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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
RAQUEL CARDONHA PIACENTI
TIRAS QUE PRODUZEM HISTÓRIA: MAFALDA E A EDUCAÇÃO
ARGENTINA (1964- 1973)
CAMPINAS
2018
RAQUEL CARDONHA PIACENTI
TIRAS QUE PRODUZEM HISTÓRIA: MAFALDA E A EDUCAÇÃO
ARGENTINA (1964- 1973)
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Educação da
Faculdade de Educação da Universidade
Estadual de Campinas para obtenção do título
de Mestra em Educação, na área de
concentração de Educação.
Supervisor/Orientador: Professora Doutora Maria do Carmo Martins
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À
VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO
DEFENDIDA PELA ALUNA RAQUEL
CARDONHA PIACENTI E ORIENTADA
PELA PROFA. DRA. MARIA DO CARMO
MARTINS
CAMPINAS
2018
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CAPES, 1600715
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas Biblioteca da Faculdade de Educação
Rosemary Passos - CRB 8/5751
Piacenti, Raquel Cardonha, 1990-
P57t Tiras que produzem história : Mafalda e a educação argentina (1964-1973) /
Raquel Cardonha Piacenti. – Campinas, SP : [s.n.], 2018.
Orientador: Maria do Carmo Martins.
Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade
de Educação.
1. História da Educação. 2. Cultura Visual. 3. História em quadrinhos. I.
Martins, Maria do Carmo, 1964-. II. Universidade Estadual de Campinas.
Faculdade de Educação. III. Título.
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: Comic strips that produce history : Mafalda and the argentine
education
Palavras-chave em inglês:
History of Education
Visual Culture
Comics
Área de concentração: Educação
Titulação: Mestra em Educação
Banca examinadora:
Maria do Carmo Martins [Orientador]
Arnaldo Pinto Júnior
Giovana Scareli Data de defesa: 06-03-2018
Programa de Pós-Graduação: Educação
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
TIRAS QUE PRODUZEM HISTÓRIA: MAFALDA E A
EDUCAÇÃO ARGENTINA (1964- 1973)
Autor: Raquel Cardonha Piacenti
COMISSÃO JULGADORA:
Profa. Dra. Maria do Carmo Martins
Prof. Dr. Arnaldo Pinto Júnior
Profa. Dra. Giovana Scareli
A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.
2018
Dedico esta dissertação ao meu noivo Caio e aos meus pais Célia e Carlos, pelo apoio
incondicional.
Agradecimentos
Ao final de um trabalho como este, é imprescindível que algumas pessoas
recebam meus sinceros agradecimentos, seja pela efetiva colaboração com a minha pesquisa
ou pela constante amizade e presença em minha vida. Em primeiro lugar, gostaria de
agradecer a professora Maria do Carmo Martins, que acreditou em meu projeto de pesquisa e,
além de ser excelente professora e orientadora, foi uma grande amiga, sempre me auxiliando
nas inúmeras dúvidas que surgiram durante o período de mestrado. As leituras e
interpretações realizadas só foram possíveis graças ao seu direcionamento.
Agradeço também aos professores Arnaldo Pinto Júnior e Giovana Scareli, que
além de participarem de minha banca de Qualificação do Mestrado, foram essenciais para
refletirmos sobre o trabalho, me auxiliando nas correções, análises de tiras e fundamentação
bibliográfica. Além deles, agradeço a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior) pela concessão da bolsa durante todo o período de realização deste
trabalho.
Agradeço a todos da minha família que, de alguma forma, me incentivaram na
busca pelo conhecimento e aprimoramento. Em especial ao meu pai Carlos, meu grande herói,
pelos conselhos, incentivos e constantes releituras dos meus textos; e à minha mãe Célia, cujo
amor e dedicação foram fundamentais para minha formação acadêmica e pessoal. Agradeço
também à minha irmã Gabriela, que esteve sempre ao meu lado nos momentos de alegria e de
frustrações.
Ao Caio, meu noivo e grande amor, palavras não são suficientes para expressar
minha gratidão. Se hoje estou aqui finalizando mais uma etapa é, também, graças a ele, que
mais do que incentivar, me fez acreditar em minha capacidade como pesquisadora. Agradeço
ao companheirismo, momentos de risadas, embaraços, confidências; e, claro, ao seu grande
auxilio nesse trabalho, lendo meus textos a fim dar suas opiniões e revisar a gramática. E sim,
foram muitos os erros!
