somente se transfira ao âmbito da produção quando alcança garantias de rentabilidade. Tais garantias, entretanto, nunca são apenas econômicas, senão compreendem pressões políticas sobre concorrentes e sobre colônias, preferências de contratos etc. Nesse particular, são especialmente importantes aquelas análises dos processos econômicos do capitalismo que comparam os eventos do século XVI com os do século XVIII, quando os capitalistas dos países europeus realizaram a associação com o Estado para transferir e obter privilégios diferentes daqueles já retidos pela aristocracia rural; quando a própria aristocracia entrou a participar de empreendimentos capitalistas; e quando os capitalistas em geral, aristocratas e burgueses, tomaram suas primeiras decisões importantes, de absorver riscos da produção industrial. A empresa, no sentido moderno dessa expressão, é conseqüente desse processo de ampliação do horizonte territorial de mercado, que compreendeu a inclusão da América, as reconquistas da África e as lutas pelo controle da Ásia. Os estudos mais recentes da história da empresa mostram, em suas linhas gerais, que seu desenvolvimento nos países condutores da acumulação de capital, se fez abrangendo a utilização dos recursos humanos e físicos não europeus. A constituição da empresa tornou-se uma necessidade dos capitalistas, que precisavam dar um caráter de permanência aos seus empreendimentos, bem como criar uma instância institucional capaz de negociar com o Estado e atrair outros capitais individuais. Esse processo foi melhor relatado por fontes literárias que pelas fontes de história econômica e social. Autores como Émile Zola, Charles Dickens, Nikolai Gogol, Fedor Dostoievski, mostraram os processos de substituição das manifestações de interesses individualizados pelas de interesses institucionalizados do capital privado (3). 1.3. O controle do consumo A produção capitalista funciona frente a uma perspectiva de demanda fundamentada em experiência, isto é, numa combinação de dados da realidade com suposições baseadas em anteriores tentativas de antecipação. O risco de erro é, progressivamente, menor com a acumulação de experiência. Mas nada garante que ele sempre diminua, nem que diminua de

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modo constante. Isto quer dizer que a produção capitalista precisa de informações sobre a demanda; e tende a interferir no consumo, para adequar o desenvolvimento da demanda aos interesses da obtenção de lucro. Significa, ainda, que os produtores têm que pressionar outros produtores a usar as tecnologias que vendem, já que as próprias tecnologias, uma vez conhecidas, são mercadorias como quaisquer outras. Historicamente, os produtores capitalistas usaram o poder de convencimento do comércio para alcançar esses objetivos. Isso sempre se fez de diversos modos. O primeiro deles é observar as comunidades e procurar distinguir o que e como consomem; e logo, verificar as possibilidades, seja de aumentar as quantidades consumidas de alguns bens, seja de substitui-los por outros. A industrialização teve um efeito irreversível sobre esse consumo possível, de um lado estabelecendo uma pauta de bens que a indústria pode, preferencialmente, realizar com vantagem; e de outro lado, tornando comparativamente mais caros quaisquer produtos que não estejam no escopo tecnológico do sistema de produção. Para expandir-se, a produção industrial precisa, portanto, estimular o consumo naquele horizonte de possibilidades que pode atender, desde os que pode atender hoje aos que pode planejar atender no futuro. O segundo modo de forçar a criação - ou abertura - mercados foi a força, um método vigente até hoje. Esse uso da força conduziu as invasões da América no século XVI, da África nos séculos XVI, XVII e XIX e da Ásia desde o século XVI até o século XIX (4). Os modos específicos de interferir no consumo variam, em escala, em uso de capital e em capacidade dos capitalistas para utilizarem os recursos institucionais e financeiros do Estado para sustentar suas pretensões. Desde o apoio de Henrique VIII da Inglaterra, de Henrique IV da França e de Carlos V no século XVI, à expansão de atividades privadas, às atuais políticas de subsídio, direto e indireto, ao capital nas empresas, e a gestão do Estado, que leva a distinguir o favorecimento direto de empreendimentos e a proteção do padrão de acumulação, há um encadeamento de ações públicas e expansão das empresas, que atuou, progressivamente, definindo os mercados. Ao longo da história, o capital mercantil procurou desenvolver mercadorías que lhe permitissem vender mais, valendo-se, para isso, de referências dos desejos e da capacidade de compra dos diversos grupos sociais. Adiantar-se a esses desejos, encontrar respostas possíveis para eles, significou, entre outras coisas, condicionar a progressão do consumo, estabelecendo a legitimidade dos seus diversos componentes, regulando os leques de opções com que se movem os consumidores potenciais. A difusão do uso de produtos como café e chá, precederam a difusão de refrigerantes e marcas de cerveja, bem como de comida industrializada e a popularização de modelos de vestuário e calçado. À medida que aumenta

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o capital imobilizado na produção desses produtos, aprofundam-se as ligações entre o estímulo ao consumo e a sustentação dos investimentos. Assim, a visão histórica da formação do consumo contrapõe-se à premissa da teoria marginalista de uma suposta soberania do consumidor, que se exerceria num direito de escolha dentro de um dado conjunto de bens e serviços com que satisfaz suas necessidades. Suas escolhas são pré-determinadas por aqueles que estabelecem o conjunto de bens e serviços. 1.4. O controle do trabalho. No relativo ao tratamento do trabalho, a produção capitalista conjuga uma tendência a reduzir ao mínimo a permanência de trabalhadores em cada empresa, com outra tendência, a aumentar o controle do mercado de trabalho. Uma e outra levam a pressionar pela substituição de trabalhadores por capital. A primeira dessas tendências resulta em diversas estratégias de tratamento do emprego, que vão desde a substituição de trabalhadores por máquinas, ao desestímulo da permanência de trabalhadores além de certa duração em cada emprego, ao fomento de competitividade entre os trabalhadores - e mesmo entre os representantes do capital - que permite ao capital obter sobre-trabalho, al'em do contratado; e à destruição prematura, parcial ou total, de sua capacidade de decidir entre empregos e entre salários. A primeira dessas três formas tem sido genérica da produção capitalista. A segunda corresponde ao comportamento da maioría das grandes empresas. A terceira tem caracterizado, em diversas circunstâncias, alguns centros do capitalismo periférico e do capitalismo asiático moderno. A segunda tendência manifesta-se em modos de associação entre empresas; e das empresas com o poder constituído, do Estado, das igrejas e das forças armadas, que regula as condições de acesso a emprego, que exerce pressão sobre os trabalhadores empregados e estabelece requisitos ideológicos de ingresso a emprego. O controle do trabalho tem conotações espaciais, determinadas pela organização da produção no território. Há diferenças decisivas entre os mercados de trabalho de regiões, que não foram superadas por migrações compensatórias de trabalhadores, nem por transferência de capitais individuais, como se tem visto no Brasil. Há diferenças, igualmente profundas, entre o mercado de trabalho urbano e o rural; assim como entre as condições de trabalho rural entre diferentes regiões, que em alguns casos se atenuam, mas que têm perdurado ao longo de séculos.

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Mas, o principal controle do trabalho consiste em deter capacidade de empregar. A insuficiência de empregos e a dos salários, mantêm uma pressão constante de demanda de emprego, que favorece aos que demandam trabalhadores. O reconhecimento geral na sociedade, de que essa situação não se reverte, condiciona a educação e mantém um clima de subordinação aos interesses predominantes do capital, de diversos modos, que contrapões a defesa de alguns interesses individuais de trabalhadores empregados aos interesses gerais dos trabalhadores como classe. 1.4. O controle de recursos naturais As análises da expansão do capitalismo que focalizaram na formação da indústria de transformação na Europa, centraram suas atenções nos mecanismos internos de formação de capital das economias européias, mostrando a emergência das indústrias como um elemento dinamizador do sistema de produção. No entanto, a progressão dos movimentos de controle de terras e de ampliação da base territorial dos sistemas nacionais de produção na Europa, e a subseqüente ampliação da base de recursos, própria do expansionismo mercantil dos séculos XVI e XVII, obrigam a rever esse pressuposto. Tomar o processo a partir do movimento da indústria, é reduzi-lo aos movimentos de transformação do artesanato e da manufatura. Mas não explica de onde surgiram os capitais que alimentaram essa transformação. Falar genericamente de uma acumulação primitiva, que antecedeu ou coincidiu com o início da industrialização, significa reconhecer que a indústria surgiu de injeções de capital externas à produção. Mas não explica como essa indústria tornou-se possível em alguns países e em algumas épocas determinadas. No entanto, a indústria surgiu onde e quando houve capital disponível; e condições adequadas para reunir equipamento, organização tecnológica e comercial e para mobilizar trabalho e recursos naturais. A mobilização de recursos naturais e de trabalho fez-se, primeiro na Europa, depois nos territórios conquistados pelos europeus. Em ambos momentos ela se fez a partir de um poder político constituído no interior das lutas feudais, que desembocou em absolutismo, mas que em muitos casos funcionou de modo absolutista antes que houvesse um Estado nacional absolutista. Braudel relata os processos de concentração de poder no norte da Itália e no sul da França que resultaram em prolongadas obras de drenagem e construção de canais, ao longo do século XV, que ampliaram as áreas

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habitáveis e as terras cultiváveis (5). Dobb conta os processos de cercamento de terras na Europa ocidental, bem como a transformação da produção agrícola conseqüente do aumento da grande propriedade (6). le Goff descreve os processos de reestruturação da produção e de incorporação de tecnologia, conseqüentes daquela redução da população rural, que facilitou o aumento da grande propriedade (7). Todos esses processos aconteceram nos tempos e lugares em que houve uma concentração de poder, de príncipes ou da Igreja, que permitiram determinar uma canalização de esforços, geralmente em torno de obras de infra-estrutura, que viabilizaram a exploração de trabalho. A concentração de poder gestou-se, gradualmente, na última parte da Idade Média e concluiu-se, primeiro na Inglaterra com Henrique VIII e logo na França como Henrique IV. Mas na Inglaterra teve a continuidade do período de Elizabete I, com a ampliação do poder naval e os ingressos da pirataria. Na França o confronto com o poder da aristocracia feudal continuou até a luta de Richelieu com a Fronda, isto é, ficou atrasado em relação com a corrida da Inglaterra pelos ganhos da expansão do mercantilismo. A expansão ibérica significou uma ampliação do controle direto de recursos naturais, que transferiu para a estrutura dos impérios os elementos feudais do poder na Espanha e em Portugal, que no caso da Espanha aproveitou estruturas feudais incaicas e aztecas. O controle de recursos deu-se, principalmente, pelo da exploração de terras e de minas, integrando-se à constituição de novos modos de servidão e com a expansão e organização comercial da escravidão. Paralelamente, a expansão poder da Inglaterra teve um crescente componente de controle indireto, aí compreendidas as vantagens de comércio com Portugal, as rendas da pirataria, e desde o século XVIII, os ganhos da exploração da Índia mediante a criação de um comércio desigual dirigido, como relata Strachey (8). O controle de recursos naturais aprofundou-se durante todo o processo do capital até hoje; e tem que ser revisto à luz dos deslocamentos na estruturação de poder político que conduzem a formação de capital. 1.5. Experiências, valores e interesses. No século XX, a teoria social teve que se adaptar ao fato de conviver com uma pluralidade de experiências, agora melhor conhecidas, que obrigam a ampliar o horizonte espaço-temporal de referências empíricas, ao tempo em que levam a relativizar as observações que se acumularam sobre o quadro de referências dos séculos XVIII e XIX. Para analisar os aspectos essenciais do funcionamento econômico do capitalismo convém, por isso, rever os traços básicos de comportamento que o distinguem.

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Por capitalismo, aqui, entende-se o sistema de produção conduzido pelo objetivo central de acumulação de capital, independentemente do regime político prevalecente, fundado em relações contratuais de trabalho, onde portanto predomina os interesses representados na relação capital/trabalho, mesmo quando organizados de modo diferente dessa objetivização das relações de produção. Pode-se falar de sistemas capitalísticos, para designar sistemas de produção, comercialização e consumo que funcionam com as características básicas do capitalismo, mas que se distanciam dele em alguns de seus aspectos. Pela mesma razão,não tem sentido procurar sistemas capitalistas puros, ou contrastá-los com sistemas em princípio classificados como não capitalistas. O reconhecimento da reprodução dos esquemas de dominação colonial obriga a revisar o significado da seqüencialidade da capitalização que conduz a modernização. A produção capitalista realiza-se em sociedades onde predominam relações determinadas por interesses imediatos, comparado com sociedades onde esses interesses estão regulados ou subordinados a privilégios antes adquiridos. A rigor, os privilégios são interesses protegidos por regras impostas ou consentidas, mas que funcionam como modo de garantir determinadas participações na distribuição atual da renda. Em seu cotidiano, a organização capitalista da produção está baseada na compra de tempo-trabalho e no consumo de mercadorias. Os dois termos se completam: a compra de tempo-trabalho significa que alguém - o capitalista - detém o controle dos meios com que se realiza a produção, que é possível visualizar de antemão a qualificação dos trabalhadores, bem como é possível estabelecer procedimentos regulares de produção. A produção capitalista existe quando estão socialmente identificados o capitalista e o trabalhador; e quando os interesses privados, na produção e no consumo, tornam-se claramente identificados por contraste com o interesse público e comunitário. Ao identificar a mercadoria como elemento essencial do funcionamento de uma produção organizada em mercado, Marx destacava um aspecto essencial do comportamento econômico, que é de vincular a solução dos problemas de sobrevivência a mecanismos de associação que têm características próprias de reprodução A produção capitalista só pode ser realizada quando o trabalhador se identifica como proprietário de sua força de trabalho, seja, quando ele é legalmente livre. Isto o diferencia do trabalho escravo, em que ele não tem a propriedade de seu tempo; e do trabalho servil, em que o uso da força de trabalho está condicionado pela ligação do trabalhador ao solo. Na produção capitalista, presume-se que os trabalhadores têm o controle do seu potencial de tempo de trabalho, que supostamente pode ser transferido entre diferentes tipos de atividade e em diferentes lugares. O pressuposto de mobilidade do trabalhador deve, entretanto, ser revisado, já que a mobilidade entre atividades, portanto,

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entre lugares, está ligada à mobilidade social, seja, à capacidade para escolher entre atividades. Na medida em que o trabalhador funciona com margens definidas de mobilidade entre tipos de ocupação e níveis de renda, em que, portanto, seus deslocamentos no espaço estão ligados a sua prévia inserção no sistema de produção, seja, a um tempo de vinculação, o pressuposto de liberdade de escolha entre ocupações torna-se apenas um referencial, que deve ser qualificado no caso de cada trabalhador. Mais ainda, as margens de mobilidade dos diferentes trabalhadores, entre empregos e entre locais de residência, são qualificações de sua situação no relativo a consumo, material e de cultura, com possibilidades que diferem daquelas indicadas por sua participação na produção. O horizonte de relacionamentos distingue, por exemplo, os trabalhadores urbanos dos rurais; e os trabalhadores das grandes cidades dos das pequenas cidades. Ao contratar trabalho, os capitalistas introduzem substituições nos usos do tempo das pessoas que eles contratam; e, por meio desses contratos, induzem alterações nos usos do tempo daquelas outras pessoas que estão ligadas aos trabalhadores por outros meios de organização da produção e do consumo. Essas alterações atingem outros aspectos da organização social, criando novos hábitos e preferências, que inclusive afetam os comportamentos dos diversos agentes da produção e do consumo no relativo a trabalho e renda. A substituição nos usos do tempo pode traduzir-se em substituição de lazer por trabalho , bem como pode significar a troca de alguns tipos de trabalho por outros. Alguns dos novos usos não têm conseqüências adicionais, mas outros refletem-se, adiante, no aparecimento de novas formas de participação na produção e no consumo. À medida que as pessoas se integram numa sociedade que valoriza renda mais que outros sinais de resultados, e que associa renda aos modos de inserção no sistema de produção e de consumo, individualmente, elas tendem a operar substituições entre formas de trabalho; a dar prioridade à substituição de trabalho por trabalho, ou em todo caso, à substituição entre formas de uso do tempo no sistema de produção. Há, portanto, uma progressão de comprometimento das pessoas com a ideologia do sistema de produção, que lhes impede de conceber situações alternativas de engajamento na estruturação da sociedade. Assim, junto com a organização da produção, entram os elementos de uma visão de mundo que valoriza resultados concretos imediatos, mas que não necessariamente os liga com usos finais; e que avalia a produção e o consumo, respectivamente, com critérios que não são completamente explicáveis um pelo outro. Noutras palavras, a explicação do fato da acumulação é o processo de acumulação, pelo que ele cria interesses que tendem a reproduzir-se; assim como a explicação dos fatos atuais de consumo é a própria trajetória do consumo, no que ela reflete condições de renda e culturais.

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Ao reconhecer a pluralidade de modos de funcionamento da economia mundial, bem como a combinação de seus aspectos de heterogeneidade e de homogeneidade, é preciso levar em conta que o capitalista se identifica, essencialmente, por sua posição no processo social de produção, mediante o controle econômico de informações de mercado, culturais e tecnológicas, sendo que estas últimas funcionam como sua ligação com o conhecimento científico. Há uma relação entre o manejo da tecnologia e a constituição de relações de trabalho, que se manifesta em dois níveis: no que separa os que organizam a produção daqueles que a realizam; e no que distingue os que realizam trabalho manual dos que realizam trabalho não manual. Esses dois cortes são essenciais, primeiro, na determinação da distribuição da renda entre o capital e o trabalho, e entre os grupos melhor e pior pagos de trabalhadores e de capitalistas; e a seguir, na mobilidade dos trabalhadores, entre diferentes perspectivas de remuneração. A lógica que ordena sua participação na sociedade em geral, é guiada pela perspectiva da produção. Sua presença no sistema de produção assume várias formas, que no essencial se dividem em dois grandes grupos: as diversas formas de produção organizadas em empresas e as formas de produção em que não há separação clara entre o controle do trabalho e a realização de trabalho. Não há, na prática, como traçar um limite rígido entre os dois grupos, já que muitos capitalistas participam, alternativamente, de modo simultâneo, em atividades que são parte dos dois. Mas é a lógica da produção organizada em empresas que hoje cria as pautas que, direta ou indiretamente, conduzem a produção não empresarial. Assim, é preciso identificar os comportamentos básicos que orientam a produção capitalista organizada nas empresas. Em sua formação, a produção capitalista começa por mercantilizar o trabalho, isto é, institui a compra de tempo-trabalho. No momento seguinte, liga a compra de tempo à dos elementos que vão junto com seus usos, seja, os instrumentos de trabalho e a terra. Cria, portanto, novos moldes de organização, em que os elementos físicos usados na produção são escolhidos em virtude de objetivos gerais de participação no mercado resultando numa escolha dos produtos com que ela será alcançada. Ao escolher produtos e técnicas de produção, a empresa opta por certos conjuntos de riscos, bem como por certas trajetórias de riscos. O risco é inerente à produção capitalista. Mas contrasta com os objetivos dos capitalistas, de manter sua renda num máximo de resultados positivos , com as perspectivas mais confiáveis de que o crescimento da renda se sustente ao longo do tempo. A incerteza sobre os resultados das atividades que empreende materializa-se em risco do capital aplicado, cuja valorização pode prosseguir ou ser interrompida.

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Isso faz com que o capitalista conviva com o risco e procure evita-lo, seja preferindo aplicações de capital comparativamente menos arriscadas, seja transferindo riscos, aos trabalhadores, ao Estado e a outros capitalistas. Transferir riscos é um comportamento análogo ao de quem identifica os interesses individuais como prioritários em relação com quaisquer outros, ou de quem desenvolve relações baseadas em interesse. A novidade da produção capitalista em relação com outros sistemas de produção é que nela se realiza uma racionalização do interesse privado, que é apresentado como comparável ao coletivo. No essencial, é uma falácia: um interesse privado é comparável a outro, como um interesse coletivo é comparável a outro de outro coletivo. Os aspectos éticos da questão foram, de diversos modos, expurgados da análise social,transferidos para o plano de uma explicação da teoria do conhecimento - em vez de uma sociologia do conhecimento - pelo utilitarismo de Bentham e pelo empirismo de Locke, que se apoiaram, respectivamente, numa restrição da confiabilidade do conhecimento à experiência individual; e em restringir o conhecimento ao âmbito de experiências que não são transformadas pela constituição dos coletivos. Foram, ainda, desqualificados pela visão de Hume, que limitou o conhecimento ao âmbito de sensações, desligando-o de antecedentes culturais. Desse modo, a racionalidade no comportamento do produtor capitalista seria, portanto, algo que se sobrepõe ao anterior, que funciona como ordenador da busca da utilidade. Assim, a teoria do conhecimento incorporada no idealismo crítico de Kant foi uma resposta ao empirismo, que ofereceu elementos para uma nova compreensão do conhecimento como ligado aos antecedentes psicológicos e culturais do sujeito do conhecimento, portanto, mostrando a possibilidade de formação de uma teoria social( ). A ligação entre a filosofia da consciência e a teoria social foi dada, adiante, pela contribuição de Hegel, que ressaltou a relação inevitável entre o desenvolvimento do indivíduo e sua participação num coletivo( ). O reconhecimento de que os coletivos são uma instância real, não redutível ao plano da individualidade, é a ruptura mais profunda nos encaminhamentos da análise do capitalismo. Ao voltar-se para a formação da razão, em vez de toma-la como algo em si, ao dirigir a teoria do conhecimento para a explicação do objeto - a dialética é a lógica da formação do objeto - Hegel tornou necessária uma ciência social baseada em coletivos e não numa pluralidade de indivíduos. Assim se demonstra a necessidade de manejar elementos de teoria capazes de representar os valores e os interesses próprios das sociedades onde prevalece a produção capitalista, comparadas com outras onde prevalecem outras modalidades de produção. A tendência a acumular e a rejeição ao risco são os dois traços principais da produção

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capitalística, que se manifestam, plenamente, naquelas condições em que os interesses estão, também, plenamente representados, isto é, quando há empresas e assalariamento. Mas a rejeição ao risco é comum a todos os produtores capitalistas, individuais e coletivos. E é, nitidamente, uma manifestação de interesse. Trata-se do interesse incorporado no plano das ações e não no da teoria. A produção capitalista traduz-se em sociedades de interesse, naquilo em que os comportamentos dos participantes da produção e do consumo estão dirigidos por vantagens específicas em lugar de vantagens genéricas. Isso distingue as sociedades capitalistas de outras, regidas por privilégios anteriormente conseguidos. Nas sociedades de privilégios, as posições antes conquistadas traduzem-se em vantagens quando se realizam ações econômicas; e nas sociedades capitalistas é a realização das ações que enseja a formação de privilégios. No entanto, sociedade alguma é puramente capitalista; e há muitas sociedades de privilégio onde prosperam circuitos capitalistas de relações de produção e de consumo. A distinção entre sociedades de interesse e de privilégio, e nestas, a identificação de formação de castas, ajuda a perceber a pluralidade real de modalidades de funcionamento que acontece no plano econômico no capitalismo. Assim como ajuda a revelar o complicado tecido de interdependências entre o modo atual de funcionamento e os modos anteriores. Nessa composição, o fundamental são os modos de articulação do núcleo capitalista condutor da formação de capital com os diversos circuitos de interesse, seja que eles se estendem ao funcionamento do sistema de produção em seu conjunto, ou que estão limitados a alguma de suas partes. Por exemplo, os sistemas de interesses que influem na escolha de deputados e de líderes do sistema financeiro, comparado com os sistemas de interesse que se reproduzem localmente, na escolha de prefeitos e de líderes de comunidades. Subjacente nessa distinção prática, está uma interpretação da formação das sociedades, que percebe que as sociedades atuais, diversas e complexas, retêm elementos de identificação da individualidade e dos coletivos, que são próprios de sociedades tribais e de casta. Também, que leva em conta que as atuais organizações, em que predominam as classes, resultam de transformações que se realizam a partir de cada um desses tipos básicos. Finalmente, que entende que as sociedades contemporâneas contêm amplas margens de pluralidade, já que nelas convivem ingredientes de cada uma dessas modalidades. Interesse e privilégio convivem de diversos modos nas sociedades modernas , tornando necessário entender como os movimentos dos interesses controlam os privilégios, e como os privilégios demarcam as possibilidades de fazer prevalecer interesses. Não há fundamento histórico algum que permita supor que as relações contratuais de trabalho, especialmente o assalariamento, superem as demais formas de trabalho marcadas pelo predomínio de privilégios. Pelo contrário, as evidências empíricas indicam que o

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assalariamento - e com ele as modalidades de competição dos trabalhadores por postos de trabalho - é atingido por formas de escolha de pretendentes a emprego que são, claramente, parte de sistemas de privilégio na esfera do capital e na do trabalho. Notas 1. Supor que a expansão do capitalismo significa a superação de privilégios, na prática alude apenas à superação daqueles privilégios conseqüentes da posse da terra e derivados da institucionalização das monarquias feudais que chegaram até o fim da Idade Média. A transformação dessas monarquias feudais em monarquias absolutistas, fez-se com uma ampliação das desigualdades no interior da aristocracia, em que os monarcas do oeste da Europa aliaram-se à burguesía como parte do mesmo movimento pelo qual se fortaleceram alguns poucos potentados aristocráticos, em detrimento do equilíbrio do poder na aristocracia. O enfrentamento da chamada Fronda com Richelieu, o de aristocratas portugueses contra Pombal, são representativos desses fenômenos. 2. As principais casas reinantes do século XVI na Europa ocidental - os Habsburgo, os Tudor, os Bourbon, os Bragança - favoreceram o capital privado emergente, dando-lhe apoio político.Destacam-se, sucessivamente, Henrique IV, Felipe II, Henrique VIII e D.João II. Essencialmente, foram políticas de tributação que fortaleceram a corôa, ao tempo em que, políticas de favorecimento que davam a alguns o poder de enriquecer. 3. É revelador que esses autores, para refletir essa realidade social de transformação de condições de vida, de costumes e de diferenças de perspectivas, entre os que enriquecem e os que empobrecem, criaram novos estilos e novas formas literárias. Zola, especialmente, com a introdução dos personagens sem nome, sumidos em coletivos também anônimos, como em " O Germinal", e na composição de uma tragédia burguesa, onde personagens anônimos cruzam com os que se destacam, como fez nos "Rougon Macquart", revelou os conteúdos psicológicos de uma problemática objetivamente inscrita em determinados lugares e períodos. 4. A maré de colonialismo do século XIX começou com a invasão da Tunísia pelos franceses em 1847, teve capítulos como o forçamento da baía de Toquio pelos americanos em 1848, as três invasões americanas do México, a guerra do ópio na China, quando as potências ocidentais se associaram para forçar aquele país a abrir-se aos seus interesses comerciais. 5. Fernand Braudel, " O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico".

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6. Jacques le Goff, " A Civilização do Ocidente Medieval" Ed. Estampa, Lisboa, 1984 7. Maurice Dobb, " Estúdio sobre la Evolución del Capitalismo". Siglo XXI, México, 1971. 8. John Strachey, " El Fin del Imperio" Fondo de Cultura Económica, México, 1962. 9. O confronto de Kant com as idéias do empirismo ressurge, hoje, como a base de uma argumentação entre a percepção histórica do social e a proposta de reduzi-lo a fatos, portanto, a mera atualidade, como queria Wittgenstein. 10. A matriz hegeliana da teoria social foi estudada por Marcuse, em seu "Razão e Revolução", onde mostra a impossibilidade de que a consciência individual seja concebida fora de um contexto coletivo.

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3. Os modos operacionais do capitalismo 3.1. Práticas e instituições da produção Ao ver a produção como uma atividade inerente à reprodução social, convém lembrar que ela é uma expressão cultural, que em cada oportunidade revela uma experiência acumulada. A atividade de produzir se repete e modifica, desde as sociedades antigas às contemporâneas, com variadas formas de organização. A cultura da produção compreende práticas e instituições, que interagem na repetição e nas alterações do modo de produzir. Concretiza-se em modos de fazer as coisas, que incorporam as experiências, compreendendo os erros e os acertos, a perpetuação de algumas práticas junto com as 3inovações, além disso, incorporando parte das experiências e descartando outras. O modo de produzir objetos de troca - as mercadorias - é o modo operacional da produção capitalista. Na trajetória da formação do capitalismo, nos lugares onde ele se desenvolveu, a produção e o consumo foram, progressivamente, organizados de certos modos compatíveis com o movimento de acumulação de capital. A acumulação significa a valorização progressiva do capital acumulado, mas compreende movimentos negativos de desvalorização de certas partes dele, bem como só se mantém mercê de uma correspondente e progressiva educação da população, que em termos mais imediatos aparece como qualificação do trabalho. Os modos operacionais que distinguem a produção capitalista dos demais modos de organização da produção, são, sempre, os de canalizar os recursos para produzir mercadorias, de administrar essa produção do modo mais rentável possível, procurando que ela possa continuar. Por isso, a gestão do capital procura evitar riscos, para poder aproveitar ao máximo o capital acumulado, inclusive além dos usos finais para que ela foi prevista. Por essa mesma razão, o modo capitalista de produzir leva a incitar ao aumento dos usos das mercadorias que se produz,inclusive, além das necessidades dos possíveis demandantes. Em seu conjunto, esses modos de operar revelam ações que se dirigem a estabelecer margens de controle sobre a sociedade, que se manifestam em manter a iniciativa da realização de transações, e de determinar quais mercadorias são trocadas. São, às vezes, ações empreendidas isoladamente, e outras vezes, são parte de estratégias dos grupos e das

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pessoas que conduzem o processo de acumulação. Em todo caso, refletem a consciência desses grupos que representam interesses voltados para a produção. Esse perfil cultural do processo econômico torna necessária uma explicação de cada um desses aspectos operacionais, que em seu conjunto compõem a praxis da produção; e que, no transcurso da experiência dos grupos envolvidos na produção, passa por modificações, produzidas pelas interrelações entre o domínio das práticas, das técnicas e das reflexões teóricas sobre os diversos aspectos dos processos de produção e de consumo. 3.2. A mercantilização e os usos do tempo O estudo da sociedade econômica moderna é o da canalização do tempo para a produção de mercadorias que cheguem a um número cada vez maior de possíveis usuários. Esse processo se estende a uma proporção cada vez maior da atividade produtiva - inclusive tornando econômicas atividades que não o eram - mas não abrange toda ela; e há inúmeros casos em que o desenvolvimento do processo de produção representa um recrudescimento da produção que não é destinada a mercado, ou em que o desenvolvimento do mercado é seletivo em termos de produtos trocados, de grupos participantes e de conseqüências das trocas em outras atividades. O processo de produção de mercadorias é, também, o de conversão de um determinado potencial de tempo na realização de um conjunto de produtos que uma sociedade pode, efetivamente, utilizar. Os produtos que não podem ser utilizados são inassimiláveis pela sociedade, pelo que não chegam a constituir valor ou perdem seu valor, como um par de esquís na selva ou um aparelho eletrônico para pessoas primitivas. Marx explicou o processo de conversão de usos gerais em usos restritos do tempo, mostrando que a substituição de um grande número de usos independentes de tempo por um conjunto restrito de usos interdependentes, é o modo de converter comunidades capazes de resolver a maior parte dos problemas de sua reprodução em comunidades que dependem completamente de um processo unificado de produção. A análise de Marx explica os mecanismos que tornam comparáveis os usos do tempo, que são aqueles indicados pelos períodos de produção. Mas ao analisar as transformações da produção transcorridas desde então, tornam-se necessários alguns esclarecimentos sobre o papel do tempo no funcionamento dos sistemas de produção. A expansão da produção organizada em um mesmo mercado, traduz-se, sempre, em maior diversidade dos participantes do sistema de produção e das condições em que eles participam. Os mesmos grupos sociais mudam de posição ao longo do tempo, bem como mudam seus modos específicos de consumir e de produzir. Com isso, muda a composição dos postos de trabalho. Assim, manter uma determinada posição de classe implica em

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poder manter ou mudar de posição no trabalho e no consumo, seja, manter posição durante os diversos movimentos de conversão entre formas de capital. Daí que cada vez há mais problemas para explicar, no relativo ao tratamento do tempo na análise do processo econômico. No desenvolvimento da produção capitalista, o tempo pode ser visto, objetivamente, de dois modos: como representado pelos lapsos em que transcorrem os períodos de produção; e como indicado pela duração da produção comparada com a da transformação do produto em dinheiro. São duas operações distintas mas interdependentes. Há um corpo de problemas de produção e outro de problemas de realização do produto em dinheiro, que constituem dois aspectos da atividade econômica. Os tempos dos períodos de produção, na prática, podem ser comparados uns com os outros em função do tempo absorvido na comercialização, isto é, na concretização das vendas da produção. Para o produtor, os riscos se materializam nos momentos de venda da produção, apesar de que se formam ao longo do período de produção, em que sua liquidez desaparece, e dá lugar a um estoque de produtos terminados. No plano subjetivo, o tempo que conta na atividade de produzir é o das experiências dos participantes dos processos de produção. Elas podem ser isoladas umas das outras, ou interligadas. Há experiências que se perdem para a reprodução da vida econômica, como as dos trabalhadores especializados e precocemente aposentados; e outras que realimentam a relação entre a produção e o consumo, refletindo-se na formação de capital, como a daqueles que continuam a aperfeiçoar-se e aumentam de qualificação. No plano subjetivo da análise, o tempo de produção é o que corresponde à produção de cada mercadoria; sendo que a combinação dos tempos de produção de diversas mercadorias é regulada pela produção daquelas mercadorias cuja produção é estratégica para a das demais. As proporcionalidades de tempo denotam, portanto, equivalências tecnológicas, quando não interdependências tecnológicas entre diferentes linhas de produção (1). Igualmente, se reconhece que há mercadorias que não têm equivalente, por isto tendo uma posição estratégica na reprodução de cada sistema, em cada um de seus sucessivos patamares de tecnologia. As rodas de carruagem desempenhavam esse papel nas economias movidas a tração animal, que depois foi desempenhado pelos carburadores e agora pela injeção eletrônica. A idéia de equivalência, portanto, está ligada ao papéis que cada tecnologia desempenha em cada sistema ao longo do tempo. A falta de equivalência resulta, portanto, de que esses papéis não sejam comparáveis. Por exemplo, o papel das técnicas de preparação de madeira quando esse era o principal insumo da construção civil; e hoje, quando seus usos são opcionais, e em todo caso, essas técnicas já não são necessárias para garantir a durabilidade dos edifícios.

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Com o desenvolvimento dos sistemas industriais de produção, passou-se de sistemas conduzidos pela produção de uma mercadoria principal, ou de um conjunto de mercadorias equivalentes, para sistemas que contêm diversas mercadorias líderes, ou ainda, que operam com uma pauta de diversas mercadorias que não dependem umas das outras. A pluralidade de tecnologias descreve certos modos de funcionamento atual dos sistemas de produção; e as peculiaridades de alguns de seus componentes. Por exemplo, a pluralidade de tecnologias de pequena produção de energia elétrica que podem ser utilizadas hoje no meio rural; e a peculiaridade dos aeroportos e dos centros de comunicações de rádio e televisão, onde se cruzam técnicas e funções não comparáveis; e que são espaços não comparáveis com quaisquer outros de etapas anteriores da industrialização. A ampliação do sistema de produção significa, portanto, uma alteração dos modos como a formação de capital pode ser viabilizada, que implica em progressivas modificações nos usos do tempo, na produção e no consumo. Destacam-se a multiplicidade e a especificidade dos usos do capital, que são aspectos, em tempo assinalados por Lachmann (2). Os conteúdos culturais são fundamentais nesse movimento, já que a efetivação do consumo depende, em todo caso, de que as pessoas estejam capacitadas para realiza-lo. Entendendo, no entanto, que essa capacitação é um resultado da distribuição dos resultados sociais da produção, é preciso reconhecer que há uma realimentação entre a diversificação do sistema de produção e as condições em que se realiza o consumo. Mas, produção e consumo são dispêndios de energia que têm durações e intensidade determinadas, com correspondências desiguais nas oportunidades e nas durações com que são realizados. Representam momentos em que se converte energia de umas atividades a outras, que portanto podem ser analisados como liberação e uso de energia. Nesse sentido, a atividade econômica é vista por seu aspecto físico, em que ela insome recursos físicos, animais e humanos e gera resultados materiais e culturais. A moderna visão ecológica retoma, de fato, algumas das teses mais antigas de Heráclito e de Nagarjuna sobre a realidade como transformação e sobre a atividade humana como uma dentre outras atividades da natureza. O reconhecimento de que a produção capitalista tem uma diferença essencial em relação com as demais formas de produção, e que levou a uma formidável liberação de energia das sociedades modernas, é a principal observação da análise marxiana, que levou, a seguir, à identificação da mercadoria como o objeto referência da atividade produtiva. Essa liberação de energia é um processo que atinge os aspectos objetivos do relacionamento entre grupos nas sociedades e as condições psicológicas desse relacionamento. Os trabalhos da Escola de Frankfurt sobre a articulação da análise das

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relações de produção com a dos mecanismos sociais de repressão, e ainda, sobre a ligação entre o movimento civilizatório da repressão e o desejo de acumular capital, são aspectos que hoje estão incorporados ao saber nesta matéria, que entretanto apenas abriram novas portas para novos questionamentos sobre a pluralidade social e das formas de produção, bem como sobre os contextos culturais da produção capitalista. O capitalismo implica em planejamento da produção, por parte de empresas e produtores autônomos. O movimento do capitalismo começa com a substituição de uma pluralidade de usos do tempo, decididos por quem o usa para fins próprios - que deixa excedentes físicos variados - por usos dirigidos à produção de mercadorias. A lista de mercadorias produzidas é sempre um elenco limitado, comparado com o das pretensões dos potenciais consumidores que integram cada sociedade. O aparecimento do capitalismo e o da mercadoria são inseparáveis, porque só a mercadoria incorpora a possibilidade de repetição infinita de trocas. Se bem que as possibilidades de multiplicação de trocas concretamente variam ao longo do tempo, de uma sociedade a outra, e em relação com uma ou outra mercadoria, há uma suposição geral de que na produção capitalista uma grande parte - e uma parte crescente - das mercadorias pode ser objeto de diversas trocas. Ao canalizar a energia da sociedade para produzir mercadorias, o capitalismo reduz a variedade de relações entre grupos e pessoas, àquelas ligadas ao horizonte das trocas. A visibilidade de cada pessoa frente ao interesse dos demais, reduz-se a sua participação na produção e no consumo. Chega-se à coisificação das relações e das próprias pessoas, até a coisificação da intencionalidade dos seus comportamentos: a reificação. Esta se traduz em movimentos de exclusão de grupos e de pessoas, em diversos momentos e partes do processo de produção e em aspectos do consumo, resultando numa integração da restrição dos espaços das pessoas com a restrição da visibilidade que umas pessoas têm das outras. Assim, o capitalismo tem que traduzir a participação das pessoas na produção em termos de tempo, já que o tempo que elas põem na produção é uma parte do seu tempo total disponível: aquela parte que lhes é comprada. E é o tempo comprometido na produção que regula o significado das demais frações de tempo. Marx precisou do conceito de jornada de trabalho, e da concepção industrial da produção, para explicar a universalização dessa redução da pluralidade de usos do tempo àquele pequeno elenco de usos que pode, finalmente, representar a complexidade do processo de produzir e consumir, que aparece na forma de mercadorias.

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Tal concepção pressupõe a capacidade de mensuração de um tempo não finito e contínuo, isto é, a existência do relógio. A produção capitalística depende dessa mensuração comparável dos diversos tempos envolvidos na produção de cada mercadoria, que faz com que os mesmos agentes participem de diferentes maneiras na produção de diversas mercadorias. A percepção de tempo é fundamental no capitalismo, na esfera da produção e na do consumo. Assim como é diferente o tempo que se gasta para produzir um estádio de futebol e um aparelho cirúrgico de precisão, também são diferentes os tempos gastos em ouvir uma sinfonia ou em fazer uma refeição rápida.A própria noção de trabalho abstrato é conseqüente dessa possibilidade de traduzir a uma escala unificada de tempo uma pluralidade de usos de tempo cuja composição jamais é integralmente conhecida, mas que é conhecida no que é relevante para o horizonte de informações com que os agentes sociais se movem em seu cotidiano. Esses problemas complicaram-se ao longo dos tempo, à medida que foi preciso reconhecer que os atos e fatos próprios da produção estão sempre ligados a um universo de relações simbólicas, que transmitem a carga cultural com que se realizam as práticas de produção e de consumo. Isso faz com que a industrialização retenha movimentos originados de modos pré-industriais de funcionamento e que a sociedade econômica de hoje contenha elementos aparentemente superados de formas anteriores de vida. Daí que a reprodução do sistema de produção, e o movimento de acumulação que dele resulta, tenham conotações diferentes em diferentes oportunidades e em relação com diferentes experiências. Cada sociedade tem que processar o custo social do engajamento do tempo em atividades de produção, assim como tem que ligar os aspectos materiais da acumulação a um modo de poder; e não somente em seu significado econômico imediato. E o modo como ela processa suas experiências faz com que suas relações com outras sociedades tenham um caráter único. Daí que as análises econômicas baseadas em dados do cotidiano, que o separam da perspectiva formativa dos atuais sistemas de produção e modos de consumo, enfrentam, sempre conjuntos renovados de problemas da produção , onde o manejo de incerteza e risco, de especulação e de diversificação do consumo têm um destaque especial. É sempre uma relação entre o que é conhecido e o que não é conhecido. E é o manejo de margens de incerteza, que não é o mesmo que um componente de imprevisibilidade que simplesmente não pode ser antecipado.

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3.3. O tratamento do risco A produção capitalista expande-se mediante um processo de subordinação de pessoas e de recursos naturais para a realização de um determinado elenco de produtos, com uma progressiva substituição das formas de consumo. Nela, cada capitalista move-se numa circularidade entre as previsões de consumo, as perspectivas de demanda e a programação da produção. Os atuais produtores, bem como os produtores potenciais, são levados a desenvolver uma capacidade de produção que geralmente perdura mais que a demanda atual, que depende de uma continuidade da demanda, pelo menos suficiente para acompanhar a duração dos equipamentos hoje disponíveis. Essa suposição de duração é que permite contemplar um processo de substituição progressiva de equipamentos, que seja adequada para permitir a continuidade do processo de valorização. Considerando, também, que as pessoas envolvidas no processo de produção têm um período de treinamento e uma previsão de vida profissional útil, há uma paridade no tempo e no espaço entre os recursos humanos e os de capital, que regula a adequação e a intensidade do uso dos recursos de capital e a dos recursos humanos. A conclusão que se extrai daí, é que quando a renovação do capital é realizada em forma independente da dos recursos humanos, estes últimos têm sua vida útil reduzida, ou tornam-se inadequados para manejar o capital. É o que acontece com os efeitos da renovação do capital naqueles sistemas de produção que não são capazes de manter essa proporcionalidade entre a acumulação de capital e a qualificação do trabalho. Por trás das dasvantagens aparentes entre países produtores de equipamentos e produtores de grãos, tomadas como principais referências da teoria das relações centro-periferia, está o fato de que os sistemas de produção dos países periféricos não preparam recursos humanos adequados e suficientes para acompanhar a renovação do capital. A sustentação das vantagens tecnológicas depende de que cada sociedade, em seu conjunto, e não apenas o sistema de produção, resolva os problemas mais complexos de realimentação, entre a renovação de tecnologias e a da educação. Assim, a interdependência entre o capital e o trabalho pode ser vista no plano da economia mundial e das economias nacionais, levando-se em conta que no nível mundial o sistema funciona com diferentes níveis de mobilidade e horizontes de vida útil do capital e do trabalho; e no nível das economias nacionais, os sistemas funcionam com margens de mobilidade e horizontes de duração do capital e do trabalho, que não são transferíveis de um a outro, ou que somente são transferíveis de modo parcial.

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O lado positivo desse mecanismo no nível mundial é o aumento de eficiência do sistema; e o negativo é a tendência ao desperdício apontada por Baran (3), além dos aspectos mais amplos de destruição de recursos, que têm que ser contemplados numa teoría econômica do ambiente. Em sua formalização, a teoria econômica utilizou o pressuposto de que é geralmente possível substituir entre recursos equivalentes; e baseou-se nesse pressuposto para chegar à simplificação, obviamente infundada, de que a escassez é sempre relativa, ou o que é o mesmo, que não é necessário levar em conta que todos os recursos são esgotáveis. No essencial, o pressuposto da teoria é que o sistema de produção conseguirá, sempre, adaptar-se ao perfil da escassez. Isso, obviamente, não tem fundamento algum na experiência, nem é provável que aconteça. Pelo contrário, o sistema de produção convive, sempre, com margens de incerteza. E o primeiro problema dos produtores é de serem capazes de conhecer, com antecipação com quais e quantos riscos tratam. Ao relacionar dados objetivos da produção e do consumo de hoje com previsões, o produtor capitalista enfrenta, necessariamente, uma margem de risco. O risco opera negativamente em relação com suas previsões de resultados. Compreende um componente de incerteza, por razões naturais ou não, que é anterior a sua própria participação no mercado; e um componente de risco conseqüente de suas decisões de produção. Como o capitalista precisa produzir para reproduzir seu capital - e deste modo manter-se como capitalista - ele tem que conviver com o risco; e como uma reação de controlar os aspectos negativos do ambiente em que opera, ele tende a transferir risco. Cada capitalista individual tenta transferir risco como parte de seu comportamento cotidiano, ao executar um determinado plano de produção; e nos momentos em que delibera sobre novos programas de produção. Mas as possibilidades de transferir risco variam, entre diferentes linhas de produção, para produtores que operam com diferentes escalas de produção e, principalmente, para produtores que se defrontam com outros mais ou menos poderosos. Assim, a mobilidade em relação com o risco reflete os modos como a atividade de produzir está articulada com a de comercializar a produção. E as estratégias de transferência de risco desenvolvem-se ao longo do processo de produzir e de vender a produção. A capacidade dos capitalistas para transferir riscos varia segundo seu conhecimento objetivo dos custos com que trabalha hoje e das margens de confiabilidade de suas projeções; o horizonte espaço-temporal em que se move; a estruturação institucional de suas relações com o Estado, com os demais capitalistas e com os trabalhadores. Isso significa a institucionalização da produção, não só a repetição dos processos de produção,

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como a continuidade das relações de produção e entre produtores e consumidores. Trata-se, pois, de uma forma específica de conhecimento, do mercado, que constitui uma qualificação específica dos produtores em seu cotidiano. Trata-se de riscos da produção em processo e em relação com planejamento da produção futura, entendendo-se que: a rentabilidade atual dos empreendimentos depende de um uso médio de capital que só pode ser calculado sobre a duração média do conjunto dos equipamentos, que em todo caso excede qualquer período de produção; o detalhamento dos futuros programas de produção depende dos resultados obtidos nos programas em curso. Isso significa que há riscos inerentes aos aspectos reais da produção e riscos decorrentes da gestão financeira, que se distribuem desigualmente no tempo, com desiguais condições de incerteza, e por extensão, com condições irregulares de controle por parte de cada capitalista em particular. A incerteza pertence à circunstância histórica em que a produção se realiza; o risco é próprio de cada empreendimento. A gestão financeira liga os riscos de cada empreendimento com a incerteza prevalecente no mercado, já que é nela que se faz a equivalência entre diferentes empreendimentos em diferentes momentos e lugares. Mas, além disso, enfrenta a incerteza específica do próprio investimento, que de fato só pode ser comparado com outros investimentos análogos, a despeito das simplificações a esse respeito introduzidas pela análise econômica do "bem estar"(4). Mas a comparabilidade financeira, ela própria contém uma margem de risco decorrente da manutenção de valor em cada moeda e da possibilidade de manutenção desse valor na comparação com outras moedas. Esse problema hoje é mais evidente no relativo à influência da inflação na manutenção de valor das moedas. Mas, no essencial, mas de fato corresponde a algo anterior a qualquer movimento inflacionário em particular, que é a intensidade das transações entre sistemas de produção, que dá a indicação de quanto uma moeda é desejável por outros. Esse é outro aspecto, em que as simplificações nas comparações entre investimentos excluem um problema essencial dos capitalistas, que é o de projetar ao futuro suas transferências de riscos (5). O processo de transferência de risco se desenvolve ao longo do tempo, na medida em que cada capitalista consegue transferir uma parte de seus riscos, cada grupo de capitalistas consegue estabelecer um relacionamento estável com o Estado e cada grupo de indústrias consegue estabelecer relações estáveis no mercado de trabalho.A capacidade para transferir risco está ligada ao horizonte de informações de cada capitalista e ao poder político que ele consegue controlar. Por isso, torna-se necessário trabalhar com uma conceituação de poder suficientemente ampla para abranger todos os aspectos de sua

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institucionalidade e de sua presença nas práticas cotidianas (6). Tal conceituação, adiante, será a base necessária para um exame das relações entre os diversos agentes econômicos: os diversos produtores, empresas e outros tipos de agentes, os diversos tipos de trabalhadores e o Estados, em suas diferentes manifestações. A institucionalização das relações afeta primeiro o mercado de produção, que é onde os capitalistas podem passar riscos ao Estado na forma de protecionismo; e onde podem passar riscos aos trabalhadores, na forma de alterar as condições de contratação de trabalho. É preciso distinguir aquela contratação direta de trabalho, que as empresas realizam com seus próprios recursos, daquele uso indireto de trabalho, com que contam, mediante sua influência, por exemplo, para que o governo contrate pessoas para realizar tarefas que são de seu interesse. Assim, grande parte da transferência de risco se dá no próprio processo de produção. No plano financeiro propriamente dito, as transferências de risco são bastante menores, porque o mercado financeiro sempre está mais integrado que o de bens, constituído de agentes semelhantes, e porque sempre há uma correspondência entre os preços do dinheiro, mesmo quando ele está submetido a diferentes modos de regulamentação. Mais ainda, os riscos estão distribuídos segundo as possibilidades de cada capitalista, de usar as diferenças de regulamentação financeira em favor de empreendimentos específicos. A manipulação financeira de riscos depende de margens institucionais de poder - tais como as apropriadas pelos bancos e pelas instituições de financiamento governamental - sobrepostas ao manejo financeiro, mas não necessariamente resultantes da própria dinâmica financeira. Trata-se, portanto, de incorporar a estrutura de riscos da gestão financeira aos riscos da produção, distribuindo sobre o tempo os custos da espera do retorno dos investimentos. Assim, se reconhece que há um espectro de condições diferenciadas em que o capital opera, tanto pela variedade de empreendimentos geridos por um capitalista, como pela diversidade de condições para os diferentes capitalistas. Isso quer dizer que a administração dos riscos depende do conhecimento das margens de incerteza que cercam cada empreendimento, o qual, obviamente, decorre do prévio manejo objetivo do componente conhecido. Noutras palavras, a possibilidade de delimitar as margens de risco do atual. Com isto se contrasta o quadro de dados objetivos com o quadro de elementos psicológicos de comportamento dos capitalistas, separando tudo aquilo que pertence à racionalidade na condução da atual capacidade instalada de produção; e tudo aquilo que corresponde à identificação e à exploração de alternativas de aplicação de capital.

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3.4. A especulação Na produção capitalista há sempre diferenças de domínio de informações entre perspectivas de oferta e de demanda, que permitem a realização de operações que não necessariamente revertem em mais produção ou em mais consumo e que são, genericamente, denominadas de especulação. A especulação é, portanto, um exercício de poder não reconhecido, mas em todo caso, tolerado. Implica em determinadas margens de controle sobre a formação de valor, em que, sucessivamente, se altera a estrutura fundiária urbana e rural, modificam-se os preços das mercadorias e alteram-se as condições de formação dos preços dos papéis no mercado financeiro. A especulação é sempre uma atividade que se realiza com uma perspectiva de tempo e de conversibilidade dos ativos de capital. O especulador procura garantir-se a vantagem da conversibilidade. Daí que ela sempre está mais próxima do segmento comercial de atividade e mais distante do de produção. Mas a especulação tem sempre um ponto de apoio na estrutura da produção. As diferenças de velocidade de circulação do capital entre a agricultura e a indústria e entre a produção agrícola de ciclo curto e a produção permanente, fazem com que o dinheiro seja canalizado para as atividades de circulação mais rápida; e que as diferenças entre os tipos de atividade facilitem a entrada de intermediários financeiros, que simplesmente capitalizam sobre os diferenciais de demanda de dinheiro. Isso significa que as diversas margens de especulação correspondem a diferentes escalas de tamanho dos sistemas de produção e a diferentes níveis de tecnologia com que eles operam. A especulação que Tales de Mileto pôde fazer em sua época com suas previsões agrícolas e o preço dos grãos era muito mais simples que a que pode hoje ser feita com previsões de entrada de novas técnicas em produção. Assim, a especulação pode ter um papel apenas complementar de movimentos da produção; e interferir nas decisões que a conduzem. Esse resultado da desigualdade na centralização de poder passa, adiante, por uma legitimação, que a transforma em princípio geral de funcionamento dos sistemas de produção, de modo pouco consistente com a busca de traços comportamentais independentes do jogo do poder. Essa contradição terá, portanto, que ser enfrentada por aqueles que escolhem uma fundamentação de método que segmenta o âmbito econômico do não econômico.

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A especulação desenvolve-se, em sua plenitude, no meio financeiro, onde ela se realiza no ponto de máxima visibilidade dos horizontes de rentabilidade do capital incorporado na produção. Mas, aí, a especulação enfrenta margens crescentes de incerteza, naquuilo em que, por definição, ela não pode penetrar nos deslocamentos do ajuste entre a renovação do capital e a do trabalho, nem nas mudanças que o capital pode fazer, de uma linha de produção a outra. Especula-se com títulos indicativos de certos padrões de eficiência do capital. Mas não se tem como avaliar os efeitos da migração de trabalho especializado de uma linha de produção a outra. Nem se tem como saber quais os efeitos que se acumulam entre linhas de produção onde o capital é plenamente atualizado e linhas onde isso não acontece. 3.5. A diversificação do consumo A produção capitalista se reproduz ampliando-se, o que significa diversificando-se, com uma contínua substituição de algumas atividades por outra, com a inclusão de atividades novas e o abandono de outras. Há abandono de atividades, mesmo em terrenos em que se continua obtendo progressos técnicos, tal como aconteceu com a produção de energia hidráulica, o transporte em barcos à vela, o transporte em carruagens. O abandono implica sempre em custos, que não necessariamente são repostos aos detentores daquele tipo de capital; e quase sempre significa perdas para as sociedades em seu conjunto, tal como aconteceu, precisamente, com o transporte à vela e a produção agrícola com tração animal. Por sua vez, a incorporação de novas tecnologias acarreta custos indiretos, que cuja absorção nunca é explícita. Desse modo, a ampliação da produção implica numa correspondente transformação da capacidade de produção, aí incluindo o capital, com suas características tecnológicas, e o trabalho, com suas qualificações. A possibilidade de que o capital mantenha seu valor depende de que a qualificação do trabalho se mantenha, em extensão e profundidade, portanto, de que os trabalhadores estejam atualizados em relação com as possibilidades de uso do capital. Trata-se, portanto, de que a continuidade do valor incorporado ao capital fixo depende de que haja condições sociais para que ele seja usado; e que em tais condições é essencial a qualificação dos trabalhadores. Assim, a ampliação da produção pressupõe uma correspondente expansão da capacidade de produção e de seu uso efetivo, seja, ela necessita uma expansão da demanda. O perfil da demanda - composição e nível - reflete a composição do capital das empresas e a composição da renda distribuída na sociedade, seja, reflete um panorama de consumo, que supostamente é alterado por deslocamentos na relação entre pretensões de consumo e disponibilidade de mercadorias que podem ser compradas. A análise econômica ortodoxa,

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na versão consagrada por Marshall, estabelece uma separação entre desejos e demanda, sobre o argumento aparentemente claro de que os desejos sem capacidade de compra não existem como demanda. Entretanto, a realidade mostra que há áreas de entrelaçamento dos dois, na medida em que os desejos às vezes encontram modos de pressão, com efeitos econômicos indiretos, tais como a pressão política ou comunitária que induz investimentos e altera as disponibilidades para consumo. A expansão da produção capitalista se realiza em sociedades que se tornam mais complexas, mais urbanas, onde portanto há mais acesso entre os consumidores potenciais e a oferta de mercadorias. Isto amplia as possibilidades de que as pretensões a consumir encontrem formas adequadas para se articularem com o perfil da oferta. Significa que os capitalistas podem trabalhar sobre a indução de compras dos consumidores, já seja para um perfil de compras que corresponde a sua renda atual, a compras que levem ao seu endividamento. Em qualquer sociedade em que a distribuição da renda não mostra modificações significativas em período recente, e onde as demandas dos grupos sociais estão pré- determinadas por sua participação na renda social, não há como manter o ritmo da acumulação sem realizar vendas que difiram daquela composição de consumo que pode ser antecipada pela atual composição da renda. Paralelamente, os produtores procuram adaptar seus programas de produção a uma relação entre a demanda atual e a futura, levando em conta de quais modos a demanda atual condiciona a futura e vice versa. Aos produtores interessa contar com uma demanda suficiente durante o período de amortização de seus investimentos; e não somente para realizar lucros atuais. Isto significa que eles procuram modular a oferta ao longo do tempo, acelerando ou freiando seus investimentos, de modo a manter esse ajuste no tempo. Por exemplo, os produtores de aparelhos eletro-domésticos trabalham sobre uma experiência de negócios com esse tipo de mercadoria, em que os dados de vendas realizadas e as previsões de vendas são parte de um único conjunto. A diversificação da produção tem que ser encaminhada com perspectivas de compra, mas tem que ser de algum modo pressionada, para que a progressão de operações futuras seja diferente da do passado. Essa é uma realidade da qual os capitalistas não podem fugir, sem que suas decisões se afastem da realidade do sistema de produção em que se encontram. O quadro psicológico - de expectativas e preferências - pertence aos sistemas historicamente concretos em que eles operam; e suas decisões refletem tanto uma percepção pessoal como um enquadramento cultural.

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3.6. A universalização do crédito Cada capitalista individual trabalha com um determinado elenco de investimentos; e procura operacionaliza-los no sentido de obter os maiores resultados possíveis, numa combinação de renda e valorização do capital. Isto leva a procurar recursos financeiros ao menor preço possível, o que praticamente significa usar o crédito do modo mais eficiente possível. A tendência à generalização do uso do crédito por parte dos produtores tem seu equivalente num estímulo à intensificação do uso do crédito por parte dos compradores e à gradual modificação no modo como ele é difundido. No nível macro, dos sistemas de produção vistos em seu conjunto, esse processo pode ser visto como uma tendência à expansão da movimentação financeira; e no nível de cada produtor e de cada comsumidor, pode ser visto como o aumento do controle do crédito sobre suas atividades. A internacionalização da economia obriga a levar em conta outro plano de visão da produção, em que a expansão dos interesses privados torna-os uma referência de pluralidade equivalente ou, inclusive, mais complexa que a nacional. Em seu conjunto, é um movimento que desloca o dinheiro na direção das atividades que são financeiramente mais eficientes, ou que tecnicamente podem aproveitar melhor o dinheiro. Isto resulta numa causação circular acumulativa, como denominou Gunnar Myrdal(7), que consiste em que os produtores tendem a operar com quantidades crescentes de crédito, para aproveitar essas possibilidades de retorno oferecidas pelo dinheiro; e o fato de usar progressivamente mais crédito condiciona seus programas de produção. Há inúmeros exemplos na agricultura que ilustram esse fenômeno, tanto nas transferências de recursos entre pecuária e lavouras, como entre diferentes modos de funcionamento em cada uma dessas atividades. As modificações no uso do crédito na produção agrícola no capitalismo industrial podem significar diferentes composições de insumos, mas não necessariamente significam mudanças na composição da produção. Mas, ao longo do tempo, o aumento do uso de crédito traduz-se em maior rigidez da composição dos custos de produção, com a conseqüência final de que os programas de produção ficam sujeitos a novas restrições. O mesmo acontece em diversos outros tipos de bens de consumo em que a invariabilidade dos produtos é essencial na formação de preços. Há um componente de prestígio dos produtos e de status dos consumidores, que contribui para manter os processos específicos da produção de cada um desses produtos.

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Notas 1. O conceito de equivalência é essencial na análise de Marx, para explicar as posições dos diversos tipos de trabalho, portanto, para ligar renda a status. Por equivalências tecnológicas entendem-se aqui com dois significados: no daqueles procedimentos técnicos que podem ser utilizados para fins semelhantes, mesmo quando tenham sido desenvolvidos para outras finalidades; e no de diferentes procedimentos que levam a produtos semelhantes, mediante processos de produção incomparáveis. No primeiro caso estão todas as indústrias desenhadas para uso pacífico que são convertidas a usos bélicos. No segundo, estão diferentes modos de produção de energía, cujos processos são incomparáveis, mas que contribuem ao mesmo sistema de usos. Aí estão, por exemplo, a energía termo-elétrica de pequeno porte e a grande produção de energía hidro-elétrica. 2. Lachmannm, J. " Capital and its structure" J.Wiley Londres, 1956. Com uma linguagem positivista, esse livro retoma um problema central da doutrina marxiana da composição do capital, que confronta a pluralidade de usos possíveis do capital já organizado, com a especificidade dos usos que ele pode, dada a composição da demanda. 3. Trata-se da "Economia Política do Crescimento", onde se focaliza nos aspectos estruturais do desperdício na produção capitalista, avançando alguns argumentos que foram,mais recentemente, retomados pela economia da ecologia, destacando o sentido de irreversibilidade das diversas perdas causadas pela irracionalidade da tendência de produzir sempre maiores quantidades. 4. As comparações convencionais entre investimentos só são, realmente, válidas quando se trata de aplicações de capital cujos resultados são efetivamente comparáveis em mercado; e não quando se trata de artifícios simplificadores de cálculo. O caso da produção de energia é revelador. Como comparar, de fato, a produção em centrais que podem ser localizadas em qualquer lugar e podem ser planejadas para qualquer tamanho com centrais de tamanho e lugar fixos, cujos custos e cujos produtos têm escalas invariantes? 5. Na prática, a transferência de risco interesse a todo o tempo de uso do capital: não se limita ao presente, não pode por isso, ser restrita a uma determinada racionalidade. A noção de expectativa racional, tal como hoje apresentada pela teoria econômica ortodoxa, implica numa posição passiva do capital, que apenas intervém no momento daquele investimento específico. Não reconhece que os capitalistas, per definitio interferem no mercado mediante a transferência de seus interesses à esfera do poder político.

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6. Trata-se, aqui, de uma lembrança da necessidade de situar a discussão do poder levando em conta suas formas no cotidiano, entendendo que o quadro institucional está,sempre, atingido pelas modificações contínuas das práticas dos agentes da produção. 7. A referência é aos aspectos empíricos das análises macro-regionais de Myrdal, especialmente, sobre os Estados Unidos e sobre a Asia.

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II A FORMAÇÃO ANTIGA

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4. Os Modos Antigos do Capitalismo 4.1. Profundidade histórica e atualidade A análise histórica do capitalismo requer algum critério demarcatório, que contraste o que se reconhece como produção capitalista com outras modalidades de produção. A observação de Marx, que põe essa demarcação no adensamento das trocas, e em que a repetição do comércio altera as formas de produção, é uma referência inevitável. Difícil é estabelecer quando essa alteração começa; e quando há uma genuína modificação na interrelação entre as formas de comércio e as de produção. Essa combinação e alternância, entre continuidade e alteração, confere um estatuto próprio ao universo do atual, comparado com o passado, fazendo com que ele tenha sempre a densidade do passado, que é constituído de experiências, que se repetem ou não, mas que são incorporadas ao modo de conviver com o horizonte atual de espaço-tempo. Esse movimento traduz-se num conhecimento acumulativo dos resultados das trocas, que leva a introduzir modificações na lista dos produtos e em suas qualificações, e por meio delas, a canalizar capital para o sistema mercantil-agrícola-manufatureiro em seu conjunto. É o processo que permitiu que os portugueses fizessem as adaptações necessárias para fundir as técnicas de construção e de navegação dos árabes e dos nórdicos e chegassem às caravelas; e que permitiu que os ingleses transformassem a imensa variedade de chás do oriente numa classificação unificada dessa mercadoria. Configura-se, assim, uma questão de método, que não pode ser evitada, decorrente de que, no plano histórico, a compreensão do atual depende da capacidade para perceber a profundidade dos processos vigentes, como experiências e modos de articular o presente. A análise do processo do capitalismo depende da compreensão desse jogo de movimentos e estruturações, que se reproduz ao longo do tempo, junto com os aspectos de consenso e conflito de cada processo. Nessa perspectiva, o passado ganha novos contornos; e os fatos que o compõem aparecem com novos significados . Trata-se, sempre, com períodos de diferente extensão, assim como com espaços formados por relações de desigual intensidade. Por isto, há um problema de enfoque e outro de método, que devem ser resolvidos iterativamente, à medida que se apresentam os problemas de comparabilidade entre as experiências dos diversos países e regiões; bem como os problemas de valoração das experiências atuais comparadas com outras anteriores. Assim como é necessário ter um sentido de proporção entre os diversos processos em curso, é preciso trabalhar com alguma ordem de importância entre as várias relações de

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causalidade que deram lugar ao quadro atual,distinguir o que é concretamente significativo aos processos analisados. Nesse conjunto, é fundamental a aceleração da história na produção, conduzida por concomitante aceleração do desenvolvimento da ciência, e com ela, da tecnologia, significando um aumento de velocidade da produção e da difusão de conhecimento. Tal aceleração, logicamente, é desigual de uma sociedade a outra, e no interior de cada sociedade. Há períodos em que o tempo se acelera; e outros em que se desacelera. No entanto, a ciência trabalha com uma noção de tempo contínuo e com densidades de tempo equivalentes, que permitem supor seqüências comparáveis de acontecimentos. A suposição de que as experiências vividas por pessoas e grupos, e, de algum modo incorporadas à estruturação da sociedade, modificam o significado do tempo, é uma idéia que contrasta com aquela visão de um tempo externo à história, que torna igualmente comparáveis todos os fatos . Essa aceleração da história está contemplada na doutrina marxiana, quando ela ressalta que a industrialização torna possível a reabsorção integral dos resultados da produção; e que a captação de mais valía relativa leva os capitalistas a acelerar a substituição de técnica. A teoria da mais valía explica um interesse dos capitalistas, individualmente, de incorporarem aquelas técnicas que substituem mão de obra por equipamento, direta ou indiretamente, seja quando o trabalho atual é substituído por trabalho passado, ou quando essa substituição se faz mediante a eliminação de etapas da produção que não podem ser mecanizadas. Assim, a substituição é decidida fora do processo de produção. São de cisões de empresa, e não de fábrica, que comandam a produção de mais valia. Daí, a necessidade de separar a análise de empresa da de fábrica, para quem pretende sair da esfera do simples uso de tecnologia para a do controle de tecnologia. No campo da física, ao incorporar a teoria da relatividade, a ciência passou a trabalhar com o referencial de um tempo em aceleração, bem como de um espaço-tempo em que os acontecimentos se tornam, gradualmente, mais próximos uns dos outros. A análise da produção capitalista trata dos aspectos práticos do desenvolvimento de um conhecimento finalístico. Por uma simplificação sem maiores confirmações, descarta a análise da relação entre o conhecimento especulativo e o finalístico. No entanto, quando põe em prática procedimentos destinados a transformar conhecimento em produção e em consumo, a ciência presume determinadas interdependências entre o conhecimento especulativo e o determinado pela solução de problemas imediatos, que aparecem na forma de contribuições da tecnologia.

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4.2. A perspectiva secular da interpretação Há uma questão essencial da história econômica, relativa ao modo como tratar os comportamentos de tipo capitalístico da antiguidade; por extensão, de decidir se houve capitalismo na antiguidade, ou se o capitalismo surgiu na Idade Média. Na "Dialética do Esclarecimento", Adorno e Horkheimer levantaram argumentos que apontam à essencialidade do capitalismo na objetivização das relações econômicas, que em última análise qualificam mais o capitalismo como sistema que o assalariamento que ele realiza. Esse ponto de vista é reforçado, pelo fato de que o controle dos trabalho na produção capitalista pode ser exercido por um componente minoritário de relações capital/trabalho diretas sobre um universo maior de trabalho irregular e não assalariado. Isto significa que os argumentos utilizados para situar o capitalismo na antiguidade são os mesmos válidos para identifica-lo hoje, depois que diminuíram as proporções de trabalhadores assalariados; e quando se torna claro que o sistema de produção capitalista não pretende assalariar a todos os trabalhadores que mobiliza, e que jamais mobiliza todos que pretendem trabalhar. Esse modo de ver a questão confronta-se com aquele outro, mais difundido em sua forma mais simples, de que o capitalismo surgiu, realmente, na segunda metade da Idade Media, associado à expansão das transações de crédito. Mas, ambas visões da questão o identificam com o aumento da quantidade de capital incorporado na produção, seja, com a transformação dos sistemas de produção, conseqüentes dessa reincorporação de capital. O capitalismo está, sempre, ligado à possibilidade de acumular de modo produtivo. A produção capitalista na antiguidade pode ser identificada de diversos modos, destacando-se entretanto que o comércio se desenvolveu, em diversos lugares e épocas, como alternativa da produção agrícola e artesanal e não só como um complemento desta. Se, por um lado, se vê a expansão do comércio nas grandes economias agrícolas, como a egípcia, na qualidade de extensão desta atividade produtiva, por outro lado, em diversas cidades gregas, na Fenícia e em Cartago, o comércio sustentou um modo de acumulação alternativo e inclusive contraditório com os interesses de produtores agrícolas. A expansão das trocas fomentou a formação de excedente físico em diversas áreas agrícolas e extrativas e da produção mineira primitiva. Paralelamente, contribuiu para um desenvolvimento da metalurgia; e os próprios sistemas de infra-estrutura, começando com o sistema de transportes, foram os principais canais de expansão da formação de capital (1).

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Em toda a antiguidade até o Império Romano, a alternância entre o progresso de cidades e a formação de impérios correspondeu à formação de grandes espaços econômicos integrados no relativo a mercado de trabalho e de produtos, que funcionaram com um componente de trabalho pago, que foi necessário para que o componente de trabalho escravo operasse (2). Os impérios teocráticos foram, nesse sentido, economias regidas por um setor público dominante, como mostram, respectivamente, Roux sobre a Mesopotâmia (3), Hall sobre o Egito (4) e Muller sobre os impérios anatólios (5). O Egito resolveu esse problema mediante o controle da estacionalidade da produção, voltando o excedente físico de trabalho para obras públicas. Sem ter as vantagens do isolamento egípcio, os reinos mesopotâmicos voltaram grande parte desse excedente para a expansão militar, transferindo para os povos subjugados as tarefas da produção e do comércio locais. O avanço no tempo dos estudos de história antiga, em lugares como Harappa e Mohenjo Daro e sobre Creta, mostram que o comércio desempenhou, sempre, um duplo papel de complementar e corrigir carências de recursos, e de promover uma diversificação do consumo que sempre foi essencial à expansão da produção capitalista. Esses achados do Oriente, bem como os estudos da história antiga pré-colombiana na América, onde se descobre o comércio entre o México e o Peru, mostram que o comércio de longa distância foi muito mais importante na determinação das condições de vida e na expansão dos impérios que se supusera no século XIX e no começo do século XX, quando se formularam as principais propostas de interpretação econômica baseadas em antecedentes históricos. Esse papel dos impérios foi confirmado e ampliado pelo Império Macedônio, que atingiu um espaço maior e mais desigual, apesar de durar muito pouco. As cidades gregas constituíram uma ruptura com esses modelos imperiais, diferindo também da Fenícia, em que mostraram capacidade de expansão e criação de um grande espaço econômico. Nelas houve uma substituição de uma sociedade de artesãos e agricultores por uma outra situação, em que a cidade como tal e proprietários de capital, usaram o trabalho escravo como extensão de um trabalho livre pago. No caso das frotas, em que foi sempre necessário um componente significativo de trabalho especializado, isto ficou muito claro. O mesmo aconteceu com a produção artesanal especializada, como a de armas e a de cerâmica. Mesmo quando caro, o trabalho escravo foi utilizado como parte de sistemas liderados por trabalho não escravo. Esse processo foi marcado pelas substituições de materiais, destacando-se a difusão do uso do ferro, que surgiu como matéria prima abundante - barata - comparada com o anterior desenvolvimento da manufatura do bronze, dependente do estanho, mais raro e mais difícil de obter. Assim, pode-se falar de uma antiguidade remota, que conclui com o fim da experiência grega clássica; e de outra antiguidade próxima, representada, basicamente pelo

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mundo romano. A confluência de vertentes tecnológicas, a predominância de um modo poli-cultural alimentando a sociedade econômica e a política, levaram à constituição de um espaço econômico essencialmente diverso, onde a unidade política funcionou, exatamente, como uma garantia de relações entre sistemas e espaços desiguais em todos os sentidos. O Império Romano consolidou a experiência política da antiguidade na criação de um sistema de nações unificado por uma legislação de aplicação generalizada e com as garantias de um amplo espaço de trocas, em que o comércio pôde efetivamente ativar a produção. A formação de uma classe capitalista mercantil na metrópole imperial não impediu que se formassem outros centros secundários importantes, que na época da decadência do Império tornaram-se os centros de reinos bárbaros, ou em todo caso, que vieram a constituir as bases de novas redes de comércio. Mas as transformações internas do Império Romano foram decisivas no desenvolvimento de uma relação entre a organização administrativa e o controle das formas locais de produção. Enquanto em Roma se formava uma burguesia mercantil detentora do controle das relações econômicas entre as províncias, em cada uma formava-se uma estrutura local de poder, representativa da mistura da formação cultural e política nacional com a organização política imperial. O feudalismo surgiu como a conseqüência dessa fusão, naquelas regiões onde se estabilizou uma predominância germânica, fosse na estruturação política, fosse no modo como as novas aristocracias ganharam o controle do poder na hierarquia religiosa, inclusive com o comando das ordens militares-religiosas, especialmente dos Templários. A secularização da Igreja tornou-se o principal instrumento da difusão e do controle ideológicos, criando mecanismos de legitimação do conhecimento teórico e do técnico, e distinguindo o que seria matéria de poder local e o de poder imperial. A internacionalidade legitimada identificou-se com a noção de império. As ordens religiosas tornaram-se a principal ligação do ocidente feudal com o poder e a cultura muçulmanos, tornando-se portadoras do conhecimento e da tecnologia que se acumularam nos mosteiros, bem como das possibilidades de renovação técnica ensejada pelo relacionamento com o mundo não europeu. Especificamente, os Templários tornaram-se os recipientes dessa fusão de conhecimentos, e, finalmente, chegaram a ser banqueiros, concorrendo com os tesouros nacionais. O Império Romano foi uma transição entre a antiguidade remota e a formação do mundo econômico moderno, naquilo em que conteve um processo de formação de classes sociais, ampliou em muito o uso de trabalho assalariado; e ligou a expansão do horizonte de trocas à construção de um sistema de infra-estrutura capaz de absorver uma parte significativa da capacidade de formar capital. Teve, também, um papel essencial na

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constituição de uma administração profissional capaz de operar com padrões semelhantes e com linguagem unificada nos pontos mais distantes da comunidade de trocas. Na Idade Média o desmantelamento do poder político do Império Romano, junto com as invasões da Europa por povos bárbaros e a expansão do Islamismo, deram lugar à formação de poderes feudais e a um confronto de escala mundial, entre o universo cristão e o muçulmano. No âmbito islâmico houve ascensão, apogeu e queda de um sistema produtivo baseado em técnicas ligadas à energia hidráulica. No contexto ocidental, houve uma completa reconstrução do sistema produtivo, desde a desorganização das trocas internacionais, a lenta reconstrução da agricultura, o desenvolvimento de novo saber tecnológico (4) e, finalmente, uma nova expansão do capital e do poder europeus sobre outros continentes. No conjunto, o ocidente beneficiou-se muito, de modos diretos e indiretos, do prolongado confronto com o mundo islâmico, dele obtendo uma grande ampliação de sua lista de mercadorías, novas técnicas, de produção e de transportes, além de reencontrar-se com a cultura grega e romana através das traduções árabes. A estrutura do poder religioso aproveitou a máquina administrativa deixada pelo Império Romano e caminhou na direção de uma reconstituição do poder econômico, que se realizou gradualmente, com a recuperação do controle de rotas de comércio, terrestres e marítimas. As linhas de continuidade entre a tecnologia utilizada pelos romanos e a medieval foram a Igreja Católica e o Islamismo. O papel da Igreja Católica foi direto, desempenhado, principalmente através dos mosteiros, que simultaneamente foram bibliotecas, centros de estudos e de aplicação de conhecimentos em áreas como a construção, o uso da energia hidráulica e a construção de ferramentas. O papel do Islamismo foi indireto, mais difícil de reconhecer em sua totalidade, por ter sido, deliberadamente, reduzido pela literatura ocidental oficial. Mas, certamente, foi fundamental tanto no plano das tecnologias, da metalurgia à irrigação, como no cultural, pela transmissão dos textos antigos e da experimentação, transferida de Alexandría e de Bizâncio. Diversas razões, dentre elas o contacto com o mundo islâmico e a fusão das culturas nórdicas com as mediterrâneas, contribuíram para uma lenta transformação da agricultura, depois convertida em verdadeira revolução agrícola, que significou maior oferta de produtos e ampliação da lista dos produtos utilizados na Europa ocidental. Não por acaso a expansão foi levada a cabo por aquelas nações que viveram mais intensamente esse contacto cultural. O capitalismo encontrava-se diante de duas grandes vertentes: a de relações com sociedades econômica e politicamente menos desenvolvidas, que poderiam desempenhar o papel de supridoras de matérias primas e escravos; e a de relações com sociedades econômica e politicamente mais elaboradas, que teriam que ser subjugadas.

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Diante desses desafios, o capitalismo mercantil agiu principalmente por meios militares, mostrando uma grande desinibição para dominar, justificada em nome da diferença cultural, e de uma visão européia civilizatória. Hoje, as diferenças no lado europeu revelam-se com mais clareza, inclusive pelo modo como ele atingiu o mundo da experiência européia. A compreensão da pluralidade de culturas e da de pontos de vista, torna necessário substituir aquela visão da formação do capitalismo, que o apresenta como um fenômeno criado pelo norte da Europa, por aquela outra que o vê como parte essencial da civilização ocidental; e que resulta da progressiva integração dos componentes da fusão greco-siríaca do ocidente. Essa visão do Ocidente está nas interpretações de Arnold Toynbee e Oswald Spengler (6), que ao buscar os contrastes da unidade ocidental mostraram melhor sua pluralidade interna. A ênfase de Weber no papel do individualismo enfatizado pelo protestantismo explica uma parte da questão, aquela que corresponde ao impulso do capitalismo que emerge diretamente do feudalismo. Mas deixa de lado as demais matrizes do complexo cultural do Ocidente, ou sobrevaloriza a participação da confluência cultural da germânica do norte, protestante, frente à convergência germânica do sul, católica, mais ligada às experiências da bacia do Mediterrâneo. Por isto, tem que ser corrigida com outras observações históricas igualmente importantes. Primeiro, a análise de Pierre Chaunu (7), mostrando a organização do comércio em torno de sucessivas mercadorias principais - na bacia do Mediterrâneo - em que a escolha do produto principal - azeite de oliva, trigo, vinho - implicou em todo um processo de organização de produção para uso local; e em que a organização dos espaços de comércio passou a funcionar como aliciente para a entrada de novas mercadorias. Nessa perspectiva, o essencial é observar a progressiva ampliação do elenco de produtos trocados; e a ampliação dos efeitos organizadores de regiões econômicas. Segundo, a proliferação de colonias em diversos pontos do Mediterrâneo e seus efeitos além dessa área, na Africa e no Norte da Europa, nos séculos XIV e XV, levou à criação de núcleos de economia local organizada em bases internacionais, dependendo da produção especializada de mercadorias. A intensificação das relações entre essas colonias dependeu de inovações na tecnologia naval - a diferença entre a tecnologia dos portugueses e a dos cartagineses - e na capacidade de adaptar produtos, para poder usa-los como mercadorias. Essas duas operações foram realizadas por portugueses e espanhóis nas ilhas do Atlântico. Terceiro, o papel da metalurgia na organização internacional do sistema mercantil-manufatureiro-agrícola, pelo que ela representa de organização de uma produção com

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etapas claramente diferenciadas, dependendo de adiantamentos de capital no centro do sistema, representado nesse caso pelos lugares de fabrico de utensílios e armas. Os progressos nesse campo estiveram ligados à expansão muçulmana e à posterior reorganização da produção na península ibérica. Mas, ao observar as transformações da economia na antiguidade não se pode restringir a dinâmica do processo aos efeitos seqüenciais em cadeia nos pontos centrais do poder econômico, nem limitar o horizonte de visão à Europa ocidental. É fundamental reconhecer a desigualdade com que o capitalismo avançou em diferentes áreas, distinguindo o amadurecimento do modo capitalista de produção no centro do processo; e o elenco de modos de articulação da produção capitalista com produção extrativa e artesanal na periferia do processo. Trata-se, de fato, de um processo que incorporou capital formado em modalidades de produção não capitalistas; e que conduziu essa produção não capitalista a uma sucessão de modos de subordinação, mediante o controle do mercado. A produção de madeiras e de tinturas é um bom exemplo disso: mesmo continuando numa ponta como produção extrativa, passou a alimentar formas de produção cada vez mais próximas da indústria. Ao situar essa questão na moldura de movimentos de longa duração, além de qualquer mercado local em particular, observa-se que o amadurecimento das práticas capitalistas volta-se mais para a substituição tecnológica no núcleo central de produção genuinamente capitalista, e que geralmente transferiu - a outros e ao futuro - a problema de atualização tecnológica da produção não capitalista subordinada. Isso obriga a levar em conta as relações da formação do capitalismo na Europa com outros grandes fenômenos, notadamente o poder muçulmano e com a formação de um sistema colonial no século XVI. Vê-se, portanto, que é mais significativo focalizar nos nexos entre impulsos de crescimento e transformação, culturas e experiências sociais, que na diferenciação entre elas, ou na formação dos Estados nacionais. A grande distorção da historiografia nor-europeia - que se tornou oficial - está em minimizar a importância da luta pelo controle do poder político na Europa nos séculos XVI e XVII; separar a importância da formação dos Estados nacionais da formação dos impérios, austríaco e espanhol; e reduzir a equação de poder às lutas religiosas, ou aos aspectos internos dos Estados nacionais. Com isso, excluíram-se da análise as contradições dos impérios, dando, por oposição, um peso excessivo à formação dos poderes locais do noroeste da Europa e ao protestantismo. Ao perceber, a importância da progressão do conflito com o mundo islâmico, bem como o papel das colonias, impõe-se, hoje, reconstituir as relações de causalidade entre a disputa política do impérios com os Estados nacionais e a disputa econômica dos mercados,

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na Europa e nas colonias. Daí, a importância da formação do Sacro Império, como estruturador do mercado e da capacidade de produção da Europa, a importância do relacionamento entre a borda norte e a sul do Mediterrâneo, assim como a da área de maior intensidade desse contacto, que foi a península ibérica. Trata-se, pois, de uma revisão das perspectivas com que se encaram as conseqüências dos processos políticos, econômicos e culturais da Idade Média. 4.3. Uma possível periodização À luz do anterior, depreende-se uma cronologia indicativa das transformações econômicas e sociais, que conduziram à produção capitalistas, e dos movimentos de suas próprias transformações, representada pelos seguintes períodos de formação e de ruptura, que é a seguinte: 1. Da antiguidade remota até o amadurecimento do capitalismo mercantil do Mediterrâneo oriental. A produção para mercado organizou-se junto com as cidades. Destaca-se o auge econômico das cidades-Estado gregas e das fenícias. Compreende os dois perfís básicos, de economias essencialmente agrícolas e nacionais e de economias mercantís e internacionais. Grecia e Fenícia de um lado e Egito e Mesopotâmia de outro, representam projetos de poder que dependem, respectivamente, das estruturas de comércio e das estruturas de produção agrícola e artesanal. Na antiguidade, destacam-se, sucessivamente, os confrontos entre o Egito e os povos semitas, entre a Fenícia e Cartago com os povos helenos, e entre estes e os persas. Esse período conclui com o império macedônio e as fusões culturais e econômicas do Oriente com o Ocidente, que ele projetou no helenismo (300 A.C. a 50 A.C.). O horizonte de expansão do comércio foi regulado pela capacidade de cada um desses contendores, de manter espaços econômicos estáveis durante períodos prolongados. 2. Do fim da antiguidade remota até a consolidação do poder de Roma, seja , aproximadamente até a conclusão da expansão romana. É uma grande generalização, que torna necessário distinguir entre os sistemas de produção nacionais fechados, teocráticos como o egípcio, os germanos , a maioria dos indígenas americanos, e os sistemas de produção baseados na atividade mercantil, como a Fenícia e Cartago. Os sistemas de produção mercantís da antiguidade, dos que a Fenícia e Cartago foram os casos extremos, foram essencialmente capitalistas, funcionando com mercantilização do trabalho e usando o comércio para condicionar a produção primária das áreas de produção mais simples. As cidades gregas combinaram essa função mercantil com uma produção primária própria, porém precária, dependendo essencialmente dessa atividade mercantil.

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3. O período de supremacía do poder romano, até a queda de Roma e da predominância de sua influência. Roma consolidou as formas anteriores de mercantilismo e produção rural num âmbito maior de mercado. Incorporou de modo sistemático a infra-estrutura e a normatização da produção. Vinculou o aumento de renda com a diversificação do consumo. Tornou público um sistema institucional que passou a referenciar as relações econômicas. Roma um prolongado e complexo processo de transformação das relações de trabalho e de organização da propriedade, onde se configuraram, com clareza, as diferenças entre a propriedade produtiva e a não produtiva e a formação de uma classe de capitalistas e prestamistas e outra de trabalhadores, dependentes do aparecimento de oportunidades para se engajar, alternativamente, na produção urbana e na rural. 4. O período de supremacia do Império do Oriente até a queda de Constantinopla em 1452. Abrange a Idade Média e a formação e ascensão do islamismo, compreendendo o capítulo das Cruzadas e o islamismo na Espanha. Essencialmente, significa uma bipolarização de poder - interrompida e solapada pelos bárbaros - onde a produção no Ocidente passou por uma longa regressão e experimentou, de volta, uma revolução agrícola e uma gradual recomposição do comércio no espaço reorganizado europeu. Ao final da Idade Media emerge uma produção mercantil-agrícola e manufatureira que incorpora os avanços do lado muçulmano e assume a liderança na expansão do mercado mundial. 5. Um período de ruptura: a transição à economia capitalista moderna, da queda de Constantinopla até a batalha de Lepanto em 1574. É praticamente o período da Renascença, que marca o apogeu do Império e das cidades Estado, com uma expansão do mercado fora da Europa, avanços tecnológicos na produção e principalmente a articulação entre a perspectiva metodológica da ciência e a organização da produção. Essa mudança de concepção foi magnificamente colocada por Whitehead (8), mas em todo caso compreende os frutos de diversos impulsos de contestação de dogmas do conhecimento, que começam na Idade Média com Nicolas de Cusa e outros, mas que estão mais claramente identificados com Galileu. 6. O período da expansão da produção manufaturada tecnificada e de expansão do mercado mundial, até aproximadamente 1750. Caracteriza-se pelo confronto entre os impérios e os Estados nacionais, com a expansão da escravidão e de diversas formas de dominação do trabalho nas colonias. Também é o período de grande expansão da área cultivada nas diversas colonias, junto com o desenvolvimento de ferramentas de melhor qualidade e com a expansão da produção de mercadorias de características técnicas controladas e por uma notável ampliação do trabalho incorporado na produção capitalista.

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7. A formação do capitalismo industrial até a restauração pós- bonapartista, por volta de 1830. É a grande ruptura do sistema político representada pela Revolução Francesa, com as subseqüentes contradições representadas pelo período bonapartista. É um período claramente de transição, em que os modos de produzir tornam-se mais importantes que a qualidade dos materiais. Difunde-se a produção padronizada. Criam-se as condições para a acumulação por empresas. Surge a empresa moderna. 8. A ascensão da produção industrial manufatureira e do novo imperialismo, até cerca de 1870. Corresponde à expansão da produção industrial e à pressão pela expansão do mercado nos países industrializados e ao novo imperialismo em todas as partes do mundo. Tem lugar uma articulação sistemática entre a expansão da produção industrial e a modernização do aparelho operacional do Estado. A indústria bélica torna-se um setor de alta tecnologia. 9. O período de confronto dos interesses capitalistas por mercados internacionais, entre 1870 e 1914. Configura-se a disputa entre os países industrializados com grandes mercados internos e os novos impérios coloniais. Consolida-se o complexo industrial-militar como setor de alta tecnologia e como ligação entre o modelo sidero-metalúrgico e as despesas públicas em infra-estrutura, especialmente em energia e transportes. Entram a massificação do transporte ferroviário, a aviação, o motor de combustão interna. 10. O período de ruptura e reordenamento da economia mundial entre 1918 e 1939. Destaca-se a expansão do capital financeiro. Ganha importância o transporte rodoviário e com ele o valor estratégico do petróleo. Expande-se a produção de energia hidroelétrica. A renovação da tecnologia é realimentada pela pesquisa científica aplicada sistemática. Surgem as alternativas autoritárias de esquerda e de direita ao sistema liberal-burguês. Surgem as políticas públicas compensatórias. 11. A internacionalização da economia mundial a partir do reordenamento de poder decorrente do fim da segunda guerra mundial. A divisão do mercado mundial correspondente à formação de blocos políticos. Posteriormente, o aparecimento da empresa transnacional e da multinacional, com a transferência de proporções crescentes do controle do fluxo financeiro da esfera pública para a privada. Finalmente, as novas divisões econômicas do mundo a partir do distanciamento entre os países que se desenvolvem e os que se sub-desenvolvem. A perspectiva dos usos de energia. A distinção desses períodos está identificada com grandes movimentos nos usos de energia, em sua relação com as tecnologias de infra-estrutura de transportes e com a metalurgia. O período da supremacia romana foi, também,

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o de uma considerável expansão dos usos de energia e de construção de um sistema de transportes adequado para gerir a expansão territorial do sistema de produção e de comércio. A decomposição do Império Romano foi, sob diversas formas, o choque desse universo organizado e dotado de uma boa dotação de infraestrutura, com uma multiplicidade de sociedades menos complexas, em expansão demográfica, sobre a base de uma disputa fundiária. O período medieval compreendeu, também, consideráveis desenvolvimentos tecnológicos, alguns que prosseguiram, outros que foram descontinuados. O século XVIII foi um período de amadurecimento tecnológico da produção manufatureira, em que houve progressos significativos nos modos tradicionais de aproveitamento da energia hidráulica. No entanto, a industrialização destaca-se como um grande movimento de realimentação de conhecimento técnico para fins práticos, com mudanças de escalas de investimento propiciadas pelo Estado; e com mudanças decisivas nos modos de aproveitamento de energia. A partir do século XIX começou outra história do uso de energia, e com ela, outro impulso de crescimento da produção. A produção passou a fazer-se com combustíveis sólidos transportáveis e capazes de manter suas propriedades caloríficas: carvão e turfa. O aparecimento de maquinaria capaz de substituir entre fontes de energia, justamente, a energia dos ventos e da água, permitiu levar a energia armazenada, junto com a maquinaria, de um lugar a outro, bem como permitiu usos contínuos de combustíveis - nas caldeiras - portanto, tornou possível aproveitar a divisão do trabalho como meio de acumulação de capital. 4.4. A antiguidade mercantil A mecânica do capitalismo mercantil tem que ser revista sobre essa referência de usos de recursos e de deslocamentos demográficos, para que se compreenda seu papel como indutor de produção. O comércio significa a identificação de parceiros e de rotas de comércio. Implica numa tecnologia de transporte. Significa, acima de tudo, a capacidade de transformar produtos de uso local em mercadorias. Somente assim é possível reavaliar seu papel como criador de riqueza e na acumulação de capital; e para chegar a formulações mais objetivas sobre as limitações da produção não industrial para reincorporar de modo produtivo o excedente obtido no sistema de trocas. Também é preciso superar as limitações conceituais das análises restritas ao universo das experiências européias e aos movimentos de construção de impérios. A construção de uma visão genuinamente plural de mundo, impõe trabalhar com os movimentos de formação de correntes de comércio na esfera islâmica, no Oriente e na

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América. Para isto, é preciso romper com o determinismo conseqüente da visão euro-cêntrica e saxônica, para chegar a uma compreensão mais completa e equilibrada do próprio quadro europeu, onde os países ocidentais conviveram em constante confronto na constituição do mercado europeu. Logo, é preciso compreender o papel da América, da India e da África na expansão do comércio mundial nos séculos XVI e XVII, bem como trabalhar com referências mais equilibradas sobre a importância do mundo islâmico na expansão do capitalismo na Europa e na expansão do sistema colonial. As experiências das cidades gregas e da Fenícia e de Cartago mostram algumas peculiaridades que não podem ser ignoradas, tais como o papel da ampliação da capacidade de armazenagem e o da rede de portos como pontos de irradiação de influência sobre regiões produtoras e consumidoras. A capacidade do comércio para financiar - adiantando dinheiro - trocas entre portos distantes significou a capacidade de criar redes de comércio, que em seu conjunto cumpriram esse papel de ampliar mercado e diversificar as pautas de produtos. 4.5. Os grandes movimentos da Idade Media Nos movimentos de longa duração da formação do sistema de produção, distingue-se, de um lado, a linha central de transformação interna do sistema da Europa, na sucessão da desarticulação do Império Romano e da recomposição de novos impérios de matriz germânica; e de outro lado, a inter-relação entre esse movimento central no ponto de máxima concentração de poder e as diversas forças que o atingiram desde fora. Não se pode superar a visão local da economia da Idade Média sem levar em conta as grandes pressões que ele recebeu de fora, que foram, principalmente, as exercidas pelos impérios e estados islâmicos. Nas transformações internas do sistema principal de poder, destaca-se a diferença entre a desorganização da centralidade política e administrativa e a conseqüente formação de poderes alternativos locais, conduzida pelos sucessivos choques e pela gradual fusão entre a estrutura romana e a germânica. Os trabalhos de Ferdinand Lot (10), de Jacques Le Goff (11) e de Jacques Heers (12) mostram, a seqüência da emergência do papel da Igreja como elo de ligação entre a tradição e a tecnologia romanas e a formação de um sistema de produção medieval, a reorganização gradual do trabalho sobre bases locais e os mecanismos de comunicação e de fertilização tecnológica que se desenvolveram nas últimas etapas da Idade Média. No final da Idade Média, essas fusões tecnológicas tinham se estendido no interior do espaço ocidental, estimuladas pelos mecanismos de

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internacionalidade das Cruzadas e pela crescente estabilidade dos sistemas de poder nacionais. Nesse movimento, destaca-se o papel dos mosteiros como centros de centralização de conhecimento e tecnologia, apoiados no fato de que as ordens militares-religiosas foram controladas pelas aristocracias locais de base não romana; e que finalmente se tornaram as principais referências de novas formas de produção. A produção de melhores ferramentas e os melhoramentos na captação de energia hidráulica, foram pré-condições necessárias para aquele aumento da produção agrícola que sustentou o aumento de trocas no fim da Idade Média, e que resultou em ampliação da captação de recursos naturais, como adiante foi analisado por Braudel (13). Mas, o fundamental é a criação de condições para viabilizar novas formas de acumulação, seja, para incorporar a formação de valor como meio de transformar o sistema de produção. Neste sentido é imprescindível lembrar que os portugueses primeiro, e logo os espanhóis, usaram as ilhas do Atlântico e algumas ilhas das Antilhas como estações de adaptação de variedades vegetais e animais, que logo transferiram para produção. Isso inclui cana de açúcar, gado e diversas espécies vegetais. O aumento da produção de energia e o conseqüente aumento da produção agrícola são essenciais para acompanhar aquela urbanização e composição de novo comércio internacional com seu próprio perfil de acumulação analisados por Pirenne (14) e por Gimpel (15). A organização capitalista da produção avançou mais naquelas regiões, como a Lombardia, a Catalunha e a Provença, onde a organização do poder político local coincidiu com áreas agrícolas poderosas e onde houve correspondente facilidade de transporte de pessoas e de mercadorias. Do lado externo, a principal influência foi a islâmica, representada pela influência filosófica, pela transferência de tecnologia agrícola, na ampliação da lista de produtos - cerca de trinta produtos adicionais - além da reconhecida importância da recuperação do conhecimento pré-romano: grego e helenístico. Na última parte da Idade Média, a Europa foi profundamente atingida por mudanças no modo de pensar, cuja parte mais visível ficou sendo aquela mais diretamente ligada à Renascença, por isto, o processo que transcorreu na Italia. Mas são fundamentais os movimentos conseqüentes da atividade desenvolvida no âmbito islamizado, como se infere hoje do pensamento dos eruditos árabes e judeus, como Averroís, Avicena e Maimônides. Assim, diferentemente da corrente de interpretação saxônica, que sempre apresentou o progresso material e a expansão do capitalismo como próprios do norte da Europa, vale a

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pena esclarecer melhor sobre a função renovadora da fusão da Europa com o mundo islâmico; e mostrar que a expansão do mercado mundial e a intensificação do comércio mundial não se fez pela periferia da economia européia, senão pelos países e regiões que melhor puderam aproveita a renovação tecnológica. Mais ainda, cabe observar que essa linha de análise, principalmente representada por Weber e Sombart, focaliza a atenção quase exclusivamente em fenômenos da organização local da produção e do comércio, separando-a dos elementos explicativos próprios da organização política. Mas ao considera-la observa-se que o controle da renovação técnica nos setores mais estratégicos para essa expansão do comércio foi feito pelos países ibéricos trocando o cenário de recursos do Mediterrâneo pelos do Atlântico. Foi um projeto longamente desenvolvido por Portugal, que essencialmente substituiu o projeto político - da Espanha e do próprio Portugal - de projetar seu poder político, imperialmente, sobre o norte da África. Também, deve-se relativizar a importância do feudalismo no processo de formação política e econômica que conduziu à formação do capitalismo moderno. O feudalismo foi um fenômeno restrito a uma parte da Europa; e em toda sua duração contracenou com o poder concentrado na Igreja e em movimentos pendulares de formação de impérios. Não se pode esquecer o aparecimento dos bancos e do capitalismo mercantil e bancário na Lombardia, em Genova, Veneza e na Catalunha, justamente áreas que ficaram à margem da estruturação política do feudalismo. Notas 1. Em seu conjunto, as cidades fenícias e Cartago constituem uma experiência paralela à grega, interativa com ela, mas que não pode ser explicada por analogía com o modo de funcionamento econômico do mundo helênico. No essencial, representam um modo mercantil de acumulação, que difere muito pouco daquele seguido, muitos séculos depois, por Veneza. A combinação de comércio e poder militar contradiz claramente a trajetória do mercantilismo ligado à produção agrícola e sugere outros modos de analisa-lo em sua participação nos séculos XVI a XVIII. Sobre essas cidades semitas, podem ver-se Donald Harden, "The Phoenicians", (Penguin ,Londres,1971 e B. H. Warmington, "Carthage", (Penguin,Londres, 1964). Se os fenícios, em alguns momentos, funcionaram como mercenários dos reis egípcios, noutros momentos criaram colonias, como a própria Cartago, que formaram seus próprios espaços econômicos. 2. Observa-se, aqui, como uma mesma região sediou formações sociais e políticas concomitantes, mas com diferente expressão econômica. Georges Roux, " Ancient Iraq", Penguin, Londres, 1964.