Agradeço também aos meus queridos sogros Silvana e Miguel, que além do
estímulo, me permitiram entrar em sua casa e ali, na tranquilidade, ler, fichar textos e escrever
muitas das páginas desse trabalho. O carinho deles foi fundamental para que tudo isso fosse
possível.
Sou grata também por todos os meus amigos, da graduação e do grupo de
pesquisa, com quem compartilhei momentos de crises existenciais e reuniões de orientação.
Os textos lidos e discutidos colaboraram para uma maior compreensão do meu tema de
pesquisa e me permitiram ir muito além do que um dia imaginei. Agradeço, em particular, a
minha amiga-irmã Dietrich, sem a qual esses 18 anos não teriam graça, por me compreender e
me apoiar, nos mais malucos sonhos.
Finalmente, agradeço aos meus alunos – todos eles –, que me permitiram
descobrir um prazer inestimável em preparar e dar aulas. Com eles pude perceber que é
possível conciliar a vida acadêmica com a pedagógica, e se tudo caminhar bem, assim
persistirei fazendo.
A todos, muitíssimo obrigada.
Resumo
Ainda que, na atualidade, a história em quadrinho seja reconhecida tanto pelo seu
alcance quanto por ser veiculadora de ideologias e conflitos, as HQs são uma fonte ainda
pouco explorada pelos pesquisadores de um modo geral. Somente nos anos 1970 surgiram
trabalhos que questionaram a ausência dos quadrinhos nos discursos acadêmicos e sua
classificação como gênero menor. Esta dissertação entende os quadrinhos como uma
importante forma de manifestação cultural e de representação de uma determinada época e
contexto. Nesse cenário, analisa o impacto visual e constrói relações entre Mafalda – ícone
das historietas – e o cenário educacional argentino da época em que a personagem foi
produzida. Além das representações do ambiente escolar, o diálogo com essa fonte
documental se faz articulando estudos históricos e estudos sobre a cultura visual,
reconhecendo as especificidades da fonte em suas características estéticas e como produção
cultural e artística, para propor leituras e interpretações.
Palavras-chave: História da Educação. Cultura visual. História em quadrinhos.
Abstract
Although comic book stories have been recognized by both its scope and the
ability to communicate ideologies and conflicts, they have still been little explored as a source
by researchers in general. Only in the 1970s studies started questioning the absence of comics
of academic fields and its classification as gender less. This dissertation considers the comics
as an important cultural manifestation that represents a certain time and context. In this
scenario, we have analyzed their visual impact and we have related Mafalda – the icon of
historietas - and the Argentinian education at the time that was produced. In addition to the
representations of the school environment, the dialogue with this source is presented by
articulating historical studies and the studies on visual culture, recognizing the specificities of
the source in its aesthetic characteristics and as cultural and artistic production in order to
propose readings and interpretations.
Keywords: History of Education. Visual culture. Comics.