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3. Trata-se do livro de H.R.Hall, " História Antiga do Oriente Próximo" (Casa do Estudante do Brasil, Rio, 1948), datado do começo deste século, que entretanto oferece uma cronologia comparativa de grande utilidade para indicar os efeitos de fluxos migratórios na antiguidade remota. Compara-se, por exemplo, com a "História Geral da África" (Atica/UNESCO, São Paulo, vols.I a IV). 4. A história da península da Anatólia, hoje Turquía, mostra essa grande continuidade da ocupação do mesmo território por diferentes civilizações, que se ligam de modos complexos e nem sempre completamente visíveis. Herbert Muller," The Loom of History", Mentor,N.York,1961 . 5. O reconhecimento da estruturação de um saber tecnológico na Idade Média, em conjunto com uma visão teórica interpretativa - geralmente atribuida, com variável propriedade, à predominância das idéias de Aristóteles - é essencial nesta leitura das origens da formação do capitalismo moderno. Essencialmente, destacam-se a organização conjunta da produção artesanal metalúrgica e das técnicas de construção. Em nenhuma foram importantes as idéias de Aristóteles ou de qualquer outro clássico antigo, que de fato só entraram no contexto do saber europeu através dos árabes, já avançadas essas mudanças. 5. Arnold Toynbee, com " Estudo da História" e Oswald Spengler, com seu " Decadência do Ocidente" ofereceram as duas principais interpretações "fáustica" da história como dotada de um destino, pontilhado de relações determinantes e de grandes movimentos dos povos. 6. Pierre Chaunu, " A História como Ciência Social" Rio, Zahar, 1976. 7. Alfred N. Whitehead, em " La Ciencia y el Mundo Moderno" (Espasa Calpe, Madrid, 1958), oferece uma reflexão sobre o papel da formação da ciência na construção do conceito de modernidade. 8. Paul Mantoux, " A Revolução Industrial no Século XVIII" Hucitec/UNESP, São Paulo, 1985. 9. Ferdinand Lot, " O fim do mundo antigo e o princípio da Idade Media", Lisboa, Edições 70, 1985. 10. Jacques le Goff, " A civilização do ocidente medieval", Lisboa, Editorial Estampa, 1984.

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11. Jacques Heers, " O trabalho na Idade Media", Europa-América, Lisboa, 1980. 12.Fernand Braudel,"O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico", Lisboa, Martins Fontes, 1984. 13. Henri Pirenne, " Historia Econômica y Social de la Edad Media", Fondo de Cultura Económica, Mexico, 1958. 14. Jean Gimpel, " A Revolução Industrial da Idade Média", Lisboa, Europa-América,1986..

5. Unificação e Expansão do Mercado Mundial 5.1. A expansão do horizonte mercantil Na visão em perspectiva secular da ampliação da produção, distinguem-se movimentos de unificação e expansão de mercados; e movimentos de estagnação e desagregação das relações entre sistemas de produção, algumas vezes claramente associados a processos econômicos, e outras vezes ligados a movimentos políticos. A complexidade desses movimentos desaconselha simplificações de análise, em parte para evitar erros desnecessários, e em parte por ser sempre possível que no processo de pesquisa se altere algum argumento essencial; e que isso invalide a simplificação que sustenta os modelos de análise. Hoje, há fortes razões para evitar esse viés de simplificação. A atual prevalência da tendência da economia mundial à unificação de mercado, concentra as atenções nas tendências de integração, como por exemplo, nas da formação de blocos de comércio, desviando a atenção de outros tantos movimentos, como da fragmentação de países, que se repete periodicamente; e que leva a subestimar as tendências desagregadoras que coincidem com as de integração. No entanto, esses movimentos contrários à integração não podem ser negligenciados na análise histórica da produção, sob pena de criar-se uma imagem distorcida dos modos como se acontecem a continuidade e a descontinuidade da acumulação de capital.

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A busca de unificação de mercados esteve ligada ao impulso de expansão de todos os impérios, junto com a projeção do poder personalizado. Mas realizou-se de diversos modos, com diferentes duração e objetivos, desde os motivos religiosos até os claramente econômicos. De fato, um mercado só se expande quando há um sistema de comércio com regularidade de transações e capital suficiente para sustentar o fluxo de suprimentos de matérias primas e de trabalhadores que produzem para ele. Isso foi verdade desde os tempos da Fenícia até os do capital mercantil contemporâneo. Mas há alternâncias entre a expansão política e a comercial, que dificultam qualquer generalização nessa área; e que levam, ainda, a ressaltar o contraste entre o papel histórico dos impérios frente ao das organizações locais de poder, assim como mostram que nessa contraposição se identificam interesses locais e individuais; assim como nela se formam os coletivos capazes de refletir experiências localmente estabelecidas. Desde o império de Sargão I em 2200 a.c. até o de Gengis Khan em 1200 d.c., o impulso de poder político autocrático levou, de arrastão, à criação de condições para a expansão de relações de comércio mais amplas que as locais. O grande problema dos impérios foi encontrar modos de organização política e econômica, que permitissem a continuidade do poder acumulado, por períodos longos. A duração foi essencial no modo como sua influência se expandiu, desde os casos dos impérios mais breves, como o macedônio, até o dos mais duradouros, como Roma. O encadeamento dos efeitos dos movimentos militares e das migrações, com a formação de rotas de comércio e de intercâmbio cultural, seguiu caminhos mais complexos que os imediatamente visíveis. Por exemplo, os efeitos econômicos indiretos do império macedônio somente podem ser plenamente apreciados mediante uma leitura do significado do Helenismo, que se estende até a ascensão de Roma; e obviamente transcende o significado de seus estímulos sobre a relação entre Oriente e Ocidente. Destaca-se que a transferência dos efeitos do comércio à produção depende da duração das instituições, que por sua vez permite estabelecer previsões de resultados do capital. Mas, não há como subestimar essa outra rede de relacionamentos, que afetam mediatamente o âmbito do econômico. Nisso, é essencial que haja algum coletivo capaz de se reproduzir. O mecanismo dinástico só foi satisfatório, quando respaldado por alguma casta ou grupo de poder, que se tornou capaz de realizar a continuidade da tecnología e da organização, como no antigo Egito do Baixo Império e na Inglaterra vitoriana. Contrasta, claramente, com a precariedade dos impérios formados sobre bases de organização tribal, como foram, em sua totalidade, os impérios bárbaros na Europa, inclusive o de Carlos Magno. Nenhum deles foi capaz de promover a metamorfose do poder atual em processo prolongado de produção de poder. Essa capacidade só reapareceria na Europa - coincidindo com a queda de

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Constantinopla - com a fundação do Sacro Império Germânico. Dentre os impérios de curta duração, o macedônio produziu o maior abalo econômico na antiguidade, dando lugar a uma grande fusão de conhecimento teórico e prático, atingindo o mercado de trabalho e abrindo canais de comunicação entre estruturas culturais, que culminaram com o helenismo e o papel de Alexandria, como centro científico e tecnológico mundial. A fusão da socialização grega da reflexão com a experiência das sociedades não européias -especialmente o Egito - mais contínuas e organizadas, fizera-se, sempre, nas comunidades helênicas mais distantes, mas a fusão somente se concretizou quando a ruptura do sistema político grego traduziu-se num impulso de subordinação de impérios, isto é, quando a Grecia tornou-se instrumento de uma centralização de poder que negava seu próprio princípio de autonomía. O conflito ideológico representado por Demóstenes, analisado por Jaeger (1) reflete essa contradição, entre a percepção ideológica do poder político e sua instrumentalidade. Mais tarde, em sua expansão, Roma desempenhou um papel similar, mais importante do ponto de vista da formação de uma economía e de uma estruturação política, porque conseguiu resolver essa relação entre a estrutura política e a econômica de modo muito mais duradouro. A criação de uma agricultura constituída de ex-militares romanos significou controle sobre a estrutura agrária e previsibilidade de produção. A posição, cronicamente deficitária, de Roma no suprimento de seu próprio consumo, levou a uma crescente complementaridade com as nações que subjugou politicamente. O desenvolvimento da engenharía traduziu-se na incorporação de terras a cultivo regular, bem como a um rápido aumento da população organizada por um consumo urbano maciço, surgindo pela primeira vez o componente urbano - a cidade de Roma - como indutor dessa organização do comércio. O declínio de Roma, a passagem do império para Constantinopla, significaram a orientalização do sistema, com perda dessa capacidade de intermediar a pluralidade. A quebra da unidade política significou, mais que nada, a desorganização desse mercado internacional, e com ela, a desorganização do mercado urbano de grandes cidades. Na Idade Média, as ligações dos mercados locais do Ocidente ficaram restritas às trocas de mercadorias de elevado valor por peso em operações de escala regional; e alguns circuitos de trocas de bens de consumo realizadas em extensas redes de comércio de baixa intensidade: as caravanas. O comércio terrestre europeu comparou-se desfavoravelmente com o muçulmano, que teve, a seu favor, a comunidade produzida pela combinação de uma religião hegemônica com liberdade de culto. A principal articulação de mercado ficou, por isso, no mundo islâmico, que se beneficiou da unidade de língua e de religião, em que esta última criou um ambiente ético homogêneo, também em contraste com os conflitos

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religiosos da Europa cristã. Os maiores espaços de mercado foram, por isso, os que vincularam o mundo islâmico com a Índia e com a China. Daí, com o fracasso das Cruzadas, as vitórias militares localizadas do Ocidente, especialmente na península ibérica, indicaram o comércio marítimo como única alternativa de expansão, muito antes da queda de Constantinopla. As principais ligações entre a experiência romana e a construção do mundo moderno foram a Igreja Católica e o confronto com Império Islâmico. Mas essa complexa passagem da antiguidade para a modernidade compreende movimentos contínuos e descontínuos, entrada e saída de protagonistas da sociedade econômica, assim como a adaptação de tecnologias das origens mais variadas. A Igreja Católica foi a ligação que garantiu a continuidade cultural; e deu o espaço para as sucessivas fusões com as novas experiências que se formaram em território europeu. Mas ela própria passou por profundos desdobramentos internos - especial pela criação das ordens militares religiosas - que a levaram a sucessivos confrontos, na relação entre a formação do poder político e o controle da terra; e entre a formação do poder econômico e o das regiões políticas, culminando com o protestantismo. Mas foi mediante seu confronto externo, com os diversos países do mundo islâmico, que o mundo europeu reencontrou o modo de pensar antigo; e que se reencontrou com as alternativas tecnológicas criadas nos tempos antigos. Muitas estradas, canais de irrigação e obras de drenagem, usados até hoje, são de desenho básico romano e pré-romano, indicando como o tecido de localizações econômicas do sistema de produção de base europeu tem raízes anteriores. Junto com as obras físicas, muitas idéias antigas, reprocessadas no espaço islâmico, principalmente na Espanha, sugeriram diversas das interpretações tidas como européias (2). Esse confronto tomou várias formas, desde os enfrentamentos com os árabes e mouros na Espanha, com os turcos na Europa, às lutas e acordos com os tártaros no Império do Grão Mogol, sendo que as lutas com os turcos se prolongaram até o século XIX. Na evolução do conflito com o mundo islâmico, as potências européias encontraram profundas oscilações de consistência, entre oponentes pertencentes a sociedades progressistas medievais - na Espanha e na Siria - a sociedades militares conservadoras, no Iraque e na Turquia, que sucederam àquelas, constituindo um movimento em sentido inverso ao da Europa, em que os componentes tribais e locais da sociedade ascenderam de volta ao poder, dando lugar a modos de estruturação política até hoje pouco analisados. Independentemente da perspicácia de analistas como Nutting e Roux, ou do recente trabalho de Hourani, a complexidade e aparente falta de lógica das relações contemporâneas entre o Ocidente e o Mundo Islâmico, sugere a conveniência de procurar referências de análise mais

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representativas, que esclareçam melhor as razões desse aparente imobilismo econômico e tecnológico do Mundo Islâmico. Nesse confronto, nem a Europa nem o mundo islâmico constituíram espaços unificados. O confronto entre os dois blocos distribuiu-se desigualmente, no espaço e no tempo; e seus desdobramentos refletiram o modo como um e outro lado se modernizaram, ou como evoluíram no sentido de formas políticas que lhes permitissem controlar o poder econômico. Os conteúdos políticos do confronto incluíram, cada vez mais, conteúdos econômicos, visíveis em dois planos: no do confronto entre os grandes impérios europeus, e entre eles e o império otomano, com diversos confrontos nas colonias. Os descobrimentos marítimos do fim da Idade Média e do começo da Renascença foram uma parte essencial de um movimento mundial de unificação e expansão do mercado sob o domínio ocidental, que reverteu o movimento caracterizado pela expansão do domínio muçulmano sobre o Mediterrâneo oriental. A queda de Constantinopla selou o fim de qualquer pretensão ocidental de hegemonia no Mediterrâneo oriental, o que significou um limite à expansão dos novos reinos europeus. O Mundo Islâmico refluiu pela Espanha e avançou pela Europa, até chegar a Viena. No entanto, o limite da expansão islâmica no mar, só se deu cem anos depois da queda Constantinopla, em Lepanto. As lutas pelo controle da Itália, a constituição do Sacro Império Germânico e do Império Espanhol puseram, lado a lado, a questão do controle político da economia européia e a da expansão do mercado fora da Europa. Essas disputas de poder político e controle de mercado, cortadas pelas lutas religiosas e pelo surgimento de novas formas de governo, tornaram a Renascença um período de lutas entre impérios, cristãos e muçulmanos, pela parte do mundo onde se concentravam as maiores possibilidades de continuidade da acumulação de capital. Daí que a Renascença se caracteriza como um período em que coincidiram diversas pressões de expansão territorial dos mercados, junto com uma disputa pelo controle político do mercado europeu, que se prolongou até o século XVIII, na forma do confronto entre o projeto imperial francês com os impérios dos Habsburgo, principalmente com o Império Austro-Húngaro. Nessa escala, o fenômeno das cidades Estado italianas e dos Países Baixos aparece como secundário. Somente depois que aquelas cidades independentes foram capazes de constituir um reino, e de aliarem à aristocracia do norte da Alemanha - os Nassau - tornaram-se potência significativa. Inversamente, a persistência da fragmentação na Itália abriu espaço para as invasões francesa e austríaca, retardando a unificação política do norte da península italiana.

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O fim da Idade Média revelou o fortalecimento político e econômico das cidades, com a oposição entre o poder burguês urbano e o poder feudal de base rural. A ascensão do poder político das cidades, que controlavam as rotas de comércio, conduziu a interpenetração cultural, criando as condições práticas para a difusão do consumo. No contacto com o mundo islâmico e com o americano, a Europa alterou o próprio conceito de consumo, com a expansão do consumo realizado nas cidades. Foi através dessa renovação das cidades que as novas nações incorporaram a tecnologia e o imaginário de outras áreas culturais, especialmente da islâmica, onde já havia uma concepção hedonística de vida, contrastando com a frugalidade identificada com a ideologia cristã. Os estudos históricos das transformações das cidades - como os de Mumford (3) - mostram, nessa época, os dois principais traços, de que as cidades cabeça dos sistemas políticos ganharam posições especialmente favoráveis como centros onde se concentraram as despesas, e com elas, a liderança dos mercados consumidores. Mostram, também, que a espacialidade urbana foi, decisivamente, alterada, com a criação de novas modalidades de sub-espaços urbanos, que viriam a ser os atuais bairros. Nisso se vê, claramente, a diferença entre a dinamização da urbanização na Europa e na América. Contrariamente à Europa, as grandes cidades pré-colombianas não tiveram grandes movimentos de renovação tecnológica e tenderam à queda com a concentração demográfica, antes que à expansão. As grandes cidades americanas pré-colombianas jamais tiveram qualquer sistema de transporte de carga ou de pessoas; e jamais resolveram os problemas de armazenagem típicos do crescimento urbano. Assim, a reorganização econômica e política da Europa significou a organização do mercado consumidor naquela parte do mundo, ao tempo em que a organização do sistema de produção sobre um espaço muito maior, incorporando outros povos. O sistema de produção estendia-se, incorporando a produção que ele mesmo organizava nas colonias. E a acumulação financeira se localizava naquelas cidades onde se realizava o financiamento do consumo concentrado e das lutas pelo controle político, que finalmente foram decisivas na orientação das aplicações do capital. Como mostrou Parry (4), o essencial foi o reordenamento do espaço territorial do comércio, que permitiu ampliar a lista de produtos, as técnicas, a lista dos participantes. Não somente as trocas: mudou todo o contexto mercantil! O mercado que serviu de sustentação à expansão econômica ampliou-se na direção de grandes mercados fora do âmbito europeu; e o principal fato do período é a entrada no sub-continente indiano, que de fato significa a entrada no mundo islâmico por sua retaguarda não árabe. O grande defeito da historiografia de matriz européia, é ter articulado um discurso interpretativo, em que as iniciativas da mudança e o centro factual dos acontecimentos estão sempre na Europa e nos países que herdam diretamente a herança da supremacia européia. Com isso se descarta o

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significado das interações entre o universo europeu e o não europeu, principalmente, ignoram-se as iniciativas geradas fora daquele centro de acumulação. Falta, ainda, uma história dessa ampliação do mercado mundial, que ofereça uma lista completa da quantidade de recursos em terras, trabalho e minerais que ingressou ao mercado europeu mediante a expansão. O circuito da expansão estava ligado ao circuito das relações na Europa; e o transbordamento de efeitos de aceleração segue o caminho normal das trocas e o da produção, e o das trocas estimuladas pelas guerras. Nos séculos XVI e XVII, houve um enorme esforço de ampliação da capacidade de produção, que significou diferir para o futuro os resultados dessas terras incorporadas. Por isto, nesse conjunto, é preciso distinguir o funcionamento e a expansão da produção para uso local e a expansão da produção para comércio. Especialmente, convém distinguir a esfera da produção e das trocas de mercadorias; a das atividades indiretamente ligadas a esse circuito de produção e troca de mercadorias; e o universo de atividades de produção e consumo localmente concluídas, ou que participaram marginalmente da ampliação do mercado integrado. Nesse período houve uma transformação nos modos de controle de produção até então realizada localmente e a conseqüente mudança dos modos de funcionar dos centros de controle mercantil da produção artesanal e da mineira. Os mercadores passaram a ter mais visibilidade das oportunidades econômicas oferecidas pela renovação tecnológica, pelo que puderam considerar outras atitudes em relação com o aprofundamento na industrialização. A escala das operações mercantís e sua relação com a organização do consumo, tornaram-se fundamentais. A descrição de Paul Mantoux (5) da organização dos capitalistas ingleses no século XVIII, ilustra com detalhes esses movimentos, que de resto se reproduziam em torno da produção militar. Entre o início das guerras de Luiz XIV e as guerras napoleônicas, os exércitos em pugna passaram de uns 40.000 homens a um número vinte vezes superior na época da campanha da Rússia em 1812, com as correspondentes conseqüências em termos de conscrição militar, desorganização da produção agrícola e manufatureira; e ampliação e padronização da produção de armas, munições e demais equipamentos. As situações bélicas prolongadas significaram uma pressão crescente sobre a capacidade de produção, traduzindo-se em exigências de maior eficiência na produção manufatureira, principalmente no relativo às especificações de ligas metálicas e precisão de usinagem. Também representaram uma pressão constante sobre a renovação tecnológica, que se estendeu desde a navegação à industrialização de alimentos. Destacam-se aí o papel dos minerais, especialmente de ouro e prata na organização financeira, e das ligas metálicas na produção mecânica manufatureira. O papel do

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desenvolvimento de ferramentas mais leves e resistentes na Europa, como mostrou Chaunu, foi essencial nesse processo. Na América, a produção mineira, prata no México e na Bolívia, tiveram conseqüências decisivas na formação da economia da Argentina. No Brasil, a exploração artesanal do ouro e de pedras preciosas desempenhou um papel essencial, como viabilizador financeiro de Portugal e como meio de formação de capital da Inglaterra. Paralelamente, destacou-se o papel do açúcar, como mercadoria de qualidade controlável, divisível e universalmente demandada; e o da expansão do financiamento, respectivamente ligado à expansão da produção de açúcar e aos sistemas de transportes. Destaca-se que a ampliação da produção para uso local fez-se, basicamente, sem a assistência do sistema financeiro; e que a mobilização de trabalho adicional - em grande parte mediante um novo escravismo - só passou a insumir recursos financeiros quando se organizou em conjunto com as trocas de mercadorias. No relativo aos minerais, observa-se que a maior parte do aumento de produção realizado no período da expansão compoz-se de minerais de escasso ou nulo uso na indústria, cuja valorização dependeu, principalmente, do funcionamento do sistema de financiamento; e não se incorporou à formação de valor correspondente ao desenvolvimento das manufaturas. As grandes regiões mineiras, como Potosí, Minas Gerais, Guanajuato, não foram capazes de desenvolver núcleos de transformação manufatureira; e que a riqueza transbordou para outras regiões, como a Argentina se beneficiou de Potosí, como o Rio de Janeiro se beneficiou de Minas Gerais. O papel do açúcar foi fundamental nessas articulações internacionais, porque sua produção incorporou atividades manufatureiras aos locais de produção agrícola; porque é uma mercadoria totalmente divisível e de qualidade controlável e previsível; porque permitiu uma ampla articulação de atividades de produção de mercadorias para uso local e de não mercadorias; e finalmente, porque resultou na incorporação e articulação de numerosa população, rural e urbana, portanto, ensejando a organização de mercados regionais internacionalmente ligados. Repassando os trabalhos de Furtado (6), Gorender (7), Ciro Cardoso (8), ressalta a importância da constituição de sistemas econômicos regionais internamente segmentados, com tendência a reproduzir e aprofundar suas segmentações, de um lado na constituição de circuitos locais de produção, com horizontes restritos de combinações de recursos ( conceito a ser contemplado como o oposto histórico do conceito formal de função produção (9)); e do lado da constituição de mercados regionais de trabalho, articulados mediante migrações restritas de trabalho livre e transferências numerosas de trabalho escravo.

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No século XIX, com o aumento de custos resultante do controle do tráfico de escravos,o açúcar ensejou uma complexa agro-indústria, que deu lugar a uma indústria naval, a uma pecuária de propósitos múltiplos e a uma manufatura têxtil, formando uma rede mundial de transações. Com isto, ampliou os espaços econômicos regionais e viabilizou operações financeiras mais variadas que as da produção mineira. Mas, obviamente, seus efeitos a montante foram proporcionais à extensão do espaço rural que podia ser ampliado em cada região produtora. O açúcar teve maiores efeitos na manufatura e na pecuária no Brasil que nas ilhas das Antilhas. Mas seus efeitos finais à escala mundial devem ser examinados por sua articulação com o sistema de financiamento; e esta tem que levar em conta o papel desempenhado pelos sistemas coloniais, em sua qualidade de articuladores de espaços internacionais. . Cabem, portanto, algumas observações sobre a natureza histórica do mercado. O mercado está sempre identificado com elencos específicos de produtos. As substituições dos elencos de produtos são essenciais ao longo das mudanças de escala do mercado, que passa de ser uma relação material, própria desse elenco determinado de produtos, passa ser um campo de relacionamento que se instrumentaliza mediante sucessivos produtos, onde o fundamental é o controle dessas substituições. A articulação financeira da produção passou por profundas mudanças, de escala e de técnica organizacional, em que se destacam, de um lado as companhias privadas com apoio público, com as de mercadores holandeses e ingleses e de outro lado, os empórios organizados pelo poder público e administrados como parte da sociedade monárquica-mercantil de privilégios. A unificação do mercado do capitalismo mercantil escravista foi realizada a partir daquelas modificações da lista de produtos, iniciada a partir das inovações obtidas dos muçulmanos, experimentada em estações intermediárias - como as ilhas de Açores e Cabo Verde - e desenvolvida nas próprias colonias. Não se pode desdenhar as contribuições americanas a essa lista de produtos. Batata, milho, pimenta, fumo, mandioca, chocolate, tomates, rum, entraram na lista das mercadorias mundiais junto com os cítricos e leguminosas dos árabes. Em seus aspectos práticos operativos, a unificação do mercado mundial foi realizada, principalmente, junto com a constituição dos impérios espanhol e português, notando-se que o primeiro foi claramente mais favorável à proliferação de centros urbanos organizados - retransmitindo a tradição romana das cidades militares ( ver, por exemplo, Angel Rama em seu "As cidades das letras"(10) - e ao estabelecimento de normas adequadas a relações entre vários países.

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5.2. O escravismo e as demais formas de servidão Um dos equívocos mais comuns da interpretação do funcionamento da produção capitalista consiste em separar o escravismo das demais formas de dominação de trabalho, especialmente da servidão. Um segundo equívoco está em limitar no tempo os efeitos da dominação do trabalho, desconhecendo seus efeitos na atualidade, ou desconhecendo a variedade de formas de dominação que ela encobre. O essencial do controle do trabalho é a eliminação de alternativas do dominado, que fica submetido às poucas alternativas de trabalho que lhe são oferecidas. Historicamente, o controle de trabalho mediante assalariamento é apenas uma forma mais sistemática de contratação, que permite articular muitos outros trabalhadores de modo subordinado por outros meios além dos financeiros. Na realidade, o assalariamento foi sempre um movimento realizado nos centros de produção capitalista, ligado a uma constelação de formas de servidão e de exploração não assalariada do trabalho nas áreas de produção subordinada à de mercadorias, nos países europeus e nas demais partes do mundo. Na própria Europa ocidental, a prática do assalariamento se desenvolveu desde dentro de outras formas de organização do trabalho, em que os capitalistas pretenderam eliminar mecanismos de defesa dos trabalhadores, organizados em corporações e grêmios. O assalariamento foi, também, um modo de contratar trabalho equivalente, sem os compromissos de solidariedade do sistema feudal. O essencial do processo é a diferenciação entre a produção de mercadorias e as demais formas de produção para uso local, primitivas ou não. A expansão da produção criou as condições políticas e econômicas de subordinação de força de trabalho e o controle, também político e econômico, da comercialização e do financiamento da produção de mercadorias. Hoje, pode-se acompanhar esse processo mediante a observação da ligação entre a constituição da capacidade instalada de produção e o manejo político, econômico e militar dos meios necessários para garantir que essa capacidade fosse plenamente usada e seus resultados fossem controlados.

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Na formação da Europa medieval houve uma complicada articulação entre as práticas de servidão e as de escravismo, que atenderam as necessidades da sustentação política do modelo baronial, sustentado sobre a valorização do patrimônio, confrontando sempre os trabalhadores presos à gleba com os que eram deslocados pela guerra ou como conseqüência dela. O fator bélico foi fundamental em toda essa reestruturação da produção, dado que a realização do comércio dependia dessa garantia política, perdida ao longo da decadência do Império Romano. Gibbon primeiro (11) e Lot depois (12),mostraram que esses movimentos foram descontínuos na seqüência dos acontecimentos, mas que de fato constituíram muito mais um ambiente de decomposição prolongada e de perda de visibilidade para a economia, que de passagem de uma ordem a outra ordem visível. Na prática, a possibilidade de constituição de uma nova ordem estava em mãos de povos que anteriormente foram vistos pelos romanos como supridores de escravos; e que a própria designação de bárbaros envolvia um conjunto de conotações tendentes todas a um tratamento diferenciado. A formação dos reinos bárbaros, da primeira onda de invasões, do V e do VI séculos resultou na constituição de uma extensa produção agrícola independente; e a segunda onda, do VII ao IX séculos criou e estabilizou novas formas de servidão, substituindo o complicado e extenso sistema de escravidão utilizado pelos romanos. Esse novo sistema foi essencial na determinação do uso, e difusão de tecnologia, geralmente lenta, como mostrou Anderson (13). Jamais deixou de haver escravismo na estruturação da atividade econômica européia. Simplesmente, mudaram as fontes de suprimento e os modos de obtenção de escravos. Igualmente, nas nações mais poderosas o uso de trabalho dominado - escravo ou servil - mudou de forma. No relacionamento com o mundo islâmico os europeus tiveram sempre uma atitude dúplice: por um lado afirmaram os princípios que regiam suas respectivas sociedades mono-nacionais; e por outro aproveitaram, sistematicamente, as vantagens que podiam extrair da subordinação do trabalho nos países declaradamente escravistas. Esta duplicidade ficou muito clara nas Cruzadas, quando o discurso de desqualificação do adversário - no caso o muçulmano - autorizava práticas oficialmente não aceitáveis na Europa. Na relação com a África, os europeus estenderam a mesma racionalização da subordinação, facilitada pelas diferenças de organização e poderio militar com os africanos. Na distinção entre a África do norte e a sub-sahariana, os europeus aproveitaram a influência dominadora muçulmana na direção do sul, trabalhando sempre com o critério típico do capital mercantil, de criar entrepostos garantidos por um sistema militar unificado.

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O escravismo foi um componente essencial das relações entre cristãos e muçulmanos ao longo de toda a Idade Média, enquanto o confronto entre eles esteve circunscrito ao espaço cultural e político da bacia do Mediterrâneo. As navegações oceânicas modificaram esse quadro, incorporando ao alcance direto dos europeus, os povos que vinham sendo dominados pela expansão militar e política muçulmana. Junto com a expansão do horizonte geográfico dos interesses econômicos europeus surgiram novas formas de relacionamento com os muçulmanos, assim como surgiram as relações com os povos americanos. A novidade é que as oportunidades de expansão da produção de mercadorias em terras americanas abriu novas oportunidades de lucro com o uso do escravismo; e que as novas formas de relações lucrativas com nações islâmicas fora da Europa facilitaram esse negócio. No continente americano, o capitalismo europeu organizou outras formas de arregimentação de trabalho subordinado, que foram essenciais à incorporação dos novos sistemas de recursos naturais. A incorporação de trabalho dominado foi feita de diversos modos, segundo as condições de organização política das novas regiões dominadas. A escravidão aberta realizada em toda a costa atlântica, e concentrada ao redor da produção de mercadorias agrícolas, coincidiu com uma grande variedade de formas de servidão em todas as regiões de produção mineira. A principal diferença prática entre esses sistemas é que os sistemas de servidão aproveitaram as tradições americanas de dominação, em lugares onde a formação de nova estrutura fundiária apoiou-se em relações de dominação política entre os índios; enquanto a exploração escravista destituiu qualquer referência das relações entre tribos. A intensidade da exploração não foi muito diferente entre a servidão e o escravismo. A servidão dos índios e das populações de mestiços pobres, nas cidades e no campo, na quase totalidade dos países latino-americanos, foi um mecanismo extremamente barato para suprir as necessidades de trabalho, na produção de mercadorias e na produção primitiva que a sustentou. Mais ainda, as diversas formas de servidão permitiram articular formas de produção e espaços onde o escravismo não seria eficiente, como na produção mineira, nos latifúndios auto-suficientes e nas grandes propriedades em regiões de solos pobres em geral. Por último, a servidão não implicava em investimentos como a escravidão, permitindo a operação econômica em zonas de si pouco produtivas, como as terras mais elevadas do altiplano: a "puna". Como é notório, a gravidade da exploração pela servidão prossegue em muitos lugares e não se ganha muito com tentar minimizar sua importância. A servidão subordinou maior número de pessoas que o escravismo. Mas não há como ignorar que ele foi o elo articulador da produção européia com a produção de

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mercadorias nas Américas e com a África. Os circuitos de tráfego da navegação negreira ligaram a compra de escravos à compra e venda de artigos de manufatura européia. No mesmo sentido operaram as relações da Europa com o Oriente. Além de forçar o comércio com a Índia e com a Indonésia, as potências européias realizaram políticas de transferência de trabalhadores, mais ou menos forçadas, em seus espaços coloniais, resultando em novas composições demográficas nas diversas colonias, e estabelecendo pautas de acesso e de restrição à posse da terra. Particularmente nas colonias do domínio britânico das Antilhas, como Trinidad e Tobago, Jamaica e Guiana, esse fato foi fundamental como instrumento de controle do solo e da produção. Os colonizadores britânicos realizaram uma política sistemática de troca de colonos, principalmente trazendo pequenos produtores e agricultores sem terra da Índia para contrabalançar a presença dos negros nas ilhas das Antilhas. Essa política de transferências teve o efeito secundário de criar sociedades segmentadas, com conflitos étnicos que se prolongaram até o presente. As estratégias de expulsão dos integrantes da produção primitiva, ou de sua conversão em peões subordinados das grandes propriedades, realizou-se, de diversos modos, desde os Estados Unidos ao Chile, com variados graus de violência e foi encarado como parte da produção de mercadorias. Mas, certamente, teve um commplexo efeito colateral, de garantir o suprimento de alimentos, sem que seus custos intereferissem nos da produção de mercadorias. Os processos de formação dos latifúndios foram essenciais na constituição do poder político garantidor da sociedade econômica na América,observando-se entretanto que foram processos nitidamente diferenciados, nas regiões em que essas grandes propriedades foram conduzidas a partir de uma articulação externa, como foi o caso das "plantations", e nos casos de latifúndios que somente de modo subsidiário participaram do comércio externo. O acesso fácil a trabalho dominado foi essencial nesses processos, vendo-se que, principalmente nos países montanhosos - geralmente onde houve mais mineração - que as organizações comunais indígenas puderam permanecer, e de fato só foram abaladas a partir do século XIX, com os primeiros movimentos de industrialização e de criação de novas grandes propriedades produtoras de matérias primas. As restrições impostas pelo Império Espanhol no século XVI foram, gradualmente, derrubadas pelos interesses dos Bourbon em recompor suas finanças, e pelos que se estruturaram em cada região econômica latino-americana, combinando a exploração da terra com a das minas. No México, esses conflitos de interesses nas regiões economicamente organizadas, no centro, sudoeste e centro-norte do país, levaram a formas violentes de subordinação em diversas regiões, desde o século XVI, resultando em restrições de liberdade de movimentos de pessoas e de mercadorías, ficando estas últimas sujeitas a uma complexa tributação, as "as alcabalas". A principal produção de mercadorías, a mineração, exerceu uma influência

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no sentido de concentrar população em algumas localizações restritas, deixando, por outro lado, que persistissem os sistemas de propriedade rural que combinavam os latifúndios semi-autárcicos com a produção comunal. Justamente, os interesses da mineração levaram aos choques de interesses em torno do controle da população, antes que do controle da terra. O confronto entre as propostas de modernização e os interesses formados no período colonial, levou às contradições entre Juarez e Maximiliano, com o primeiro, finalmente, seguindo um modelo de modernização submetido à influência em expansão dos Estados Unidos. A decadência dos velhos latifúndios coloniais, a criação de novos latifúndios, e a expulsão das comunidades indígenas levou ao seguinte processo, que culminou com a Revolução de 1910.A partir daí construiu-se um sistema de infra-estrutura de transportes coincidente com essa situação (14). Na Argentina, a formação do sistema de produção foi conduzida pela ocupação do território, primeiro marcada pelos eixos estratégicos do controle da bacía do Prata e das rotas às minas do Altiplano; e depois, pelo controle das terras férteis do Pampa. Somente avançado o século XIX estruturou-se o sistema de produção voltado para exportação, sobre a liquidação das nações índias ou sua completa subordinação. O sistema de transportes foi desenvolvido segundo uma pauta de relações internacionais, que estabeleceram um determinado tipo de relação subordinada com a Inglaterra, representado pelo modelo exportador de carne e trigo, que estruturou a produção numa grande região - a Pampa Úmida - de modo diferenciado das demais regiões. Mas o movimento de unificação do mercado pelo sistema colonial mercantil ficou travado pelas restrições à produção nas colonias, realizada de diferentes modos, por todas as metrópoles. Sejam as proibições de produção de sal e tecidos na Índia, a proibição de produção de sal e o controle dos empórios reais na maior parte das colonias, ou sejam as proibições dos portugueses à criação de universidades, as colonias funcionaram sob severos controles que ligaram aspectos políticos a aspectos econômicos; e serviram para sustentar os privilégios dos grupos dominantes de cada metrópole em sua própria estrutura de poder. Torna-se, portanto, necessário distinguir as diferenças entre os movimentos de unificação de mercado conduzidos pela acumulação agro-mercantil e os induzidos pela industrialização. A expansão da indústria significa a homogeneização de matérias primas, portanto, a organização das compras ao setor extrativo, especialmente às minas, que por este mecanismo são, progressivamente, industrializadas. A unificação do mercado vem a ser um resultado das sucessivas reorganizações dos sistemas de produção, estimuladas pela indústria.

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5.3. Os efeitos na estruturação da produção No relativo à unificação do mercado mundial, há uma diferença fundamental entre os impérios coloniais formados no século XVI e os formados nos séculos XVIII e XIX, em que os primeiros criaram nas colonias um prolongamento de seu sistema de produção, enquanto os segundos, que foram realizados por metrópoles genuinamente industrializadas, deram lugar a separações decisivas entre a formação de capital das colonias e a das metrópoles, ficando estas últimas restringidas à posição de produtoras de matérias primas. As experiências repetiram-se por toda parte, desde a Indonésia holandesa às colonias portuguesas, belgas, francesas e inglesas na África. Em alguns casos, essa diferença passou por importantes qualificações, como no sucedido, respectivamente, com o Brasil e as colonias portuguesas da África. Aparentemente, a maior intensidade da presença de colonos europeus no século XVI, bem como a subseqüente organização da produção em torno de um vigoroso comércio internacional com ampla participação de brasileiros, levou a maior comprometimento de Portugal, que culminou com a transferência provisória da família real para o Brasil. Esses fatores agiram no sentido de criar relações mais íntimas, interesses comuns mais fortes, levando a um tratamento diferente daquele mais primitivo e brutal, dispensado aos africanos. Mas não há porque desconhecer a profundidade do confronto de interesses que dominou a cena política desde a transferência da família real até a consolidação da independência do Brasil (15). . Essa diferença pode ser atribuída, em parte, ao desenvolvimento de grandes interesses empresariais privados na Europa, que passaram a operar com estratégias internacionais de captação de matérias primas e localização de unidades de produção, agrícolas e fabrís, definindo papéis para cada colônia e para as economias periféricas em geral.. Mas em parte esse fenômeno deveu-se, também, à re-localização de recursos humanos - migrações que serviram para organizar o mercado de trabalho dos países europeus - com suas conseqüências em termos de atração de capitais desses mesmos países. Os séculos XVIII e XIX caracterizaram-se por intensos fluxos migratórios para as fronteiras agrícolas da época, como foram os Estados Unidos e Canadá, a Austrália, a Argentina e o Brasil. Como em tempo colocou Lefeber (16), esse período teve uma mobilidade única de trabalhadores, que contribuiu para regular os salários nos países em industrialização e adiante resultou em incremento das terras efetivamente cultivadas. `

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Essa situação não se repetiu no século XX. Há diversos movimentos migratórios internacionais importantes, mas eles se realizam de modo subordinado a condições específicas das relações entre determinados países, sujeitos a grandes restrições entre países mais ricos e países mais pobres, assim como entre países com vínculos culturais e políticos especiais. Além das notáveis dificuldades representadas pelas guerras, os movimentos migratórios passaram a ser elementos de política econômica e social e de estratégia de poder, que contrastam com a independência de movimentos entre os países ricos e as fronteiras de exploração de recursos naturais. Assim, convém distinguir os movimentos de mercado de capital e de mercado de trabalho; e os modos como eles foram articulados. A industrialização traduziu-se, ao mesmo tempo, em crescente necessidade, para investimentos diretos e para infra-estrutura; e em destruição do capital incorporado em formas anteriores de produção: capital para implantar ferrovias e destruição do capital incorporado no transporte por diligências etc. Por extensão, significou a substituição das qualificações dos trabalhadores, com a incorporação de novos tipos de qualificação e novos números de trabalhadores qualificados por cada tipo de qualificação. As migrações funcionam como mecanismo de elevação da renda familiar e de redistribuição de renda na extensão em que são translados de trabalhadores capazes de participar da composição de empregos das economias às quais se dirigem. De outro modo, são mecanismos de desvalorização dos trabalhadores, que para sobreviver têm que aceitar ocupações para níveis de qualificação inferiores aos que já tinham em seus lugares de origem. O processo de renovação tecnológica intensificou a fome de capital e a seleção de trabalhadores. As substituições de tecnologia foram quase sempre descontínuas no tempo e no espaço; e levaram a situações insólitas de convivência dos movimentos de modernização com a permanência de formas de produção e de consumo, que supostamente deveriam desaparecer, eliminadas pela concorrência do novo. No entanto, verificou-se em diversos dos países desigualmente industrializados, que a introdução de unidades de produção e de equipamentos novos foi organizada com o uso dos equipamentos mais antigos, compondo a base da rentabilidade das empresas que realizam a troca de equipamentos. Essa irregularidade dos movimentos de difusão de tecnologia resulta num perfil estruturalmente desigual da capacidade instalada de produção, que em última análise contrasta com a presunção de que as empresas tendam a operar reproduzindo na íntegra o modelo de modernização; e que o movimento de modernização no essencial é um conjunto uniforme, logicamente coerente, realizado por igual pelos diversos países mais industrializados e exportado por eles, também de modo similar, ao resto do mundo.

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Em contraste com a tendência de unificação dos mercados na escala mundial, encontram-se as tendências ao protecionismo e à formação de blocos econômicos, que tem sido praticados por todos os países, dependendo de seus interesses. Desde blocos organizados por interesses políticos e militares, como os tratados de ajuda mútua, aos acordos internacionais de comércio como o GATT, ou as organizações de comércio, há um conjunto de iniciativas, geralmente canalizadas através do poder público, que limita de fato as pressões unificadoras de mercado, que se desenvolvem geralmente sob inspiração privada direta. Notas 1. Werner Jaeger, " Demóstenes", Fondo de Cultura Económica, Mexico, 1976. 2. Esse verdadeiro palimpsesto cultural depende ainda de uma explicação não hegemônica ou não etnocêntrica, que permita conhecer melhor o processo formativo das correntes de pensamento, que por um lado passaram por metamorfoses e se desenvolveram na Europa ocidental; e por outro lado, migraram para contribuir à formação de uma percepção americana da história. A análise da relação senhor-escravo é um exemplo notório, de algo conhecido por ter sido apresentado por um filósofo ocidental - no caso, Hegel - e que foi concebido por Averroes no século XIII. 3. Mumford viu, principalmente, a cidade como centro cultural, cuja forma corresponde a uma determinada potencialidade e onde interagem os diversos elementos do poder e do cotidiano. Uma mesma cidade muda, ao longo do tempo, na medida em que sucessivas necessidades sociais se traduzem na inclusão de novas soluções espaciais. 4. Parry, J.H. " La Época de los Descubrimientos Geográficos" Ed. Guadarrama, Madrid, 1964. 5. Paul Mantoux, " A Revolução Industrial no Século XVIII", Hucitec, São Paulo. 6. Celso Furtado, " A Formação Econômica do Brasil" Cultura, Rio, 1959 7. Jacob Gorender,"O Escravismo Colonial",Atica,S.Paulo, 1985

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8. Ciro Cardoso " Os métodos da história" Grijalbo, Barcelona, 1978. 9. A noção de combinação de recursos refere-se a quantidades concretas de recursos naturais, humanos e de capital; enquanto a noção de função produção descreve uma relação formal, uma representação de uma relação abstrata entre uma magnitude de capital e outra de trabalho. 10 Angel Rama "A Cidade das Letras" Companhia das Letras, Rio, 1990. 11. E. Gibbon, "Decline and Fall of the Roman Empire" Random House, N. York, 1976. 12. Ferdinand Lot " O Fim do Mundo Antigo e o Principio da Idade Media", Edições 70, Lisboa, 1985. 13 Perry Anderson, " Passagens da Antiguidade ao Feudalismo",. Afrontamento, Lisboa, 1982. 14 Sobre esse tema, vale citar Oliveira Martins em seu "O Império no Brasil". 15. Trata-se de ensaio de Louis Lefeber intitulado "O paradigma do desenvolvimento", em coletânea publicada por Agarwala & Singh. 6. A Transição ao Capitalismo Moderno

6.1. O significado prático de modernidade A produção capitalista desenvolveu-se junto com uma visão de mundo voltada para o progresso material. Tal escolha pressupõe que o transcurso do tempo conduz, sempre, a transformações da produção e do consumo, por cujo intermédio as condições de vida tendem a melhorar. Essa noção de progresso está identificada com a de modernidade, em que esta última significa a generalização de um modo de consumo tendente sempre a mudar, mas integrado numa uniformização de valores, portanto, com uma hegemonía cultural, que tende a se estender. Sobre essas bases culturais, o sentido de finalidade do processo de produção é uma configuração do consumo, distribuído entre o consumo imediato e o mediato. Mesmo quando esse perfíl de consumo está oculto sob uma linguagem desligada da atualidade, ele

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condiciona os comportamentos dos agentes da produção, que devem, de algum modo, ligar seus objetivos a médio prazo com condições de vida atuais. Essa ligação entre a base ideológica do capitalismo e suas soluções operativas foi trabalhada, com grande margem de sucesso, por Sombart e Weber, que a viram como uma característica da diferenciação e oposição entre o protestantismo baseado em poderes locais de príncipes e o poder internacional da Igreja Católica. Certamente, é uma linha de análise que capta a riqueza de significados da emergência de poderes localmente estruturados e de sua busca de legitimação ideológica. Mas tem o inconveniente de sub-estimar os aspectos políticos do processo, e a importância do desenvolvimento das transações financeiras nos países mediterrâneos, assim como de desdenhar o significado da expansão da produção e do tráfico de mercadorias identificado com os descobrimentos. A compreensão do consumo está, inevitavelmente, ligada à da formação de poder, em cada sociedade em seu conjunto; e nas formas como esse poder se cristaliza no plano político. O processo de produção de poder transcende a esfera dos interesses econômicos imediatos; e cria uma estrutura institucional polivalente, capaz de influir, de volta, sobre a produção e o consumo. Mais ainda, essa expansão do comércio não pode ser plenamente compreendida por quem se coloca na perspectiva americana, sem levar em conta o papel das inter-relações entre a Europa e o mundo islâmico, tanto diretamente, pela ampliação de contactos fora do teatro militar da própria Europa, como indiretamente, pela expansão na África. Todas essas relações desenvolveram-se antes do aparecimento do movimento protestante, como um desdobramento de impulsos próprio dos processos sociais e políticos da Idade Média, tanto no relativo ao aparecimento dos bancos no norte da Italia, na Catalunha e no sul da França, como no relativo à ampliação marítima do espaço econômico. O entendimento de que há uma diferença substantiva entre as diversas experiências de capitalismo mercantil até o Império Romano e as posteriores à Idade Média, pressupõe uma explicação de que se entende por capitalismo moderno; e por antecedência, o significado de modernidade. Pode-se dizer, inclusive, que o capitalismo deu um sentido muito especial à noção de modernidade, identificando-a com uma visão integrada de mundo, em que os componentes culturais e institucionais aparecem ligados aos econômicos. A produção capitalista é inseparável de uma determinada visão de tempo - a dos períodos de produção - que por uma necessidade prática se traduz na noção de períodos de reposição de capital, que também se liga à noção de espectativa de vida útil dos trabalhadores e da relação entre o ritmo de reposição dos equipamentos e o de treinamento dos trabalhadores.

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Essa unificação parece natural para todos que estão integrados à produção e ao consumo capitalistas. Mas é um produto cultural, tal como as demais noções de tempo que se formam em outras culturas. A modernidade que se consolidou junto com a produção capitalista teve, justamente, esta particularidade, de constituir um projeto cultural capaz de subordinar os demais projetos; e deste modo, tornar-se hegemônico. A Idade Média foi não moderna enquanto representou valores auto-excludentes; e tornou-se moderna quando engendrou valorações que levaram a articular os diversos elementos culturais e técnicos disponíveis, deixados por Roma, pela raíz siríaca - como disse Toynbee - e os usou para formar uma nova personalidade cultural que não cabia no âmbito institucional dos germânicos. A conceituação de moderno, modernidade e modernização reflete, pois, uma faceta da identidade cultural, que correspondia às novas entidades políticas européias. Mas como se harmonizaria esse quadro de modernidade do que era europeu com os movimentos próprios de renovação dos demais povos com os quais a Europa se relacionou? É um aspecto mais delicado dessa mesma questão, porque a visão moderna européia formou-se ao longo do confronto com os segmentos mais modernizados do mundo islâmico - a Espanha e a Siria - e abasteceu-se da visão de pluralidade cultural dos árabes, que detinham a memória da origem cultural greco-romana. Porisso, impõe-se aqui um esclarecimento sobre as conotações do conceito de moderno. Ele é usado com o significado de uma visão de totalidade alcançada pelo Ocidente e com o de processo subordinador. Moderno, nesse sentido, subnentende-se, então, como uma propriedade de ocidental; e a modernidade, um produto da civilização ocidental, no que ela tem de subordinadora e abrangente. Mas o moderno contém um sentido de totalidade própria, da realidade humana, diferente de um sentido cósmico de totalidade; e aquele outro de que o moderno implica em pautas racionais de comportamento, seja, que corresponde a situações em que as racionalidades dos comportamentos dos diversos agentes da produção e do consumo são, genuinamente, comparáveis. O moderno, assim, tem um código, que se manifesta no plano estético e político; e uma correspondência com o que se manifesta no plano social histórico e no humano psicológico. Identifica-se com a " marcha da razão civilizatória " compreendida por Weber e com os limites inconscientes da racionalidade expostos por Freud. O primeiro desses dois significados situa as manifestações modernas - na filosofia, na política, na economia, nas artes - como fenômenos consequentes de uma real mudança de modo de pensar e de perceber a realidade, tal como colocou Lucien Goldmann (1). O segundo supõe que as sociedades que passam pelo movimento de modernização, ou que o

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retransmitem, estão majoritariamente guiadas por modos de pensar, falar e agir que são equivalentemente racionais. Mesmo que alguns dos indivíduos que os compõem se comportem segundo uma racionalidade incompreensível à dos demais, seus atos são sempre racionais. Uma grande questão, inevitável, que o século XX teve que afrontar, é que se tornou consciente dos limites da racionalidade; e passou a ve-la como uma produção da história e do desenvolvimento da psiquê. Pela mesma razão, deixou-se de poder trabalhar com a racionalidade como com uma propriedade indeterminada da condição de sujeito; e passou-se a ter que ve-la como um atributo de uma situação de determinação do sujeito em seu relacionamento com objetos, reais ou do pensamento. A produção capitalista tende, portanto, a gerar modernidade. Assim como recompõe uma visão de conjunto do mundo físico, mediante a coleção de recursos que utiliza, ela cria os conjuntos de tecnologias que conduzem esse uso e induz as ideologias que situam a produção no mundo social. A modernização, portanto, está umbelicalmente ligada àquela racionalidade do uso dos recursos, que parece independente da racionalidade dos comportamentos dos agentes da produção e do consumo. Daí que a teoria social tenha que distinguir a racionalidade possível do sujeito e as condições objetivas de racionalidade de um dado contexto social de ação. E daí que Habermas, em seu esforço para criar uma teoria da ação social, tenha distinguido teorias da constituição da sociedade, teorias sistêmicas e teorias da comunicação (2). A explicação das ações concretas de uso de recursos transcende o limite das relações entre atores, porque além dos problemas de comunicabilidade, implicam em problemas de eficiência, no sentido em que são ações que necessariamente geram resultados, que revertem em consolidação ou alteração de suas posições. Vê-se, assim, porque a explicação dos grandes movimentos do capitalismo leva a colocar determinadas questões centrais da formação da sociedade de hoje, em que a racionalidade surge como uma propriedade e não como um estatuto. A racionalidade das decisões que representam interesses do capital e do trabalho correspondem a situações específicas, historicamente demarcadas, assim como o sistema de produção opera com um referencial específico de sistema de recursos; e tem que ser sensível as transformações inerentes ao meio físico. 6.2. Modernidade, Racionalidade e Capitalismo

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Nas transformações do capitalismo, destacam-se alguns grandes movimentos, que sobressaem por modificarem as tendências gerais de uso de trabalho e de recursos naturais; e as condições de acumulação de capital. Geralmente se fala de revoluções industriais. Parece mais adequado denominar de mudanças da formação de capital, que correspondem a determinados padrões de acumulação. Destacam-se a passagem do capitalismo mercantil para o industrial, que coincidiu com a difusão da produção mecanizada; a ascensão do capitalismo industrial, que esteve ligada à identificação da fábrica, à urbanização e à massificação do consumo; e o amadurecimento do capital industrial, identificado com a predominância de redes de empresas, com a expansão e tecnificação das atividades do terciário e com o aumento da densidade de capital na qualificação do trabalho. As transformações que diretamente acontecem no sistema de produção, correspondem a mudanças no modo como se pensa a produção e o consumo e como uma e outro geram atitudes que, adiante, se refletem no sistema de controle político da produção. A condução ideológica do sistema de produção está diretamente ligada à capacidade de modifica-lo. Daí que as mudanças nas formas operacionais do capitalismo dependem, em sua essência, de modos como as sociedades se organizam para produzir; e de como a racionalidade na produção equivale a uma compreensão do social em sua integralidade. A transição à modernização é o movimento que torna as sociedades capazes de funcionar segundo pautas predominantes de racionalidade. Assim, está claro que a transição só pode ser concebida em um período: não cabe pensar que ela seja uma mudança de situação, sem as implicações de movimentos acumulativos. Também, que os movimentos da modernização mudam de forma, distinguindo-se claramente aquela expansão das práticas e das instituições modernas que marcou o fim da Renascença daquela outra expansão, que se conhece como a difusão da modernização para fora do âmbito europeu, que se constituiu num instrumento de ampliação de poder. A primeira transformou os sistemas de produção e de consumo dos países onde se realizava a acumulação capitalista. A segunda sobrepoz esses sistemas aos dos países dominados, introduziu os valores da modernização como alternativa dos seus valores culturais - agora denominados de tradicionais - e sustentou alterações na estruturação do controle político e cultural desses outros países. Como mostrou Myrdal (3), a modernização acelerada, conduzida na Ásia pelas potências ocidentais, modificou as atitudes dos grupos dominantes, em relação com educação e com a valorização dos recursos humanos, sem entrar no mérito do significado das estruturas educativas anteriores como representação de cultura incorporada por essas sociedades, levando as sociedades locais a se adaptarem aos novos modos de dominação transmitidos pela difusão tecnológica.

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O período de 1452 a 1574 - da queda de Constantinopla à batalha de Lepanto - marca simbolicamente a transição entre as formas e os modos de funcionamento variados, formados ao longo da Idade Média, e os modos do capitalismo moderno. Não há, de fato, uma forma dominante "pré-capitalista" que possa ser comparada, por semelhança ou contraste, com a organização capitalista. O que houve foi uma pluralidade de formas econômicas identificadas com formações políticas concretas, tais como o império otomano, os reinos africanos, o império incaico, o império chinês; e a compreensão desses processos torna necessárias algumas correções ao tratamento histórico do problema. Primeiro, é preciso distinguir entre formas não capitalistas de produção e possíveis modos pré-capitalistas.O primeiro conceito permite tratar com a pluralidade do funcionamento econômico das regiões e dos países, compreendendo seus componentes de produção capitalista e nâo capitalista. Capta os aspectos culturais e étnicos da organização local da produção. O segundo conceito pressupõe uma possibilidade de generalização, tal como a de modo de produção asiático. Os trabalhos de Karl Wittfogel e de Angel Palerm (4) sugerem a necessidade de consubstanciar o conceito de modo de produção asiático com o reconhecimento da pluralidade de situações locais. Não é somente o centralismo despótico, ou a concentração da captação de excedente, mas a possibilidade de canalizar e coordenar grandes quantidades de trabalho para tarefas de interesse social, como ficou demonstrado no Egito antigo, no Peru e no Mexico. Tampouco se pode alegar diferenças de continuidade do esforço produtivo entre essas formas não capitalistas e a produção capitalista: as formas não capitalistas, especialmente as teocráticas, revelaram-se muito duradouras, capazes de aliciar grandes números de trabalhadores para obras públicas, do mesmo modo que puderam reunir grandes números de trabalhadores para guerrear. É interessante observar que ao ignorar o aspecto bélico na análise social, deixa-se de levar em conta as inter-relações entre o aspecto destrutivo - que leva ao extremo a desvalorização - e o aspecto construtivo, por exemplo, no estímulo da produção de armamentos à expansão industrial. Colocada essa mesma questão no plano das sociedades de hoje, a análoga do controle teocrático é o político, que funciona com uma racionalidade própria da reprodução de poder, que por isto se contrapõe à racionalidade do cidadão em sua qualidade de consumidor. A compreensão desse confronto entre o comando de forças coletivas baseadas na negação da razão individual e a escolha da razão como sustentação do conhecimento e da experiência de vida social, é um tema trabalhado por Lukács, numa tentativa de mostrar o irracionalismo como um aspecto essencial no desenvolvimento ideológico do capitalismo (5).

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Segundo, a ascensão do capitalismo fez-se mais com a subordinação de formas não capitalistas existentes que com sua eliminação, ou mesmo com sua substituição. A uniformização dos usos do tempo, o assalariamento, a subordinação do privilégio ao interesse, foram feitas com a manutenção de estruturas de poder político e com a criação de outras que não foram contraditórias com o poder patrimonialista. Nas Américas, significou a criação de latifúndios que foram uma combinação da tradição romana com a organização tribal americana; e que representaram sempre soluções de organização da produção com elevada proporção de autosuficiência. O latifúndio mexicano, o e o do Nordeste do Brasil provavelmente foram os mais autosuficientes, talvez por terem sido os mais antigos, mais próximos da organização política militar ibérica. Mas está claro que os latifúndios tiveram ligações estratégicas com a produção mercantil; e que constituiram importantes elementos de regulação do mercado de trabalho, tanto por reterem números elevados de população em seus lugares de origem, e demorarem a urbanização, como porque a desorganização do latifúndio tradicional correspondeu a formas de reorganização da produção rural que aceleraram a expulsão de pessoas do meio rural. Terceiro, a própria força de expansão do capitalismo não foi igual em todos os lugares, nem se manteve inalterada durante o período colonial. Não tem muito sentido considerar como semelhantes aquela expansão da produção que foi conduzida a partir de interesses financeiros organizados, como a produção de açúcar, aquela outra baseada em extrativismo, como a produção de peles e grande parte da agricultura, mesmo a de exportação e até os dias de hoje. E aquela outra dependente do consumo das sociedades coloniais, tal como as manufaturas que abasteceram os sistemas de transportes, ou como a produção do elenco de mercadorias de restritas ao mercado local ou regional. No universo do capitalismo, a transição à produção moderna significou, mais que nada, o aparecimento de novos agentes e de novas formas de organização dos agentes da produção. As " companhias" de mercadores, a "Hansa" germânica, foram modalidades de organização de capital privado, que coincidiram com maior envolvimento explícito das aristocracias com a acumulação de capital ligada à produção. A função do Estado como agente de modernização, com um uso direcionado da tributação, foi estabelecida com clareza por Henrique IV da França, que procurou aparelhar o governo do Estado nacional como instrumento de transformação econômica. Mas a maior escala de abrangência da ação pública correspondeu ao Império dos Habsburgo, que adiante refletiu-se no cameralismo germânico e na administração pública espanhola.A administração pública espanhola alcançou níveis de organização e internacionalidade que permitiram ao império funcionar de modo eficiente, apesar de que sua gestão política continuasse dominada pelos princípios herdados da Idade Média. Como

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mostrou Haring (5), o império espanhol foi um poderoso fator de modernização, ao difundir padrões de administração equivalentes, que permitiam transferir para as práticas do cotidiano e para a urbanização o imaginário da totalidade, até então restrito ao plano do universo. Mas além disto, teve um grande impacto modernizador, ao identificar a administração, a gestão econômica e o tratamento das artes. Neste sentido, mais que no de achados específicos de modernização, foi moderno, isto é, transmitiu uma visão de conjunto do trabalho e do lazer. Comparando seu desenvolvimento com o da Europa protestante, encontram-se aqui os materiais para uma concepção de Estado adequada para transmitir aos dominados uma visão completa do poder dos dominantes. Isso, logicamente, explica as cidades do poder. O Escorial de Felipe II, o Kremlin de Pedro o Grande, vêm-se como cidadelas do poder imperial, correspondentes, em seu meio, a Versailles. As pretensões romanas de Washington contêm outras funções, de centro de uma burocracía despersonalizada, diferente da que geriu os anteriores impérios; e que estava marcada por uma identificação de classe. O Estado da produção capitalista passou a precisar de representação urbana para identificar-se com fontes não capitalistas legitimadoras do poder. 6.3. Controle social e dominação Em sua formação, o capitalismo apoiou-se em formas de controle social, que lhe permitiram exercer o controle tecnológico. Mas, para isso precisou de um complexo e conflitivo processo de transferência de formas de controle longamente gestadas ao longo da Idade Média. Do fim da Idade Média à conclusão da expansão do mercado mundial, essa modificação das formas de controle esteve representada, essencialmente, pela devolução do poder temporal, da Igreja, que o retivera nos séculos anteriores, ao Estado, que emergiu revestido de novas formas de organização.. Esse é o processo que deve ser visto em seu conjunto, para que se compreenda o real papel de cada uma de suas partes. No século de ruptura, de 1450 a 1550, identificado com o Renascimento, aconteceram três grandes fenômenos políticos, diferentes, confrontados e complementares, que foram o desenvolvimento das cidades Estado italianas, a consolidação de alguns Estados nacionais, como a França e a Inglaterra, e, principalmente, a constituição do Império dos Habsburgo, que se estendeu da Hungria a

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Portugal, e realizou aquela integração do espaço econômico que, embora fugaz, substituiu o Império Romano e tornou a Europa capaz de superar o desafio otomano. Aparentemente, o significado econômico dessas formas de organização política ainda não foi cabalmente apreciado. Mas vale indicar que elas significaram diferentes escalas de usos de recursos materiais e de organização financeira, cujos efeitos se manifestaram gradualmente, na composição da formação de capital, na mobilidade dos recursos humanos e financeiros. Por um período, que se estendeu até as guerras de sucessão no século XVII, o Império manteve-se unido e pôde sustentar o confronto com os Estados nacionais, que compensavam suas limitações na Europa com sua expansão colonial. A separação de Portugal da Espanha representou a saída do Brasil da esfera do Império, e sua gradual passagem para a esfera de influência inglesa. A América tornava-se um espaço colonial dos Estados nacionais, que dividiam suas esferas de influência entre o Norte e o Sul; e que se beneficiavam, indiretamente, da constituição dos circuitos de comércio escravista com a África. Depois da malograda tentativa de unificação da Itália por Cesar Bórgia, as cidades Estado chegaram aos limites de poder de Veneza. Milão e Genova. Com a passagem da região lombardo-veneziana para o Império Austríaco dos Habsburgo, esse modelo político e econômico chegou ao seu final. O balanço de poder político deslocou-se, a partir do século XVII, para um confronto do Império com a França, então conduzida pelo projeto de poder de Luis XIV. Foi um confronto de consequências decisivas, que permitiu a emergência de um poder imperial britânico, a partir de sua aliança com o Sacro Império Germânico ; mas que desgastou, decisivamente, o tecido político do Império; e que com a derrota da França, gerou custos econômicos e sociais que levaram, adiante, à Revolução Francesa. Nesse "século das luzes" convergiram uma grande ampliação o aumento da população dominada pelas transformações políticas com a concentração de elementos científicos à disposição do poder econômico. Enquanto a França se envolvia em seu projeto político expansionista na Europa, a Inglaterra concluia o controle político das Ilhas Britânicas - há uma perfeita coincidência de datas entre esses dois processos, no século XVII - e se lançava à conquista da Índia. O insucesso da França na Europa e o sucesso da Inglaterra sobre a Escocia e a Irlanda foram determinantes da subsequente expansão econômica inglesa. Na explicação desses movimentos são essenciais os trabalhos de Chaunu (7) e de Braudel (8). Nessa constituição do sistema moderno de produção, há uma combinação essencial de elementos políticos e econômicos que tem que ser apresentado em seu conjunto . A

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aceleração da mercantilização da terra nas Ilhas Britânicas funcionou como um mecanismo de liberação de potencial de trabalho, que pôde ser direcionado para as colonias, para as forças armadas, e finalmente, para as fábricas. Paralelamente, a expansão colonial significava uma entrada de matérias primas, a custos de produção desprezíveis. Como disse Adam Smith, se um inglês nas colonias produzia menos que um inglês na Inglaterra, em troca acionava o trabalho de três escravos, e em seu conjunto superavam o trabalho daquele que trabalhava na metrópole (9)... A expansão do sistema colonial significou, portanto, a ampliação de novas formas de dominação e a incorporação de um quantioso potencial de trabalho, que podia ser direcionado com o uso de novas terras, para gerar uma produção que podia ser realizada sem alterar o equilíbrio social das classes na Europa, que por sua vez dependia do controle da terra. É essencial, agora, observar que a rápida expansão dos impérios coloniais compreendeu, lado a lado, a construção de um poderoso circuito de produção exportador e imensos universos de produção local, principalmente de produção primitiva, controlando um potencial de trabalho imensamente maior que o integrado no mercado. Isto quer dizer que todos os movimentos de expansão da produção de mercadorias sempre dispuzeram de uma oferta de trabalhadores superior ao número que poderia ser contratado. 6.4. As contradições da transição A transição ao capitalismo moderno esteve marcada pela modificação decisiva no relacionamento entre o poder político e a ciência e a filosofia; com o reconhecimento da experimentação como fonte legítima de conhecimento (em contraste com o banimento e a consequente ilegitimidade, que se mantiveram com a alquimia); e com o estabelecimento da lógica indutiva como instrumento intelectual por excelência do trabalho científico. A prática da produção fabril valorizou os mecanismos de controle da experiência, que permitiram, por exemplo, que surgisse a doutrina fordista da organização da produção. Mas, também, que o controle da prática se fizesse mediante processos de normatização e de racionalização, que se desenvolveram fora das fábricas, que finalmente intervêm nas fábricas desde o terciário. Mas é fundamental reconhecer que essa mudança de visão de mundo e de manejo do conhecimento para normatização gestou-se durante a Idade Média. A importância de Galileu nesse contexto é transcendental, porque ele representa a combinação da

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demonstração experimental com a indutiva; e porque realizou sua demonstração no campo físico, onde estariam excluidos quaisquer desvios de juízo de valor. A análise feita por Whitehead (10) do contexto científico da modernidade mostra, entretanto, como esses resultados de operacionalidade científica resultaram de um trabalho complexo e cheio de desvios, desenvolvido entre o fim da Idade Média e a Renascença, por homens como Nicolás de Cusa, Guilherme de Ockham, Alberto Magno e Giordano Bruno, geralmente considerados fora do âmbito da formação da ciência. A compreensão da ciência como de um processo de erros e acertos obriga a conhecer os erros; e a determinar seu papel na obtenção dos acertos; bem como as possibilidades de conhecimento que eles representam. Essa visão da ciência como uma aproximação progressiva da verdade, tacitamente, exclui o dogma, o argumento de autoridade; e põe sob suspeita o chamado campo axiomático do conhecimento. O método indutivo de Francis Bacon abriu um caminho, que marcou a compreensão de cientificidade; e definiu um papel essencial para a demonstração empírica. Adiante, Locke explorou o universo do empírico, invertendo a relação medieval com o pensamento dedutivo, estabelecendo como método o problema epistemológico da demonstração empírica. Finalmente, Hume atacou o problema da relação entre o processo de conhecer e a formação do pensamento científico. A Economia Política surgiu como uma síntese desse movimento de busca de um pensamento científico do social, que portanto precisou conjugar os requisitos de demonstração empírica com um desenvolvimento inevitavelmente dedutivo da especulação teórica, que sempre trabalhou com presunções de comportamento que não estavam empiricamente demonstradas. Foi o que terminou por ficar evidente, quando o esforço recente de Keynes, para alicarçar o raciocínio teórico sobre probabilidades separou os dados de comportamento do consumidor hoje, de sua formação cultural, seja, de sua raíz histórica. No relativo ao sistema de produção, a transição ao capitalismo moderno manifestou-se no aparecimento de novos agentes da produção e na incorporação de novos sistemas de recursos à produção. No relativo ao consumo, realizou-se mediante a entrada em cena de novos agentes do consumo e em novos produtos. Em seu conjunto, o sistema passou a operar com sistemas de comercialização mais complexos, e, essencialmente, com mecanismos de financiamento da produção e das compras que permitiram o aumento da capitalização das empresas.

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O impulso que incorporou recursos ao sistema de produção foi gerado no horizonte de transações em que operava a Europa ocidental na Renascença, com as referências políticas das cidades-Estado e uma atividade de navegação concentrada no Mediterrâneo. Os sistemas de recursos da América e do Oriente deslocaram esse sistema de trocas a um patamar muito maior, não previsível na escala anterior. Os países que se envolveram mais a fundo na aventura dos descobrimentos e da colonização passaram processos de desorganização de sua produção rural; e tiveram que fazer esforços superiores a suas possibilidades imediatas durante a expansão. Adiante, passaram por processos nacionais pelos quais grande parte da formação de patrimônio nas colonias traduziu-se em formação de capitais privados; e o custo da colonização foi transferido aos governos. Espanha e Portugal passaram por processos inflacionários e por quedas em sua produção de bens. O empobrecimento de muitos nessas metrópoles significou que eles tiveram que optar por emigrar, que criar novas posições nos sistemas de classes nas colonias. Mas as migrações representaram o desprendimento de famílias de um meio organizado, onde tinham uma inserção bem definida, para outras sociedades onde deveram alcançar nova inserção. A transferência torna necessários processos de adaptação, que implicam em novas formas de participação na produção e no consumo e nova identidade política. Muitos imigrantes mudaram de posição social, ou se transferiram para meios onde disfrutaram de maior mobilidade social. Nos países latino-americanos essa mudança de condições de mobilidade esteve associada ao comércio e à agricultura, pelo que a posse da terra teve sempre um significado muito maior que o indicado pela renda que ela produz. A sucessão de deslocamentos de posição na formação das sociedades latino-americanas resultou aqui numa adaptação de estilos de vida, que também funcionou como legitimadora das novas estruturações sociais. A originalidade da fusão cultural, como mostra Picón Salas (11), teve inegável efeito prático na formação das economias latino-americanas. As modificações do consumo foram fundamentais para criar oportunidades de investimento. A generalização do uso de alimentos dessecados e o uso de novas fibras tiveram um papel essencial nesse processo. A dessecação de alimentos na América conjugou práticas ibéricas de tratamento de carne com práticas indígenas, bem como técnicas autóctonas de tratamento da batata, de processamento do milho e da mandioca, que viabilizaram a colonização e criaram novas mercadorias para o comércio de longa distância. O charque e a batata foram essenciais nas regiões mineiras; e a produção e o comércio do charque deu a base para a formação do capitalismo rural nas regiões do sul do continente, como mostrou Fernando H. Cardoso (12). A ampliação do horizonte de trocas na transição ao capitalismo moderno demandou sistemas mais extensos e complexos de comercialização, com as consequências de

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estimular novas formas de organização do comércio sobre escalas regionais e internacionais de maior extensão. Em muitos países latino-americanos os centros regionais de comércio, como Salvador, Guayaquil, La Guaira, operaram com um componente de comércio internacional e outro de comércio regional. Com a expansão da indústria, com a revelação da pluralidade social, essa ampliação do horizonte de trocas transforma-se em aprofundamento da visão interna, na capacidade da sociedade para trabalhar suas próprias contradições. Notas 1. A noção de consciência possível trabalhada por Lucien Goldmann, em seu "As Ciências Humanas e a Filosofia" significa uma relativização histórica das estruturas ideológicas, que dificilmente pode ser aceito como equivalente da visão histórica objetiva de Lúkacs em sua concepção da formação ideológica das classes. 2. A questão levantada por Habermas como de comunicação é, realmente, de uma predicação essencial da sociedade moderna, que não pode ser completamente revelada no plano abstrato dos sistemas, do mesmo modo como a noção de modo de produção não podia ser tomada como suficiente por Marx para explicar processos concretos do capital. A visão de sistemas, ou do capitalismo como constituído de sistemas, é um estratagema metodológico, que permite chegar a interpretações das estruturas organizacionais, mas que não tem como chegar às propriedades dos sistemas historicamente determinados. Jurgen Habermas, " Teoria de la Acción Comunicativa: complementos y estudios previos", Catedra, Madrid, 1989. 3. Para Myrdal, a modernização é um movimento que se apresenta como renovador de tecnologias, mas que através destas, atinge principalmente as estruturas ideológicas dando lugar ao aparecimento de projetos de poder subordinados à concepção cultural de progresso. Os problemas de solidaridade e de concorrência surgem, a seguir, como consequência do modo como a modernização altera a noção de individualidade e a função social da educação. 4. Angel Palerm( " Obras Hidráulicas Pré Hispánicas" FCE, Mexico, 1970 e " Agricultura y Civilización en Mesoamérica" FCE, Mexico, 1972, em colaboração com Eric

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Wolf) trabalha sobre a suposição de que as formas de organização social que permitiram as grandes obras pré-hispánicas encontraram soluções de cooperação em larga escala, que permitiram realizar as obras e não foram resultado de uma vontade autocrática externa que as sustentasse. 5. Georg Lukacs, " El Asalto a la Razón", Fondo de Cultura Económica, Mexico,1962. Esse trabalho de Lukacs levanta questão sobre a racionalidade enquanto atributo da política de classe, distinguindo a questão genérica dos comportamentos racionais, da questão específica de racionalidade como modo de defesa de interesses. 6. Destaca-se aqui o aspecto relativo à visibilidade política alcançada pelo Império, como centro ordenador das novas sociedades coloniais. Como mostrou Haring, o Império preconizou para as colonias normas cuja originalidade era de ultrapassar os interesses configurados em cada colonia. Clarence Haring, " El Império Hispánico" Solar/Hachette, Buenos Aires, 1966. 7. Pierre Chaunu " A Civilização da Europa das Luzes", Estampa, Lisboa, 1985. 8. Fernand Braudel, "O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico" Martins Fontes, Lisboa, 1984. 9. A explicação econômica do funcionamento das colonias surgiu aí, pela primeira vez, como parte essencial da explicação do funcionamento da economia das economías condutoras do capitalismo. Adam Smith em "An Inquiry into the Wealth of Nations". 10. Alfred N. Whitehead, " La ciéncia y el mundo moderno" Losada, Madrid, 1965. A formação da ciência aqui aparece como uma conquista ideológica da racionalidade, não como um produto de um trabalho já racional. 11. Mariano Picón Salas " De la Conquista a la Independencia" FCE, Mexico, 1970. 12. Fernando H. Cardoso, " Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional", Difusão Européia do Livro, S.Paulo, 1962.

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III A FORMAÇÃO DO QUADRO ATUAL

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8. A Formação da Sociedade Econômica Moderna 8.1. A identificação dos interesses econômicos nos tempos modernos A concentração do poder econômico e político na Europa central e ocidental na Idade Média, ligou a formação da sociedade econômica moderna à expansão da produção capitalista naquela parte do mundo. Alí aconteceu o grosso do confronto entre as formas de organização política e econômica que continuaram o poder herdado do Império Romano; e aquelas outras que surgiram durante o feudalismo. Os choques com o poder islâmico, que se desenvolveram a partir da defesa dos interesses ocidentais representados por Bizâncio, junto com a recomposição do poder imperial nos países germânicos, levaram os países mais ocidentais a construir seu próprio poder imperial sobre conquistas fora da esfera européia de poder. Nos séculos XII e XIII, o feudalismo tornara-se o instrumento militar de defesa do poder econômico mercantil, representado pelo conjunto do Império Bizantino com as cidades Estado do Mediterrâneo oriental. Esse conjunto sustentou, logisticamente, o movimento das Cruzadas; e a queda de Bizâncio interrompeu um sistema de poder político e econômico, que em seu conjunto durou, aproximadamente, uns setecentos anos. O movimento de expansão marítima dos Estados cristões ocidentais surgiu como uma alternativa de expansão política a esse sistema, mas complementar dele. A mesma ordem militar dos Templários que enfrentava os muçulmanos diretamente no Mediterrâneo oriental, reaparecia no ocidental como as ordens de Malta e Caravaca, que dirigia esquadras portuguesas e espanholas (1). Assim, houve uma estreita relação entre as vitórias imperiais na órbita do Mediterrâneo, e a expansão sobre a África, a Índia e a América. Apesar disso, as interações entre a estruturação política de Europa central, a formação de nações ocidentais poderosas e os movimentos de expansão econômica, tornam necessária uma revisão da interpretação da história econômica. O desenvolvimento dos confrontos políticos na Renascença revelou uma ingerência crescente de interesses econômicos organizados na orientação dos conflitos militares. Gênova e Veneza expandiram seu poder sobre uma visão exclusivamente econômica, separada da organização feudal e de interesses aristocráticos rurais. Do mesmo modo, Barcelona definiu uma presença espanhola no Mediterrâneo. Ao assumir o confronto total com os turcos, a Espanha tornou-se porta voz de uma interpretação imperial de administração do poder econômico, que diferenciou sua presença militar da anterior guerra feudal - terrestre - contra os mouros. Ao longo do século XVI os interesses econômicos deslocaram a guerra para o mar e para uma tecnologia completamente diferente daquelas das guerras pós feudais, localizadas, polarizadas pelo controle de praças forte. O capital

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mercantil precisava destruir o poder naval islâmico mais que controlar fortalezas; e precisava criar os circuitos de trocas com quem, adiante, faria sua acumulação. O confronto entre essa visão imperial e a do norte da Europa está, justamente, em que a segunda tinha que preferir o controle de cidades, já que o objetivo do poder político estava, alí, na articulação dos mercados locais. As guerras religiosas do século XVII resultaram, em grande parte, nesse controle das populações organizadas em torno das cidades, bem como na organização do controle das cidades sobre o campo. As guerras camponesas, bem como as sucessivas heresias e conflitos regionais, marcam a resistência a essa centralização do controle político e econômico, nos diversos países do norte da Europa. Nesse conjunto, destaca-se o projeto de poder holandês, precursor daquele mercantilismo que gerou sua própria manufatura e sua própria indústria. A expansão holandesa foi tecnicamente inovadora. Conduziu uma aliança de classes entre nobreza e burguesia tipicamente urbana, sobre uma visão empresarial; e articulada a partir da produção de suas principais cidades e a nobreza. Apoiou-se num poderio naval moderno e em tropas profissionais. Trabalhou com uma concepção de projeto econômico e político a longo prazo, inclusive com importantes intervenções na modernização da agricultura e no manejo de recursos naturais. Contou, além disso, com o apoio de uma opção religiosa. Mas teve, contra, a exigüidade numérica, a dificuldade de sobrepor-se a uma colonia já razoavelmente estruturada, com uma sociedade com seus próprios interesses. A experiência holandesa no Brasil foi a mais extensa de suas aventuras coloniais, sendo que a segunda fase, irradiada a partir de Pernambuco, ocupou a maior parte do Nordeste, onde propiciou mudanças significativas no segmento exportador da economia regional. Mas não criou um modelo agro-pastoríl alternativo ao que se formara na esfera portuguesa, nem substituiu a economia primitiva dominada, que funcionava ao redor do segmento capitalizado no sistema português. Assim, tal como aconteceu em sua primeira tentativa na Bahia, deixou aberto, ao poder português, o controle social dessa massa dominada, que foi convertida, pela aliança da Igreja com o latifúndio, em força militar que sustentou a expulsão dos holandeses. Com a organização do sistema produtivo nas colonias, o movimento geral de expansão do capitalismo na Europa nos séculos XVIII e XIX, resultou numa progressiva unificação de diversas redes de relacionamento, que se manifestam, de um lado na composição das trocas; e de outro lado, na composição do capital incorporado nos diversos sistemas de produção nacionais. Os Estados-nação e os departamentos ou províncias, gradualmente, substituíram os impérios e opuseram-se à identidade das regiões históricas e à autonomia das cidades. Daí, a articulação local de produção e consumo passou a ter,

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sempre, o duplo caráter de resolver os problemas locais de consumo e de formar os fluxos de renda correspondentes à participação em transações internacionais. A vitória política dos interesses representados pelos Estados nacionais emergentes, de fato, só mostrou seus efeitos mais profundos com a unificação da Alemanha e da Itália na segunda metade do século XIX. Mas foi um processo político que se estendeu desde o século XVI, servindo como referência para os acordos entre o poder político e o econômico em cada país. Na América, esse mesmo movimento resultou na criação de sociedades econômicas divididas, com um componente integrado no sistema internacional de produção e com componentes de produção restritos a mercados regionais e locais. Assim, enquanto os agentes econômicos na Europa tendiam a assumir feições equivalentes, na América acentuavam-se as diferenças entre aqueles integrados em formas de relacionamento homogeneizadas e aqueles outros situados na pluralidade de formas locais de produção e de consumo. As noções de produtor e de consumidor incorporadas pela análise econômica apoiaram-se na forma generalizada identificada com os circuitos de relações articuladas na Europa, diferenciando-se dessa pluralidade de formas locais. O movimento geral de renovação tecnológica desempenhou um papel essencial nessa transformação política e econômica, cabendo entretanto retomar a tese de Perry Anderson, de que os movimentos da tecnologia efetivaram-se quando as condições sociais o permitiram (1). Quer dizer que a análise tecnológica pura e simples leva a confundir efeitos com causas; e a perder de vista os impulsos sociais que se transferem para a órbita da técnica. Significa, por exemplo, embarcar na interpretação de que os achados de Galileu demarcam a ligação ciência-técnica, sem atentar que eles já foram produto de uma atitude socialmente identificada diante do conhecimento; e que poderiam ter permanecido à margem do processo de pensamento científico, se não houvessem sido recebidos por um segmento social capaz de usa-los. Também, é preciso reconhecer que algumas substituições de tecnologia tiveram efeitos mais duradouros que outras; e que algumas foram abruptas - como a incorporação de alguma máquina nova - e outras foram progressivas, como no estratégico caso dos transportes. A redução dos tempos de viagem e o aumento da confiabilidade do transporte marítimo no século XVII corresponderam à entrada de outras tecnologias, como a do relógio de pêndulo, que ajudaram a controlar o tempo de produção. No essencial, houve um movimento em duas direções, entre a pressão pela entrada de tecnologias novas e os deslocamentos nas relações sociais que as demandavam, observando-se, uma vez mais, a importância do fator político nesse movimento. O controle das inovações de um lado e da difusão de técnicas de outro lado, foram duas peças chave no relacionamento entre o interesse privado e o público.

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Nos séculos XVI e XVII, houve um considerável aumento da lista de mercadorias adequadas para trocas internacionais, destacando-se dentre elas o açúcar, por características tais como homogeneidade de qualidade, divisibilidade, manutenção de qualidade, duração, bem como por ser um bem de consumo cujo uso podia estender-se a maior número de pessoas. Observa-se, em todo caso, que a Europa incorporou uns trinta produtos novos do mundo árabe - como os cítricos e os feijões - que se tornaram essencial na conquista e exploração das Américas. O melhoramento da qualidade das ferramentas e melhor uso de energia de fontes naturais nas colonias permitiram deslocar as escalas de produção e ampliar o horizonte territorial do sistema de produção. Tomando como referência uma mercadoria mundial como o açúcar, observa-se que os ganhos de eficiência se concentraram na transformação industrial e nos transportes, pela simples razão de que nesse período não houve ganhos significativos de eficiência no segmento agrícola. Como ressalta Chaunu (2), as grandes transformações operaram-se, principalmente, nas ferramentas, tanto em seu desenho como em suas ligas metálicas. Estudos como o de Schwartz sobre os engenhos de açúcar na Bahia animam a sustentar essa tese, que não é negada por outros estudos menos minuciosos sobre outros aspectos da economia colonial brasileira (3). O fator militar, seja, a lógica dos conflitos e o controle de sua repetição, sua importância na organização social, e seu uso no desenvolvimento da produção de armas e munições, foi fundamental. Primeiro, por traduzir-se em aceleração da substituição de técnicas em períodos reduzidos; e segundo, por permitir a concentração do poder político sobre o sistema econômico de produção e de consumo. As guerras desempenharam um papel fundamental em toda a época moderna, destacando-se, entretanto, o aumento de intensidade dos conflitos ao longo do século XVIII, culminando com o longo período de guerras desde a eclosão da Revolução Francesa até o fim das guerras napoleônicas. O aumento dos recursos engajados nos conflitos, assim como o do poder destruidor, significou um prolongado efeito reordenador da produção e um poderoso fomento indireto à expansão da especulação econômica em geral (4). O movimento de constituição das nações modernas significou uma autêntica unificação de espaços mais amplos de relacionamento econômico, político e cultural, conseqüentes da eliminação de restrições baroniais, facilitando modificações qualitativas dos mercados internos. O papel das cidades na estruturação dos sistemas de produção pôde, em conseqüência, estender-se; e as cidades puderam desempenhar funções de centros regionais de maior porte. As relações campo-cidade alteraram-se, surgindo maior número de produtores rurais de menor porte condicionados pelas compras urbanas diretas; e

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diminuindo os espaços de trocas para a sobrevivência dos velhos latifúndios auto-suficientes e pouco ligados aos mercados locais. Esses movimentos tornaram-se claros na maior parte da Europa do século XVIII, e nos países latino-americanos, a partir do século XIX. Há aqui dois aspectos principais a examinar, como parte dessa explicação:a identificação das pautas de funcionamento dos novos sistemas "nacionais" de produção dos agentes desses novos sistemas de relações; e a renovação e a estabilização das relações entre eles.A indústria surgiu sob a liderança de interesses do comércio, unindo-se aos capitais da agricultura em alguns casos e opondo-se a eles em outros. A união ou a oposição entre eles dependeu de suas respectivas participações no controle financeiro das operações, cobrindo, portanto, a proporcionalidade entre as operações financeiramente conduzidas em mercado e as operações menos claramente controladas pelo sistema financeiro oficialmente organizado. 8.2. As transformações econômicas e políticas do século XVIII Os movimentos do século XVIII merecem atenção especial, por sua importância no posterior desenvolvimento do capitalismo. Esse período foi marcado por grandes reajustes do balanço mundial de poder, praticamente em duas etapas, que corresponderam ao refluxo dos principais poderes europeus na primeira metade do século e à emergência dos novos estados republicanos - o norte-americano e o francês - na segunda metade. Na primeira metade desse século verificou-se o fracasso do projeto imperialista da França e o debilitamento do Império Austro-Húngaro, ao tempo em que emergiu o Império Britânico. Na segunda metade, evidenciaram-se os efeitos do desgaste político da França, realizou-se a revolução e independência dos Estados Unidos, a Revolução Francesa e a série de conflitos que promoveram a integração política e econômica do espaço internacional do capitalismo. No século XVIII foi, também, quando se desenvolveram as bases do pensamento filosófico e se incorporaram os principais elementos do paradigma científico moderno. As contribuições de Newton e Leibniz foram produtos de trabalho desenvolvido no século anterior, mas sua presença fez-se sentir no século XVIII. O Iluminismo e o Enciclopedismo são grandes referências desse período, em que se desenvolveu a moderna concepção de racionalidade, com a contribuição de Kant. De especial importância é a análise de Lucien Goldmann, sobre o papel das artes, especialmente da arte cênica, como crítica social do absolutismo e como fonte da formação do moderno conceito de totalidade, que se tornaria essencial ao pensamento contestatário do capitalismo no século XIX.

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Nesse período, tornou-se mais explícita e sólida, a relação entre filosofia e ciência e entre ciência e tecnologia. A análise crítica de Kant levou a um esforço de fundamentação metafísica e metodológica da ciência, criando um campo unificado de reflexão, em que a demonstração se fundamenta no fato de que o pensar é o primeiro objeto de investigação, portanto, em que a demonstração científica se faz a partir de um elemento conhecido que é o pensamento. Essa teoria do conhecimento tornou possível falar de cientificidade: da certeza da ciência. Assim, tornou possíveis os critérios de certeza que, adiante, seriam tomados como base do pensamento teórico sobre a tecnologia. Alguns produtos do progresso científico atingiram mais diretamente a organização da produção, permitindo trata-la com equivalente racionalidade. Destaca-se, aí, o relógio de pêndulo, que tornou operacional a noção de tempo contínuo, ou continuamente mensurável. A mensuração do tempo contínuo tornou possível pensar operacionalmente em produtividade, e ligar os resultados do trabalho a lapsos similares de tempo. Permitiu, também, trabalhar com períodos previsíveis de depreciação de maquinaria; e de ligar a depreciação à intensidade de uso. O desenvolvimento de máquinas em geral, depende desse conceito, de regularidade de movimentos e de cronometragem de movimentos realizados. O aperfeiçoamento de instrumentos náuticos traduziu-se em adicional controle de tempo, aqui indicado pela previsibilidade do suprimento de matérias primas, portanto, viabilizando a produção industrial na Europa, onde ela, de fato, dependeu de matérias primas obtidas em colonias. O controle do tempo na produção trouxe uma novidade decisiva para a produção capitalista, que foi a diferenciação entre a produção manufatureira e a agrícola; que, por extensão, foi essencial para a transformação da produção manufatureira em industrial. A uniformização dos produtos, em sua qualidade e na regularidade de sua chegada ao mercado, significava que os produtos da indústria podiam ser aceitos como mercadorias, comparáveis, portanto, a açúcar, fumo, minerais, escravos. No entanto, como todas as fontes de informações indicam, o principal sustentáculo da expansão da produção capitalista nesse período foi o controle direto de grandes contingentes de trabalhadores nos próprios países europeus. A mercantilização das terras, conduzida pelo controle político rígido de produtores rurais e artesãos, alimentou uma rápida concentração de pobres em geral e de desempregados, nas cidades inglesas, que permitiu aos novos industriais organizar suas fábricas para aproveitar a matéria prima barata obtida das colonias.

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Tornou-se clara a combinação de movimentos, entre a formação da indústria e a arregimentação de população para os diversos empreendimentos militares. O mesmo fenômeno levou ao empobrecimento da população rural na França e na Europa central. A militarização dos conflitos de interesses ficou, em parte, encoberta pelos projetos políticos do absolutismo, na França e na Áustria. Mas sua essência num conflito de classes evidenciou-se, primeiro no âmbito germânico, entre a versão internacionalista e católica da Áustria e a nacionalista e protestante prussiana. Essa polarização de forças ficou, temporariamente, oculta pelas coligações formadas durante os conflitos napoleónicos, mas reapareceria, mais tarde, avançado o século XIX, quando a consolidação dos interesses conservadores deu lugar ao aparecimento de suas contradições internas, definindo os rumos da disputa pelo controle do mercado europeu. Na América Latina, o século XVIII esteve marcado por um amadurecimento político e econômico em diversas regiões, configurando-se as ideologias que, nos anos subseqüentes, tornar-se-iam essenciais à organização de economias nacionais. O debilitamento econômico da Espanha e de Portugal, abriu espaço para que os interesses locais se manifestassem em torno de aspirações políticas. No caso de Portugal, o fim da experiência pombalina significou a desistência daquele país de lutar por manter-se ao par do movimento de modernização. Na Espanha, o enfraquecimento político traduziu-se numa seqüência de lutas internas, que abriram espaço para as tentativas francesas de controle, que sob variadas denominações, continuaram até o período das guerras napoleônicas. O enfraquecimento das metrópoles traduziu-se em crescente carga tributária sobre as colonias americanas, onde a pressão fiscal enfrentou-se com os interesses do capital mercantil local, e alimentou o confronto entre colonias e metrópoles. A revolução norte-americana tornou-se uma referência para diversos movimentos, não só pelo apelo da alternativa republicana, mas por representar, também, uma resistência à tributação metropolitana. No entanto, a principal fonte ideológica da América Latina continuou sendo a Europa, que foi a única alternativa universitária fora de Espanha e Portugal. Além disso, o século XVIII foi um período de notável expansão de fronteiras agrícolas, em várias partes da América, do norte e do sul. No norte, a decisão do conflito entre a área de influência inglesa e a francesa, significou a definição de um padrão de territorialidade que sustentaria a formação dos Estados Unidos como país. No sul, houve importante ampliação dos territórios efetivamente ocupados, principalmente no Brasil e na Argentina, com a constituição de um sistema colonial de produção organizado, capaz de sustentar as deficiências das metrópoles em suas relações econômicas internacionais (5). Por fim, o aprofundamento do conflito na Europa pelo controle político tornava-se decisivo

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no plano econômico, já que levava praticamente à falência a Austria e a França; e abria espaço para a hegemonia mundial britânica e à ascensão da Prússia no contexto germânico. Esse conflito transferia-se para a América, primeiro com algumas vitórias decisivas dos britânicos no Canadá, mas com sua posterior derrota nos Estados Unidos, e, por essa via, abria, também, o caminho para a constituição desse país. 9. Os Agentes Econômicos e as Classes Sociais 9.1. Os novos protagonistas: a empresa, os trabalhadores e o Estado A análise das transformações do sistema de produção no século XIX registra duas mudanças fundamentais: o aparecimento de novos protagonistas e um novo perfil do conflito de interesses econômicos. O conflito de interesses tomou um caráter efetivamente mundial. Mas, junto com ele, surgiram os protagonistas da produção e do consumo, que devem, em todo caso, ser identificados. O século XIX está caracterizado pelo aparecimento de novos protagonistas : a empresa, no sentido atual do termo; o consumidor, individual ou coletivamente organizado; e o Estado, como detentor de uma margem de poder que lhe permite alterar as condições operacionais econômicas em que se movem os diversos interesses privados. A organização dos interesses econômicos no capitalismo moderno manifestou-se na constituição da empresa, no remodelamento do aparelho administrativo do Estado e nas regulamentações dos usos do trabalho. Foi encaminhada pela generalização do uso do crédito para movimentar recursos na produção, e pela separação entre os compromissos com as pessoas em sua qualidade de trabalhadores e como cidadãos. A institucionalidade com que se realiza a oferta e a procura obriga a examinar em que consistem a empresa, o consumidor e o governo na sociedade econômica moderna. A. A empresa. A empresa é uma representação de interesses privados na produção, com variados modos de organização e de personalização do controle do capital, destinada a operar através de referências de mercado, que se formou em tempo e espaço determinados, à medida que as operações econômicas necessitaram ter personalidade legal frente ao Estado. No entanto, a lógica da expansão da empresa envolve uma contradição com o

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funcionamento do mercado, já que ela tende a evitar riscos e exercer controle sobre o mercado. Há, nisso, um delicado problema de método que a teoria econômica ignorou. Tratar por separado - como situações alternativas ou desligadas uma da outra - a concorrência perfeita e a imperfeita, ou a concorrência perfeita, o oligopólio e o monopólio, significa excluir do horizonte de análise aquelas tendências comportamentais que levam as empresas a procurar, sempre, reduzir seus riscos financeiros e operacionais, bem como tentar controlar aquelas áreas específicas de mercado em que intervêm. Pelo contrário, reconhecer que esses comportamentos são interdependentes, leva a lembrar que uma mesma empresa participa de situações concorrenciais e de oligopólio, e que seu modo de participar do mercado depende de sua capacidade para exercer algum tipo de controle, ou de ter que se adaptar a condições em que participa mas não influi. Através da confusão hoje criada, pelo confronto de interesses do capital diretamente administrado pelas empresas, frente à pluralidade de interesses representados no Estado, surgem novos aspectos da relação entre os interesses do capital na produção, na formação de patrimônio e perante as instituições políticas e legais; e os interesses dos trabalhadores e pretendentes a trabalhador, em sua participação na produção e no consumo. Torna-se necessário distinguir a influência direta da empresa no capital que administra; e sua influência sobre o Estado, onde tentam ser hegemônicas, ou constituir lideranças ideológicas. A empresa contemporânea surgiu, no século XVIII, em contraponto com o Estado nacional; e deriva sua identidade, justamente, da institucionalidade possibilitada pela consolidação do Estado nacional. Os aspectos legais, operativos e de comando financeiro de capital evoluíram, em diferentes combinações, refletindo o perfil cultural das sociedades em que as empresas são criadas e operam. Por isso, a multinacionalização das empresas hoje levanta novos problemas de legitimidade; e novas dificuldades para ajustar os problemas operacionais de gestão de capital com os problemas institucionais de formação de patrimônio. O enfraquecimento do vínculo com a estruturação institucional do Estado levanta novas questões sobre a legalidade de empresas, que praticamente escolhem as formas legais em que se situam. Em princípio, as empresas podem durar além da participação dos capitalistas seus proprietários. Na prática, sua duração legal e a de sua capacidade operacional, variam, em função de lideranças transitórias; e as empresas sempre estiveram sujeitas a personalismo; e com ele, à formação e preservação de privilégios e contradições de racionalidade instrumental. O componente de poder carismático no comando de empresas vai junto com o conjunto dos fatores psicológicos dos relacionamentos formados em torno da produção e da

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acumulação de riqueza. E o problema mais amplo de liderança continuou, em diversas soluções culturais, da japonesa à norte-americana, como um leque de alternativas, entre as mais individualísticas e as mais coletivísticas. Por isso, há uma questão essencial, relativa à duração das empresas e à continuidade dos interesses que conduzem a gestão do capital nelas incorporado. A análise da operacionalidade das empresas termina enfrentando problemas de interesses, onde o próprio princípio da defesa do interesse individual obscurece a relação entre a esfera do individual e a da formação de coletivos em torno dos interesses do capital. Ao reconhecer, também, que sempre há uma grande variedade de situações culturais e institucionais incorpora na variedade de empresas, torna-se inevitável considerar que a possibilidade de interpretar os fenômenos relativos às empresas sobre a base de uma única racionalidade comportamental, está restrita a um pequeno âmbito, em que suas transações em mercado são semelhantes. Em cada momento, as empresas representam conjuntos de interesses de pessoas concretas, envolvidas na gestão do capital, que são modificados pelos interesses do coletivo incorporado na própria empresa; e que se confrontam com os interesses dos trabalhadores atraídos por eles mesmos para suas empresas, que de algum modo devem conjugar. Torna-se, portanto, necessária uma teoria da formação da empresa que explique seu desempenho ao longo do tempo, em diferentes condições tecnológicas e financeiras, e com objetivos temporalmente definidos. De não ser assim, torna-se impossível registrar as transformações que ela experimenta, de fatores culturais e como resultado da organização social da produção. Mas é essa compreensão da formação da empresa que permitirá ve-la como produto histórico, portanto, acompanhar suas transformações; e ver sua operacionalidade atual como resultado de experiências incorporadas, que podem ter ou não continuidade. A suposição de que a empresa pode chegar a ter pautas de comportamento racionais, não sujeitas às injunções das situações pessoais e culturais dos capitalistas seus proprietários, significa, na prática, uma simplificação do quadro cultural, qual seja, de supor que a empresa não é um produto cultural. A objeção a esse ponto de vista é inevitável. Na prática, as empresas são âmbitos em que algumas pessoas operam em qualidade de capitalistas, segundo sua formação cultural e suas preferências pessoais. E a racionalidade dos comportamentos no âmbito das empresas, varia segundo a formação cultural dos capitalistas e segundo as condições concretas em que se dá a luta pelo poder em cada sociedade.