Lista de Figuras
Figura 1: Tira A. Mutt, de Bud Fisher, publicada no jornal Chronicle p. 22
Figura 2: Homenagem ao personagem de Caloi, Clemente em Buenos Aires p. 33
Figura 3: Estátua de Mafalda, Susanita e Manolito no bairro San Telmo p. 33
Figura 4: Desenho de Sempé p. 36
Figura 5: Desenho assinado como Quino Tejón, publicado por Esto Es em 1955 p. 40
Figura 6: Desenho publicado por Esto Es, nº 63, fevereiro de 1955 p. 40
Figura 7: Chicas de Divito na Capa. Rico Tipo ano I nº4 p. 41
Figura 8: Desenhos de Quino, Flax, Miguel Brascó, Siulnas e Politesse p. 42
Figura 9: Tira da Mafalda publicada por El Mundo, dezembro de 1965 p.43
Figura 10: Tira de Landrú. Tía Vicenta ano IX nº 339 p. 44
Figura 11: Desenho de Quino publicado por Clarín p. 46
Figura 12: Desenho de Quino p. 49
Figura 13: Roberval p. 52
Figura 14: Tira de Mafalda publicada por Primera Plana p.54
Figura 15: Snoopy. Tira de Schulz, publicada em 27 de maio de 1957 p. 59
Figura 16: Pepita y Lorenzo. Tira de Chic Young p. 59
Figura 17: Tira de Quino publicada por Leoplán p. 59
Figura 18: Tira publicada por Primera Plana em tira em 9 de março de 1965 p. 61
Figura 19: vinheta publicada por Siete Días Ilustrados em 23 de agosto de 1971 p. 64
Figura 20: vinheta publicada por Siete Días Ilustrados em 20 de maio de 1973 p. 64
Figura 21: vinheta publicada por Siete Días Ilustrados em 4 de junho de 1973 p. 65
Figura 22: Tira publicada por Primera Plana em 1 de dezembro de 1964 p. 68
Figura 23: Tira publicada por Primera Plana em 8 de dezembro de 1964 p. 68
Figura 24: Tira publicada por El Mundo em 21 de maio de 1965 p. 70
Figura 25: Tira publicada por Siete Días (1970) p. 70
Figura 26: Tira publicada pelo jornal El Mundo p. 71
Figura 27: Tira publicada por Primera Plana em 10 de novembro de 1964 p. 72
Figura 28: Tira publicada por El Mundo p. 74
Figura 29: tira publicada pelo jornal El Mundo p. 76
Figura 30: tira publicada pelo jornal El Mundo p. 77
Figura 31: tira publicada pelo jornal El Mundo p. 78
Figura 32: tira publicada pelo jornal El Mundo p. 79
Figura 33: tira publicada pelo jornal El Mundo p. 80
Figura 34: tira publicada pelo Siete Días p. 81
Figura 35: tira publicada pelo Siete Días p. 92
Figura 36: tira publicada pelo Siete Días p. 93
Figura 37: Tira publicada por El Mundo em 15 de março de 1965 p. 101
Figura 38: Tira de Mafalda p.103
Figura 39: Tira de Mafalda p.105
Figura 40: Tira de Mafalda p.106
Figura 41: Tira de Mafalda p.107
Figura 42: Tira de Mafalda publicada por El Mundo em 12 de março de 1966 p. 108
Figura 43: Tira de Mafalda publicada por El Mundo em 12 de março de 1966 p. 109
Figura 44: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p. 121
Figura 45: Tira de Mafalda publicada por El Mundo em 28 de junho de 1966 p. 123
Figura 46: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p. 124
Figura 47: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p. 125
Figura 48: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p. 127
Figura 49: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p. 128
Figura 50: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p.130
Figura 51: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p. 131
Figura 52: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p. 133
Figura 53: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p. 134
Figura 54: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p.135
Figura 55: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p. 137
Figura 56: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p. 138
Figura 57: Tira de Mafalda publicada por El Mundo p. 139
Figura 58: Tira de Laerte em homenagem aos 50 anos de Mafalda p. 143
Sumário
Introdução p. 13
Capítulo1: Cultura Visual e Histórias em Quadrinhos p. 19
1.1 – Da marginalização à fonte de pesquisa p. 21
1.2 – As histórias em quadrinho p. 24
1.3 – Historietas: As Histórias em quadrinhos na Argentina p. 28
Capítulo 2: O autor e sua obra p. 34
2.1 – Quino p. 35
2.1.1 – A trajetória p. 38
2.1.2 – Humor e Humor em Quino p. 50
2.2 – Mafalda p. 56
2.2.1 – A trajetória p. 58
2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina p. 65
2.2.3 – Mafalda e Personagens p. 69
Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina p. 82
3.1 – Educação na Argentina: um panorama p. 84
3.2 – 1940 e 50: Quino vai à escola p. 89
3.3 – Os anos 1960 e 70: Mafalda vai à escola p. 96
3.3.1 – Representação, memória e Mafalda p. 99
3.3.2 - A escola nas tiras de Mafalda p. 101
Capítulo 4: 1960 – Mafalda e escola em transformação p. 112
4.1 – As revistas pedagógicas: propostas e discursos educacionais p. 115
4.2 – As tiras: a educação pela Mafalda p. 120
Considerações finais p. 141
Referências Bibliográficas p. 144
13
Introdução
A pluralidade de temas e abordagens em relação à História da Educação permite
que nos embasemos no aporte teórico-metodológico da História Cultural para compreender os
diversos aspectos das práticas educativas, bem como as dimensões entre educação e sociedade
antes pouco exploradas. Através da ampliação dos objetos de pesquisa, das abordagens, e das
fontes a serem consultadas pelos pesquisadores, oferece também possiblidades de múltiplos
olhares para o objeto. Nesse sentido, esse trabalho parte de uma fonte pouco tradicional – as
histórias em quadrinhos – acreditando na possibilidade de articular as questões políticas,
sociais e econômicas às produções culturais.