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Os capitalistas movem-se em relação com os objetivos que percebem em seu ambiente de conhecimento de produtos, mercados e processos de produção. As diversas empresas passam por suas próprias experiências, conduzindo os recursos das empresas em determinadas direções. Os resultados da atividade empresarial são progressões, que têm seus próprios efeitos em cadeia e que se traduzem em determinados estilos de funcionamento e determinadas culturas organizacionais. Ao comparar os estilos de funcionamento de empresas de diferentes países e regiões, bem como observar suas transformações ao longo de suas respectivas substituições de técnicas, não se encontram justificativas para supor que há uma tendência uniforme e generalizada a que as empresas substituam suas bases culturais por uma única pauta de racionalidade despersonalizada. Pelo contrário, persistem modos familiares de gestão, assim como sobrevivem práticas pré-industriais em empresas tecnologicamente muito modernas. O modo de funcionamento do capitalismo nos Estados Unidos, certamente uma sociedade mais aberta que as européias, comportou relações inter-pessoais diferentes das que prevaleceram no capitalismo alemão e no francês, influenciados pela sociedade aristocrática de castas. O capitalismo japonês contemporâneo trouxe, de volta, valores quase militares de sua sociedade feudal para o âmbito das empresas. Na América Latina, como nos países ibéricos, o capitalismo prosperou mediante empresas ostensivamente apoiadas pelo Estado, como um modo de transferir privilégios, ou de modificar privilégios da anterior estrutural rural de poder. As novas modalidades de empresa - as empreiteiras - típicas dos Estados Unidos e dos grandes países latino-americanos, são exemplos de organizações que partem de atividades do terciário sustentadas pelo Estado, para tornarem-se industriais e mesmo agrícola, e constituir grupos transnacionais. A imagem da empresa como portadora de racionalidade teve que ser substituída por um conhecimento mais realista dos modos como elas se formam e operam; e como reagem ao progresso técnico em diferentes condições de mercado. Trata-se da análise socio-antropológica da empresa da de sua formação histórica. Dado que a racionalidade das empresas corresponde a uma visão de modernidade; e que o manejo de tecnologias por sua vez corresponde a suas estratégias de lucro, vê-se que o tratamento da racionalidade é parte de uma visão cultural e de um quadro psicológico. Institucionalmente, a empresa moderna é uma representação legal do interesse privado, cuja legitimidade está dada pela aceitação do lucro como forma de apropriação de riqueza. As empresas são, por definição, práticas. Diferente de outras formas de associação, elas existem para operar em mercado: a empresa é, essencialmente, uma instituição justificada pela existência de um mercado. Operacionalmente, a a a a empresa é um

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centro de decisões financeiras, técnicas e administrativas, mediante as quais gera uma determinada massa de capital, que procura reproduzir e ampliar. A industrialização criou uma imagem de empresa identificada com as unidades de produção industrial, reduzindo a problemática da empresa à da fábrica. Isto tem levado, freqüentemente, a confundir os objetivos de gestão do capital com os de produção. Por extensão, leva a juntar, indevidamente, a totalidade dos resultados obtidos pelas empresas com seus resultados operacionais. No entanto, para compreender o processo histórico de formação da empresa, é preciso acompanhar como a empresa desenvolve a fábrica e como, num dado momento, passa a ter que supera-la. Para explicar o papel das empresas na sociedade econômica atual, é preciso distinguir: as modalidades básicas de empresa; os tipos de resultados que elas obtêm e seus efeitos na formação de capital. Tomando como referências a escala de operações, o uso de tecnologia e a gestão financeira, podem-se apresentar algumas observações mais destacadas, como as resumidas na tabela n.1 a seguir, onde se contrastam os aspectos fabris de cada empresa com os da relação entre capital imobilizado e financeiro e a questão da pluralidade de técnicas. tabela n.1 ____________________________________________________________ tipo de unidades processo produto capital empresa de` técnico financeiro produção A uma um um uso próprio B várias um um aplicações C várias vários vários fonte de renda D " " " fonte principal de renda ____________________________________________________________

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Ressalta-se aí, que em sua expansão as empresas podem mudar de forma operacional, com isto mudando o tratamento financeiro da reprodução do capital. Isso significa que a análise das empresas tem que levar em conta a polaridade de sua consistência institucional e de suas práticas cotidianas, bem como reconhecer que sua competência para reproduzir seu capital está situada em termos da adequação de seu tamanho e da composição de seu capital às finalidades que se propõe. Desde esse ponto de vista, a análise e a política de empresas têm um claro fundamento histórico, que torna necessário distinguir a relação entre as características operacionais de cada empresa e a experiência que ela acumula. B. O trabalhador. A identificação do indivíduo como trabalhador e como pagador de impostos surge como uma referência mais ampla que a de morador de uma cidade, ou como portador de um saber prático na sociedade contemporânea. Em princípio, o trabalhador é uma pessoa completamente integrada na sociedade economicamente organizada: é o contrário do marginalizado. E essa distinção é essencial, quando se tenta explicar os mecanismos de marginalização das sociedades contemporâneas. No entanto, a participação do trabalhador na sociedade decorre de sua capacidade para controlar um determinado saber prático e para desenvolver relacionamentos em seu universo concreto de referências, que se irradia a partir de seu trabalho, de sua moradia e do acesso que tem a formas colaterais de associação, como no lazer e na política. Invertendo a argumentação de Marcuse a este respeito, pode-se dizer que, apesar que o capital pode ver o trabalhador apenas como trabalho, e gera relações unilaterais, ninguém é apenas trabalhador. A questão coloca-se em saber se as demais dimensões de participação das pessoas na sociedade ficam subordinadas à visão de bem estar, transferida pelo capital, ou se as pessoas detêm uma visão própria, que seja um espaço de autonomía, paralelo a sua posição de subordinação no lugar de trabalho. A posição do trabalhador na sociedade econômica moderna pode ser representada, em boa parte, pela dos assalariados, porém jamais pôde ser simplificada aos termos do emprego regular: grande parte do trabalho realizado jamais foi assalariado, nem o assalariamento foi um objetivo universal da produção capitalista. Desde a primeira revolução industrial até a operação industrial de hoje, sempre houve um importante componente de trabalho tecnicamente equivalente ao assalariado, mas realizado e remunerado em condições de incerteza. E tanto como se pode argumentar que a realização da produção capitalista depende, antes que tudo, de trabalho assalariado, pode-se aduzir que a realização do trabalho assalariado depende, sempre, de um componente de trabalho não assalariado.

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O trabalho assalariado preenche os empregos diretos das unidades de produção, onde ocupa empregos determinados nos programas de produção das empresas. Mas cada emprego formal que se preenche significa que outras atividades - não contratadas por empresas, como o trabalho doméstico e o de produtores independentes - são realizadas, sem as garantias que o emprego oferece. Assim, dependendo da organização social do trabalho e da correspondência entre a tecnificação da produção e a do consumo, há uma proporcionalidade entre o trabalho assalariado e o não assalariado. Quer dizer que o emprego dos formalmente contratados apoia-se em trabalho de não contratados, que realizam todas aquelas tarefas que não encontram preço nem modo de estabelecer preços. Na sociedade econômica moderna, o tempo é apreciado como um potencial que pode ser direcionado para alguma forma de trabalho ou para lazer; e que tem uma equivalência financeira, dada pela qualificação do seu detentor. A realização de trabalho socialmente necessário, seja, a criação de valor, tem, entretanto, diferentes expressões, segundo se realiza no âmbito da produção capitalista ou em alguma modalidade colateral de produção, como a produção primitiva, a camponesa e a informal. Assim, a valorização do tempo-trabalho dos assalariados está inter-ligada à do tempo dos não assalariados. E quando estes últimos fazem as tarefas mais árduas ou menos reconhecidas, indiretamente, funcionam como elementos de estabilização dos salários no mercado de trabalho. Heilbroner, em sua interpretação da formação da sociedade econômica (5), mostra a importância da circularidade entre a formação do mercado, a identificação de papéis específicos para os trabalhadores e a diversificação da produção. É um aspecto fundamental, que deverá ser retomado adiante neste trabalho, que entretanto deve aqui ser corrigido, para apontar a diferença entre pretendentes a trabalhador e trabalhador; e a não equivalência entre o trabalho qualificado e o não qualificado, conseqüente de que os horizontes de opções dos trabalhadores num e noutro caso são completamente diferentes. O reconhecimento de que há um potencial de trabalho que não se realiza em forma alguma; e que há condições de não equivalência de trabalho, significa simplesmente admitir que a sociedade econômica não está desenhada, nem pretende, incorporar o potencial de todos os que se configuram como pretendentes a trabalhador. Realisticamente, não há como pensar que os mercados de trabalho modernos sejam contínuos, ou que todos os trabalhadores tenham oportunidades iniciais equivalentes. As novas sociedades econômicas, como a norte-americana, a brasileira, a australiana, a argentina, e agora, as européias, são sociedades com numeroso componente de imigrantes, que geralmente são objeto de algum tipo de discriminação, e que ganham mobilidade, de modo desigual, segundo seu nível cultural e financeiro, ou segundo fatores de prestígio.

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Aspectos de raça e cor, como de língua, religião e política, funcionam como limitantes da mobilidade dos pretendentes a trabalhador. Desde as discriminações religiosas que vêm desde a Inquisição às de hoje, os aspectos religiosos têm sido tomados como restrições e algumas vezes como elementos de preferência. Mas a pressão no mercado de trabalho, que aparece quando um determinado grupo se torna mais numeroso, é o traço principal desse processo, que se repete, sob diversas formas, em vários lugares. Raça e cor têm sido fundamentais em todas as sociedades que foram atingidas de algum modo pela colonização e pela dominação e continuam funcionando como grandes limitações do acesso a postos de trabalho e oportunidades de ascenso de renda. Os africanos e os árabes geralmente estão entre os mais discriminados, de modos mais ou menos explícito. Por sua generalidade, essa questão excede o âmbito dos problemas de qualquer trabalhador individual, tendo que ser colocada como restrição nacional ou regional. Discriminação, como anotou Myrdal, é um mecanismo que se reproduz, de modo diferenciado, dependendo de como se dá a relação de cada sociedade com a modernização e como ela consegue ter aumentos consistentes de renda. A discriminação e a segregação do mercado de trabalho correspondem a diferenças culturais e as mudanças no plano cultural resultam em trajetórias diferenciadas, que finalmente moldam o mercado de trabalho, por exemplo, na relação entre qualificação e remuneração, entre preferências por determinados grupos sociais para determinadas funções; e finalmente na criação de uma linguagem racionalizadora das diferenças atuais e de sua projeção a diferenças futuras. A urbanização também interfere no desenvolvimento dos mercados de trabalho, criando espaços mais marcados de relacionamento, tornando mais evidentes os circuitos de produção e de consumo em que as pessoas se movem. O agravamento das diferenças de classe e renda das grandes cidades delimita os horizontes de possibilidades com que vivem as pessoas. A desigualdade na formação do capital das cidades, aprofunda essas diferenças, ao criar condições, cada vez mais diferenciadas de reprodução de cada grupo. C. O Estado, O fortalecimento do Estado resultou daquela contradição do interesse privado moderno, pela qual são necessários cada vez mais investimentos fora das empresas para que elas possam aproveitar cabalmente o capital que controlam. A partir do século XIX, o Estado passou por transformações operacionais, que o adaptaram a acompanhar a industrialização e a representar os interesses urbanos majoritários. No século XX, o Estado tornou-se o grande promotor de amplas renovações da capacidade de produção, que se fizeram notar primeiro nos países mais ricos, e, mais tarde, nos periféricos. Destaca-se, por exemplo, o papel do Estado como construtor de estradas e pontes, na Europa e nos Estados

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Unidos, assim como do Estado que criou os novos grandes sistemas de produção de energia hidro-elétrica. Ao adiantar-se a produção industrial, e industrializar-se a agricultura, o interesse econômico privado racionalizou os modos como absorve capital público; e os modos como criar um mercado público para suas atividades. O aspecto mais evidente desse mecanismo é o aumento da infra-estrutura como proporção da capacidade de produção. Mas as despesas com infra-estrutura, em transportes, em energia, saneamento, têm efeitos genéticos próprios diferentes dos efeitos da reprodução da capacidade de produção. As despesas com os sistemas de infra-estrutura têm efeitos no emprego e na composição do capital, que não necessariamente acompanham os deslocamentos de tecnologia da produção; mas que refletem o perfil de criação de novos empregos. Têm, portanto, impactos indiretos na reprodução do capital privado, naquilo em que ele se apoia na demanda interna. Em sua combinação específica de forma legal, capacidade técnica e experiência prática, o Estado contemporâneo apoia-se em compromissos de relações de poder, que resultaram da complexidade de ter que controlar grandes contingentes de população de baixa renda que se urbaniza. Em seus aspectos mais evidentes, o Estado capitalista atual surgiu junto com o expansionismo econômico dos países mais ricos. Por exemplo, ao observar as diferenças entre o Estado industrial mexicano da década de 1950 e o Estado mexicano de 1930, tornam-se evidentes diferenças que não se restringem ao campo político. Formalmente, é a mesma constituição política. Mas, na prática, o governo tem um aparelhamento técnico que lhe permite desempenhar funções novas, ou desempenhar as mesmas funções com outra competência. É preciso distinguir, pois, entre aquelas análises do Estado, que o vêm como fenômeno político - que eventualmente pode ser apreciado por seus princípios essenciais, sem levar em conta sua constituição histórica - e esta outra análise, que o vê como produto de uma prática econômica e cultural. Ao avançar mais o século XX, viram-se a extensão e profundidade dos compromissos do Estado com o sistema educativo; e seu conseqüente papel - indireto mas estratégico - na continuidade do processo de acumulação. 9.2. As classes sociais e a produção Na produção capitalista, a organização técnica da produção está sustentada pela organização social da produção. Esta é, essencialmente, o que se tem entendido como relação de classes. A identificação das classes e o relacionamento entre elas, podem ser vistos de modo restrito ao âmbito do relacionamento entre as classes concretamente

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formadas em cada sociedade; ou de modo mais amplo, levando em conta o horizonte de relacionamentos derivados daqueles. Reconhecidamente, há discordâncias profundas, no relativo à validade, e mesmo à oportunidade, de uma análise de classes como modo de apresentar a pluralidade de interesses, conflitos e convergências da sociedade moderna. A maior parte dessas discordâncias estão ligadas à percepção das esferas do interesse individual e do coletivo, a objetividade e subjetividade, e à crescente importância de componentes das sociedades, que não podem ser reduzidos aos termos contratuais do assalariamento: Não só perceber a importância da informalidade, mas perceber como a informalidade é essencial na reprodução da formalidade. A questão da estruturação da sociedade moderna é um tema central da análise do capitalismo, que marca, definitivamente, a obra dos principais pensadores do tema. Aparece em Adam Smith descrevendo o contraponto da produção com os privilégios. Está em Ricardo como o elemento essencial da relação entre a distribuição social da renda e a realização da produção. Em Marx a formação de classes reflete o conflito essencial de interesses sobre o qual se apoia a produção capitalista. Weber explicitou os conteúdos de subjetividade desse processo histórico. A análise da estruturação social tomou novos conteúdos quando incorporou a problemática dos países periféricos, quando essencialmente passa a refletir as diferenças culturais tanto como as desigualdades construidas ao longo do tempo. A sociedade econômica do capitalismo de hoje é, antes que tudo, uma sociedade plural e fraturada, cujo núcleo condutor é guiado por interesses econômicos; e administra privilégios herdados de formas não capitalistas de organização, ao lado dos privilégios que ela mesma cria. É uma sociedade onde os interesses que se revelam no cotidiano econômico modificam os modos de participação dos protagonistas do meio pré-capitalista, ao tempo em que forma novos participantes do convívio e do confronto: aqueles que são efetivamente postos em contacto por relações contratuais de trabalho; e aqueles outros que participam de formas de convívio em que esse confronto não acontece de modo tão linear e direto. Nos países desigualmente industrializados, como o Brasil, a formação de classes foi, além disso, regulada pelas possibilidades materiais do convívio, seja em formas associativas que envolvem grandes números de pessoas, seja em formas de trabalho que restringem a participação a canais limitados de associação e de confronto. Alguns exemplos mais notórios são os dos ferroviários e dos mineiros, que estiveram em todos os movimentos sindicais do fim do século passado e da primeira metade deste século; e dos vaqueiros e pescadores, que continuaram trabalhando em pequenos números.

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A industrialização traduziu-se em novas formas de urbanização, que significam formas de associação diferentes daquelas previstas pela organização da fábrica. Daí que as novas cidades são lugares onde as pessoas participam de formas de associação que não prevêm sua futura inclusão em classes, mas que alteram as condições em que outros participam de classes. As organizações de interesse localizado, tais como associações de bairro, clubes de recreação e excursão, cooperativas de consumo, igrejas, não produzem um engajamento comparável ao das estruturas de classes. Mas em seu conjunto ocupam a maior parte das atividades das pessoas e funcionam como reguladores de sua participação no trabalho. A grande questão levantada pela expansão do capitalismo refere-se, justamente, à possibilidade de que as relações determinadas pelo trabalho possam abranger o espaço das demais relações, que assim possam formar um referencial suficiente para explicar o dinamismo das classes; e ainda, através desse mecanismo, chegar aos temas do trabalho latente, ou do potencial de trabalho historicamente bloqueado. O grande movimento da industrialização que construiu a combinação de indústrias mecânicas e elétricas, foi também o responsável da formação de grandes contingentes de trabalhadores assalariados organizados em bairros e em cidades estruturados em modos de vida característicos, diferenciados de quaisquer outros anteriores de grupos de renda equivalentes. O emprego industrial tornou-se a principal referência da ocupação; e indiretamente regulou o nível de ocupação no sistema de produção. Porém jamais ocupou a maioria da população em idade de trabalhar. Pelo contrário, incorporou uma lógica de que a reprodução do capital se faz com uma progressiva redução do número de trabalhadores concretos, que é substituído pelo aumento do capital constante. Nas economias periféricas, a industrialização fez-se com um conjunto de fábricas que concentram a capacidade de produção e que ocupam um número mais ou menos estável de trabalhadores. O emprego industrial reflete as necessidades de trabalho das empresas, que se comparam com as necessidades da sociedade de empregar pessoas. Há sempre uma força de trabalho que é ocupada em atividades indiretamente reguladas pelas industriais, ou que permanecem à margem do mercado organizado pela indústria. Os usos de trabalho em atividades de segunda linha compreendem a prestação de serviços a empresas e às pessoas que sobrevivem de emprego nas empresas, bem como atividades de produção de bens e serviços que sobrevivem nesse mesmo mercado organizado. Mas há uma grande quantidade de trabalho que é realizado por separado dos movimentos desse mercado, ou em todo caso, com grande independência das flutuações do emprego assalariado.

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A formação de classes ocupa um lugar central, mas demarcado pelas limitações do assalariamento. O formato das relações de classe reflete as condições em que se realiza a industrialização, seja, reflete as relações de classe reais. A relação capital/trabalho é qualificada pelo modo como se faz a urbanização, tanto como pelo modo como o capital privado toma a forma de capital fabril ou multi-setorial. O desenvolvimento do capital e do trabalho depende da urbanização, tanto como do desenvolvimento tecnológico. 9.3. A formação social extra classe A diminuição da participação do assalariamento na composição da ocupação nas sociedades de hoje, tanto nas mais industrializadas como nas desigualmente industrializadas, põe em evidência uma outra perspectiva da organização social da produção, que não depende do processo de formação de classes. Destacam-se aqui os aspectos culturais de relações que se tornam cada vez mais urbanas, ao lado de modos de solidariedade que tampouco dependem da organização da produção. Os traços mais evidentes são os do consumo. Mas as sociedades de hoje estão mais fortemente afetadas por tendências a formas de organização micro-celular, isto é, relações que se desenvolvem em vizinhanças, clubes, pequenos sindicatos . Seja pelas facilidades de comunicação, seja porque as comunicações tornam a viabilizar soluções locais aparentemente obsoletas, há uma revitalização do tecido local de relações, que modifica os papéis dos agentes econômicos em sua participação política, portanto, em sua visibilidade na escala nacional. O substrato cultural do relacionamento social define, portanto, os requisitos básicos de uma abordagem que insere as questões de classe como aspectos de uma configuração de relações capital/trabalho que transcende os aspectos contratuais imediatos , e chega às condições de permanência dos diversos tipos de trabalhadores na própria sociedade urbana. Há, portanto, uma ligação entre a participação no processo de produção e a participação em outras formas de associação, que não dependem do modo de organização do capital para produzir. A industrialização veio junto com novas formas de urbanização, que significam formas de associação diferentes daquelas previstas pela organização da fábrica; e que se reproduzem junto com elas. Os mesmos vínculos estamentais de igrejas e instituições militares, são aqui acrescidas de novas formas de solidariedade - como o próprio bairro - que substituem o anonimato das pessoas pela inserção em grupos que têm personalidade como coletivos, no âmbito local, mas que não têm legitimidade na cidade em seu conjunto. As novas cidades são lugares onde as pessoas participam de formas de associação que não prevêm sua futura inclusão em classes, mas que alteram as condições em que outros

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participam de classes. As organizações de interesse localizado assumem papéis, que vão desde aqueles de substituição da família aos de construção de novos superegos urbanos. De modo muito próprio, a cidade industrial periférica, profundamente desigual, é também uma cidade onde se formam novos coletivos, que passam a ter personalidade em paralelo às classes, que finalmente dão um retorno essencial à produção do próprio indivíduo aceito como cidadão, como membro de uma sociedade nacional. A cidadania é uma individualidade que se estabelece por consenso, de que os indivíduos são portadores da representação desses coletivos e que, além disso, pertencem a uma determinada estrutura de desigualdade, que se identifica com uma determinada sociedade. Como o consumo nas cidades passou a ter um componente cada vez mais de consumo coletivo, em torno da moradia, dos transportes e do lazer, os mecanismos de inserção na sociedade urbana passaram a refletir vantagens conseqüentes da demora numa cidade. A permanência no ambiente urbano tornou-se essencial na diferenciação de condições de acesso a qualidade no trabalho e na moradia. O cidadão é aquele que conhece os códigos da cidade e tem os meios necessários para usa-los. Tal suposição, certamente, não se aplica aos marginalizados. Eles se reproduzem à margem da sociedade estruturada pela previsibilidade de renda, admitida sua presença mas não reconhecido seu trabalho. Os marginalizados não são somente rejeito do processo de produção: são identificados e discriminados como representantes da própria diferença. Mas isso lhes dá possibilidades de construir formas alternativas de poder, principalmente na forma de poder contraventor, que escapam da lógica de ordenamento e racionalização do Estado burguês uniformizador. Notas 1. Perry Anderson, " Passagens da Antiguidade ao Feudalismo" ( Afrontamento, Lisboa, 1982). A tese é essencial na visão marxista da questão. Anderson, entretanto, enriquece o argumento, situando-a no contexto específico do fim do feudalismo. 2. Pierre Chaunu, " A Civilização da Europa das Luzes". Ed. Estampa, Lisboa, 1985. 3. Stuart Shwartz, " Segredos Internos", Companhia das Letras, Rio, 1990.

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4. Esse aspecto de história militar é parte essencial da argumentação de Basil Lidell Hart, em seu essencial "Strategy". 5. Robert Heilbroner, " A Formação da Sociedade Econômica", Rio, Zahar, 1960. 2. Max Weber, " Economia y Sociedad" Mexico, Fondo de Cultura Económica, 10. A Ascensão do Capital Industrial no Século XIX 10.1. A articulação industrial da produção A predominância da produção industrial significou uma mudança completa do modo de funcionamento do sistema de produção, em que se destacam três elementos: a incorporação da reprodução do capital à da reposição de equipamentos de vida útil delimitada, o uso de trabalho em formas que se repetem e a predominância de produtos qualitativamente invariantes. Com eles se estabelece, como central, a lógica industrial da reprodução do sistema de produção; e a economia, em seu conjunto, passa a ser vista através da perspectiva da indústria. A produção industrial supõe previsibilidade dos processos de produção e comercialização, e especificação dos produtos. Sua expansão na Europa significou a substituição de uma grande pluralidade de formas de aplicação dos capitais por uma lista de investimentos comparáveis, bem como a reaplicação dos capitais em determinadas linhas de produção, substituindo produtos personalizados por marcas; e permitindo usos maciços de produtos similares, como pelo exércitos e pelas próprias fábricas. A compreensão dessa mudança é um dos aspectos mais importantes da obra de Adam Smith, que com isso mostrou que os capitalistas estão, constantemente, enfrentados com decisões sobre que fazer com a totalidade de seu capital; e não apenas com a fração não consumida de seus ganhos (1). A questão é que os capitalistas podem ter que decidir sobre a totalidade ou sobre partes dos usos de seu capital independentemente de suas preferências de mante-lo em sua forma atual de aplicação. Um exemplo disso se vê no contraste entre produtores de óleos vegetais extraídos de oliveira, que tem longa vida útil, e oferece colheitas anuais altamente previsíveis; e produtores de óleo vegetal de milho ou de soja, que dependem de decisões anuais de reposição integral da plantação. Enquanto um produtor continuará obtendo anualmente quantidades regulares de produto, o outro terá que decidir, de um ano ao seguinte,

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quanto aplica; e receberá produtos em forma proporcional às aplicações anuais de capital. A expansão da produção realizada em fábricas, com a padronização dos produtos e dos processos de produção e adiante, com a padronização do equipamento, representou uma modificação fundamental em relação com a produção manufatureira, no que permitiram que os resultados obtidos na venda dos produtos fossem reincorporados ao processo de produção, no mesmo movimento de valorização do capital, de modo que o valor dos novos equipamentos e o dos existentes se move num mesmo quadro temporal e espacial de referência. Por extensão, o aumento do número de fábricas em produção significa um correspondente aumento das compras realizadas com regularidade no tempo, portanto, maior confiabilidade dos programas de produção de cada fábrica. Nessas condições, há uma genuína comparabilidade entre os preços dos equipamentos, das propriedades e das existências de matérias primas e de produtos terminados. Introduz-se, também, a novidade de que o patrimônio - em princípio, os ativos que não estão diretamente engajados na produção - torna-se objeto de avaliações equivalentes às do capital, isto é, dos ativos incorporados na produção. Isso significa a possibilidade de tratar os patrimônios inativos em equivalência de preço com o capital incorporado na produção, mesmo sabendo-se que a diferença entre capital ativo e patrimônio inativo é essencial, para identificar a capacidade de cada sistema de produção para usar, continuamente, o capital que acumulou; e para reconhecer que os ativos de capital podem ter diferentes significados, segundo são incorporados de um ou de outro modo na capacidade instalada de produção. De fato, como se observou durante a primeira metade deste século, houve quantiosas e frequentes transferências de ativos, da condição de patrimônio gerado pela acumulação agro-mercantil à de capital industrial, e desta, de volta, à de patrimônio rural. Essas restrições de comparabilidade são um dado histórico do funcionamento da produção, que correspondem a situações específicas de composição do capital e de renovação de tecnologia, em que os diversos gestores de capital - dirigentes de empresa ou simplesmente proprietários - dispõem de certos elencos de informações e de prazos para decidir. No sistema de produção industrializada, as opções de investimento compreendem, igualmente, aquelas aplicações na agricultura, nos setores de infraestrutura e nos diversos tipos de prestação de serviços, que são compatíveis com o elenco atual de indústrias. Daí, que o artifício de anállise, de tratar essas restrições como genéricas, portanto, de tomar o cálculo de rentabilidade financeira como capaz de expressar uma equivalência plena entre os usos dos capitais, significa abstrair as funções que eles desempenham na produção. Por exemplo, aceitar como equivalentes um

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investimento com uma tecnologia superada, que se torna inadequado antes mesmo de ser depreciado; e outro, que usa uma técnica nova, que apenas começa a ser aproveitada. A equivalência financeira é adequada para comparar aplicações de capital, frente a aplicações bancárias, não para comparar previsões entre investimentos. Em torno desse problema de comparabilidade, dois aspectos a considerar. O primeiro deles é que a continuidade do processo de industrialização depende de que as indústrias disponham de matérias primas e equipamento suficientes para sustentar o aumento da produção; e que o suprimento de materiais para a indústria, interno ou importado, é o meio pelo qual se absorvem os efeitos da produção em outras linhas de produção. Daí que tenha sido fundamental que a industrialização em cada país ou região se fizesse com suprimento interno ou importado. O segundo aspecto, é que a produção e a manutenção dos equipamentos e das instalações para a indústrias pressupõe um processo de formação progressiva de trabalho qualificado e de formação de capital, que permita ao sistema reagir em tempo e escala adequados às necessidades das unidades industriais atualmente em produção. Essa, a diferença fundamental entre a industrialização dos países da Europa ocidental no século XVIII e a dos países latino-americanos no século XIX. A primeira fez-se sobre a base de um desenvolvimento gradual das manufaturas, e pôde desenvolver, gradualmente, os quadros técnicos que precisava para ampliar seu espectro de atividades. A segunda surgiu em sistemas de produção em que a qualificação do trabalho foi atrasada pelo sistema escravista e pelas diversas formas de servidão. As condições de contratação de trabalho aqui são essenciais, pelo que refletem de relação entre os níveis de remuneração dos trabalhadores e o modo como se resolvem os problemas de qualificação das pessoas em idade de trabalhar (2). Além das diferenças de situação de classe, no relativo a acesso a educação, há um problema de adequação da educação aos requisitos dos postos de trabalho criados pela industrialização, e de efeitos acumulados do desajuste educacional, que funciona como mecanismo de exclusão, comparado com a educação tradicional, voltada para preparar quadros para a sociedade agro-mercantil. A expansão do capital industrial e o predomínio do modo de formação de capital da indústria, fizeram com que a produção capitalista ficasse identificada com a produção industrial, passando-se a entender que o essencial da organização da produção é a produção das fábricas. É uma presumção justificada pelo fato de que o modo industrial permite a reaplicação integral dos resultados da produção, determinando o modo como a formação de capital se traduz num determinada capacidade de produção e

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numa determinada acumulação sobre as próprias linhas de produção industrial. É o movimento do capitalismo que foi melhor estudado por Hobson, que levou à acumulação industrial em seu sentido mais amplo da experiência norte-americana. Mas é uma concepção a ser reavaliada, quando se percebem as mudanças do papel da indústria na atual organização da produção; e quando se vê que a dinamização do sistema não necessariamente decorre da produção industrial propriamente dita, senão de articulações da formação de capital em que a indústria é essencial, mas onde nem sempre lidera as decisões principais. De fato, aquele modelo de expansão industrial visto com clareza antes da primeira guerra mundial, que criou a concentração de capital da grande indústria do sistema sidero-metalúrgico, deu passagem a outras modalidade de acumulação, ligadas a ela, mas que modificaram seu caminho. São, em parte, questões que pertencem à análise da própria indústria, tal como foram percebidas antes de 1920; e em parte, são questões que interessam ao modo de funcionar das empresas, e ao seu modo de mover-se entre investimentos na produção industrial, no setor imobiliário e em contratos com os governos. Tais questões têm que ser revistas à luz do acontecido depois de 1945. Há uma diferença essencial entre o excedente físico não utilizado durante o período de produção e a formação de capital como tal. Aquele é constituído de resultados que se acumulam durante o período de produção, que não necessariamente podem ser reintegrados ao processo de produção. Excedentes de produtos agrícolas nem sempre podem ser utilizados como sementes e geralmente perdem qualidade com a armazenagem. Grande parte do excedente simples não pode ser guardado por muito tempo. É fundamental lembrar que para tornar-se formação de capital, o excedente tem que poder reingressar na produção, direta, ou indiretamente, mediante comercialização. Toda a produção que não pode ser guardada ou trocada, por razões físicas ou por inexistência da comercialização oportuna e adequada, está condenada a ser consumida ou destruída. Em segundo lugar, há uma diferença entre a magnitude e composição daquela parte da produção que se converte em formação de capital; e as condições concretas de sua efetivação como tal. O fato de que se acumulem existências de produtos agrícolas e industriais, não garante que eles se integrem em composições técnica e socialmente viáveis, portanto, que ganhem o estatuto de capital. O excedente de valor gerado somente se converte em capital quando reintegrado organicamente ao sistema de produção, isto é, quando há soluções sociais e técnicas para seu uso. Isto significa que a formação de capital é um componente que se integra à capacidade do sistema de produção, ou simplificadamente, à capacidade de produção. O que conta, efetivamente,

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para a reprodução do sistema de produção, é a capacidade de produção do capital. A defasagem de parte do capital, comparada com o adiantamento tecnológico de outra parte, significa uma perda em termos de capacidade para aproveitar plenamente o valor já incorporado. Isso se reflete, por exemplo, no tratamento que se pode dar às usinas de energia, à intensidade de uso dos campos, ao tempo efetivo de trabalho das fábricas. Há, portanto, um problema genérico de formação de capital, e um problema específico de modificação da capacidade de produção da indústria, na constituição do sistema de produção. Para compreender o papel da indústria hoje , é preciso distinguir as perspectivas de análise do processo formativo do capital industrial, e de como ele se transforma; a as da análise das características operativas e estratégicas da constelação de empresas hoje operando na produção industrial. Obviamente, a perspectiva do processo formativo contém a da análise da estrutura atual, situando os problemas estratégicos das atuais empresas como parte do processo de consolidação e mudança do sistema de produção. Trata-se do processo da indústria como atividade; e não da história de empresas específicas. É um ponto no qual se impõe rever o significado dos pontos de vista de Marx e de Schumpeter; e comparar com eles os elementos de análise formal da indústria, no plano macro e no micro-econômico. Para Marx (3), a formação atual de capital é a transformação de bens realizada majoritariamente com capital, seja, é produto de um processo de acumulação, que em princípio pode prosseguir. Sub-entende-se que a indústria é a representação de uma capacidade de produção, que essa capacidade é plenamente visível no plano fabríl, resultando daí duas possibilidades de discussão. Uma, no plano macro-econômico, que focaliza nas margens de uso da capacidade no sistema em seu conjunto, que portanto tem a ver com as condições de operação do sistema no contexto de suas relações internacionais, seja, que se liga à discussão do ciclo econômico. Outra, que focaliza no uso da capacidade de produção comandada por cada capitalista individual, seja, que examina o uso efetivo da capacidade como resultado de uma possibilidade de decisão individual, em que o capitalista compara o lucro obtido no uso efetivo da capacidade utilizada com os custos do capital e com as vantagens indiretas que ele pode lhe dar. Schumpeter tentou resolver micro-economicamente um problema proposto ao nível macro-econômico por Marx; e utilizou uma visão de fluxo circular econômico como construído a partir de relações entre indivíduos. Mas nessa visão falta a categoria do coletivo como tal! Daí, que sua análise mostre as vantagens individuais da intensificação no uso da capacidade, mas não penetre nas diferenças entre a composição do excedente e a da capacidade de produção (4). No entanto, esse é o problema central que se enfrenta, para compreender as peculiaridades da produção industrialmente organizada. Nesse quadro, colocam-se os

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sucessivos movimentos de ampliação e reordenamento do capital, que se traduzem em ampliações e reordenamentos da capacidade de produção industrial; e como esses movimentos correspondem a modificações nos setores primários e nos de serviços. Mais ainda, tornam necessário revisar como se alteram as relações entre a produção propriamente dita e a comercialização e o financiamento. Esse modo de ver a reprodução do sistema de produção está condicionado pela importância do mecanismo industrial na formação do sistema de produção. Mas, assim como revela a incorporação da experiência com a indústria, revela também a falta de correspondente cuidado com a descrição do funcionamento dos sistemas heterogêneos de hoje. O que se entende hoje por produção industrial é um modo de uso do capital acumulado e engajado no processo de produção, em que a reprodução do capital em seu conjunto dependem, primordialmente, da possibilidade de reposição da capacidade de produção das máquinas, inclusive em sua capacidade de produzir competitivamente. A produção industrial difere da produção manufatureira, no que ela reproduz o capital mediante a incorporação deliberada de inovações técnicas. Com a industrialização da produção, o capitalismo assume, explicitamente, seu papel de sistema que ganha com a renovação tecnológica. O desenvolvimento de máquinas representou a possibilidade de estender o controle indireto do trabalho além do que permitiram as ferramentas mais sofisticadas, bem como ensejou outras modalidades de organização social da produção, em que se alterou, definitivamente, a relação entre o trabalhador e a produção. A produção industrial é a produção de máquinas mediante o uso sistemático de máquinas, bem como a coordenação do uso de trabalho para ampliar a parte do esforço de produção realizado com máquinas. A produção manufatureira baseia-se no uso de ferramentas, e desenvolveu-se antes da produção industrial.Mas não foi completamente substituida por esta, cujo papel no sistema de produção hoje tem que ser revisto, para explicar os componentes de produção manufatureira que operam organicamente articulados com a produção fabril; e aqueles outros, que constituem formas quase artesanais e de adaptação de produtos a novas funções. A produção manufatureira desenvolveu-se, na Europa e na América, como parte da organização social e técnica comandada por interesses mercantis, que procurou aproveitar ao máximo as oportunidades oferecidas pela disponibilidade de trabalho qualificado e de recursos adequados. Operou sempre em escala limitada, dependendo dos ganhos de produtividade que podem ser obtidos com o uso de ferramentas e com a combinação de trabalho especializado e não especializado. Mas alcançou níveis de

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grande produção, por exemplo, quando foi solicitada por esforços de guerra, cokmo ficou evidenciado durante as guerras napoleônicas. Dada a crescente pluralidade de técnicas usadas pelas indústrias, torna-se, hoje, essencial distinguir os progressos na produção manufatureira dos da progressos na produção industrial; assim como, perceber que os incrementos de produtividade obtidos na produção manufatureira não necessariamente se convertem em desenvolvimento da produção industrial. A análise atual da produção industrial, realizada em sociedades desigualmente industrializadas como o Brasil, leva a distinguir os movimentos que levam, progressivamente, à expansão manufatureira e à industrial; e os que se traduzem em avanços e recuos da industrialização em geral, que tornam a estrutura industrial de cada país um combinado de indústrias que são parte de um movimento geral de progresso e indústrias que são vestígios de movimentos interrompidos ou que regrediram. A expressão industrialização aí ganha dois significados,em que o primeiro corresponde ao movimento geral do capital que supera o modo mercantil de reproduzir-se; e o segundo, que corresponde à forma fabril de produção. A alternância de progresso e perda, ou de expansão e estagnação, descreve as experiências da maior parte dos países e das regiões onde a expansão industrial não ocupa posições de liderança mundial. Mostra, em todo caso, a conveniência de desenvolver uma análise industrial que não fique presa aos paradigmas da industrialização dos países líderes da Europa no século passado. Há duas grandes diferenças entre a produção industrial e a mercantil-agrícola, que lhe deram uma posição fundamental na evolução do capitalismo: a possibilidade de reincorporar integralmente a formação de capital ao processo produtivo e a de acelerar o ritmo financeiro do processo de acumulação mediante uma intensificação do uso do crédito. Por produção industrial entende-se aquele estágio do desenvolvimento da produção capitalista em que a lógica da reprodução do capital está baseada no processo de produção, comparado com a produção mercantil-agrícola, em que a reprodução se realiza pela predominância da circulação de produtos antes que por sua produção. É necessário assinalar, entretanto, que a realização da produção industrial depende da continuidade do desenvolvimento da atividade mercantil; e que o sucesso da reprodução mercantil depende de que haja uma produção em expansão. Essa preconcepção sobre progresso - tido como sinônimo de expansão da produção - marcou a interpretação da produção industrial. Os aumentos quantitativos de produção confundem-se com os ganhos de eficiência nos usos dos trabalho e na substituição entre matérias primas. Torna-se difícil julgar as vantagens financeiras entre

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indústrias que obtêm seus ganhos com baixo investimentos em renovação, comparado com indústrias que simplesmente atravessam períodos privilegiados de renovação. Mas uma vez, trata-se de desenvolver critérios que permitam diferenciar a análise de hoje da análise industrial de antes. Durante a maior parte do trajeto da formação da produção industrial - desde a primeira metade do século XIX até meados do século XX - prevaleceu o critério de que os avanços em produtividade do trabalho e em atualização do capital realizavam-se nas fábricas, ou na estrutura de custos que as apoia. A concepção do sistema como constituído de uma coleção de fábricas, que simplesmente podem ser agregadas como unidades comparáveis, que assim constituem setores de produção, implica em aceitar que o comportamento das empresas e o das fábricas segue uma mesma lógica. É uma presunção que marcou toda a análise econômica industrial, que hoje torna necessário distinguir a lógica da eficiência do capital já constituído em fábricas e a lógica da empresa, que prossegue em sua função de canalizar capital para atividades produtivas, que portanto cria novas fábricas. A lógica de um desenvolvimento baseado na perspectiva das fábricas está fundada no princípio de que a fábrica pode ser conduzida com uma única lógica de produtividade e rentabilidade. Esse ponto de vista traduziu-se no fordismo - a filosofia da produção de Henry Ford - que resolve os problemas de eficiência reduzindo os custos de produção de um determinado produto previamente conhecido. O fordismo pressupõe a possibilidade de prosseguir com um determinado elenco de produtos, portanto, de que é possível trabalhar com previsões de uma demanda futura cuja composição pode ser antecipada a partir da demanda atual. Esses pressupostos, no entanto, dependem de informações que não podem ser obtidas da atividade realizada em fábrica, senão que se apoiam em informações de outras fábricas e mesmo, de raciocínios que se formam ao nível das empresas em sua qualidade de centros de decisão financeira. Assim, distanciaram-se das condições técnicas e econômicas em que funcionam as fábricas, primeiro, porque o processo de integração - vertical e horizontal - resultou em redes desiguais de inter-relação entre fábricas; e segundo, porque o desempenho de cada fábrica depende, desigualmente, de componentes de custos que estão fora dela. Aquela concepção está sob crítica, porque mudou a concepção de fábrica, entendendo-se que cada fábrica pode estar composta de unidades heterogêneas, operando com estilos diferentes; e porque a lista de produtos pode estar sujeita a mudanças bruscas, tanto no relativo ao elenco de produtos como às previsões de demanda.

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Destaca-se, portanto, a necessidade de separar o modo de pensar a partir de empresas e a partir de fábricas, bem como de colocar as questões pertinentes à empresa em termos de sua evolução e não apenas de princípios invariantes, atribuídos à racionalidade com que ela é gerida (5). A empresa situa-se no nível de decisões financeiras e econômicas e a fábrica ao nível de decisões tecnológicas e administrativas. Assim, as empresas estabelecem estratégias de decisão em que as fábricas são parte substituível, que pode ou não ser renovada ao longo do tempo. A partir da segunda metade do século XX, a produção industrial passou a depender mais de ganhos de produtividade obtidos fora do processo produtivo: no terciário, na produção agrícola e na extrativa. A lógica mercantil voltou a preponderar sobre a da eficiência da fábrica. Nessa época, Joan Robinson e Gunnar Myrdal, com diferentes argumentações, falaram de um novo mercantilismo, que passava a conduzir a industrialização e a modernização (6) . Seriam mais estratégias de venda que de aumento de produtividade que dariam ganho às empresas. Convém, pois, colocar a análise deste tema, distinguindo o modo fabríl e o inter-setorial de produção. 10.2. O modo fabril e o inter-industrial de produção Historicamente, a fábrica é o coração da produção industrial. Mas por modo fabril entende-se aqui aquela forma industrial em que a lógica da empresa identifica-se com a reprodução do capital no âmbito da fábrica. Torna-se, portanto, necessário, distinguir os principais elementos da produção industrial. A fábrica foi essencial na estruturação da produção industrial, mas obviamente não é tudo. É preciso distinguir entre empresa e fábrica. A fábrica é a unidade de produção, e, mais que tudo, um lugar organizado da produção. Mas, como a produção se realiza em fábricas, e como a fábrica resume esse movimento, é necessário revisar de que modo a presença da fábrica condiciona a produção industrial. Assim como o capitalismo foi comumente identificado com a produção industrial, esta foi compreendida a partir das características da organização da produção em fábricas. A expansão da produção industrial foi, essencialmente, a da produção organizada em fábricas, com uma noção de produtividade ligada à do trabalho fabril. A identificação de trabalho produtivo com a produção de bens físicos ficou incorporada na teoria econômica, a partir da visão do início do capitalismo industrial, quando o trabalho aplicado em serviços era proporcionalmente menos importante que hoje. O modo fabril do capitalismo industrial foi um grande salto qualitativo em relação com a produção manufatureira, pelo menos em três aspectos: a continuidade do processo de produção, a eliminação de perdas por desajustes nos tempos das diferentes

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operações da produção e a integração dos diferentes componentes de investimento. Em síntese, a produção fabril permitiu colocar os problemas de eficiência no manejo do capital de modo a abarcar o conjunto dos problemas da produção de um bem, diferente da produção contratada, em que a eficiência está circunscrita à produção de cada uma das partes. A fábrica apareceu no início do século XIX, dando curso a uma forma de produção em que o movimento do capital se realiza mediante a compra, o uso e a substituição de máquinas. Diferentemente dos anteriores investimentos mercantiis em frotas e armazéns, as máquinas sofrem um desgaste físico previsível, além de uma desvalorização conseqüente do aparecimento de máquinas mais novas e melhores. A fábrica passou, realmente, por duas etapas, em que a primeira foi dominada pelo movimento de incorporação mais máquinas e melhores; e o segundo caracterizou-se pela predominância da organização de conjuntos de máquinas. A linha de montagem é a lógica da segunda etapa, onde a reprodução do capital investido se dá na escala do conjunto da unidade de produção. Assim, a fábrica é planejada em função de dois elementos principais, que são : a relação capital/produto do conjunto, compreendendo as proporcionalidades dos componentes do capital, e a relação entre a composição do capital e a da mão de obra; e os requisitos de qualificação, compreendendo os dos capitalistas e os dos diversos trabalhadores. A gestão atual da fábrica é feita em função de dados de desempenho do capital e do trabalho, que justificam essa composição de recursos, ou que indicam onde e como muda-la. A principal restrição de planejamento no nível da fábrica é que a direção da fábrica pode controlar as aplicações de capital na constituição de seu capital fixo, mas não tem como fazer previsões confiáveis da dotação de trabalho qualificado e não qualificado que participa dela. A fábrica de fato é uma instância pseudo micro-econômica, já que não tem como representar a totalidade dos interesses da empresa. E isto logicamente resulta em que as empresas precisam dispor de uma instância de decisão superior, ou em todo caso externa à das fábricas. A principal diferença entre a perspectiva das empresas e a das fábricas é a percepção de mercado e a relação entre o fluxo de renda e as operações de produção. A empresa tem que reconhecer as condições práticas em que se realiza a consolidação de seu planejamento financeiro com seu planejamento de produção, enquanto a fábrica tem seu horizonte de preocupações limitado à consolidação de custos e resultados de sua própria produção. O processo de divisão do trabalho nas fábricas avança em função de

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um horizonte de expansão da demanda, pelo que tende a ser imobilizado nas situações de estagnação e de perspectivas de falta de expansão da demanda. A empresa opera sempre com uma quantidade de capital anterior ao atual processo de produção e espera obter resultados que vão além dele. Isto significa que ela sempre substitui usos de capital aplicado, que sempre incorre em novos custos, para realizar novas aplicações ou para manter as atuais. Isto faz com que ela trabalhe sempre com critérios de comparação entre os custos da liquidez em relação com cada aplicação e com critérios de liquidez para decidir entre aplicações. Na prática, isto significa ter sempre uma estratégia de formação de patrimônio junto com sua estratégia de lucratividade; e combinar as duas no movimento geral de reprodução de seu capital. Assim, cada empresa procura ajustar um nível de capitalização compatível com a realização de seu programa de produção com um nível de patrimônio representativo de seus planos além da produção. A médio prazo, esses parâmetros de raciocínio significam que cada empresa obtém um fluxo de renda composto de sua receita operacional, de sua receita da gestão de seu patrimônio e uma receita financeira, resultante de vantagens obtidas da gestão de seus ativos financeiros. O fluxo de renda compara-se, portanto, com um horizonte de formação de capital, que somente em parte pode ser atribuído à gestão imediata do processo de produção. Esse horizonte se desloca em relação com dois elementos: as perdas ou os ganhos de renda e rentabilidade; e os ganhos ou perdas de capacidade para alterar a rentabilidade. Daí, que o desenvolvimento da empresa leva-a a distanciar-se da rigidez da lógica da fábrica. Tecnologia, financiamento e administração passam a ser tratados como temas independentes das escalas atuais de produção, e em todo caso, como referências para decisões cujos resultados situam-se além dos da produção. Os problemas financeiros da acumulação estendem-se além dos problemas operacionais da capacidade para acumular. O eixo financiamento-tecnologia torna-se a chave do desempenho das empresas, que devem procurar resultados em que se combinam de um lado os custos financeiros da produção e os custos da reprodução do capital não incorporado à produção; e de outro lado as receitas operacionais, as receitas financeiras e a valorização de patrimônio. Para agir racionalmente no mercado, as empresas precisam ter completa visibilidade dessa composição de custos; e saber quais partes dos custos podem ser cobertas no processo de produção e quais não.