O riso é fundamental e, talvez seja pelo lado humorístico que a maioria dos
quadrinhos se sobressai. Nas últimas décadas o humor passou a ser considerado pelos
historiadores, como uma via para compreender as sociedades, uma vez que apresenta motivos
e efeitos sociais e políticos, sendo usado para mobilizar simpatias e apoios, construir
identidades e intervir em lutas e conflitos (COSSE, 2014, p.24). Dessa maneira, as HQs,
responsáveis por inúmeras reflexões e gargalhadas, são também uma importante forma de
manifestação cultural, cuja função fundamental é comunicar ideias e histórias. Por essa,
dentre outras razões, as histórias em quadrinhos devem ser interpretadas como importantes
fontes produtoras de conceitos e, ao mesmo tempo, representações de determinada época e
contexto.
As histórias em quadrinhos – compostas por imagens e, na maioria das vezes,
textos associados a elas – pressupõem práticas de produção, circulação e apropriação por
parte de quem as lê, discute e usa. Nos anos 1960, surge na Argentina uma nova geração de
desenhistas, que reformularam os espaços destinados ao humor e criaram revistas e jornais
destinados a isso, exemplo disso é a revista Tía Vicenta, que através do humor, de tiras e
caricaturas, questionou a sociedade argentina, denunciou os problemas nacionais e criticou os
governos da época. Quino foi parte dessa renovação: criou Mafalda, uma personagem capaz
de impactar adultos, jovens e crianças, e de mobilizar diversos setores, sendo utilizada nas
mais diversas lutas sociais.
Nesse cenário, parte-se de algumas potencialidades de Mafalda como
transmissora de ideias e representante de um determinado contexto sócio-histórico argentino,
acreditando que a riqueza temática apresentada pela personagem torna esse quadrinho um
objeto de análise expressivo, de forte cunho de crítica político e social. Após o nascimento da
pequena menina contestadora em 1963, seu humor e crítica transcenderam as fronteiras
14
geográficas, consolidando seu alcance universal e o sucesso de suas tiras. Como aponta
Umberto Eco (2003), o universo de Mafalda não é apenas o da América Latina, mas de todo o
planeta (p. XVI). Além dele, Pablo Pineau (2005) a denomina como um dos ícones culturais
argentinos dos anos 1960 e a adjetiva como uma genial historieta, reflexo das classes médias
em expansão e com um excelente frescor de trabalho educativo.
Neste trabalho de pesquisa, esta obra se tornou uma fonte documental com a qual
buscamos analisar e construir representações sobre a educação, em especial, a educação
argentina, também considerando que a universalidade da obra é indicativa de uma
potencialidade analítica sobre o sistema educacional. Ainda, parte-se da ideia de que por ser
icônica, amplamente lida nacional e internacionalmente, na medida em que representa
aspectos marcantes da cultura argentina, Mafalda passa a integrar e ser também uma
característica desta cultura. Tendo essa premissa como norteadora, nos propusemos a refletir
historicamente questões sobre a forma e a cultura escolar, analisando alguns dos elementos
estéticos presentes nos quadrinhos como significativos e expressivos do sistema educacional
argentino das décadas de 1960 e 1970; buscando compreender as representações e produções
acerca da educação argentina na obra.