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Isso significa conhecer o universo de opções disponíveis de rentabilidade, na produção de bens e fora dela, e chegar a combinações de aplicações distribuídas ao longo do tempo, levando em conta a duração das diversas aplicações. A noção de quadro geral de aplicações presume uma equivalência de visibilidade entre os investimentos, portanto, equivalência de mercado entre o plano real e o financeiro. O manejo desses elementos põe sempre as empresas na disjuntiva de aproveitar ao máximo suas experiências anteriores, ou explorar suas atuais opções, mover-se entre combinações de aplicações, sem qualquer compromisso a priori de manutenção das atuais fábricas e dos atuais capitalistas. Essa circunstância apresenta uma grave dificuldade para a análise econômica, principalmente: pela dificuldade de colocar lado a lado para comparar os custos e os benefícios sociais de aplicações que não são mutuamente substituíveis; e pela impossibilidade de reduzir a uma expressão financeira comum os papéis dos diversos componentes de capital fixo que passam por depreciação industrial e os que não passam. As dificuldades da análise para cuidar destes problemas refletem a defasagem entre as referências de análise industrial e a representação do sistema de produção tal como ele realmente funciona. Há uma dificuldade genuína para traduzir a uma expressão financeira unificada os custos de investimentos não substituíveis, que foi esquivada pela análise do capital a nível de empresa. A equivalência que se obtém pela taxa retorno interna proposta por Solow (7) é uma equivalência de rentabilidade entre usos de recursos financeiros; e não é uma equivalência entre os efeitos desses investimentos para a formação de capital, ou pelo modo como eles alteram a composição do capital. Obviamente, o conjunto das diversas decisões sobre o capital gerido por cada empresa resulta em modificações na composição do capital, que adiante afeta as condições de decisão de cada empresa. Daí que, para chegar a observações relevantes ao longo do tempo é preciso levar em conta que em qualquer momento os investimentos resultam em usos de capital com diferentes funções na reprodução do sistema; que os efeitos da reincorporação progressiva de modificações na composição do capital modificam o quadro de custos em que operam as empresas; e (c) que a comparabilidade entre os investimentos se modifica ao longo do tempo, acompanhando os deslocamentos na eficiência do capital dos diversos empreendimentos. No entanto, as empresas têm que afrontar constantemente esse tipo de situação, combinando suas opções imediatas com as possibilidades de expansão de cada uma delas. Para cada empresa em particular, a comparabilidade deve colocar-se em termos de

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previsão de renda líquida, descontando-se a renda atual sobre previsões de custos futuros. Nesses termos, colocam-se as questões relativas do modo inter-setorial da produção capitalista. No horizonte de informações confiáveis, os investidores - empresas ou pessoas - procuram aquela diversificação que cumpre a dupla função de aumentar a renda líquida e reduzir o risco que atinge o conjunto dos investimentos ao longo de sua realização. Tornam-se claras as diferenças de racionalidade, entre a estratégia de sustentar a formação da renda líquida mediante a exclusiva operação de uma fábrica e a de alcançar esse mesmo objetivo mediante combinações de investimentos. Depois da segunda guerra mundial, o aumento dos custos de pesquisa e tecnologia necessários para que as empresas se mantivessem ao par com as tendências da concorrência no mercado internacional, resultou em crescente seletividade entre os que comandam a substituição de técnicas e os que se adaptam a ela. No modo inter-setorial, as empresas substituem o cálculo econômico baseado nas características técnico-operacionais da fábrica pelas características financeiras de combinações de investimentos. Para adaptar-se a um ambiente de internacionalização da economia e de acirramento da concorrência industrial, a empresa passou a ter que orientar seu planejamento a médio prazo de produção a partir de perspectivas de preço de dinheiro comparado com garantia de fluxo de receita, mais que de fluxo de renda de cada fábrica. O modo de participação das empresas no mercado mudou decisivamente, ficando de um lado as empresas que têm capacidade de conseguir altos índices de liquidez através de seu perfil de vendas; e as que operam com menores margens de liquidez, com menor acesso a estruturas mais diversificadas de financiamento. De um lado estão as cadeias de supermercados e as lojas de desconto, que crescem aproveitando a organização local do consumo, que trabalham com listas de produtos de baixo valor nominal. São empresas que dependem muito pouco da tecnologia incorporada aos produtos, mas que dependem, decisivamente, da tecnologia de sua comercialização. De outro lado estão empresas que participam ativamente da compra e venda de tecnologia, que incorporam custos de renovação tecnológica sobre seus novos investimentos. São empresas que correspondem à situação clássica de fome de liquidez; e por isto ampliam sua participação no mercado financeiro internacional de modo proporcional ao aumento de escala de suas operações. Delas, provém, os maiores estímulos para desenvolver um perfil multi-setorial de atividades.

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10.3. Expansionismo e concentração de capital A ordem política que sucedeu as guerras napoleônicas estabeleceu as condições para um balanço de poder, entre a Santa Aliança - bloco promovido pelo Império Austro-Húngaro - e o Império Britânico. Foi uma ordem que durou apenas até a emergência do poder prussiano, marcada por vitórias militares, primeiro sobre a Austria, e em seguida sobre a França. Nesse mesmo lapso ocorreu a Guerra de Secessão dos Estados Unidos e iniciou-se a incorporação de terras no oeste daquele país. Realizou-se uma grande incorporação de terras da Sibéria. Acelerou-se a colonização da Austrália e da Nova Zelândia. Iniciou-se a nova invasão da África por europeus, começando com a de franceses na Tunísia em 1847, que terminaria com a da Etiópia, por italianos, na década de 1930. Aconteceu a guerra com o Paraguai, com resultados, diretos e indiretos, de incorporação de grandes territórios à agricultura, na Argentina e no Brasil; e com a aceleração da entrada de capitais europeus no Brasil. Nesse lapso, aconteceu a última tentativa de intervenção européia direta na América, com a intervenção franco-austríaca no Mexico, sua derrota, e a subseqüente entrada da influência norte-americana naquele país. No mesmo período, em 1847 e 1856, aconteceram duas invasões norte-americanas do Mexico, com graves perdas de território para este último país. O expansionismo imperialista teve três significados do ponto de vista econômico, que resultaram num reordenamento mundial da formação de capital. O primeiro, foi a incorporação de sociedades e de recursos naturais ao sistema de produção capitalista, o que quer dizer, numa mesma órbita de controle financeiro. O segundo, foi a garantia de mercado para a produção dos países expansionistas, na forma de compra de seus produtos e na de garantia de suprimento de matérias primas a preços controlados, seja, em que as regiões dominadas absorviam a diferença entre os preços pagos e os que poderiam ser obtidos em vendas livres em mercado. O terceiro, foi o poder de decidir sobre a composição da produção das regiões dominadas, que levou os países e regiões dominadas a comprometerem suas melhores terras com produtos cujas trocas davam ganhos mercantís aos países imperialistas. Isso significa que a expansão industrial foi beneficiada por ganhos mercantís obtidos mediante o expansionismo, que em todo caso não podem ser atribuídos a produtividade fabríl, ou a diferenças entre as quantidades de equipamento entre fábricas. Pelo contrário, essa expansão industrial fez-se à custa de grande expansão do comércio na Europa, aproveitando - e fomentando - a urbanização. Também, as informações sobre os movimentos de industrialização na América Latina mostram um número significativo

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de impulsos de industrialização, nesse mesmo período, ou iniciando-se nesse período, em que as fábricas locais puderam ampliar sua produção sobre mercados regionais. O expansionismo implicou em estratégias, mais ou menos sincronizadas, do Estado e das empresas. As invasões na África resultaram na criação de grandes empresas mineiras, de capital misto, ao tempo em que, na criação de novas classes de grandes e médios produtores rurais, geralmente situados na produção de mercadorias mundiais. Na América Latina seguiu variados modelos, como a associação com produtores locais, a implantação de empresas compradoras de mercadorias (8), a criação de canais exclusivos de financiamento. Este último modo foi, certamente, o mais importante, precursor do desenvolvimento do capital financeiro que se realizou depois da segunda guerra mundial. O processo se fez mediante o apoio de bancos europeus e de casas importadoras européias a empresas latino-americanas e mesmo a produtores diretamente, criando vínculos estáveis de comércio, que sobreviveram inclusive a dificuldades políticas entre os países. Em seus desdobramentos, o expansionismo levou a sucessivas demarcações de espaços de influência no período de 1870 a 1914, que culminaram com a primeira guerra mundial. A expansão do poder alemão correspondía à integração do mercado interno da Europa, constituído de grupos sociais em média melhor educados e mais integrados aos modos ocidentais que as populações das regiões coloniais e dominadas. O mercado europeu funcionava com transportes e comunicações melhor integrados. Correspondía a sociedades menos desiguais, com maior componente de grupos médios de renda. A disputa pelo controle da acumulação tornou-se clara, do fato de que o maior sucesso das potências germânicas levava, naturalmente, à adesão de maior número de povos europeus, e seus resultados ultrapassaram os do Império Britânico, além de reduzir a presença francesa na Europa. O período de 1870 a 1914 foi da mais vigorosa atividade teórica da história do capitalismo, com notáveis avanços na filosofia, na física, na sociologia, na história, na psicologia. A teoria econômica revelou suas maiores contribuições, claramente divididas entre a explicação e operacionalização da gestão do capital e a crítica da formação do capital. No essencial, o desenvolvimento da teoria, em seus diversos campos, mostrava as insuficiências e contradições da compreensão de ciência, formada sob as influências de Newton, Descartes e Locke. A teoria dos quanta e a da relatividade, a psicanálise, a sócio-antropologia, apresentavam novas linhas de trabalho, que não podiam ser acomodadas ao empirio-mecanicismo. Foi, também, o período no qual o paradigma tecnológico sidero-metalúrgico e metal-mecânico subrepujou o paradigma têxtil, seja, foi quando a indústria de bens de capital passou a determinar mudanças na de bens de

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consumo; e quando se configurou o papel das indústrias produtoras de bens de capital intermediários. Assim, em princípio pode ser tomado como o período em que se estabeleceram as maiores diferenças de tendência entre os países que se tornaram os centros condutores da industrialização e os que foram conduzidos por ela. 10.4. A divisão internacional do trabalho No tratamento deste tema, a análise econômica está organizada em duas abordagens que podem ser tomadas como opostas ou complementares, a depender da fundamentação teórica com que se trabalha: a perspectiva da análise das trocas e a que liga as trocas aos agentes que as realizam. A primeira é a análise marginalista e a segunda é a histórica. De qualquer modo, aumenta a proporção das trocas internacionais sobre as locais, modificando o perfil das trocas locais, e alterando a composição do capital incorporado em cada um destes dois âmbitos; e aumentando o número de agentes cuja existência depende totalmente de suas operações internacionais, e modificando-se o modo de usarem-se os mecanismos internacionais de troca . Na evolução recente da empresa, o modo fabril e o inter-setorial de formação de capital resultam em possibilidades de participação de cada empresa no mercado, que entretanto estão subordinadas aos grandes movimentos de substituição de técnicas e de produtos na economia mundial. Daí, ser necessário rever a noção de mercado mundial, em seus aspectos gerais e no modo como ele está composto de mercados nacionais e locais desigualmente ligados. O mercado mundial hoje está segmentado em circuitos de relações internacionais e de circuitos que se realizam na escala nacional ou na local. O que faz a diferença, basicamente, é a organização da comercialização. As mesmas mercadorias podem ser trocadas em mercados locais ou negociadas num circuito internacional, com diferentes resultados para a formação de capital dos produtores. As trocas internacionais refletem transformações na participação do mercado externo na reprodução de capital organizado sobre bases locais, levando a distinguir empresas compostas com capital internacionalmente constituído, de empresas localmente organizadas, que adiante se lançam no mercado internacional. O papel de cada mercado interno muda, mas no conjunto o que há, realmente, é uma modificação no modo como as transações se distribuem entre as que se completam com produtos locais e as que só se completam mediante combinações com produtos trocados a longa distância.

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Há uma causação circular acumulativa nesse processo: ao aumentar o número dos agentes genuinamente internacionais no mercado, eles puxam o sistema de trocas para elencos de bens e serviços mais claramente adaptados aos seus objetivos de acumulação. A internacionalização da economia em grande parte significa uma modificação dos papéis dos agentes; e em conseqüência disto, uma transferência para o âmbito internacional de atividades que eram realizadas localmente. Mas essa transferência modifica as condições de sustentação local das mesmas atividades. É o caso das redes de restaurantes industrializados, que substituem uma função tradicional de venda local de comida simples por redes integradas de vendas, que inclusive alteram os gostos dos consumidores. Mas, para alcançar um desempenho genuinamente internacional, as empresas precisam de uma sustentação financeira muito mais extensa e complexa. Precisam trabalhar com combinações de diversas moedas, realizar pagamentos e fazer aplicações com diferentes horizontes de tempo, garantindo sua conversibilidade e trabalhando com equivalências entre as taxas de lucro. Para isto, precisam de novas funções de financiamento, que em parte podem ser realizadas mediante bancos; mas que dependem, essencialmente, de que a empresa desenvolva uma competência própria no relativo a gestão financeira. Daí que as empresas que se internacionalizam precisam incorporar recursos humanos qualificados e estar preparadas para fazer periódicas reformas internas. Aí estão algumas das principais diferenças entre as empresas que se internacionalizam e as que continuam dependendo de mercados locais para reproduzir seu capital. Essas diferenças projetam-se no que toca a ocupar espaços no mercado internacional, portanto, a influir no modo como o mercado internacional se organiza e expande. A observação empírica das grandes economias capitalistas, como a norte-americana, a inglesa e a francesa, mostra que há uma parte importante do crescimento do capital privado que foi alcançado por empresas individuais e familiares, exatamente do mesmo tipo das empresas tradicionais dos países periféricos. Algumas dessas fortunas individuais foram feitas no mercado internacional e outras no nacional, similares a fortunas individuais do século XIX, igualmente feitas sobre pequenos comércios locais e táticas de usura em pequenas ventas. Mesmo dentre os grandes grupos, há uma elevada proporção de fortunas individuais e de controle dinástico, semelhantes aos da fusão de interesses feudais com interesses comerciais. Cada vez parece mais distante a possibilidade de fazer generalizações com pretensões de validade científica sobre essa matéria.

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A expansão internacional das empresas esteve ligada a duas grandes fontes de recursos, que são as obras públicas e a indústria de armamentos. Ambas, obviamente, dependem do Estado e do modo como, em cada país, ele transfere recursos, para algumas empresas; e, desse modo, altera o balanço de poder entre as empresas no sistema de produção. Em seu conjunto, a produção faz-se de modo cada vez mais indireto, ou, de outro modo, com um componente proporcionalmente maior de capital indireto. Aumentam os componentes de transportes e energia, de comunicações, de educação em suas várias formas. A urbanização e a integração dos sistemas de transportes abriu espaço para um crescimento contínuo da despesa pública com infra-estrutura, e, através desta, para a formação de novas categorias de capitalistas - as empreiteiras - que entraram no processo de acumulação formando capital através dos setores do terciário, e já não da indústria. Por sua vez, a indústria de armamentos tornou-se aquele complexo industrial-militar identificado por Wright Mills logo depois da segunda guerra mundial. A indústria de munições puxa a da produção de armas, mas opera com elevados índices de obsolescência, portanto, sob a pressão de rápida renovação de material. Tem elevadas exigências de tecnologia e demanda despesas públicas constantes, que atingem a produção industrial cobrando qualidade. 10.5. A divisão inter-regional do trabalho A divisão inter-regional do trabalho interdepende da internacional e torna-se subordinada dela, à medida que a produção se internacionaliza, e que aumenta a proporção da produção de mercadorias mundiais no quadro da produção realizada por cada região. Mas não pode ser confundida com ela, inclusive pelos elementos de rigidez introduzidos pelas estruturas de recursos físicos e pelas estruturas culturais. O movimento geral de subordinação de regiões também aumenta como conseqüência do fato de que as regiões têm aptidões desiguais para participar do sistema internacional de trocas; e que essa desigualdade desenvolve-se, diferentemente, segundo uma e outra regiões têm oportunidades circunstanciais de aproveitar de algum aspecto do movimento integrador da economía mundial. Mas esse condicionamento externo do desenvolvimento das regiões confronta-se com os elementos internos de cada região, que ligam sua formação cultural com sua atual capacidade de produção; e que ligam as possibilidades e as restrições da produção

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e do consumo em cada região, que são dadas por seus recursos naturais, por sua população e por suas condições de comunicação. Trata-se, pois, de substituir a tradicional compreensão da questão regional, que leva a tratar cada região como um caso isolado, separado do jogo de trocas internacionais, por um outro estilo de análise, que pelo contrário se apoia na combinação das características locais com os movimentos das relações internacionais. As relações entre regiões tornaram-se, de novo, um aspecto essencial da organização internacional da economia, que inclusive reflete aquele aspecto, antes mencionado, de recrudescimento do mercantilismo. Os desenvolvimentos dos sistemas de transportes e das comunicações modificaram as condições de articulação entre regiões, bem como levaram a novos modos de articulação internacional, que obrigam a rever a relação entre região e Estado, constituída com o fortalecimento do Estado industrial. Notas 1. No Livro II da "Riqueza das Nações..." Smith levanta uma questão, que hoje merece nossa renovada atenção, relativo a que os capitalistas devem, periodicamente, resolver um problema de "emprego" integral de seu capital, e não apenas de uma fração excedente de consumo, que se investe. Cabe comentar, que com a industrialização esse problema se apresenta, com diferentes frequências, sobre partes variáveis do capital de cada capitalista, ou sobre a totalidade de seu capital, impondo-lhe a necessidade de realocar capacidade de produção. Esta compreensão do problema, obviamente, difere da keynesiana e da neo-clássica: implica em admitir que os capitalistas têm que aplicar capital independente de rentabilidade marginal: seu problema estende-se à proteção da rentabilidade do capital em seu conjunto. 2. O problema de qualificação dos trabalhadores reflete outra questão, menos imediata, que é a da especificidade dos trabalhos empregados na produção. A reprodução do sistema de produção em seu conjunto requer que uma pluralidade de medidas sejam tomadas, cotidianamente, para preparar pessoas capazes de desempenhar tarefas específicas, que não podem ser substituídas, e que devem ser executadas em momentos determinados. O tratamento teórico dos problemas de especificidade do trabalho pode ser visto como uma continuação do mesmo esforço teórico que levou, no século XIX, a Hegel a perceber a questão do trabalho abstrato. 3. Na compreensão da indústria como atividade produtiva, é fundamental distinguir o aspecto de aumento da mediação de trabalho na realização dos produtos. Esse,

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certamente, é um dos aspectos em que o desenvolvimento dado por Mar à explicação do sistema de produção deve mais à explicação de Hegel da formação de uma consciência atuante, inevitavelmente ligada ao processo social. 4. Schumpeter tratou do fluxo circular, de diferentes modos em "Teoria Econômica e Método^ e na "Teoria do Desenvolvimento Econômico" (de fato, uma teoria da expansão dos sistemas de produção), fixando-se no entanto, numa perspectiva de tentar reconstituir o sistema de produção a partir de um raciocínio individual baseado em utilidade. Foi uma tentativa malsucedida. Sua reconstituição não sai do circuito das trocas; não supera seus referenciais assumidos: o dos Fisiocratas e o de Mar. 5. Uma teoria histórica da empresa implica em situar, temporal e espacialmente, seus modos de operação e sua forma de inserção no sistema produtivo. Difere, e tende a opor-se às teorías comportamentais da empresa - estratégia competitiva etc - pelo que se preocupa em explicar a formação da empresa, e sitúa seus comportamentos como parte dessa formação, enquanto as teorias comportamentais não questionam a gênese dos comportamentos. A presunção é que as teorías comportamentais tendem a refletir os pontos de vista do capital em busca de sua própria reprodução. 6. Isso foi feito, respectivamente, por Myrdal, no "Drama Asiático" (1968) e por Joan Robinson em "A Acumulação de Capital"(1965). 7. Trata-se aqui da contribuição de Solow à análise dos investimentos, especialmente, na forma da taxa interna de retorno. 8. As casas compradoras foram um componente dos sistemas constituídos para operar no plano internacional com cada uma das principais mercadorias. Tomaram diferentes formas nas diversas regiões econômicas latino-americanas, em cada caso, como parte das peculiaridades operacionais do manejo de cada produto, sem que suas experiências pudessem ser generalizadas de um produto a outro. As casas compradoras de fumo, de cacau, de peles foram completamente diferentes umas das outras e seu papel local também foi diferenciado. 11. As Transformações no Século XX 11.1. O capital financeiro e o controle dos mercados

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Na década de 1860 a 1870 concluíram-se vários processos políticos, que abriram caminho para uma nova etapa da produção e do consumo, com algumas características marcantes. No rol dos processos políticos, destacam-se a integração da Alemanha, sua vitória sobre a Austria e a França; e a integração da Itália, com a hegemonização dos interesses do norte e com adicional recuo da presença austríaca. Na América, a guerra civil dos Estados Unidos, com a vitória política e econômica do norte; a guerra contra o Paraguai pela hegemonia no Prata; e a guerra do Pacífico, pelos minerais de Atacama. O fracasso da invasão do México representou adicional enfraquecimento das pretensões da França e da Austria. Perfilavam-se os termos do confronto intercontinental pela hegemonia na Europa. Em seu conjunto, no período entre 1870 e 1910, a produção capitalista passou por modificações fundamentais, consequentes da expansão dos sistemas de transportes, da difusão do uso de máquinas a vapor; e de tecnologias industriais que atingiram, desde a produção de bens de capital à conservação de alimentos. A oferta de produtos agrícolas aumentou rapidamente, em razão do incremento de áreas cultivadas, estimulado pela redução dos tempos de transportes. A unificação das informações significou um rápido alargamento das opções de aplicação de capital, que modificou os termos de comparação entre as aplicações industriais e as agrícolas, ampliando o papel das bolsas de mercadorias. Esse período foi de reorganização dos sistemas de produção e de seu financiamento, bem como de sua sustentação financeira. Houve modificações fundamentais, consequentes do avanço das tecnologias industriais que deram à produção de bens de capital o papel dinâmico na condução do crescimento da produção. Houve uma modificação substancial no papel da maquinaria no funcionamento das empresas; e a indústria passou a incorporar com maior rapidez os efeitos dos resultados alcançados pela agricultura, na constituição de novos mercados. Isso significou a ascensão dos Estados Unidos, como percebeu Hobson, cuja economia reunía o maior número de vantagens, pela combinação dos recursos de carvão e ferro, e as vantagens de transportes, no eixo entre Nova York e os Grandes Lagos. Através do centro comercial de Chicago, esse grande sistema articulou a produção de grãos e de carne do Meio Oeste e do Sudoeste (1 ). No plano político, esses movimentos estiveram ligados a projetos de poder que se traduziram numa repartição de áreas de controle de escala mundial, definidas em torno de controle de matérias primas e já não de mercadorias, como acontecera no século XVI; e apoiados em tecnologia militar e capacidade industrial militar. No plano econômico,

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foram movimentos cuja consolidação se apoiou na difusão da produção manufatureira e no controle de sua comercialização. A integração de informações significou um rápido alargamento das opções de aplicação de capital, que modificou as comparações entre a rentabilidade das aplicações industriais e das agrícolas, bem como das possibilidades de programar a produção agrícola com referências de custos de produção e preços de produtos. Em síntese, tornaram-se mais claras as equivalências entre aplicações de capital de diferentes períodos de maturação e em investimentos de diferentes durações. Com isso, tanto nos países mais ricos e industrializados, como nos pouco industrializados, como o Brasil, o México, o Chile, a Argentina, abriram-se novas oportunidades de investimento, formaram-se novos circuitos de formação de capital, com novas possibilidades de exploração de recursos naturais - principalmente pela industrialização das minas e pela produção de grãos - que integraram os setores líderes da acumulação em novas formas de relações internacionais. Foi o mecanismo que facilitou a migração de capitais europeus para a América em diversos pontos, e para os Estados Unidos em particular, em setores como as ferrovías a siderúrgica e a indústria metal-mecânica. Como extensão do anterior, esse período foi marcado por um conjunto de deslocamentos de poder nos centros mundiais da acumulação, pela integração de interesses capitalistas em grupos maiores e mais diversificados, e pela modificação da administração pública, que passou a gerir complexos sistemas de serviços públicos até então inexistentes. Foi quando se generalizaram as formas urbanas de consumo coletivo público; e a administração dos serviços públicos passou a demandar novos tipos de especialização. Surgiram as empresas concessionárias de serviços públicos urbanos, e junto com elas, os empreendimentos de produção de energia elétrica especificamente para atende-las. Foi a industrialização da urbanização, que tornou as cidades mercados especializados de serviços públicos; e que fortaleceu a posição do Estado como demandante. Isso resultou numa demarcação de limites do poder de cada uma das principais potências, que desaguou num confronto frontal pelo controle de mercados. A expansão dos mercados internos nacionais na Europa significou a sustentação de escalas de produção suficientes para que esses países passassem, naturalmente, a concorrer nos países periféricos, seja, para que penetrassem em esferas de influência dos países colonialistas. Paralelamente, tornavam-se evidentes as fragilidades desses impérios colonialistas, cujo desempenho econômico dependia sempre da comparação dos

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resultados positivos do comércio com os de fluxos de capital. E o aumento da formação de capital nas grandes colonias, como a Índia e o Canadá, levava, a médio prazo, à progressiva independização econômica. A rigor, desde seu momento inicial, as relações coloniais engendradas por esse colonialismo do século XIX só eram estáveis com os países economicamente mais atrasados, ou com os países muito pequenos, onde seus resultados ficavam restritos à exação de matérias primas. Em países de maior porte, elas enfrentaram crescentes contradições, consequentes da ampliação e diversificação do mercado interno. Nesse período houve alguns movimentos fundamentais nas economias européias e algumas mudanças de posição, também decisivas, nos países periféricos. Nos primeiros, cresceram mais as economias não coloniais. Dentre os segundos, destacam-se o crescimento de alguns países periféricos não coloniais: Canadá e Austrália, dentre os mais ligados à esfera de influência britânica; Argentina e Uruguai, dentre os indigenamente vinculados à mesma órbita. Os Estados Unidos tornaram-se a principal área de aplicação de capitais europeus, assim como de atração de migrações; e convertiam-se em potência colonialista, com suas intervenções no Havaí, nas Filipinas, em Porto Rico, no Panamá e em Cuba. O Brasíl ressurgia como país exportador, mas seu principal significado para a economia mundial era como mercado para investimentos de baixo risco (2). Esse, afinal, foi o principal traço que marcou os desenvolvimentos internacionais nesse período. Cerca de 1890 completava-se o avanço norte-americano ao oeste de seu território, formava-se a articulação de sua produção de grãos e de pecuária da bacía do Missouri-Mississipi ae do sudoeste, com a produção mineira e industrial do eixo da Pennsylvania aos Grandes Lagos. Definia-se, assim, um perfil de sistema de produção, combinando produção agrícola extensiva com produção industrial em grande escala, em expansão, capaz de absorver investimentos crescentes. O Canadá e a Argentina também tiveram uma notável expansão do setor primário, mas não tiveram resultados significativos no conjunto mineração-indústria, assim como sua força de trabalho era decisivamente menor que a dos Estados Unidos. Entre 1870 e 1890, a diferença entre os Estados Unidos e esses países tornou-se decisiva. De todos modos, esses países ainda apareciam como grandes opções internacionais de investimentos. O Brasil ressurgira como exportador significativo, mas sua principal relevância para a economia mundial era como opção para investimentos em serviços públicos. No início do século eram claras as vantagens da economia norte-americana, comparada com as européias. Como mostrou Hobson, as empresas americanas cresciam

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junto com o mercado interno; e este se ampliava junto com a imigração e a urbanização. Já em 1894 os Estados Unidos passaram sua lei anti-trust, procurando proteger a competitividade do mercado interno; e por volta de 1905 sua indústria siderúrgica se equiparava com as maiores da Europa. Estava, portanto, definida a diferença essencial entre os Estados Unidos e os demais países novos, que não alcançaram essa diversificação interna. Outros países, como o Chile, a Bolívia e o Peru, ficaram restritos à produção mineira, usando exclusivamente equipamentos importados, com escassos efeitos locais na formação de capacidade de produção. Houve um significativo aumento do relacionamento econômico e político do Brasil com os Estados Unidos, bem como maior atividade comercial entre o Brasil e a Alemanha (3). Aprofundaram-se as relações econômicas entre a Argentina e os Estados Unidos, em paralelo com a contração do comércio argentino e uruguaio com a Grã Bretanha (4). Estava definida uma especialização de fato das relações internacionais, que não pode ser reduzida ao fenômeno do comércio. Desde que se concluiu a fronteira agrícola argentina dos Pampas - ao findar a década de 1880 - esse país assumira o papel de próspero exportador de produtos primários, operando com financiamento e com infra-estrutura de transportes dos países compradores, basicamente a Grã Bretanha. O modelo econômico baseado no enriquecimento dado pela produção pampeana de trigo e carne ofuscava as demais opções regionais de desenvolvimento. Com uma demanda mundial em expansão, havia espaço para o enriquecimento dos grupos que se estabilizavam no poder sobre essa nova base rural. A aparente garantia desse fluxo de renda levou à sustentação de uma produção quase extrativa da pecuária, baseada em pastos naturais, com rendimentos físicos das lavouras de exportação em níveis internacionalmente competitivos (5). O Brasil participava como exportador de produtos de sobremesa - café, açúcar e cacau - mas com um sistema de produção baseado em recursos mais diversificados, com uma receita significativa de produtos nitidamente de produção extrativa vegetal e animal, com investimentos externos restritos às grandes cidades e aos portos. Os países mineiros - o Chile, a Bolívia, o Peru e o Mexico - participaram através da produção de grandes empresas mineiras, quase todas direta ou indiretamente controladas por capitais externos (6). No Chile e no Peru as minas foram exploradaas diretamente por empresas norte-americanas. Os países centro-americanos e antilhanos participaram desse sistema com produtos de açúcar e bananas. Em seu conjunto, a economia mundial funcionou, até a Primeira Guerra Mundial, como um sistema em dois patamares, em que o centro estava constituído de dois componentes, com diferentes desempenhos no relativo a relações com o exterior; e

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em que a periferia se compunha de países com diversos modos de articulação da relação externa com a subsistência de sua população. Ao perdurar o clima de estabilidade, aumentava a confiabilidade dos mecanismos de investimento para ampliação do leque de linhas de produção que sustentava o aumento do consumo nos países do centro. Nestes, desde logo, a expansão do consumo aconteceu com fortes diferenças entre os incrementos do consumo diversificado dos grupos superiores de renda e o consumo básico das maiorías, que continuou limitado a uma pequena coleção de bens e serviços. Nesse período, os problemas de desigualdade de renda, falta de mobilidade social e perseguições políticas, foram responsáveis de dezenas de milhões de migrantes de diversos países europeus, como Espanha, Portugal, Itália, Alemanha, Polonia, países bálticos, além dos diversos povos subordinados ao Império Otomano, na Europa e no Oriente Médio. Os Estados Unidos, a Argentina e o Brasil foram os principais receptores de migrantes europeus, assim como de migrantes chineses e japoneses. Diversas guerras locais, a permanência de oligarquías feudais, como na Europa Central, que atravessaram incólumes a revolução industrial do século XIX, foram fatores de expulsão decisivos, assim como a pressão da Inglaterra sobre a Irlanda. A falta de mobilidade atingiu as classes médias de diversos países e regiões, como na Itália, onde a unificação política resultou em aprofundamento de desigualdades regionais e subordinação das regiões do sul às do norte. O contexto da economia mundial desse período pode ser melhor descrito como de fronteiras econômicas abertas, mais que de fronteiras agrícolas, dadas a grande abertura para mobilidade de capital e de população, na exploração de diversos tipos de recursos naturais, especialmente de minereais. As maiores expansões aconteceram, em agricultura e em mineração, e em alguns casos, combinando esses dois items. Em seu conjunto, o movimento compreeende, portanto, o de fronteiras agrícolas que, efetivamente, foram ampliadas e preenchidas. Os Estados Unidos, a Rússia, a Argentina, o Brasil e o Canadá foram os grandes exemplos de expansão da fronteira agrícola, observando-se que a junção dos componentes de produção agrícola e de estruturação da indústria nos Estados Unidos tornou esse país o principal receptor de investimentos nos diversos setores da produção. A Rússia também recebeu grandes quantidades de capital, mas não alcançou essa articulação do desenvolvimento da agricultura com o da indústria e da mineração, nem realizou a conseqüente expansão de uma infra-estrutura apropriada ao sistema de produção. A hegemonização interna, alcançada nos Estados Unidos com a Guerra Civil, resultara, de fato, na imposição das determinações do desenvolvimento do sistema de produção do Norte; e fez com que a ocupação do Oeste, e a expansão da produção

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primária se tornassem, realmente, fenômenos caudatários da emergência de Chicago como cidade líder na região dos Grandes Lagos e de Nova York na costa leste. Essa articulação interna foi subsidiada pelo crescimento de Nova York como centro industrial e financeiro. Cerca de 1910 o triângulo formado por Nova York, Chicago e Boston concentrava o mercado interno norte-americano e ditava a lógica da expansão de seu sistema de infra-estrutura (7). Aí se localizaram as minas de carvão e de ferro, concentrou-se a indústria siderúrgica, e, posteriormente, a indústria automobilística. Esse sistema contou, além disso, com um excelente apoio portuário e desenvolveu um dos melhores sistemas rodoviários do mundo. Paralelamente, concentrou, também, as principais universidades do país. A Primeira Guerra Mundial modificou, radicalmente, a economia internacional, afetando a estruturação social e técnica das economias européias, alterando suas participações no mercado mundial, desqualificando várias delas como receptoras de capital. Os grandes impérios coloniais - especialmente o Império Britânico - ficaram abalados pelos custos diretos da guerra e pela diminuição de suas opções de investimento. A inflação e o desemprego agudos, que caracterizaram vários países nos anos imediatamente posteriores à guerra revelaram essa desarticulação do circuito produção-comercialização, própria da desorganização dos mercados locais. Essa desorganização era mais profunda que o aspecto monetário mais imediato, e comprometia a própria continuidade da formação de capital. Basicamente, ressalta, primeiro que a desorganização da capacidade de produção da Alemanha teve efeitos transitórios, cuja superação combinou uma complexa experimentação política, cultural, filosófica e econômica, e levou à saída autoritária do nazismo. Mas foi um fato dominante na reorganização de um sistema de produção que afetou a Europa em seu conjunto. A explicação da história econômica do século XX leva, hoje, a voltar aos fatos dominantes, conseqüentes da Primeira Guerra Mundial. Esse foi um conflito síntese de diversos outros mais ou menos coincidentes (8), que alterou, definitivamente, o balanço mundial de poder, com a aceleração do declínio do Império Britânico, a emergência mundial do poderio norte-americano e a ascensão de poderes europeus não dependentes de sistemas coloniais. Assim, como mobilização de recursos e em seus efeitos de desgaste econômico, a Primeira Guerra Mundial interferiu nas perspectivas de mercado dos países europeus, que depois dela tiveram que recompor seu mercado em suas relações uns com os outros, enfrentando um período de desorganização da produção agrícola e da industrial. Acentuou-se a formação de

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grandes grupos econômicos e com ela, a integração do controle financeiro da produção por grandes bancos internacionais. A disputa por energia acentuou-se, junto com a aceleração da urbanização e com o crescente peso da indústria na formação do produto social. Nesse sentido, aumentaram, rapidamente, as vantagens da Alemanha e dos Estados Unidos em energia hidro-elétrica; e surgiu a União Soviética, como outra potência capaz de expandir em pouco tempo sua produção nessa forma de energia. Cerca de 1920. os Estados Unidos representavam a mais importante solução desse problema. A articulação de sua produção siderúrgica fazia-se com importantes reservas de carvão, enquanto sua produção agrícola contava com excelentes terras de fácil acesso; e o modo de transporte aquaviário pôde ser utilizado maciçamente, justamente no Meio-Oeste, onde se expandia a produção. E havia bons portos bem localizados. A expansão da economia americana tornava-se a melhor perspectiva de negócios dentre todos com que os europeus podiam contar. Atraiu capitais de diversas procedências, que facilitaram a constituição de uma bolsa de valores, portanto, de uma intensificação da atividade especulativa. A integração do complexo sidero-metalúrgico norte-americano, junto com a expansão do seu sistema de transportes fez-se, praticamente, sem interrupções, desenvolvendo, e ampliando, ao mesmo tempo, um importante transporte aquaviário. Mas a difusão do transporte rodoviário revelou outra vantagem notável dos Estados Unidos, que foi sua dotação de petróleo. Os Estados Unidos entraram por uma nova vertente de crescimento, que lhe permitiu internalizar plenamente os efeitos de aceleração do desenvolvimento do transporte rodoviário e do aéreo. A expansão da indústria automobilística significou a criação de uma grande indústria terminal - que podia crescer em tempos de paz, diferente, portanto, da indústria militar - que podia arrastar a produção de bens de capital. Isso tornou os Estados Unidos a principal opção de investimento para os países da Europa Ocidental, tornando-se esse país o centro mundial de expansão das operações de bolsa; e concentrando riscos e expectativas, de modo que levou àquela crise de especulação da qual partiu a depressão de 1930. A União Soviética tinha uma base de recursos igualmente variada e abundante, mas seguía num rumo político que a isolava do fluxo de capitais externos. E partía de uma base de estrutura de produção muito menos favorável, em sua formação de recursos humanos qualificados e em seu mercado interno. A grande expansão de sua infra-estrutura econômica foi feita identificando o progresso econômico como esforço de guerra, com uma pressão crescente sobre a capacidade de formação de capital do sistema

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de produção então existente. A União Soviética realizou um esforço concentrado para sobreviver um prolongado período de guerra, interna e externa, já que a pressão bélica durou, na prática de 1919 a a 1954. Daí, formou-se um sistema de produção distorcido pela concentração tecnológica nos circuitos de produção ligados à viabilização estratégica militar. Isto se traduziu numa longa trajetória de planejamento econômico voltado para uma modernização dirigida. Há diferenças profundas entre as sucessivas etapas do planejamento soviético, cabendo, emtodo caso, distinguir as etapas de construção de uma grande economia integrada, e as de adaptação desse sistema para resolver a progressão de problemas de seu crescimento. No período entre as duas guerras mundiais, o mundo da economia européia estava constituído de um conjunto de realidades econômicas e sociais profundamente diferentes umas das outras, que não poderiam ser tomadas como equivalentes no processo de renovação tecnológica. O período entre guerras foi o mais fértil na eclosão de formas de autoritarismo no plano político e no econômico; e que tiveram efeitos diretos e indiretos nas subseqüentes transformações da produção capitalista, em seu centro e em suas periferias. Cabe destacar as três principais formas de autoritarismo e os principais mecanismos desenvolvidos por elas. 11.2. Transformações políticas, revoluções e autoritarismo 11.2.1. O fim das estruturas políticas do século XIX No período entre as guerras mundiais houve uma crise de instrumentalidade do capitalismo liberal, que se evidenciou nos novos países centro-europeus e também na França, na Espanha, em Portugal. Tal crise poz em evidência os conflitos entre os valores subjacentes na aceleração da acumulação no capitalismo e os valores próprios das sociedades tradicionais européias. Essa crise de valores tradicionais foi esboçada, com grande propriedade, pela historiadora norte-americana, Barbara Tuchmann (9). As anteriores classes dominantes, junto com as classes médias a elas ligadas, encontraram-se diante da eclosão de interesses econômicos que não podiam ser controlados pelas primeiras, e que levavam aqueles grupos médios a buscar novos lugares nas novas sociedades econômicas. Assim, aprofundou-se o contraste entre a ordem pré-guerra e a

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emergência de outras modalidades operacionais postas em circulação desde o fim da primeira guerra mundial. Praticamente, emergiram demandas sociais de consumo generalizado, e, junto com elas, um profundo questionamento da falta de mobilidade social. As respostas encontradas pelas sociedades através de suas novas massas urbanas foram, essencialmente, políticas. Mas, alteraram, definitivamente, a compreensão da sociedade econômica contemporânea e de seu modo de funcionamento. Autores como Hans Freyer, Harold Laski, Karl Manheimm, Ortega y Gasset, Miguel de Unamuno, Curzio Malaparte, revelaram diversos aspectos dessa contradição entre ética, política e economia. A questão da racionalidade do comportamento dos indivíduos e do Estado recebeu a contribuição de Max Weber. A relação entre crise e reconstrução, ou entre crise e novas propostas de sociedade - utópicas ou realistas - fora incorporada ao cotidiano. Nesse quadro, destacou-se a questão do planejamento, em seu conjunto e em suas diversas formas, a da organização do mercado do trabalho, a da programação da infra-estrutura e a de um controle extra-mercado da oferta. Por trás dela surgiu um problema fundamental do autoritarismo: o pré-julgamento das necessidades e o controle ideológico. A visão de economia de guerra contribui, fortemente, para essa presunção. Os autoritarismos europeus surgiram da guerra, ou em conseqüência dela; em alguns casos, como propostas de renovação técnológica e revitalização de tradições; e em outros casos, como um caminho para uma concentração social de poder ligada a discriminação social deliberada. De qualquer modo, o autoritarismo funcionou com uma percepção de mobilização nacional de capacidade de trabalho, que desaguou em propostas de compromisso do Estado com garantia de emprego para todos. Este compromisso contrapoz-se eticamente ao liberalismo, que se desentende das necessidades sociais de emprego e renda e presume uma real igualdade de condições entre os agentes sociais, independente das quantidades de capital que controlam e dos privilégios que já têm incorporados. Há um aspecto prático e outro ético, de representação política e de consideração de igualdades econômicas além das políticas. Com a emergência desses autoritarismos formalmente estabelecidos, tornou-se clara a diferença entre o autoritarismo de Estado e o embutido nas desigualdades econômicas que se tornam habituais na produção moderna organizada.

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11.2.2. As revoluções sociais A Revolução Mexicana. O primeiro movimento político de grandes proporções do século XX foi a Revolução Mexicana de 1910, que oficialmente concluiu em 1917, mas cujo ciclo de lutas só se encerrou em 1926, com uma solução conservadora, que abriu caminho para uma experiência política original de poder pendular e de modernização controladas, com grande centralização poder político e sobre alianças com o capital de formação local. O desfecho da luta armada formal em 1917 deu lugar a um período de guerrilha e de violência política, que concluiu em 1926 com a criação do Partido Revolucionário Institucional. A fase de luta armada revelou com clareza, antes não conhecida, a complexidade de diferenças culturais e históricas formadas durante o período colonial, que perpassaram os movimentos de modernização do século XIX. As diferenças entre as bandeiras de controle de terra e de garantia de emprego de um lado; e de organização da indústria e do capital financeiro de outro lado, mostravam as substituições de posições entre os componentes da formação de classes do sistema colonial, a da economia primária dependente, e a que emergia com o Estado industrializador e reorganizador da estrutura fundiária. A fase revolucionária propriamente dita do Mexico concluiu em 1917, mas a principal fase de construção de uma base produtiva ocupou a década de 1930, com alguns de seus componentes - a parte agrária - até 1950, já com profundas contradições, determinadas pelos confrontos causados por alianças antagônicas feitas pelo governo para manter o bloco de poder monopartidário (9). É fundamental, que desde 1930, continuando até a década de 1970, o poder político institucionalizado estabeleceu um forte controle interno nos campos econômico, político e institucional em geral, em que foram essenciais a política de irrigação, criando um estilo de capitalização rural e garantindo a oferta de alimentos, mesmo a preços elevados; e a política de fomento industrial, determinante de pautas de modernização. Os custos a longo prazo desse modelo de reprodução do sistema de poder. revelaram-se na criação de uma nova classe de capitalistas e em outra de burocratas; e finalmente, na subsumção dos custos econômicos na estrutura do orçamento público. A Revolução Bolchevique. A revolução bolchevique de 1917 foi o principal acontecimento que alterou a expansão da produção capitalista na Europa; e teve consequências que se extenderam desde então.Surgiu no contexto do enfraquecimento do Império Russo, causado pela renovação do autoritarismo czarista e de sua incapacidade para adaptar-se às pressões de modernização da economia mundial.

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Consolidou-se e sobreviveu em condições de conflito militar e de ameaça de guerra, desde seu início até o fim da segunda guerra mundial, quando passou a participar das tensões políticas da guerra fria. A extensão e profundidade da destruição desse longo período de guerra dificilmente podem ser apreciadas hoje na forma de um balanço integrado. Mas há farta documentação das perdas humanas e materiais da guerra civil e da segunda guerra mundial, que indicam que a União Soviética foi o país que mais sofreu em todo esse período. A continuidade da guerra condicionou decisivamente a estruturação do sistema de produção e a composição do consumo, levando a uma predominância do complexo militar e industrial na renovação tecnológica, que a longo prazo teve consequências fatais. Paralelamente, as guerras tiveram profundos efeitos no atrazo da produção rural em geral e especialmente, para a modernização da agricultura. O regime autoritário, com a reprodução da burocracía e do controle político, somaram-se aos elementos propriamente econômicos, obstruindo uma renovação tecnológica equilibrada do país em seu conjunto. Mas os efeitos internos da experiência do socialismo soviético ainda estão por ser plenamente avaliados, tanto em termos de seus resultados sociais em geral e educativos em particular, como em termos da articulação política de nações portadoras de experiências profundamente diferentes e com contradições internas pelo menos tão graves quanto as do próprio conjunto. A experiência soviética foi, também, decisiva no relativo a políticas e técnicas de planejamento, onde foram realizados sucessivos planos a médio prazo. Com a experiência soviética, também, foi possível ver os limites da racionalidade das políticas públicas e de sua possibilidade de substituir preferências de valores culturalmente fundadas. O problema de comparabilidade financeira, e de seu papel nas relações internacionais, mostrou-se em sua plenitude, nas dificuldades sempre enfrentadas pelo regime soviético, para encontrar saídas financeiras para a aceleração da produção. Sob o peso da rigidez da renovação tecnológica, o compromisso com o pleno emprego e com o consumo coletivo tornaram-se um peso crescente para o sistema, que paralelamente tinha sua capacidade de investir drenada pela contínua militarização. O desgaste do sistema soviétivo arrastou-se durante a década de 1970, manifestando-se adiante nas pressões para reversão dos elementos de coerção política; e, mais adiante, com a eclosão dos componentes nacionalistas do sistema de poder.

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11.2.3. Os autoritarismos conservadores O fascismo. O fascismo é um fenômeno de origem européia, formalmente originário da Itália, mas que jamais ficou restrito a esse país. Na Itália, o fascismo foi a experiência mais clara de fusão de um projeto político autoritário com um projeto econômico de crescimento com controle. No essencial, constituiu uma experiência de restauração de formas medievais de poder carismático, que procurou sua legitimidade em valores conservadores - tradição e corporativismo - adaptados à base política dos rejeitados urbanos crônicos: o "lumpen" proletariado. A combinação de autoritarismo, tradição e populismo procurava fontes de apoio no imaginário de grupos urbanos, em busca de novas formas de inserção na sociedade industrial. Para chegar aos seus objetivos de poder, o fascismo recorreu a uma aliança do Estado com empresas chave em setores estratégicos; e com uma regulamentação das relações entre o capital e o trabalho. No essencial, o fascismo estabeleceu um modo de regulamentação do mercado, em que Estado assumía um papel de regulador entre o mercado de bens e o de trabalho, assumindo as responsabilidades de provedor de infra-estrutura. A posição do Estado seria hegemônica nas decisões do capital, para isto apoiando-se num poder político carismático e repressor, que neutralizaria quaisquer conflitos laborais. O fascismo explorou algumas características da sociedade moderna, especialmente os novos coletivos criados pela urbanização e pela industrialização, procurando alcançar e manter uma intensa mobilização ideológica, inclusive utilizando a violência política como reivindicação de grupos marginalizados, além de seus efeitos diretos sobre adversários políticos. A legitimação da violência foi essencial nesse esquema, que focalizava em valores imperiais. A Itália, especificamente, pretendeu-se continuadora da Roma imperial, com correspondentes pretensões expansionistas. O fascismo italiano inovou na tecnologia política do capitalismo e foi imitado por diversos regimes autoritários, na Europa e na América Latina. Seu culto da modernidade, sob diversas formas, mas especialmente pelo poder da mecanização como instrumento da formação de capital, e a valorização social do trabalhador, tinham um apelo poderoso, comparados com o clima de desemprego criado pelo capitalismo liberal.

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Transformou o controle social em meio de mobilização, utilizando o sistema educativo e os meios de informação como transmissores de ideologia. Com variados matizes, o fascismo repetiu-se em diversos países europeus, criando as bases da complexa aliança política que sustentou o Eixo na segunda guerra mundial. Em vários casos, identificou-se com a simples defesa de interesses pré-industriais, em sociedades que foram bruscamente postas em contacto com a modernização. A liderança do conservadorismo autoritário foi recuperada pelo nazismo, que surgiu em 1932 como líder das reivindicações econômicas do poder político. O nazismo retomou as bandeiras da hegemonia prussiana, levantadas em 1870 como portadoras da unificação germânica conservadora, voltada para alcançar a hegemonia também no plano econômico. O nazismo combinou os elementos de um autoritarismo operacionalmente racional, mas com uma irracionalidade de concepções básicas, baseadas em supremacia e pureza raciais. O racionalismo foi instrumental, posto ao serviço de objetivos finais que não são discutíveis. Assim, o nazismo desenvolveu um processo de planejamento centralizado, compatibilizando consumo e produção de bens de capital, com objetivos bélicos como principal referência. O nazismo . O nazismo apoiou-se no mesmo sistema de trabalho garantido, que também significava mobilização universal da sociedade para objetivos de poder, encarnados no Estado personalizado. Mas foi muito além do fascismo, no que estabeleceu um planejamento estratégico integrado, que conduziu à criação de mega-empresas nos principais setores industriais, operando com metas estabelecidas a partir de objetivos de poderío econômico e militar. A militarização da economia, seu reerguimento mediante a aplicação maciça de trabalho em esforço de guerra, o uso sistemático de tecnologia e racionalidade em função do projeto de poder, levaram a um modelo econômico curiosamente semelhante aos da antiguidade, por sua impossibilidade de se sustentar sem se expandir. Esse modelo tomou a forma de uma geopolítica que estabelecía o controle de matérias primas estratégicas. A concentração das decisões de produção resultava no controle da formação de novas empresas. Houve um alargamento progressivo da esfera de recursos controlados pelo Estado. Mas o sistema de produção dependeu, até onde a experiência prosseguiu, de uma incorporação de novos recursos e de uma demanda crescente externamente determinada. Noutras palavras, a sustentação do sistema de produção dependia da expansão política.

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Outro traço essencial do nazismo foi a centralização do controle do sistema de produção através de poucas grandes empresas - na prática, quatro - que concentraram grande número de funções, diretamente e mediante subsidiárias, antecipando o modo de funcionamento dos complexos industriais e das mega-empresas que se tornaram hegemônicas nos países ocidentais desde a década de 1970. O autoritarismo ibérico e latino-americano. O autoritarismo encontrou outras formas de expressão nas economias periféricas, cabendo, entretanto, distinguir a longa série de governos autoritários que simplesmente repetiram as formas conservadoras consagradas, com seus mesmos nomes ou com variações de nomes; e alguns regimes autoritários que mostraram alguma renovação. Esta observação dirige-se somente aos governos abertamente autoritários; e presume que há um amplo leque de matizes de autoritarismo, que limitaram, mais ou menos, a participação dos integrantes da sociedade nas decisões políticas e econômicas. O franquismo foi outra experiência de autoritarismo que deixou influências na América Latina; e que teve um apelo cultural adicional, baseado nas relações tradicionais da Igreja Católica com o Estado. O franquismo trabalhou sobre o imaginário ibérico, mobilizando as estruturas estamentais que se identificaram com a recuperação do prestígio do Império Espanhol. Sua expressão econômica também foi o corporativismo e a relação direta do governante com empresas reconhecidas como representantes desses valores tradicionais. Como o fascismo, reconheceu responsabilidade social do Estado com emprego e renda e com a garantia de serviços de infra-estrutura. O apelo à tradição manteve-se, também, como um fator de unidade nacional. Esta última, foi um elemento decisivo na constituição de uma proposta econômica e política que se contrapoz aos termos políticos e econômicos do federalismo. Resultou num processo de modernização conservadora, cujas contradições, levadas pela urbanização e pela industrialização, criaram a dinâmica política e econômica que levou a sua superação. Na América Latina, o autoritarismo esteve ligado a duas principais correntes: a que pretendeu preservar as estruturas de poder político de base oligárquica com pequenas ou restritas margens de modernização; e a que tentou conduzir e controlar a modernização tecnológica em favor de novas estruturas de poder de grande capital, preservando também o controle político da economia rural. Há uma clara coincidência entre a presença de estruturas e de movimentos autoritários na América Latina e a predominância de interesses tradicionais

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confrontados com pressões de transformação, sejam elas internas ou consequentes de articulações entre interesses internos e internacionais. A partir da década de 1930, a América Latina passou por sucessivas ondas de movimentos autoritários, distinguindo-se alguns ligados às tensões emergentes da crise daquele ano; outros, mais ou menos simultâneos, nos anos imediatos à segunda guerra mundial; e outros, finalmente, entre 1964 e 1976, coincidentes com alterações das estratégias globais da guerra fria e com a expansão das empresas multi-nacionais. Contrastam os regimes de força, com os golpes de Estado e a coerção política ostensiva, com a permanência de um autoritarismo já incorporado aos sistemas de governo, mesmo sob formas liberais, que garante o controle dos recursos e dos serviços a minorias. Os regimes de força foram instalados, quase sempre, sobre uma base estamental de poder - as forças armadas - sob inspiração externa, frequentemente norte-americana. Mas, com raras exceções, seguem um padrão de permanência de condições autoritárias com instabilidade dos governantes. Há, também, uma clara diferença entre formas simples de autoritarismo, carismático e familiar, e formas mais complexas, de autoritarismo baseado em posições mais ou menos de casta, apoiadas em interpretações ideológicas e com uma aderência consciente a projetos de poder político e econômico. Mas, em suas linhas gerais, os governos autoritários do período de 1930 a 1950 tiveram uma forte aproximação com compreensões populistas do poder, e favoreceram políticas de construção de infra-estrutura econômica e social. Os governos autoritários inaugurados desde inícios da década de 1960 mostraram uma influência norte-americana muito mais forte, declararam-se a favor de políticas neo-liberais, promoveram a concentração do capital bancário e industrial e interviram pesadamente na economia, tanto através da regulamentação do crédito e do financiamento de obras públicas, como do favorecimento de grupos econômicos. O declínio desse segundo período de autoritarismo coincide, e provavelmente está ligado, com os reajustes da política mundial e com o aumento das contradições econômicas internas, que tornaram inadequados esses regimes para definir e realizar políticas anti-inflacionárias e de estabilização sem concentrar os custos políticos das pressões sociais. 11.3. Os custos da tecnificação e da qualificação

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Pelo menos, desde o período entre guerras mundiais, as transformações da produção e do consumo avançaram, mediante aumentos da densidade de capital por homem ocupado, que significam o aumento do capital constante e concomitantes modificações da qualificação dos agentes econômicos, para produzir e para consumir. As interações entre os deslocamentos da composição do capital e da qualificação do trabalho tornaram-se , cada vez mais complexas; e obrigaram a alterar, frequentemente, os rumos de uma e da outra. Desde então, não somente a produção dos bens finais se torna mais indireta, como as pessoas precisam de mais conhecimentos para participar da produção e do consumo. Para que as empresas em particular e os países em geral, acompanhem a marcha da produção, têm que incorporar modificações tecnológicas, em parte de modo incremental, em parte com mudanças de uma vertente tecnológica a outra, algumas vezes adaptando técnicas e outras vezes incorporando técnicas completamente novas. A incorporação de técnicas, bem como a qualificação das pessoas, correspondem a custos, que se distribuem em cada sociedade, segundo sua estruturação de poder; e tornam-se essenciais na constituição do padrão de acumulação. Na análise histórica do capitalismo, a renovação de tecnologia pode ser vista como um processo que resulta de pesquisa científica e aplicada, e de atividades produtivas, que finalmente se materializa em investimentos no capital incorporado na produção. Também pode ser visto como o produto de um jogo de confrontos de interesses entre o máximo aproveitamento possível do capital já aplicado e a máxima vantagem que pode ser obtida de novas aplicações. O mercado de tecnologia seria plenamente renovador, se todos os investimentos novos fossem de novos capitalistas. As situações variam, entre esses dois extremos; e se deslocam, ao longo do tempo, refletindo os confrontos específicos de interesse entre o aproveitamento de investimentos realizados e a renovação dos investimentos. Os exemplos se sucedem, desde aquelas situações em que a substituição se decide por uma seqüência de formas de capital fixo que usam o mesmo sistema de insumos e de serviços, a formas que variam insumos e serviços. Paralelamente, variam as composições de capital, que podem ser usadas com a mesma qualificação do trabalho, a formas que dependem de outras qualificações de trabalho. No primeiro caso, está a substituição entre diferentes locomotivas a diesel; no segundo, a substituição entre locomotivas a diesel por elétricas; e no terceiro, a troca de transporte ferroviário por rodoviário. O mesmo exemplo se aplica à qualificação do trabalho. A produção do transporte ferroviário se faz sobre uma seqüência de tecnologias e a do rodoviário com

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outra; e o treinamento para operar os dois é completamente diferente, além de utilizar diferentes combinações de insumos. Historicamente, a tecnificação que se materializa nas alterações de forma do capital, e a qualificação, que se reflete no trabalho, evoluíram segundo diferentes padrões, avançam de modo complementar porém desigual. A tecnificação é conduzida pelo sistema de capital em garantir sua lucratividade, e opera no sentido de aumentar a proporção de capital constante na produção. A qualificação reflete estratégias do trabalho para alcançar sua rentabilidade, na escala da capacidade dos grupos sociais para se garantirem rentabilidade. Os interesses do capital pressionam a qualificação do trabalho, para adapta-la a sua estrategias de tecnificação; enquanto os interesses do trabalho pressionam a organização social da produção, para através dela atingirem a organização técnica da produção. Os interesses do capital e os do trabalho abrangem o horizonte de sua participação na produção e no consumo, isto é, compreendem o modo como o capital se organiza para modificar gradualmente seu controle dos resultados de sua operação. Assim, a estratégia de tecnificação só pode ser compreendida em período, isto é, ao longo desempenho das aplicações dos diversos capitais. Concomitantemente, as estratégias do trabalho só podem ser compreendidas quando se comparam as condições atuais de participação com os efeitos progressivos do sistema de educação em geral e de treinamento profissional em particular. As diversas estratégias dos capitalistas e as dos diversos trabalhadores são informadas pela visibilidade que uns e outros têm do processo de produção em seu conjunto, e do modo como podem participar nele. Isto significa que essas estratégias refletem seu nível atual de informação e o modo como ele se ajusta à produção de informações conseqüente desse processo. Na prática, quer dizer, como oportunamente indicou Weber, que os capitalistas derivam sua capacidade de participar de três elementos, que são, o fato de controlar uma quantidade de capital, o de saber usar o capital e o de ter a oportunidade de faze-lo. O equivalente acontece com os trabalhadores, que dependem da situação em que se encontram em cada sociedade econômica. Seu gráu de educação em geral, seu nível de informação, é que lhes permitem perceber objetivamente seus interesses, bem como de identificar corretamente os meios adequados para defende-los. Pelo fato mesmo de que os interesses são defendidos ao longo do tempo, à medida que se realiza o processo de produção, eles compreendem ações diretas e indiretas, e ações mediatas e imediatas. As ações diretas e imediatas atingem o funcionamento atual do sistema e são aquelas imediatamente perceptíveis. As ações indiretas atingem o modo de recomposição do sistema. As ações mediatas são aquelas cujos efeitos somente podem

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ser percebidos gradualmente, à medida que os sistemas se recompões, ou que se identificam com os efeitos em cadeia da reorganização tecnológica do sistema. Assim, ao considerar os sistemas de produção ao longo do tempo, nas inter-relações entre eles, é preciso admitir que os custos da tecnificação e os da qualificação dos trabalhadores distribuem-se desigualmente, refletindo os modos como os diversos capitais estão organizados em empresas e como participam do mercado; e os modos como os diversos trabalhadores, por sua parte, se organizam para obter seus salários e para realizar seu consumo. O aspecto distribuição está embutido na progressão da produção, de acordo como os capitalistas e os trabalhadores finalmente chegam aos seus objetivos. Ao observar em retrospectiva a formação do capitalismo, verifica-se que os custos da tecnificação foram resolvidos pelos capitalistas utilizando a margem de poder que o capital lhes dá; e não apenas pela eficiência com que o usam no processo de produção. isto inclui suas relações com o Estado, suas diversas formas de transferir seus pontos de vista para os demais componentes da sociedade. Por seu lado, os trabalhadores que já estão organizados utilizam suas margens de organização para conquistar canais de acesso no processo que controla a criação de empregos novos, ou que determina as diferenças de remuneração entre empregos. Na prática, isto se traduz em diferenças entre pessoas que já são trabalhadores e pessoas que pretendem trabalhar, bem como diferenças entre as diversas categorias de trabalhadores, segundo seu nível de organização. Nos países desigualmente industrializados, essas diferenças se formaram levadas pelas diferenciações internas de cada sistema de produção, entre os segmentos do sistema que têm estado ligados aos grandes canais de formação de capital, que geralmente são aqueles ligados às relações internacionais. 11.4. A concentração bancária e a centralização financeira A análise das transformações do sistema financeiro e do financiamento demanda uma revisão inicial das inter-relações entre a esfera real e a financeira, e nas referências institucionais de cada país. A acumulação de capital proporcionada pela industrialização correspondeu a um aumento da massa financeira ao nível de cada país e a aumentos, mais que proporcionais, do dinheiro manejado pelas empresas. As empresas precisam de quantidades crescentes de dinheiro para atualizar tecnologicamente sua capacidade

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instalada de produção, o que sempre significa incrementos do imobilizado para cada unidade de produto realizada. Para sustentar e ampliar suas operações, os produtores em geral, e as empresas em especial, precisam de dinheiro para adiantar o valor imobilizado na capacidade instalada, que se recupera gradualmente ao longo da produção, mas que é parte de uma cadeia progressiva de imobilizações, em que se renovam, sempre os compromissos financeiros. Esse circuito de reinvestimentos significa que são proporcionalmente maiores os usos de dinheiro das empresas que se expandem, e em todo caso, das que se voltam para atividades onde a circulação é mais rápida. Os diferenciais de velocidade de circulação entre as formas mais extensivas e as mais intensivas de agricultura, e, sucessivamente, entre formas de produção industrial e de serviços, fazem com que as atividades de circulação mais rápida possam pagar mais caro pelo dinheiro, portanto, que ele flua para elas. Esse mecanismo, logicamente, desloca o funcionamento dos sistemas econômicos nacionais na direção daqueles países que conduzem ou controlam a renovação tecnológica e têm, assim, o poder de influir sobre essas alterações de velocidade na circulação. Algo equivalente acontece do lado do consumo, porém de modo inverso. Os usuários de bens mais duráveis, em princípio capazes de resistir mais aos efeitos das mudanças tecnológicas, podem estar dispostos a absorver custos financeiros maiores em sua aquisição, já que demorarão mais em repo-los. O contraste entre os produtos qualitativamente invariantes e os que mudam mais depressa, torna-se essencial no planejamento de compras, e indiretamente, afeta o planejamento dos investimentos. Em seu conjunto, esses dois movimentos constituem um padrão de mobilidade do dinheiro em cada sistema de produção, indicativo das margens de lucro que podem ser obtidas sobre as transferências de recursos entre setores e entre atividades. A rigor, o aumento do capital total incorporado no sistema de produção traduz-se em maiores usos de capital financeiro, ligados a modos específicos de usos, portanto, a correspondentes formas institucionais de operação do dinheiro. Esses aspectos das transformações dos sistemas de produção nacionais têm sido fundamentais, como indutores da concentração bancária, bem como estimulantes da subsequente centralização do capital financeiro, que se acentuaram depoois da segunda guerra mundial, que pavimentaram o caminho para a hegemonía das empresas multi-nacionais e para a mundialização do capital.

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A concentração bancária acentuou-se depois da segunda guerra mundial, coincidindo com o aumento de contratos de compras dos governos, para os sistemas de infra=estrutura econômica e social, para obras urbanas e em gastos militares. Nos países mais ricos, as compras dos governos foram puxadas pelas necessidades de renovação de seu parque industrial e militar, que significaram a reorganização de seu modelo energético e de seus sistemas de informações. Essas transformações dos sistemas de produção traduziram-se em rápida aceleração dos usos de petróleo e de gás natural. Resultaram, daí, diferenças decisivas entre os países que conseguiram manter o controle de seu modelo energético, e aqueles outros cuja dependência de insumos energéticos externos aumentou. Desde inícios da década de 1950, na busca de saídas para essas pressões tomou diversos rumos, indicativos de especificidades nacionais. Desde então, a França enveredou por um programa de eletrificação, destinado, entre outras finalidades, a substituir sua economia colonial por outra, sustentável com recursos próprios. A Grã Bretanha entrou num declínio, que somente pôde ser parcialmente revertido com a exploração do gás do Mar do Norte. Mas os Estados Unidos passaram a conviver com horizontes decrescentes de suas reservas de combustíveis fósseis. E o grande sucesso do Japão fez-se sobre uma base extremamente frágil de recursos energéticos. Frente a essas restrições dos países centrais, mudou profundamente a posição dos países latino-americanos. O Brasil e o México fizeram grandes progressos em geração de energia hidro-elétrica; e o México também alcançou resultados importantes na produção e no refino de petróleo. A Venezuela já se destacara como exportador de petróleo, mas perdeu gradualmente posição, com queda de reservas e custos crescentes de exploração. A Argentina alcançou a auto-suficiência em petróleo, mas ficou atrazada na produção hidro-elétrica. O Chile obteve resultados equilibrados e com sua produção de carvão, mas também teve atrazos na produção hidro-elétrica. Ao iniciar-se a década de 1970, a crise internacional dos preços do petróleo atingiu principalmente o Brasil, que entretanto iniciou seu programa de produção de alcool hidratado e aumentou a produção de petróleo. Em linhas muito gerais, na América Latina, a restrição energética só tem sido decisiva para os países da América Central e das Antilhas, onde, à exceção de Trinidad e Tobago e da Guiana, quase todos têm graves dificuldades no setor hidro-elétrico e escassas ou nulas reservas de petróleo. A restrição energética determinou escalas de tamanho e prioridades para os programas de investimento, bem como alterou as condições de competitividade das empresas e dos países, em linhas de produção e em produtos específicos. Tais referências

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sustentaram, direta e indiretamente, ao longo da década de 1960, políticas de financiamento e, identificáveis nos financiamentos entre países e no canalizado através de órgãos internacionais. As esferas internacionais de influência dos países ficaram marcadas pela ligação entre o financiamento público e o privado, que se realizou no manejo do sistema bancário. É revelador que ao longo da década de 1960 houve, praticamente, dois períodos de financiamento: um primeiro liderado por políticas públicas, com um forte suporte indireto às empresas dos países ricos e em sua expansão internacional; e um outro, em que aumentaram as participações de financiamento privado, com destaque o aumento da participação dos bancos privados nas dívidas externas dos países menos industrializados. No início da demanda de 1960, a disputa pela hegemonia política mundial criou novos canais de manifestação da disputa pelo controle financeiro da acumulação e de capital. O financiamento internacional foi reorganizado, e abriu espaço para uma crescente participação de capitais privados. Nessas novas bases, na década de 1960 houve uma quantiosa oferta internacional de dinheiro barato, orientada para prioridades a serem estabelecidaas pelos governos segundo padrões internacionais de eficiência. A organização de critérios e unificação dos mercados financeiros, que centralizaram o financiamento de infraestrutura, e ampliaram as oportunidades de expansão das grandes empresas. Essa lógica da organização financeira sobrepoz-se na América Latina, a pressões sociais acumuladas, desde o período colonial, com estruturas fundiárias altamente concentradas e com padrões de distribuição de renda fortemente desiguais. A objetividade da lógica econômica do sistema financeiro contrapoz-se a pressões sociais realimentadas por alianças políticas internacionais, como a Aliança para o Progresso e as alianças continentais da democracia cristã, que legitimaram as políticas nacionais de endividamento. Essa aparente contradição revelou-se, entretanto, em suas consequências. No final da década de 1960 desvanecera-se a oferta de dinheiro barato e a economia mundial passara a operar com elevadas margens de endividamento. No saldo operacional dos empréstimos internacionais, aumentaram o total das transações privadas e sua proporção sobre as transações entre governos. Na nova ordem, tornaram-se hegemônicas as operações conduzidas por grandes bancos e por consórcios de bancos privados, verificando-se que as anteriores metas de infraestrutura social e econômica eram, na prática, inalcançáveis.

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À parte das consequências da elevação da taxa de juros para a composição da dívida, destaca-se que ela foi construida, em sua maior parte, e ainda se realimenta, em atividades que não levam à criação de capacidade para exportar, portanto, que não ajudam a paga-la. 11.5. Informações, comunicação e redução dos tempos das decisões A década de 1960 foi, também, fundamental no modo como as decisões econômicas são tomadas e retransmitidas ao sistema de produção. Nesse período, foram desenvolvidas a eletrônica, as comunicações por satélite a informática e foram coligidas e ordenadas, grandes massas de informações existentes e não utilizadas. Paralelamente ao desgaste do planejamento governamental, enfrentado com problemas de equivalência de preços, entre produtos e nos planos interno e externo, aumentou a capacidade das empresas para planejar a longo prazo, especialmente, para combinar seu planejamento de produção com o financeiro. A renovação e a expansão do capital fizeram-se, basicamente, através da capitalização das grandes empresas, destacando-se dois aspectos principais: a renovação do papel das atividades do terciário, com sua ligação com a importância da perspectiva mercantil; e o estabelecimento de novos padrões de equivalência em mercado, entre atividades de retornos desiguais, no tempo da produção e na qualidade dos produtos. Com isso, as empresas ganharam mais capacidade para combinar atividades novas e tradicionais, e operar em mercados com variadas margens de risco. Mas, para isso, tiveram que se adaptarem a novos modos de tomada de decisões e novos tempos para as decisões. Há, portanto, uma modificação radical do quadro de informações com que os interesses privados são conduzidos, assim como das condições em que elas são usadas. Isso coloca dois problemas fundamentais, relativos ao modo como se decide e aos tempos das decisões. Obviamente, há mais problemas de processamento de informações em tempo útil, portanto, de seleção de informações. A aplicação da noção de estratégia à

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economia - focalizada por Hirschmann em 1961 - é reveladora dessa necessidade de distinguir rapidamente o essencial do secundário, e da importância das ações oportunas. A importância do desempenho em relação com informações implica em aumentar e alterar a qualificação do trabalho, revendo o significado de especialização e vendo novos significados para a compreensão dos processos das empresas, mais que do de quaisquer dos seus empreendimentos. Muda o significado de qualificação, porque o domínio de habilidades técnicas torna-se uma questão subordinada ao domínio de informações e à capacidade de comunicar-se. O referencial de decisões instantâneas decorre da anulação do tempo de recepção das informações e reflete as diferenças de tempo de reação às informações recebidas. Admitindo que os equipamentos de informática anularam praticamente o tempo de recepção de informações, a questão da gestão circunscreve-se ao tempo de reação, tornando estratégica a rapidez de decisão. As novas condições objetivas da gestão de capital atingiram os processos de produção através dos setores do terciário, que é onde são mais rápidas a renovação de informações e a qualificação do trabalho. Este último aspecto torna-se crítico, quando se observa o recrudescimento do analfabetismo nos Estados Unidos e os elevados índices de quase-analfabetismos entre os operários nos principais centros industriais da América Latina. São as deficiências acumuladas no trabalho, causadas pela desigualdade de renda, que aparecem como principais freios da continuidade da formação de capital. Notas 1. Perceber que os Estados Unidos se tornavam o eixo do processo de acumulação de capital, significou perceber a nova combinação de recursos naturais, tecnologia e mercado, representada por um país cuja população cresceu junto com a estruturação dessas relações inter-industriais que jamais tinham acontecido na Europa. O único país europeu com dimensões de potência - a Alemanha - já tinha todos seus recursos incorporados, e sua população crescia em forma vegetativa. A Rússia ainda não

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começara a experimentar a articulação de recursos promovida pela Revolução Bolchevique. 2. Nesse período, que corresponde ao Segundo Império, o Brasil tornou-se atrativo para investimentos na capitalização de empresas dedicadas à prestação de serviços públicos, em empresas que atuaram como contratistas do governo, portanto, investimentos em que o Estado absorvía os riscos. 3. São duas histórias a serem revisadas. A das relações do Brasil com os Estados Unidos já foi razoavelmente pesquisada, cabendo citar, por exemplo, o trabalho de Bradford Burns " The Unwritten Alliance" ( Columbia University Press, Nova York, 1966) e o trabalho de Waldir Oliveira sobre a presença de norte-americanos na Bahia no século XIX. Sobre as relações do Brasil com a esfera germânica, é preciso revisar as relações do Segundo Império com a Aústria, inclusive indicadas nos relatos de viagem do Principe Maximiliano de Habsburgo. Cabe, também, citar ensaio de Tamás Szmrecsanyi, intitulado " German capital investment in the early industrialization of São Paulo" (em Ciência e Cultura set.-out. 1992). 4. O desenvolvimento das relações entre a Argentina e os Estados Unidos foi o tema de um trabalho bem conhecido de T.McGann sobre o período de modernização da Argentina iniciado pelo governo de Pelegrini. 5. Esse tema foi objeto de alguns estudos, na década de 1960, inclusive deste autor, e do Instituto de Economia da Universidad de la República Oriental del Uruguay. No essencial, a comparação entre os rendimentos físicos, nas lavouras e na pecuária, e o desempenho financeiro, nos estabelecimentos agro-pecuários dos Pampas, revelou uma queda da produção de lavouras, comparado com ascensão da pecuária, no período de 1930 a 1950. Como as lavouras eram mais rentáveis, parecería ilógico que as terras fossem transferidas de volta a pecuária. Mas ao compreender que a pecuária, realizada pelos proprietários, podia ser operada com menor endividamento, tornou-se evidente que esse retorno à forma mais tradicional refletía um raciocínio perfeitamente lógico, aceitável como empresarial. 6. O capital extrangeiro entrou como um setor praticamente independente "quase colonial" na constituição da grande mineração chilena formada depois da Guerra do Pacífico. A coincidência pode não ser fortuita. O Chile participou do movimento de integração vertical da segunda revolução industrial, inclusive com transbordamento de efeitos de expansão em sua agricultura. É revelador que a agricultura do Chile - e a da

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Argentina - em 1950 encontravam-se em seus níveis de produção e de rendimentos físicos de 1926. 7. O triângulo Nova York-Boston-Grandes Lagos foi a base material do desenvolvimento industrial norte-americano, desde onde se controlou a expansão agro-pecuária. Os outros polos de organização do sistema de produção - Los Angeles e Miami - são de criação muito mais recente e respondem a novas combinações de atividades primárias e de serviços, ligadas à presença americana no Pacífico - San Francisco tem um papel relevante nesse aspecto - e nas Antilhas. A questão de polarização não foi, portanto, de criação de um ponto dinâmico na economia nacional norte-americana, mas de criação de uma região dinâmica, capaz de realimentar seu próprio crescimento, mesmo quando a expensas de uma rápida concentração urbana. 8. Pouco foi feito, relativamente, para explicar as conexões entre as duas guerras mundiais, bem como o papel da primeira guerra mundial, como síntese das contradições econômmicas, entre os deslocamentos dos eixos internacionais do poder, a ampliação da base de recursos da produção capitalista e o mercado mundial. Mas a literatura filósofica e social do período entre guerras marcou, claramente, uma hegemonia ideológica da Europa central, que confrontava com a concentração de capacidade de produção mais a oeste. Nesse sentido, a comparação entre os resultados da primeira guerra mundial e o perfil da crise econômica de 1930 indica os termos básicos do conflito dos anos subsequentes. 9. A imagem, oferecida por Barbara Tuchmann, do esgotamento da forma política de comando do capitalismo revela-se extremamente atual, por mostrar como o conflito entre potências é sempre um conflito inacabado. Mas, sua análise simplesmente seguiu os princípios da análise estratégica de Lidell Hart, que apontou aos custos globais da guerra, e às consequências do desgaste dos conflitos para a estrutura econômica de cada país. 12. O Capitalismo na Periferia Latino-Americana 12.1. Os resultados da formação colonial e mercantíl

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` Na virada do XVIII para o século XIX, a maior parte da América Latina estava constituída de economías deprimidas, com uma atividade de intercâmbio muito limitada, restrita a trocas bilaterais com a Europa, que em sua falta de perspectivas refletiam o desgaste econômico da península ibérica. Os países mineiros vinham de prolongado debilitamento da organização financeira desse circuito de produção. Os países exportadores de matérias primas agrícolas operavam com um mercado mundial, em que a expansão econômica da Inglaterra contrastava com os efeitos das guerras napoleônicas e com o declínio do Império Hispânico e do Português. A década de 1760 marcou um conjunto de eventos na economia e na política européias, que se traduziram no aprofundamento de diferenças entre os países que progrediram na expansão das manufaturas e os demais. Por trás desse fenômeno, estavam os ganhos antes obtidos pela Inglaterra na colonização da India, as vantagens que lhe davam o mercado norte-americano e suas relações favorecidas com Portugal. Noutras palavras, a expansão da produção manufatureira refletia a acumulação mercantil e militar das décadas anteriores. Certamente, não pode ser explicada apenas como resultado de iniciativa e de ganhos de produtividade na própria Inglaterra. A expansão da produção manufatureira quase-industrial da segunda metade do s'eculo XVIII fez-se, justamente, no ponto de máxima convergência da exploração mercantil imperial, que reunira o capital para os investimentos, que garantia o suprimento das matérias primas, bem como o poder de obrigar as colonias a comprar seus produtos. Na América Latina, esse ambiente de decadência econômica ibérica contrapunha os interesses de capitais acumulados aqui com os das classes dominantes ibéricas, que tentavam sustentar-se mediante um recrudescimento da pressão tributária e de privilégios sobre as colonias. É significativo o controle do poder na península ibérica por parte de governos conservadores absolutistas; e seu desgaste interno, correspondente aos resultados acumulados das guerras de sucessão. Os conflitos de interesse entre as metrópoles e as colonias, bem como a escassez de relações inter-americanas, mascaravam-se sob a forma de conflitos locais e regionais no século XVIII, como os dos Beckmann no Maranhão, de Felipe dos Santos em Minas Gerais, Tupac Amaru no Peru. Mas já tinham um denominador comum, que era a rejeição à pressão tributária das metrópoles e ao uso dos privilégios de classe para uma discriminação cultural que, finalmente, tinha expressão econômica. A extensão dos processos de exploração de populações marginalizadas, muito além da escravidão formal, denotava o real caráter de perpetuação dos sistemas oligárquicos,

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independentemente do laço formal com as metrópoles européias. Significativamente, as elites dirigentes latino-americanas identificavam-se com os regimes conservadores ibéricos; as principais perseguições aos movimentos políticos renovadores foram feitas por latino-americanos; e as organizações políticas independentes, foram conduzidas por correntes nitidamente conservadoras, como as que marcaram o período das Regências no Brasil. Nos últimos dias do século XVIII, o perfíl do confronto revelou-se com mais clareza, em regiões que já tinham conhecido riqueza, onde em todo caso havia uma pluralização de interesses locais suficiente para contrastar os argumentos dos interesses econômicos imediatos com os do controle político necessário para a continuidade do sistema de produção. Isso aconteceu em regiões mineiras e em regiões onde o circuito de atividade mercantil revelava a necessidade de outras soluções políticas para essa pluralidade. Os movimentos de Miranda e Bolívar na Nova Granada - Venezuela e Colombia - a Inconfidência Mineira, e a série de levantamentos do Brasil desse período, correspondem a essa categoría. Semelhanças entre interesses localmente definidos permitiram que os movimentos políticos se estendessem, assim como os interesses das classes conservadoras ganhassem expressão que transcendía o significado político e econômico local. Com o aumento do trânsito internacional das elites latino-americanas, com a influência dos jovens ricos que iam estudar em Montpellier, nesse período aumentou, também, a influência do componente ideológico nos movimentos políticos. O exemplo da independência dos Estados Unidos, que recebera a adesão de setores liberais da aristocracía francesa, apareceu como uma possível fonte de apoio, mais concreta e próxima que as universidades francesas que antes funcionaram como referências intelectuais. Os Estados Unidos interessaram igualmente a Bolivar e aos Inconfidentes, na versão ideológica de Thomas Jefferson, antes que ascendessem as influências de Alexander Hamilton e de Andrew Jackson. Mas, na prática, os governos norte-americanos limitaram-se a manifestações de simpatia à distância, e eventualmente, começaram a desenhar uma política intervencionista, que finalmente se materializou na invasão do México em 1847. No período que abrange a última década do XVIII e as duas primeiras do século XIX, tornaram-se mais nítidas as diferenças entre os interesses econômicos e os movimentos políticos que ficaram circunscritos a esferas locais; e os que transcenderam a escala local. Contrastam, especialmente, as experiências de transformação econômica e política da bacía do rio da Prata, o movimento bolivariano, o da independência do Mexico e o da do Brasil. Na primeira, destaca-se a visão independentista de Mariano

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Moreno, revelando o perfil dos interesses genuinamente locais, em contraste com a preservação dos vínculos políticos com a metrópole espanhola.Esses grandes movimentos definiram os posteriores eixos de poder econômico e político da América Latina, bem como as diferenças entre a reprodução de soluções regionais e sua conversão em questões nacionais. No tempo de Bolivar estava claro para os independentistas que a reversão do sistema de poder dependia da conquista e adesão do ponto mais forte do sistema espanhol, que era Lima. A posterior partição dos países do Pacífico justificou essa interpretação de Bolivar e de San Martin. O espaço peruano era a chave para uma possível aproximação entre o norte e o sul da América do Sul; e detentor de uma estruturação política e cultural que poderia fazer pender a balança da união ou da fragmentação do continente. Mas, justamente, a luta pela independência provou que o próprio espaço peruano era profundamente diferenciado e tendente a dividir-se. A separação entre o Peru e o Alto Peru - Bolívia - indicou outras diferenças internas do Peru - entre as regiões da costa e as da serra - que, por sua vez, evidenciavam a fragilidade da estrutura política peruana. Mais ao sul, os movimentos econômicos e políticos em torno do estuário do rio da Prata e do rio Paraná constituem um conjunto onde evoluíram projetos locais pressionados por interesses externos. A colonização da Argentina evoluiu no sentido de um confronto de interesses entre os das províncias do Paraná, federalistas, baseados na produção agro-pastoríl, que receberam uma forte inspiração da doutrinação dos jesuítas no movimento artiguista, e também predominante no Paraguai; e os interesses do fortalecimento do poder da região de Buenos Aires, que se materializaram na visão unitarista da questão, identificados com o controle mercantil da acumulação.. A economia da região evoluiu sobre as bases antes oferecidas pela ligação econômica com a região mineira da Bolívia e as vantagens portuárias de Buenos Aires. A solução política, a que chegou a região na metade do século, correspondeu a uma estruturação econômica conduzida pelo controle dos Pampas. A constituição de Estados nacionais demarcava, também, as esferas de influência do Brasil e da Argentina, deixando em aberto diversos aspectos do controle econômico do alto Paraná. Unitarismo ou federalismo na Argentina foram alternativas que indicaram as modalidades possíveis de conversão das questões regionais em escala nacional. Uma vez estruturado, o sistema do rio da Prata tornava-se uma grande macro-região econômica essencialmente agro-pecuária, com grandes vantagens nessa área, mas distanciada de suas anteriores fontes de conexão com as regiões mineiras andinas, com suas próprias opções de expansão sobre os territórios do sul, controlados pelo Chile.

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O movimento bolivariano, de fato iniciado pelo projeto político de Francisco de Miranda, baseou-se em duas fontes: o antecedente sub-continental do Império Incaico e a organização colonial espanhola. Realizou-se como uma guerra regional de independência, que encontrou uma sucessão de alianças em interesses locais das estruturas fundiárias, capaz de funcionar enquanto os objetivos da luta podiam ser reconhecidos como úteis para as estruturas locais de poder. Mas suas contradições se revelaram, quando as necessidades do projeto político continental contrariaram esse jogo político local. O eixo social e econômico desse projeto político foram sociedades agrícolas, desprovidas dos meios adequados para chegar aos termos de um projeto nacional. As aspirações de oligarquías locais, de conquistarem o controle político de novos Estados nacionais, tornava impossível construír estruturas políticas capazes de substituír os vice-reinados. A debilidade do comércio intra-americano revelou-se, desde então, um impedimento decisivo na constituição de Estados economicamente independentes. Os países da costa do Pacífico tinham longa tradição de exportadores de produtos minerais, mas pouco conseguiram durante o século XIX, para conquistar um novo espaço econômico que substituísse sua anterior posição. O Chile afirmou-se, inicialmente, como exportador de grãos, num insólito fluxo de comércio com a Califórnia. Porém, concluída a ligação este-oeste dos Estados Unidos, perdeu essa posição. Encontrou outros caminhos como exportador de salitre de guano, e depois da Guerra do Pacífico, como exportador de cobre. No norte, a independência do Mexico foi um caso único no cenário latino-americano, porque derivou de movimentos sociais estimulados por condições locais, entretanto progredindo no interior de um sistema político tradicionalmente unificado, pela experiência colonial e pelos anteriores modos de poder indígenas. O conservadorismo mexicano procurou, em sucessivas oportunidades, a legitimação da forma imperial com Iturbide e com Maximiliano.Mas, em ambos casos, encontrou-se com uma contradição entre a afirmação do poder centralizador e os conflitos regionais de terra. A construção de um projeto nacional dependeu de um processo interno de controle social, em que o componente do sistema de produção ligado ao exterior tinha poucas possibilidades de estabelecer uma supremacía clara sobre grande parte da população, estruturada em comunidades agrícolas e em latifúndios quase auto-suficientes, em grande parte do país. Na história econômica do Mexico há diferentes trajetórias de formação de capital, ligadas à produção mineira e à produção agrícola para exportação. A mineração concentrou, desde o período colonial, grandes números de trabalhadores, criando zonas de tensão social potencialmente elevada. Por sua vez, a escassez de terra arável com água suficiente, fez com que o país fosse, desde os tempos

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pré-colombianos, um território desigualmente ocupado, com lutas permanentes pelas melhores terras. A construção de um sistema de produção pós-colonial teve que resolver, progressivamente, entre a relação contraditória com os Estados Unidos, a busca de um relacionamento com a Europa e com a América Latina. No Brasil, o sistema colonial engendrou regiões com seus próprios espaços semi-autônomos, formadas sobre sucessivas relações externas, que entretanto foram gradualmente articuladas umas com as outras, primeiro pela integração do mercado de trabalho e depois, por progressivos movimentos políticos tendentes à hegemonização interna. O projeto de unificação foi transferido pela Corôa portuguesa ao Império nascente; e posteriormente desenvolvido por ele. A unificação interna foi um processo politicamente penoso, que se realizou no período de 1830 a 1840, mediante o sufocamento militar sistemático de projetos políticos regionais. Consolidou-se o movimento de concentração de poder em torno do Rio de Janeiro e de sua área de influência imediata em Minas Gerais e em São Paulo. Aprofundou-se, continuamente, a concentração de capital em infra-estrutura na cidade do Rio de Janeiro. Em contraposição, debilitaram-se a Bahia, Pernambuco e o Rio Grande do Sul. Em 1850, o choque interno entre federalismo e unitarismo na Argentina levou a uma aliança dos unitaristas com o governo centralista brasileiro, que resultou em um bloco de poder naturalmente oposto ao Paraguai. O confronto político estendeu-se desde o período da ditadura de Francia no Paraguai, que lançou as bases para o nacionalismo paraguaio, adiante estruturado pelos Lopez. Identificava-se como um ponto de referência contra os diversos partidos conservadores do sul, tendendo, portanto, a converter-se em conflito continental. A partir daí, estruturou-se uma aliança militar entre o Brasil e a Argentina, que arrastou o Uruguai, significativamente, contra a orientação dos conservadores desse último país. Definia-se um estilo de aliança entre a estrutura política e a econômica, em que esta, mais aberta aos interesses do capital internacional em expansão, tendía a favorecer a modernização dos segmentos agro-industriais e agro-mercantís; e em que ficava subentendida a divisão de poderes, entre o controle brasileiro das cabeceiras do Prata e o argentino da desembocadura. Na América Central, também, o eixo do conflito entre um projeto nacional independente e a pressão de interesses locais, levou ao fracasso da experiência de Morazán, que foi a única possibilidade de viabilizar materialmente a independência política frente os interesses locais de latifundiários. Concluída a guerra civil dos Estados

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Unidos, essa fragmentação política, revelou-se convergente com a expansão de sua influência e controle do conjunto da América Central e das Caraíbas. 12.2. O período de 1870 a 1914 O período de 1870 a 1914 foi escolhido por Schumpeter para demarcar a consolidação do paradigma de análise econômica; e sua escolha reflete duas ordens de fenômenos: os processos internos da acumulação nos centros industriais e financeiros e a transformação das economias mercantís e agrícolas em sistemas que passaram a operar com um componente significativo de produção manufatureira e industrial. Foi o período da grande expansão imperialista do capitalismo. Inglaterra, França, Holanda, Bélgica, Estados Unidos, todos embarcaram em violenta expansão, cujos principais objetos foram a Asia e a Africa, mas que afetaram fortemente a América Latina. Foi feita uma completa partição do controle dos recursos naturais da Africa, que culminou com a invasão do sul da Africa e a criação da Rodesia e da União Sul Africana. Na Asia, os eventos mais decisivos foram a invasão da China, a partir de incidentes produzidos, em conjunto, pelos diversos países europeus e pelos Estados Unidos; e o forçamento da baía de Tokio pelos norte-americanos. Faltava, apenas, a concorrência do Imperio Otomano no sudeste da Europa e no Oriente Medio. Na América Latina, esse período foi marcado por alguns fenômenos decisivos e concomitantes. No Mexico, o lançamento de um projeto modernizador, realizado em aproximação com os Estados Unidos e tendente a superar o isolamento entre os Estados, como conclusão da luta contra Maximiliano e o estabelecimento do governo da Reforma. No Brasil, a intensificação de um projeto modernizador, realizado com maior aproximação com a Europa, com uma proposta deliberada de tecnificação e melhoría das comunicações internas. Na Argentina, um projeto de construção de um novo setor agrícola exportador, a partir da incorporação definitiva das terras agrícolas do sul, com elevados custos sociais, sobre índios e mestiços. No Chile, um projeto conservador modernizador, também com maior atenção à Europa, criador de setores modernos de produção, na agricultura e na mineração. Na Argentina, a expansão da fronteira econômica ao sul, com a chamada "guerra do deserto", concluindo com o governo modernizador de Pelegrini.

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O dinamismo das economias nacionais foi conduzido por uma atividade exportadora externamente determinada, em que os países latino-americanos ganharam com vendas de produtos cujas transações eram reguladas por alguns poucos grandes demandantes, que por sua vez funcionaram como oligopolistas no mercado mundial. Junto com a magnitude do comércio, a formação de capital desses países estava pré-determinada pelas previsões de demanda daqueles grandes compradores. Isso funcionou com a organização do mercado mundial de grãos e o de minerais, que levou à entrada maciça de empresas formando um setor de grande mineração, no Mexico, no Chile, no Peru; e um setor de grande produção agropecuária, na Argentina, no Uruguai,no Brasil, no Peru e na Colombia. A tônica geral do período foi de modernização, de associação com uma ou outra das visões de modernização exportadas pela Europa. Em economia, em legislação, em literatura, os países latino-americanos voltaram-se para a ordem estabelecida e civilizadora da Europa, principalmente representada pelo Império Austro-Húngaro, pela França, pela Inglaterra. Ao longo do período formou-se uma aproximação com a Alemanha em alguns países. Em vários países, como no Brasil e no Chile, houve políticas organizadas de imigração, pautadas nesses objetivos europeizantes e modernizadores, frequentemente em torno do objetivo de melhoría dos produtos exportáveis (1). No continente americano, o período começou com algumas modificações fundamentais, começando pelo resultado da Guerra Civil norte-americana, continuando com os resultados da guerra com o Paraguai,incluindo a guerra do Pacífico entre o Chile e o Peru e a Bolívia, ambas culminando em 1870. A conclusão da Guerra Civil nos Estados Unidos marcou o começo da expansão norte-americana no Mexico, na América Central, nas Antilhas e no Pacífico, criando um espaço de influência para seus capitais industriais e organizando uma ampla área de suprimento de matérias primas, agrícolas e mineiras. No Mexico e no Brasil registraram-se movimentos de industrialização relativamente importantes, bem como uma expansão dos investimentos em transportes, que finalmente funcionou como ponto de apoio para a formação de um novo sistema bancário, que se tornou essencial na reconstituição da própria produção agrícola. Mas a América Latina continuou padecendo de uma limitação decisiva de comunicação interna, que limitou a expansão dos mercados nacionais e restringiu o comércio entre os países latino-americanos. As marinhas latino-americanas continuaram notavelmente precárias e a maior parte de seus portos desprovida de comunicações adequadas com o interior. Na Argentina, no Uruguai, no Brasil, a influência estrangeira levou a sistemas de transportes desenhados para facilitar as

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exportações e não para integrar os países. Tais sistemas de transportes chegaram, em grande parte, até a atualidade. Os sistemas ferroviário e rodoviário da Argentina e do Uruguai ficaram, notoriamente, marcados pela função exportadora. O sistema de transportes do Mexico ficou marcado por suas ligações com a fronteira norte, inclusive pelo uso sistemático de portos norte-americanos. A percepção dessas limitações suscitou divergências de interesses e de idéias em diversos países, que se traduziram em movimentos intelectuais e em propostas políticas, reveladoras de um ponto de vista historicamente diferenciado, de uma produção intelectual voltada para processar esse confronto.O romantismo teve um papel essencial nessa revelação de identidade, com suas diversas contribuições à constituição dos modelos políticos nacionais. Alguns nomes tornaram-se representativos dessa atividade, destacando-se Andrés Bello, Santos Chocano, Rubén Dario, José Martí dentre outros. Sob diferentes pontos de vista, esses autores mostraram que os interesses envolvidos na modernização representavam apenas uma parte do processo social no continente, entrento, que a modernização implica, aqui, em incorporação da pluralidade. No entanto, alguns países foram claramente beneficiados pelas novas relações de subordinação. A Argentina, o Uruguai e o Chile derivaram substanciais incrementos de renda da ampliação das relações de comércio com os países mais ricos. O Brasil teve o auge do café, com incrementos significativos também em suas vendas de cacau e fumo. Surgiram impulsos de industrialização em diversos pontos do continente, quase sempre em torno da produção de bens de consumo, ligados a uma variedade de causas, que em cada caso foram vistas como peculiares de um dado sistema. Mas, em cada país a localização das indústrias apoiou-se em vantagens regionais; e ainda não se tinham definido as hegemonías internas, que adiante marcaram os países. A industrialização desse período dirigiu-se de modo predominante para as indústrias de bens de consumo, destacando-se a indústria téxtil e alguns setores da produção de alimentos. Mas também conteve grandes investimentos em indústrias de bens de capital ligadas à expansão dos sistemas de infra-estrutura e à construção civil. Em diversos lugares, em vários países, desenvolveram-se atividades classificáveis como de manufatura de bens de capital, que se tornaram responsáveis de números significativos de emprego, mas que continuaram subordinadas às transformações técnicas e de escala da produção de bens de consumo. As principais exceções desse quadro foram a produção de equipamento de transportes e de equipamento de apoio à mineração. Mas, mesmo nesses casos, foi uma produção de apoio, sem capacidade de expandir seu próprio mercado. A produção bélica

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também se enquadra nessa situação, sendo que os países latino-americanos não desenvolveram tecnologia própria, exceto em armamento tecnologicamente simples, sem maiores efeitos de multiplicador na indústria em geral. 12.3. Da Primeira Guerra Mundial à crise de 1930 A Primeira Guerra Mundial alterou, definitivamente, o panorama econômico do poder político, entre outras razões, porque destruiu o equilíbrio entre impérios, e porque tornou a Europa pouco atrativa para os próprios capitais europeus. A desorganização econômica da Alemanha, a quebra do poder da Austria, com a consequente crise econômica da Hungria, a crise política e econômica da Itália, deixaram a expansão da União Soviética diante da França e da Inglaterra enfraquecidas, com problemas de pagamentos decorrentes dos custos da guerra. Por contraste, os Estados Unidos emergiram da guerra como principal opção para os capitais privados europeus em investimentos ensejados pela expansão de seu sistema de produção. Os custos da guerra foram, incomparavelmente, maiores que os de todas as guerras anterioresl; e estendiam-se, de qualquer modo, sobre um futuro prolongado. Cerca de 1920, a Europa central precisava de uma recomposição de seu sistema de produção, prejudicado pela desorganização do suprimento de insumos e de financiamento. O que pareceu, superficialmente, ser uma política revanchista de compensação de guerra da França, revelava o verdadeiro perfil do confronto pelo mercado europeu, que estivera na origem da guerra: Estava claro que as maiores vantagens de mercado ficariam do lado dos que pudessem controlar um mercado unificado da Europa central. Nesse quadro, os países latino-americanos exportadores de monoculturas agrícolas passaram a participar de um mercado internacional em que seus compradores tradicionais tinham seu poder de compra reduzido, e, para defender seu próprio capital, procuravam outras opções de investimentos industriais. A integração industrial alcançada pela economia norte-americana, bem como seus créditos por sua participação na guerra, fizeram dela a grande recipiente de capital, dinamizaram sua bolsa de valores. Além disso, com sua produção de grãos e carne, com sua produção mineral - carvão, ferro, cobre - a economía norte-americana tornava-se a maior concorrente dos países latino-americanos.