O desenvolvimento dessas e outras indagações estão presentes nos capítulos desse
trabalho, sendo que o primeiro é voltado para a compreensão do quadrinho em si, além da
apresentação de um breve discorrido sobre a história das historietas (histórias em quadrinho
argentinas). A partir da análise de seus elementos, capacidades de reprodução e produção de
bens culturais, bem como sua atuação social, se compreende, pelos referencias da Cultura
Visual, que as histórias em quadrinho são uma forma de linguagem, e como tal, possuem suas
regras, características, tendo como função a garantia da comunicação entre os autores e os
leitores. Dessa maneira a partir de autores como Fernando Hernandez (2000; 2001), Karry
Freddman (2002), Ulpiano Meneses (2003), Maria Emília Sardelich (2006), Will Eisner
(2010), Paulo Ramos (2007), Giovana Scareli (2002), e Nobu Chinen (2011), se assinala a
importância do quadrinho como veículo de comunicação, e a necessidade de aprendermos a
ler os dados visuais, uma vez que a linguagem visual é também considerada uma
manifestação cultural de determinada sociedade. Assim sendo, através do estudo da estética e
das formas, a imagem passa a ser compreendida como uma experiência de produção e
recepção, que transforma as informações geradas e as recebidas, alterando também, a própria
percepção e modos de se visualizar.
15
O segundo capítulo se destina à obra e ao seu autor, apontando as trajetórias e
influências de ambos nacional e internacionalmente. Quino começa a publicar suas páginas de
humor gráfico aos 22 anos e, desde então, suas produções circulam por todo o planeta.
Compreendido aqui como um intelectual e ator social, ao passo em que é reconhecido
mundialmente como personalidade crítica e produtor de obras que questionam e revelam
vários aspectos da sociedade argentina e da humanidade como um todo, o quadrinista se torna
um intérprete para a compreensão e leitura do processo histórico argentino. Dessa forma,
analisamos as publicações das revistas e jornais em que trabalhou, procurando também
comparar, dentro de um mesmo período, os desenhos de Quino com os de outros desenhistas,
na medida em que se aproximam e se distanciam quanto aos temas, traços e tipos de humor.
Quino já era um humorista reconhecido pelos portenhos, mas a partir de Mafalda
atingiu o auge de seu sucesso. Seus leitores passaram a recortar as tiras do jornal e colar em
seus cadernos, paredes e lojas. Em 1968, era lida por mais de dois milhões de pessoas. A
partir de 1969, sua obra transcendeu as fronteiras, foi traduzida e publicada para muitos
países, como Itália, Espanha, Alemanha, França, Finlândia e Portugal. Além disso, atualmente
é traduzida para mais de 20 idiomas, alcançando países como Coréia e Indonésia. Dessa
maneira, o capítulo ainda se dedica à sua principal criação. Mafalda, produzida entre 1964 e
1973, apresenta, através do humor e da ironia, um conjunto de temas polêmicos como
autoritarismo, educação, cultura, censura, política internacional, moralismo, questões de
gênero e geracionais. Dessa forma, a partir de uma leitura mais aprofundada das tirinhas, o
trabalho se propôs a analisar como a história em quadrinhos Mafalda representa diversas
temáticas da sociedade argentina e dialoga com a mesma no período. A trajetória e evolução
da tira, dos personagens e componentes gráficos também foram preocupações desse capítulo.
Devido ao sucesso da obra, Mafalda é tema de muitas reportagens, artigos e
trabalhos acadêmicos. A maioria das pesquisas se dedicou às questões políticas e econômicas
abordadas pela tira – tais como as ditaturas latino-americanas, a Guerra no Vietnã, a Guerra
Fria, entre outros. Sobre essas questões destacamos os trabalhos de Graciene de Ávila (2009);
Ana Maria Peppino Barale (2009); Karina Rossi e Ananda Gomens Heen (2015). O texto de
Umberto Eco (2003) e o trabalho de Isabela Cosse (2014) são extremamente relevantes, uma
vez que apontam para a importância da personagem, sua trajetória e impactos na sociedade
argentina, em especial a classe média daquele país. Autores como Waldomiro Vergueiro
(2006; 2009) e Paulo Ramos (2010) se utilizam dos quadrinhos de Mafalda para discutir o uso
de HQs na escola, principalmente no ensino de linguagens; e outros trabalhos como o de
16
Márcia Sipavicius Seide (2006) e Carlos Eduardo Rebuá Oliveira (2011), abordam seu uso em
sala de aula nas práticas de ensino de disciplinas como Língua Portuguesa e História,
respectivamente. Ademais, outros trabalhos, como o de Cristiane Magalhães Bissaco (2014),
analisam a obra a partir das questões linguísticas da tira. Quando nos voltamos à relação entre
as tiras de Mafalda e a educação argentina, poucos são os trabalhos que procuraram investigar
as formas de representação e interlocução entre a obra e o sistema educacional daquele país,
destacando-se, então, os trabalhos de Pablo Pineau (2005) e Maria Laura Suarez (2011).