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Nessa nova situação , os latino-americanos defrontaram-se com modificações substanciais da composição da demanda externa, em que apenas encontravam respostas favoráveis os produtos que não concorriam com os Estados Unidos. Isso favoreceu os produtores de café, cacau, fibras, açúcar; e desfavoreceu os produtores de trigo, milho, carne. Os efeitos negativos concentravam-se, portanto, para os países latino-americanos de clima temperado. Durante a década de 1920, houve perspectivas favoráveis para os produtores tropicais, que alentaram a expansão de sua área cultivada, resultando em incrementos das quantidades produzidas, aumento e concentração de renda, novas oportunidades de industrialização baseadas nessa renda concentrada. Com a integração mundial realizada por um sistema de transportes com tempos previsíveis de transferência das mercadorías, organizava-se o mercado financeiro com previsões unificadas de rentabilidade em torno de um elenco cada vez maior de mercadorías, onde entretanto os países latino-americanos participavam com um elenco cada vez menor. A maior sensibilidade ao comércio internacional, assinalada pela CEPAL, na verdade era uma característica desse período das relações internacionais do capitalismo; e poderia ser tomada como lei geral apenas enquanto descrevia um determinado momento das transformações do capital (1). Essa concentração das relações financeiras dos países latino-americanos tornou-os mais sensíveis aos movimentos cíclicos transmitidos pelo sistema bancário dos países centrais. A sustentação da atividade exportadora passara às mãos de casas exportadoras européias e norte-americanas, que operavam com financiamento operacional desses mesmos países. Nesse período, grande parte das exportações dos países latino-americanos - cobre, banana, óleos vegetais, café - era realizada por empresas dos países centrais ou controlada por financiamento delas. 12.4. Da crise de 1930 à Segunda Guerra Mundial A crise econômica de 1930 foi fundamental na América Latina, por seus efeitos imediatos no fluxo de renda que sustentava os movimentos de modernização econômica; e por seus efeitos na formação de capital, que levaram à crise do sistema de poder político. Bruscamente, os problemas econômicos traduziram-se em interrupção dos

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modelos políticos nacionais; e a maior parte dos países da região, principalmente aqueles mais modernizados, sofreram uma quebra dos canais de comércio, além das perdas imediatas em suas receitas de exportações. Coincidiram movimentos políticos que criaram as condições para modificações decisivas das políticas econômicas, ou que passaram por ciclos de movimentos reformistas e conservadores. O confronto essencial, entre interesses industriais, identificados com o público urbano, e interesses rurais, identificados com o grande comércio, repetiu-se, sob diversas formas, em todo o continente. No entanto, é necessário observar que as propostas de industrialização gestaram-se em alguns países desde a eclosão da crise de 1930, que aqui atingiu os sistemas sociais e políticos em seu conjunto. Da década de 1930 datam a criação da " Corporación de Fomento" do Chile e a "Nacional Financiera" do Mexico, bem como o programa reformista do governo Irigoyen na Argentina. O uso de instituições financeiras de fomento tornou-se, desde então, um traço característico da gestão econômica dos países latino-americanos, constituindo-se, depois da segunda guerra mundial, numa peça fundamental daquelas políticas declaradas como de desenvolvimento econômico e social. Essas instituições somaram-se a políticas de obras públicas e de produção de energia, tornando-se instrumentais para a constituição de uma nova classe - os empreiteiros - baseados em atividades dos setores de serviços; e para o subsídio do capital industrial, seja revitalizando indústrias já existentes, seja promovendo a implantação de novas fábricas. As instituições de fomento econômico desenvolveram-se depois da Segunda Guerra Mundial, quando funcionaram como canais de recursos externos. Além disso, tanto no Brasil, como no Chile, no Mexico, na Argentina, no Equador, foram parte de um movimento mais amplo, de expansão do sistema de financiamento. Este, finalmente, vem a ser a peça fundamental dessa reconstrução dos sistemas de produção e político de cada país. A criação de bancos centrais e o fortalecimento de alguns bancos especializados em financiamento a médio prazo, para a agricultura, para a indústria, para habitação, foi o cerne do movimento dos governos para tornar o Estado capaz de superar a reconhecida fragilidade dos sistemas de produção para superarem suas travas históricas. Tratou-se, portanto, de um movimento que renovou a estrutura de classes junto com a ampliação da capacidade de produção. A classe média, quer dizer, os grupos de rendas médias urbanos estabilizados, fez sua entrada no cenário político, junto com a urbanização. E seus intereses foram, logo, contrapostos por formações políticas representantes, diretas ou indiretas, dos interesses rurais. O movimento pendular da

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política foi rápido, refletindo a profundidade do golpe assestado à estabilidade do poder rural. O período a partir de 1930 foi de recomposição da base econômica do poder político na maior parte dos países latino-americanos. Os prejuízos da queda de receita externa foram mais profundos nos países que já estavam em processo de industrialização, bloqueando esse processo, como em tempo apontou Prebisch (2), mediante a criação de uma brecha de comércio, como também mostraram outros estudos (3). Mas essas perdas igualmente atingiram a viabilidade dos governos oligárquicos, cuja sustentação econômica estava associada à monoprodução e à sobrevivência de latifúndios muito pouco rentáveis, ou mesmo pouco produtivos. Algumas observações são aqui necessárias sobre o capitalismo no campo latino-americano. O latifúndio tradicional nos Andes e na Mesoamérica funcionou em termos de quase auto-suficiência, com uma força de trabalho hábil em um conjunto de funções, mas não adaptável à industrialização da produção agrícola e da pecuária. As necessidades políticas decorrentes dos ajustes finais de forças da Revolução Mexicana levaram a um sistema agrário, em que o latifúndio era oficialmente banido, e se recompunha apenas de modo dissimulado, organizando-se mediante grandes números de propriedades não muito extensas. Desaparecía o papel aglutinador de poder do latifúndio recomposto por Juarez e Porfírio Diaz no século XIX; e surgia um caso muito especial, de uma combinação de uma moderna agricultura capitalista fomentada pelo Estado, ao lado de uma produção tradicional de pequenas propriedades e de agricultura comunal. A produção dos "ejidos" foi apoiada pelo governo, mas sempre minoritária em relação com a produção reorganizada em bases comerciais. O Mexico foi, em todo caso, a maior experiência latino-americana de reestruturação da agricultura nesse período, onde se combinou reforma agrária, principalmente para resolver litígios de terras, com a implantação de uma grande agricultura irrigada (4), ao lado de tentativas de viabilizar uma pequena produção marginal de subsistência. No final do período, o país totalizava algo em torno de 2,5 milhões de hectares irrigados, grande parte dos quais produzindo com rendimentos físicos elevados. Mas enfrentou crescentes dificuldades de rentabilidade, inclusive na produção irrigada, que resultaram num complexo problema de subsídios. No Peru, também, houve uma recomposição das bases econômicas da grande propriedade, principalmente naquelas áreas da Costa onde se desenvolveu a cana de açúcar. Aprofundou-se o contraste entre essa produção primária comercial e a estrutura agrária da Serra, onde continuaram coexistindo o velho latifúndio de baixos

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rendimentos e a pequena produção, controlada pela comercialização local. A análise precursora de Mariátegui (5) mostrou, sobre essa experiência, um traço marcante da realidade rural latino-americana, que é a permanência das elites oligárquicas sobre associações de interesse com o capital financeiro em expansão nas capitais. Os problemas de exclusão social, agravados pela discriminação étnica contra os índios, levaram a uma dicotomização do sistema de produção, à imobilização dos usos dos recursos incorporados no Altiplano; e deixaram como única opção para o capital em expansão os investimentos fora do eixo Costa-Serra, em outras linhas de tecnologia. Nos países centro-americanos, houve uma notável concentração de poder e de controle da terra, que acompanhou o aumento da produção de mercadorias exportáveis. Fortaleceu-se uma classe de latifundiários associada a casas exportadoras, que mantiveram um completo controle sobre as forças armadas. Ditaduras diversas, como a de Barrios na Guatemala, mobilizaram os latifundiários para essa função. As sucessivas intervenções norte-americanas, desde a da criação do Panamá, passando pela da Nicaragua contra Sandino, contribuíram para consolidar essa classe, que uniu o latifúndio com o controle político e mercantíl. A concentração. A concentração da produção foi a mais elevada do continente. Por exemplo, cerca de 80% do valor da produção em Honduras em 1950 era de café. 12.5. O panorama após a segunda guerra mundial Ao concluir a Segunda Guerra Mundial, os países industrializados, com a exceção dos Estados Unidos, estavam endividados e incapacitados de pagar a curto e médio prazo as suas dívidas acumuladas durante a guerra. A recuperação da crise econômica de 1930 foi gradual e desigual, e avançara mais rápido nos países autoritários que nos governos liberais; e o esforço de guerra, foi, de fato, o fator decisivo dessa reversão de tendência. Mas o processo da guerra traduziu-se em grande destruição nos países beligerantes; e em contrapartida tornou o esforço de guerra extremamente positivo para os que não sofreram os efeitos diretos da pugna. Assim, os Estados Unidos foram o principal beneficiário do conflito. Os países latino-americanos acumularam créditos, da venda de suas matérias primas tradicionais, e de outras, que tiveram uma demanda temporária significativa (6); mas ficaram sem condições de cobrar esses créditos e de restaurar a rentabilidade de seu comércio.

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Os países europeus vencedores precisavam reorganizar suas finanças; e os perdedores precisavam de ajuda em espécie, para ganhar o tempo necessário a um novo esforço de guerra, o da reconstrução. As transações internacionais recompunham-se sob a pauta dos interesses norte-americanos, inclusive no controvertido caso do Japão, em que os objetivos a curto e médio prazo dos Estados Unidos ficaram em confronto com seus objetivos estratégicos a longo prazo (7). Havía, portanto, um desajuste entre os requisitos para participação na nova expansão do mercado mundial e as características dos sistemas de produção formados antes de 1930. Acima de tudo, as economías latino-americanas não estavam aptas para diversificarem-se. As perdas no comércio internacional simplesmente indicavam uma rigidez das estruturas tecnológicas, consequente da falta de um setor científico e tecnológico de apoio, bem como de uma qualificação adequada dos trabalhadores. Esse último ponto mostrou os efeitos retardados da perpetuação do sistema de poder; e as consequências da predominância dos interesses das oligarquías nos sistemas nacionais de poder. Emergiram contradições sociais, que se estenderam, primeiro nas grandes cidades industriais; segundo, no campo, nas áreas mais densamente trabalhadas; e por último, nas camadas intelectuais e políticas. A partir de 1950 o continente foi, outra vez, sacudido por uma série de abalos políticos, que compreendem o peronismo, o movimento de Arbenz na Guatemala, o segundo período de Vargas. 12.6 A internacionalização e a expansão das fronteiras internas. Os resultados da Segunda Guerra Mundial foram muito desiguais na América Latina, por três principais razões: as transformações dos sistemas produtivos ficaram limitadas pela capacidade dos países para explorar e ampliar seu mercado interno; a capacidade de ampliar o mercado interno ficou limitada pela entrada líquida de capital, e esta pelas receitas líquidas do exterior; as receitas líquidas do exterior ficaram restritas pela dificuldade de ampliar exportações, ao tempo em que a modernização dos sistemas de produção e a urbanização determinaram substanciais aumentos das importações. A maior parte dos países, principalmente os que se diversificaram, conviveram com problemas trazidos do período entre guerras, aos quais se somaram novas dificuldades, decorrentes das diferenças estruturais entre o Império Britânico, anterior

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comprador principal, e os Estados Unidos, novo comprador principal. Os primeiros documentos da CEPAL mostraram a primeira parte desses problemas; e as outras dificuldades de relacionamento comercial foram tratadas em documentos posteriores, sobre a brecha de comércio. A grande referência da industrialização na América Latina nas décadas de 1940 e 1950 foi, entretanto, uma expansão induzida de indústrias que substituíram importações. A produção de bens de consumo aumentou nos países de porte médio e grandes. Mas o essencial desse movimento para cada economía nacional em seu conjunto foi a ampliação da capacidade instalada de produção de energia e a produção siderúrgica. Surgiram usinas siderúrgicas no Chile, na Colombia, no Mexico, no Brasil. O aumento da oferta de energía elétrica foi, particularmente rápido no Brasil, no Mexico e na Venezuela. Sobre essas bases, desenvolveram-se programas de financiamento preferencial da indústria já existente e ampliou-se o parque de bens de capital no Brasil, no Mexico, na Colombia, no Chile, na Argentina. Essa expansão da capacidade implicou em crescente pressão dos industriais e de seus sócios do setor terciário, para expansão dos mercados internos, que se obteve mediante aceleração do financiamento. Isto, junto com os efeitos acumulativos de obras públicas de longa maturação - como estradas, barragens hidro-elétricas e sistemas de distribuição de energia - resultou em pressão sobre os sistemas de financiamento, pouco irrigados pelo setor externo. A urbanização operou no mesmo sentido, levando os governos a maiores dispêndios no campo social. Em consequência, a década de 1950 marcou a coincidência de movimentos inflacionários em diversos países, mais intensos no Chile, no Brasil. Nesse quadro, mudou rapidamente o papel das empresas estrangeiras, geralmente concentradas no segmento exportador de cada economía nacional; e operando em conexão com financiamento internacional. Houve uma notável internalização do capital dessas empresas, concomitante com a internacionalização do controle financeiro da produção. É importante observar que a internacionalização da produção fabril é aqui, parte de estratégias de algumas empresas multinacionais, e em caso algum se estende, como lógica, ao conjunto do setor industrial. Em síntese, a observação principal parece ser que os movimentos de internalização de capital externo, de internacionalização do capital em geral, coincidem com uma modificaão radical no modo como se faz a condução financeira da produção e do consumo.

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Notas 1. Na segunda metade do século XIX houve várias políticas voltadas para construir uma nova base exportadora e para uma modernização internacionalista. Os principais casos foram o Brasil, o Mexico e o Chile. No Brasil houve uma política do Segundo Império que combinou a imigração, o fomento tecnológico e uma proposta de integração espacial da economia. No Mexico, esse movimento foi iniciado por Maximiliano e prosseguiu com a Reforma, na versão de aproximação com os Estados Unidos. No Chile houve uma política de imigração dirigida para a Europa, com critérios de embranquecimento similares aos brasileiros. 2. Em intervenções verbais e em textos dos seus últimos anos, Raul Prebisch deixou claro que percebía a diferença entre o simples mecanismo de troca desigual; e o modo como ele se materializava, dependendo do nível e da intensidade do impulso de industrialização. 3. A sequência de trabalhos realizados pela CEPAL e pelo ILPES nas décadas de 1960 e 1970 mostrou que se reproduzía uma brecha de comércio, que somente em parte podia ser explicada pelas diferenças de desenvolvimento tecnológico. 4. Desde o governo Lázaro Cárdenas, na década de 1930, o Mexico iniciou um programa sistemático de criação de uma agricultura irrigada, que com altos e baixos, tornou-se a maior da América Latina; e foi capaz de deter o problema básico da fome no país que em termos relativos é o que tem menor quantidade de terras cultiváveis. 5. José Carlos Mariátegui foi o primeiro a analisar a estruturação social da produção rural nos Andes. Sua contribuição tornou-se essencial para que, adiante, se pudesse analisar a inter-relação entre estabilidade e mudança na agricultura latino-americana. 6. O ambiente de após Segunda Guerra Mundial foi uma situação extraordinária na América Latina, que abriu oportunidades de industrialização e também mostrou as maiores perdas de divisas da história do continente. 7. Há aspectos a explicar, do capítulo da ocupação norte-americana, que pode ter sido utilizada para criar um poder no Oriente capaz de enfrentar a China, mas que levou à consolidação de seu principal oponente econômico.

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13. Os Modos Colaterais de Produção 13.1. O panorama da produção subordinada Na organização mundial da produção no contexto posterior à segunda revolução industrial, há modificações essenciais, na articulação entre a produção capitalista propriamente dita e um amplo e complexo universo de formas subordinadas de produção, às quais, justamente, se transferem os custos da reprodução do trabalho, e onde sobrevivem todos aqueles que não correspondem aos padrões de eficiência com que se move a concorrência. Desde as sub-contratações da primeira revolução industrial, que foram usadas como meio de obter vantagens pelas fábricas, até as de hoje, que são usadas para reajustar o mercado de trabalho, há todo um elenco de formas de trabalho subordinadas, que são usadas, em diversas combinações, no ajuste entre a magnitude e a complexidade da produção capitalista diretamente integrada ao mercado, e a magnitude e a composição da força de trabalho disponível em cada sociedade. Essas combinações compreendem a participação de formas de produção subordinadas, urbanas, onde os excluídos da acumulação se reproduzem; e formas de sobrevivência, também dependentes, mas separadas dos problemas de reprodução do trabalho integrado na produção capitalista organizada. Hoje contrastam, com mais nitidez, o conjunto das atividades subordinadas urbanas, geralmente designadas como informais, e as diversas atividades, periféricas das cidades ou claramente rurais, onde sobrevivem numerosos contingentes de população, que permanece basicamente fora daquelas alterações de consumo identificadas com os movimentos da acumulação. As sub-contratações realizadas pela produção industrializada - na própria indústria, na mineração, na agricultura - tratam com um campo restrito do trabalho disponível, que é aquele que se reproduz, fisicamente, na periferia dessa produção mais capitalizada, seja como trabalho autônomo ou como micro-empresas dependentes das organizadas. O crescimento das cidades, principalmente o das grandes cidades, basicamente desde a década de 1950, acentuou as diferenças entre esse trabalho periférico subordinado e as demais formas de trabalho, mais distanciadas do movimento da acumulação. A diversidade dessas formas subordinadas, e a variedade das substituições entre elas, indicam que seria improcedente tentar apresenta-las como um conjunto. No entanto, o exame das principais delas apresenta-se agora como um passo prévio necessário, para que se entendam os movimentos que caracterizam o relacionamento entre o capital e o trabalho no ambiente da economia mundial posterior à segunda revolução industrial.

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13.2. A produção primitiva O quadro da sociedade e da economía latino-americanas contém, desde suas origens nas formações sociais pré-colombianas, um componente de produção realizada com um mínimo de capital, que não se renova e quase não muda de forma, que se realiza com trabalho pouco qualificado e recursos naturais; e onde o consumo se realiza localmente, com predominância dos produtos locais. É a produção primitiva. Está, principalmente, constituída da produção extrativa vegetal e animal, mas não se restringe a suas coordenadas. Compreende usos intensos de trabalho com formas rústicas de capital, que se repetem, interminavelmente, sem mudança significativa dos instrumentos de trabalho nem do modo de usa-los. Grande parte da população latino-americana sobrevive nesse universo primitivo de produção e consumo, com variados modos de articulação com a produção capitalista. A análise da realidade econômica e social da América reúne uma grande quantidade de pesquisas, em antropologia, história, sociologia, e mesmo em economia, que mostram muitos aspectos dessa produção primitiva, inclusive situando-a no quadro da economia rural. Mas falta ainda uma visão de conjunto da produção primitiva em suas diversas formas, que integre essa multiplicidade de manifestações locais com uma visão de conjunto do papel da produção primitiva na sustentação da alimentação dos grupos de baixa renda.. Um ponto de partida significativo dessa questão, é que sempre houve produção primitiva, que em muitas situações, no passado e no presente, ela se realizou completamente isolada da produção mercantil, e numa variedade de situações . A produção primitiva compreende a das inúmeras tribos que se relacionam desde situações de auto-suficiência, à vida de grupos sociais distanciados do mercado organizado. Em regiões econômicas que foram formadas já sob inspiração da organização moderna da produção, inclusive em áreas industriais, surgem novas ocorrências de produção primitiva, como resultado da estratégia de sobrevivência dos grupos marginalizados. A produção primitiva compreende, também, a reprodução de grupos integrantes de sociedades essencialmente modernas, mas que se por diversas razões, se reproduzem em condições de grande simplicidade, que pouco dependem do mercado para se reproduzirem. Isso inclui grande parte dos pequenos produtores rurais, principalmente nas regiões tropicais, onde costumam ser maiores as possibilidades de sobrevivência no meio natural. A produção primitiva compreende um elenco de formas de sobrevivência no meio urbano de cidades de diversos tamanhos, especialmente das cidades das sociedades mais desiguais. São inúmeros os exemplos de famílias que sobrevivem em grandes cidades latino-americanas de coleta vegetal e animal, participando somente de modo complementar ou incidental do mercado de trabalho.

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Tradicionalmente, a produção primitiva retém uma parte da pressão demográfica potencial sobre o mercado de trabalho. Uma observação simples pode ser esclarecedora de seu papel. Enquanto um índio sobrevive na serra ou na floresta, não importa para o sistema de produção, nem para o poder organizado. Mas quando se muda para a agricultura comercial, ou para a cidade, passa a constar, pelo menos como marginalizado, capaz de exercer pressão social e política nos mecanismos de decisão econômica. Assim, há duas grandes possibilidades na determinação dos contingentes da produção primitiva: ou são grupos que jamais participaram da produção capitalista, ou que foram expulsos dela. A primeira situação reúne os grupos que permaneceram economicamente primitivos. A segunda, abrange os que foram objeto dos movimentos exclusores do capitalismo, que numa ampla variedade de situações, se traduz em reversão a formas primitivas de sobrevivência. O número de pessoas que sobrevive na produção primitiva varia, segundo diversos fatores que incidem sobre aquela reprodução natural e sobre a exclusão do sistema produtivo. Assim, o número de pessoas que sobrevivem na produção primitiva varia, por razões dela própria e por determinações do sistema de produção. O crescimento vegetativo dessa população, a conseqüente diminuição da disponibilidade de recursos do meio físico para sustenta-la, junto com o atrativo de possibilidades de ocupação na economia de mercado, traduzem-se numa pressão de pretendentes a trabalhador, oriundos da produção primitiva, que se faz sentir na oferta de trabalho não qualificado no meio rural e em pressão sobre as cidades. A rigor, sempre houve produção primitiva, em alguma medida, em todas partes do mundo. Com a expansão da produção capitalista, e com a integração do mercado, ela se retraiu sensivelmente, levando a crer, inclusive, que seria eliminada. No entanto, continuou havendo produção primitiva em muitos países; e sem dúvida, ela continua sendo muito importante para a maioria dos países desigualmente industrializados, e para os claramente subdesenvolvidos. Seu significado se desprende de que em sua constituição, o sistema capitalista de produção somente utilizou uma parte dos recursos humanos disponíveis. A suposição de que o sistema de produção está constituído da totalidade dos recursos humanos e de capital disponíveis a cada sociedade, certamente, não descreve essa realidade. Na realidade, a história econômica é a história da expansão do capital articulando aquelas quantidades de trabalho e de recursos naturais que necessita para produzir: jamais foi a história dos recursos humanos e naturais que não foram articulados pela produção capitalista. A industrialização expandiu a incorporação de recursos naturais e de trabalho; e acelerou a intensidade da absorção e da rejeição de trabalhadores. Mas criou contradições, internas e externas, de interesses, que levaram muitos grupos a procurarem sua sobrevivência fora da produção diretamente organizada em moldes capitalistas. Isso acontece porque são grupos que conseguem manter-se sem chocar diretamente com os interesses do sistema capitalista; ou porque têm algumas vantagens especiais de acesso a recursos naturais e em condições favoráveis. É o que acontece com numerosa população dos países de clima tropical na América Latina, mais freqüentemente nas florestas e nas costas. Essa estratégia de sobrevivência contrasta com a uniformidade do movimento de formação de capital. O processo de busca de mais valía relativa assinala o mecanismo interno de captação e de rejeição de trabalhadores por parte de cada capitalista; e em cada sistema de produção em seu conjunto,

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traduz-se num mecanismo de contratação seletiva, que entretanto permite que se reproduzam mecanismos de solidariedade, de tipo não capitalista, como entre membros de uma mesma comunidade. Em cada sistema de produção em seu conjunto, esse movimento ganha outras características, naquilo em que inclui um espectro de rejeição de grupos sociais e de pessoas, no qual constam diferenças de qualificação de trabalhadores, seu conhecimento do mercado de trabalho e sua experiência profissional. Assim, como as técnicas progridem diferenciadamente, a seleção de trabalhadores é dinâmica ao longo de toda a escala de qualificações; e tem o resultado final de estabelecer números máximos de entrada de trabalho não qualificado na base da escala. Subentende-se, portanto, que há um crescente distanciamento entre a admissão de novos trabalhadores e o crescimento da população dos não incluídos. Do mesmo modo, entende-se que há um equivalente distanciamento entre o nível tecnológico em que se reproduz a produção primitiva e o dinamismo do emprego assalariado. Na prática, o sistema de produção tende a absorver um proporção decrescente daqueles que chegam à idade de trabalhar na produção rural primitiva. As conseqüências atuais disso são evidentes: as oportunidades de trabalho para os analfabetos diminuem proporcionalmente, assim como ficam restritas a um número menor de atividades. As observações sobre esse fenômeno na América Latina são inequívocas. Os sistemas coloniais formaram-se sobre a exploração de um número limitado de mercadorías, com amplos setores das sociedades locais reproduzindo-se em formas tradicionais que comportavam amplos segmentos de produção primitiva. As transformações do capital mercantíl e o aparecimento da indústria, significaram a inclusão de segmentos limitados de produção, bem como o aparecimento de atividades exportadoras de produtos primários, muitas vezes dependentes da produção extrativa vegetal e animal. Mesmo nos países menores e mais organizados, como o Uruguai e a Costa Rica, a produção capitalista não esgotou jamais o potencial de trabalho não qualificado. Nos países andinos, o contraste é mais chocante, entre a reprodução e a ampliação do componente diretamente articulado com o mercado e dos diversos segmentos indiretamente subordinados a ele, ou inclusive de população reproduzindo-se em virtual isolamento. Esse quadro repete-se em muitas regiões do Brasil, do Peru, do Equador, da Colombia, da Venezuela. Na maior parte dos países latino-americanos, a produção primitiva prosseguiu, desempenhando a função primordial de sustentar toda aquela população que jamais ingressou na produção capitalista; e indiretamente desempenhando a função de regular preços de alimentos e níveis de salário que a favoreceram. A tese levantada por W.A. Lewis sobre a oferta ilimitada de trabalho jamais poderia ter sido concebida, não fosse a grande diferença de escala entre a totalidade dos recursos físicos e humanos articulados no período colonial e a magnitude dos recursos mobilizados na formação da produção industrial. Mas a produção primitiva fez-se, sempre, em terras próximas das ocupadas pelos latifúndios, isto é, foi realizada por pequenos produtores, índios em comunidades ou em grupos isolados, por trabalhadores rurais sem garantía de terra, portanto, sujeitos a pressões derivadas da formação das oligarquías nacionais e regionais. Isto significou que os sucessivos movimentos de reorganização da produção rural deslocaram contingentes significativos de população rural, diretamente do campo e dos povoados, para aquelas poucas cidades onde a localização da produção continha a alternativa de

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assalariamento. Assim, a produção primitiva manteve-se em terras marginais da produção rural, com baixa produtividade do trabalho, mas em todo caso aportando quantidades significativas de alimentos, contribuindo indiretamente para viabilizar a produção industrial, ao contribuir para preservar a renda familiar. O deslocamento de pessoas para fora do âmbito da produção rural significou, necessariamente, seu translado para o âmbito urbano, onde somente uma parte dessas pessoas foi incorporada à produção assalariada. Identifica-se aí uma causa da produção informal. Ao passar de suas comunidades isoladas nas montanhas, os índios mexicanos, colombianos, equatorianos, peruanos, tornam-se moradores nas cidades, onde, entretanto, não têm a oportunidade de penetrar no dinamismo do consumo, nem de ingressar no sistema de produção. A sociedade nacionalmente integrada passa a registrar sua existência, porque eles passam a utilizar recursos reconhecidos como escassos, que são os espaços urbanos; e passam a influir na formação dos sistemas de salários, através da pressão que exercem sobre os salários pagos ao trabalho manual não qualificado. O subseqüente processo de ocupação e urbanização de terra e de pressão sobre o mercado de trabalho gera, simultaneamente, uma pressão sobre o preço da terra e sobre os proventos de trabalho esporádico, traduzindo-se numa restrição da renda familiar dos trabalhadores. Esse circuito de relações pode ser visualizado sinteticamente como no diagrama a seguir, em que a renda familiar aparece como categoría síntese de mecanismos interdependentes de trabalho-formas de ocupação-uso da terra urbana. diagrama renda familiar <-----------------preço da terra urbana ^─ ^ │ │ formas│de ocupação ---------------->formas│de povoamento │ │ │ │ trabalho urbano ----------------> espaço urbano A produção primitiva foi um componente essencial da formação dos países latino-americanos até a industrialização da produção, depois da década de 1930. Mas, passada a euforia relativa ao futuro do desenvolvimento que caracterizou o período de após-guerra, até metade dos anos 60, reveladas as dificuldades e as perspectivas de recorrência do atraso, percebe-se que a produção primitiva tem um percurso próprio na história econômica desses países. Esse percurso está ligado à tendência do capital industrial, de substituir trabalho por capital. Não há como supor que o capital industrial absorva os grandes números de pessoas que sobrevivem no campo da extração vegetal e animal e de uma

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agricultura que pouco se diferencia delas. A reprodução desses grupos depende, principalmente, de seu acesso aos recursos naturais. Sua sobrevivência depende de que os interesses do capital se abstenham de ocupar as áreas mais pobres, pior comunicadas, ou em todo caso, as áreas menos atrativas. 13.3. A produção camponesa Há um amplo debate sobre que seja a produção camponesa e sobre seus desenvolvimentos longo da formação da produção capitalista, e especialmente na América Latina, que revela as dificuldades para comparar processos de longa e média duração e processos seculares, que portanto levanta questão sobre como comparar transformações econômicas e sociais no meio rural no período recente de expansão da produção capitalista com modos de organização estabelecidos em outros contextos civilizatórios e de tecnologia. Os aspectos mais recentes desse debate referem-se à identidade de uma produção camponesa e a sua possibilidade de sobreviver junto com a expansão da produção rural comercial. Aparentemente, grande parte dessa discussão decorre de que se pretenda explicar a produção camponesa com critérios unicamente econômicos, descartando ou considerando subordinados os aspectos culturais e tradicionais da formação camponesa. No entanto, não há muito como duvidar que a produção camponesa é fortemente associativa, que se faz sobre uma transmissão de conhecimento oral, e que depende de continuidade da posse da terra. Também há pouco espaço para dúvida de que a condição de camponês, por extensão a produção camponesa, depende de permanência num mesmo lugar, portanto, de formação de uma cultura de adaptação ao meio físico, transmitida por meio de tradição. A identidade de camponeses, sua predominância nos lugares específicos em que se instalam, depende da continuidade de seu trabalho e das formas de organização local em que se inserem. Assim, há uma perspectiva de mudança como conseqüência da experiência de cada comunidade camponesa, mesmo que suas próprias regras de mudança sejam pouco perceptíveis para quem as olha desde a lógica da produção comercial. Mas, quando essa mesma questão é examinada na perspectiva do funcionamento da economia rural em seu conjunto, a questão camponesa passa a ter que ser considerada frente aos problemas de permanência ou de transitoriedade das formas de produção, reconhecendo que uma ou outra alternativas depende de como a produção camponeses se insere numa organização da produção comandada pela produção em escala comercial integrada em mercado. Sua permanência e suas transformações passam a colocar-se como resultado conjunto dos impactos que ela sofre, da expansão da produção comercial e de suas próprias reações diante das transformações do mercado de trabalho e do de produtos. No espectro de interpretações sobre a questão camponesa, levadas em conta as diversas influências no pensamento sobre o tema, desde a visão cultural-antropológica à marxista-economista e à

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positivista economista (1), distinguem-se explicações que refletem as experiências de países com diferentes formações e trajetórias. Duas situações extremas nesse espectro, são aquelas representativas do tipo de produção comercial de grãos em zonas de clima temperado. Outra, é a produção realizada por grupos com grande permanência em seus locais de trabalho, geralmente em pequena escala e em clima predominantemente semi-árido. Simplificando, mas representando alguns traços básicos da realidade latino-americana, pode-se chamar a primeira de "argentina" e a segunda de "mexicana". Uma visão "argentina" da questão admite como camponês todo produtor rural que depende principalmente do trabalho familiar e opera individualmente no mercado, mesmo quando comprando e vendendo em mercados organizados, independentemente de efeitos de permanência no estabelecimento. Pode-se falar de uma visão "mexicana", representativa de experiências seculares, onde a densidade histórica é fundamental; e de uma visão argentina, em que predominam os dados imediatos de relações de mercado. Uma visão "mexicana" entende como camponês um produtor permanente, com raízes comunais, que depende de trabalho familiar e que tem perfís de desempenho como produtor e como consumidor que decorrem de sua compenetração com o meio físico e social. Grosso modo, os trabalhos de Sorj e de Warman são representativos dessas posições (2). Uma posição "brasileira" pode ser intermediária das outras duas. Compreende diferenças internas maiores que as das outras sociedades; e precisa conciliar, ou pelo menos tornar comparáveis, situações submetidas a diferentes percursos de mudança (3). A posição "mexicana" é mais reveladora que a "argentina" ou que a "brasileira", porque indica peculiaridades na capacidade de mudar e de reter identidade, bem como permite introduzir plenamente na discussão os planos de conflito subjacentes na pluralidade de formas rurais de organização. A experiência brasileira é muito representativa desses problemas, já que no Brasil há várias regiões de grande extensão, que estão sujeitas a formas de exploração semi-nômade e onde os pequenos produtores rurais são pessoas com pequena permanência num lugar, com pouco conhecimento tradicional. Não há como negar, que a produção camponesa na América Latina é uma produção de excluídos, se bem que nem de longe todos os excluídos sejam camponeses. Mas a própria continuidade da condição de camponês implica num relacionamento prolongado com a natureza e num conhecimento prático acumulado por gerações. Daí, a grande diferença entre os grupos sociais camponeses, geralmente ligados a particularidades étnicas e culturais; e os demais pequenos produtores rurais, que simplesmente são excluídos, trabalham num sistema economicamente inviável, mas não são detentores de nenhum conhecimento especial. Mas os camponeses constituem um segmento dessas sociedades que reproduzem suas desigualdades ancestrais, que justamente funciona e se reproduz acompanhando, em muito, os tempos da agricultura. O camponês se caracteriza por uma grande compenetração com o ambiente, constituindo trabalho qualificado em seu meio físico, diferente da generalidade dos trabalhadores agrícolas assalariados e dos transitórios, que não incorporam esse conhecimento. A reprodução da produção camponesa depende, por isso, de sua possibilidade de manter-se nesses tempos, indicados pela alternância de usos do solo e de colheitas. A interrupção desses tempos, a substituição desses tempos pelos tempos do comércio e da industrialização do abastecimento, dificultam e logo, destroem a reprodução da produção camponesa.

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13.4. A informalidade A rigor, informalidade é a expressão que denota o conjunto das atividades não incorporadas explicitamente ao sistema de relações capital/trabalho de assalariamento regular, mas que acompanha a tecnificação da produção, portanto, que está sujeita a progressivos ajustes, concomitantes aos da produção assalariada em seu conjunto. Tal como hoje é discutida, a informalidade , em suas diversas formas, tornou-se mais visível desde que se superou um mito tácito das sociedades contemporâneas, de que se possa esperar que haja empregos para todos; e se passou a reconhecer, claramente, que a produção capitalista não tem porque assalariar toda a população em idade de trabalhar. Mas a atual emergência da questão da informalidade não justifica que ela seja reduzida aos seus termos imediatos, que por isso seja distorcida. Encontra-se produção informal desde a origem do capitalismo industrial, em todos aqueles componentes de produção independente que não foram incorporados pela produção das empresas em sua expansão. Em países como o Brasil, que saíram da produção agro-mercantil ao mesmo temo que do escravismo, que de algum modo tiveram que preparar mão de obra para a indústria num período muito curto, sem dispor de um sistema próprio para isso, a informalidade foi um aspecto essencial na transformação da capacidade de produção, que viabilizou a reprodução de trabalho qualificado, que portanto, indiretamente, favoreceu a articulação e o desenvolvimento de uma produção industrial. Em outros países, como no Mexico, na Colombia, no Equador e no Peru, a produção informal urbana está estreitamente ligada à organização da produção artesanal rural, tornando-se necessário distinguir a produção artesanal em geral, muitas vezes bem integrada no mercado via subcontratações regulares, da atividade informal, caracterizada pela falta de regularidade. Nos mercados urbanos nesses países, há uma importante produção artesanal, que em parte está organizada pelo mercado urbano ligado ao turismo, mas que em grande parte supre um componente do consumo habitual de uma parte importante da população. Alimentos, vestuário, utensílios e mesmo ferramentas, continuam sendo produzidos de modo artesanal no meio urbano; e sustentam o aparecimento de novos circuitos de comercialização - em feiras livres e em "tiánguis" ( lugares estáveis de venda de produtos artesanais) - que abastecem zonas urbanas baixa e média renda. Na colocação da questão da informalidade, hoje, é necessário distinguir a perspectiva diacrônica da sincrônica, isto é, a visão da progressão dos fenômenos de informalidade em tempo e espaço; e o leque de fenômenos contemporâneos de informalidade. A compreensão da progressão explica porque este e não outro conjunto de atividades informais; e a compreensão da composição atual explica como as diversas atividades informais interagem umas com as outras. Subsidiariamente, é preciso identificar os efeitos no tempo das inter-ações entre diferentes tipos de informalidade, compreendendo suas manifestações no modo de produzir e no de consumir.

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Com essa perspectiva, vale a pena revisar as experiências de alguns países. No Brasil, que saiu da produção agro-mercantil ao mesmo tempo que do escravismo, que de algum modo teve que preparar mão de obra para a indústria num período curto, a informalidade foi um aspecto essencial na transformação da capacidade de produção, que viabilizou a reprodução de trabalho qualificado, que portanto favoreceu a articulação e o desenvolvimento de uma produção industrial. Progressivamente, a informalidade funcionou como mecanismo de incorporação de famílias não urbana ao meio urbano, como um âmbito de produção em que elas gradualmente se adaptam às formas urbanas de trabalho. Com esse caráter, a informalidade no Brasil transfere hábitos e produtos rurais para o meio urbano; e aumentou em muito, junto com a aceleração da urbanização nas décadas de 1950 a 1980. Seus aspectos mais evidentes são os de comércio ambulante, mas há uma extensa e complexa lista de atividades manufatureiras informais, desde produção de alimentos até construção civil, que mantém ocupada uma grande parte da força de trabalho, tanto nas grandes como nas pequenas e no campo. Costureiras, barbeiros, amoladores de tesouras, marceneiros, eletricistas, encanadores, quase todos que realizam serviços de apoio às famílias, operam de modo informal. Por sua vez, muitas empresas subcontratam serviços não especializados, como limpeza de prédios, com outras empresas prestadoras de serviços de apoio a empresas, que constituem informalidade disfarçada. No Mexico, houve uma importante reprodução de trabalho independente não incorporado a produção diretamente para exportação. Foi uma produção de caráter urbano, que apoiou a produção mineira para exportação, que marcou o período colonial, principalmente o século XVIII. Mais que em qualquer outra parte do continente, a informalidade reteve um importante contingente de mão de obra semi-qualificada e de mão de obra qualificada, que passou a abastecer um mercado de utensílios e objetos de adorno, que se converteram em material de exportação. Há um extenso e complexo sistema de produção informal, que se manifesta num artesanato tradicionalmente refinado, que supre o mercado interno em muitas de suas necessidades. Algo semelhante se encontra em países da América Central, especialmente na Guatemala e Honduras, e em menores proporções, na Nicaragua, na Costa Rica e no Panamá. Nos países andinos, também, a produção informal preenche circuitos que ligam as cidades médias e pequenas com a produção rural. Há uma inegável associação entre a antiguidade das estruturas culturais e a complexidade de sua produção informal. Nos países andinos, principalmente no Peru e na Bolívia, e nos vales centrais do Equador, permaneceu uma significativa produção artesanal, supostamente para uso local, que entretanto serviu para viabilizar importantes fluxos de intercâmbio informal, no sentido em que se reproduziu e desenvolveu em concomitância com a acumulação de capital realizada pelo eixo latifúndio-mineração, sustentando regiões econômicas que jamais foram cabalmente absorvidas pelos projetos nacionais de poder político e econômico. No século XIX, tornou-se mais nítido o contraste entre a produção informal concomitante com o capitalismo industrial embrionário e a produção primitiva, que continuou em todos os países, com diferentes gráus de vitalidade. O aparecimento de focos de produção industrial, as alterações nas correntes de comércio mais ou menos ligadas à diversificação da pauta das mercadorías intercambiadas,

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significaram impulsos de uso de recursos físicos e humanos sempre inferiores às massas de recursos engajados na produção agro-mercantil exportadora. No entanto, a mobilização de recursos para a produção capitalista significou deslocamentos de recursos humanos, que em última análise resolviam necessidades da produção capitalista, mas não eram financiados por ela. É o que aconteceu, por exemplo, com a expansão da produção de alimentos na Argentina, indiretamente ligada à produção mineira da Bolívia, o que aconteceu com as regiões do Brasil ligadas à produção mineira em Minas Gerais, o que finalmente aconteceu, tardiamente, na Venezuela ao redor da produção de petróleo. Nas diversas condições e níveis de renda e tecnologia abrangidas pela sociedade urbana, a informalidade é uma situação em que o engajamento das pessoas e dos grupos sociais na produção e no consumo estão habitualmente marcados pela precariedade: moradia precária, ocupação incerta, consumo imprevisível. A precariedade revela que estes grupos e pessoas não têm da sociedade garantias de sua subrevivência, ou em todo caso, que dependem de si próprios para sua reprodução. E um condicionamento fundamental, porque significa que aqueles que estão nessa condição não podem praticar um princípio básico do capitalismo, que é o de transferir riscos. Pelo contrário, os informais são objeto dessa disputa de transferência de riscos, que é um registro em negativo das margens de mobilidade com que cada grupo e cada pessoa se movem em cada cidade. A informalidade de que agora se trata é própria da etapa atual da produção capitalista, em que o processo de incorporação de trabalhadores na produção registra distinções mais profundas e nítidas, entre aqueles circuitos de relacionamento em que a reprodução do trabalho depende pouco de que os trabalhadores incorporem qualificação durante mais tempo, e aqueles outros, em que sua reprodução depende, essencialmente, desse prolongamento da qualificação; e ainda, da etapa em que a reprodução do capital passa por uma intensificação da renovação técnica, e em que a superação dos equipamentos reflete-se em mudanças mais bruscas na progressão dos investimentos que conduz a acumulação. Significa que a informalidade se recompõe com a formação de sociedades em que as margens de mobilidade não se ampliam, onde por conseguinte são proporcionalmente menores quando comparadas com o crescimento da população e com a urbanização. A informalidade contrapõe-se, portanto, à falta de mobilidade, utilizando as margens de omissão ou de debilidade do Estado em sua função de regulador das relações entre os agentes da produção. Por isso,a informalidade se desenvolve, de preferência, no âmbito das relações demarcadas pela estruturação institucional nacional. A identificação ideológica do Estado deixa abertas possibilidades para que os diversos grupos ajam de modo direto em função de seus interesses; e ignorem os limites próprios dos seus compromissos com coletivos mais amplos. Assim, aqueles comerciantes que praticam contrabando têm uma vantagem sobre os demais; assim como os profissionais liberais que evadem impostos têm uma vantagem. Há, portanto, uma questão radical, relativa à legitimidade da luta por interesses pessoais por cima das estruturas institucionais formalizadas; e de esclarecer se é uma contradição incidental, ou própria do modo capitalista. Desde a década de 1960 , surgiram diversos trabalhos sobre informalidade, abordando-a empiricamente, identificando-a com aspectos da perpetuação de pobreza, basicamente, como um fenômeno da esfera do urbano. Identificam-se fatos de informalidade, o que significa, em grande parte, mostrar que há uma proliferação de atividades de prestação de serviços, socialmente não necessárias,

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que resolvem os problemas de sobrevivência dos que não estão incorporados ao sistema de emprego. A informalidade aparece pelo levantamento de trabalho informal efetivamente realizado; ou pelo número de pessoas que aparentemente sobrevivem dela. A alegada novidade dos trabalhos do PREALC em 1972 sobre esta matéria, na realidade foi uma sistematização de observações que já vinham sendo coligidas desde a década de 1950 pelas equipes da CEPAL e depois do ILPES e do CIAP, sobre a realidade social e econômica dos países latino-americanos. Na série de estudos denominados de "Análises e projeções", que são estudos país por país, começando pelo estudo sobre a Guatemala, elaborado por Jorge Ahumada em 1953, e especialmente, com o trabalho coordenado por José Medina Echevarria sobre a Bolívia em 1958, foram claramente assinaladas as formas dominadas de trabalho e a incerteza que as dominava. O Estudo do Mexico (1957) mostrou outros aspectos desse mesmo problema. Entre 1962 e 1968, diversos estudos da Comissão Interamericana de Analise e Planejamento, destacando-se o do Peru, mostraram claramente esses mecanismos na escala regional, assinalando interdependências sobre o mercado de trabalho da Serra e o da Costa. Na década de 1960, diversos trabalhos do Instituto Latino-Americano de Planejamento, especialmente naqueles trabalhos de assessoramento a governos, acumularam uma importantes experiência sobre as condições de trabalho informal, especialmente nos trabalhos de corte regional. É uma perspectiva que registra, positivamente, a evidência de informalidade ocupacional, mas que passa por alto alguns aspectos fundamentais da questão. Primeiro, em princípio, leva a supor que a informalidade é uma negação do sistema de produção legalmente organizado, e compreende práticas totalmente visíveis no mercado e outras que são, deliberadamente, ocultas. Ignora-lo, é desconhecer as inter-relações entre informalidade e produção formal. Segundo, termina por isolar os fatos da produção informal significa desconhecer a amplitude do espectro de distribuição da renda que se realiza no universo da informalidade, portanto, ignorar a impossibilidade de isolar a produção e o consumo informais. Terceiro, implica em desconhecer o modo como a produção informal é realizada a nível de uso de força de trabalho familiar, e como se reproduz nessa escala. Ao olhar a informalidade como quantidades de trabalho realizado, deixa de levar em conta a organização familiar do trabalho e o papel das vizinhanças, como meio de solidariedade e de organização da produção e do consumo. Essa visão da informalidade leva, também, a ignorar sua relação com as expectativas de trabalho, que se tornam cada vez mais desiguais, entre os integrantes dos grupos de classe média e os grupos de baixa renda. Várias pesquisas, realizadas em ambientes de informalidade, no Chile, no Mexico, no Equador, no Brasil, apontam ao mesmo fenômeno, de que as pessoas que não conseguem trabalho regular durante muito tempo perdem essa esperança; e derivam a outros formas de comportamento, que vão desde a apatia, a contravenção e o alcoolismo. Como não há informações sobre distúrbios psicológicos dos mais pobres, não há também como saber os efeitos da incidência desses problemas em sua esperança de vida e em seu cotidiano. Nas sociedades periféricas de hoje, o papel da informalidade passa a refletir duas causas principais: as necessidades do sistema de produção, de contar com uma reserva de trabalho barato, que não implique em custos de reprodução para os capitalistas; e de funcionar como estabilizador do mercado de trabalho, absorvendo os desempregados e rejeitados e formando mão de obra semi-qualificada para o mercado de trabalho assalariado. Trata-se, portanto, de que em sua etapa atual a

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produção capitalista funciona com uma pluralidade de formas de mercado de trabalho, essencialmente compartimentalizadas, entre as quais há variadas margens de mobilidade. Assim, a informalidade desenvolve-se, ao mesmo tempo, em dois diferentes planos: no da urbanização, como um conjunto de modos de obtenção de renda, ligados a diversos modos de organização do mercado de trabalho, legais e não legais; e como um conjunto de modos alternativos de funcionamento de segmentos especializados do mercado de trabalho, conseqüentes de alterações no modo das empresas de gerir a relação tecnologia-trabalho. Com frequência, percebe-se com mais facilidade o componente de informalidade de pobreza, descartando, ou dando menos atenção, à informalidade de contravenção. Mas. em sua origem, as duas estão ligadas à desigualdade básica das sociedades econômicas, mas representam dois fenômenos essencialmente diferentes, porque a informalidade "de pobreza" não acumula, enquanto a informalidade da contravenção tem seus próprios modos de acumular; e realiza uma importante acumular, que adiante afeta o sistema de financiamento em seu conjunto. Essa informalidade de contravenção tem aumentando, justamente por sua capacidade para acumular, com os sistemas de tráfico de drogas e da corrupção instalada na base dos sistemas de política e administração. Em todo caso, é um universo da informalidade das sociedades desigualmente industrializadas e das sociedades claramente sub-desenvolvidas, que se manifesta, principalmente, em conjunto com a urbanização e a concentração da urbanização. Mas, o outro grupo de informalidade exprime com mais clareza as transformações do mercado de trabalho, que se estendem nos países ricos e nos pobres, no centro e na perifería da acumulação de capital. A qualificação do trabalho aparece com suas regras próprias. Há mecanismos sociais e econômicos que fazem com que certos grupos tenham acesso a canais de estudo e a tipos de emprego em que se produz uma qualificação adequada para acompanhar a renovação tecnológica; e outros que não qualificam o suficiente, ou em todo caso, que oferecem qualificações inadequadas para acompanhar as mudanças no perfil dos empregos disponíveis. Em conseqüência disso, ao longo do tempo forma-se uma defasagem entre tecnificação e qualificação, que em última análise resulta em exclusão de trabalhadores dos postos de trabalho e dos níveis de remuneração. Os que são incluídos nesse processo de qualificação passam a poder utilizar esse mercado de informalidade bem remunerada. Em conseqüência, tornam-se um segmento privilegiado, pelas remunerações que recebe, e por ter a opção de comandar os usos do tempo. No Brasil, esse último aspecto da informalidade tem sido fortalecido pela inflação e pelo aumento do número dos desempregados urbanos, que recorrem às práticas informais como parte de uma estratégia de sobrevivência, inclusive para integrantes de rendas médias e superiores. Torna-se, cada vez mais, difícil estabelecer qualquer fronteira entre a esfera do trabalho formal e a do informal, verificando-se o aumento do trabalho informal de tempo parcial, como complemento de trabalho formal financeiramente insuficiente. Finalmente, os aspectos mais graves do problema são os de contravenção e prostituição, que se estendem nas grandes cidades, e tornam-se, cada vez mais, organizadas. Os exemplos mais notórios da

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Colombia e da Bolívia no circuito do narcotráfico, são seguidos do envolvimento do Paraguai e do Brasil, em escalas impossíveis de imaginar há vinte anos. E a prostituição se estende, rapidamente, junto com a falta de oportunidades de trabalho regular e a expansão do turismo. Notas 1. Denomina-se aqui visão cultural-antropológica àquela percepção da questão camponesa ,cuja principal referência é o conjunto de elementos culturais e de identificação de comunidades; e de visão economista-marxista àquela outra percepção que se centra nos elementos objetivos, materiais, imediatos, da inserção dos camponeses no sistema de produção e no de consumo. É uma grande simplificação, que entretanto reflete tendências básicas da análise, que a vincula certas interpretações do objeto interpretado, antes que a situa-lo em sua posição e em seu horizonte de possibilidades. 2. Há diferentes tradições de tratamento da questão camponesa, que refletem a percepção que se tem dos processos de modernização. Bernard Sorj e Arturo Warman são autores representativos, respectivamente, de uma visão situada desde o movimento de modernização, crítica dele, mas em todo caso presa a ele; e de uma visão que focaliza na questão camponesa para mostrar o que ela tem de irredutível, revelando uma lógica alternativa à do capital. Destacam-se, em todo caso, as análises de Schetmann em seu " Agricultura comercial y agricultura campesina" e de Eckstein " El ejido en Mexico". 3. Há, aqui, uma questão em aberto, relativa à possibilidade de agir diferentemente da lógica transmitida pelo grande capital em sua reprodução. Por extensão, uma questão relativa à variedade de caminhos que os diversos sistemas sociais podem seguir.