O conceito de representação refere-se ao conjunto de práticas, imagens e
símbolos criados pelos sujeitos para expressar seus valores, modo de agir e interpretar a
sociedade em que vivem. Como afirma Chartier (1991), representação é uma presença que
marca a ausência daquilo que é representado, sendo elaborada por indivíduos que descrevem a
sociedade como pensam que ela é, ou como gostariam que ela fosse (Idem, 2002, p.19).
Assim sendo, a partir das elaborações sobre representação e apropriação promovidas também
por Robert Darnton (1986) e Peter Burke (2008), pretendeu-se desenvolver no terceiro
capítulo uma discussão sobre a educação na Argentina, as noções de representação e
memória, visando demonstrar como o formato escolar era visto, lembrado e representado por
Quino, e como era lido e interpretado pelos argentinos, que se identificavam com os
momentos escolares de Mafalda. Esta é compreendida, então, como uma representação,
produzida e materializada em práticas e objetos que a converteram em um fenômeno social e
cultural, e acompanhada de humor e ironia, permitiram retratar visões da sociedade argentina,
e ao mesmo tempo, operar sobre ela.
Adriana Puiggrós (1997), Adrián Ascolani (1999) e Héctor Rubén Cucuzza
(2004), nos permitiram melhor visualizar o percurso histórico da educação na argentina,
discorrendo sobre as transformações, objetivos e propostas dos diversos setores sociais e
políticos em torno da escola e das políticas educacionais. Ademais, outros autores como
Sandra Carli (2002), Nicolás Arata (2013), Pablo Pineau (2013) foram fundamentais para a
discussão promovida nesse capítulo, uma vez que nos permitiram questionar e ampliar o
debate sobre a história da educação argentina, partindo de uma perspectiva mais cultural e
subjetiva das relações estabelecidas entre governo, escola e sociedade. Tendo isso em vista, a
hipótese desse trabalho parte da premissa de que Quino, ao abordar temáticas relativas ao
plano educacional – ideias e discussões pedagógicas então em andamento –, dialoga
diretamente com os acontecimentos das décadas de 1960 e 70, apresentando suas críticas e
concordâncias. Todavia, quando o autor representa Mafalda e os outros personagens dentro da
17
sala de aula, acaba por se remeter ao modelo escolar tradicional, tanto por partir de memórias
individuais e coletivas quanto por não conhecer, de fato, o que realmente se passava dentro de
uma sala de aula no período em que produzia a tira.
Desse modo, o quarto capítulo aborda as práticas e políticas educacionais
contemporâneas à produção de Mafalda, além de partir do referencial da Cultura Visual para
analisar os projetos e ideias de educação propostos pela tira e seu autor. Enquanto o terceiro
capítulo se dedica às representações marcadas pelo tradicionalismo, o último, a despeito do
formato escolar representado, se destinará às elaborações de educação presentes nos
elementos visuais e discursivos da obra, perceptíveis pelas expressões, posturas, críticas e
ironias dos personagens. Nos estudos mais recentes propostos pela Cultura Visual, discute-se
o potencial cognitivo das imagens, e o que se defende é o abandono da antiga postura de
utilizá-las apenas como fontes, para um tratamento mais abrangente da visualidade. A
imagem passa então a ser compreendida como uma representação social, forma de produção
e/ou reprodução cultural capaz de criar símbolos de uma realidade comum.
Além disso, acreditando-se na necessidade de dialogar a obra com outras fontes
primárias que pudessem colaborar com a análise proposta, foram lidas revistas educacionais
que apresentavam as correntes, discussões e propostas pedagógicas do período (década de
1960). Conforme assinala Finocchio (2009), a partir da segunda metade do século XIX, o
Estado, visava à consolidação da escola na sociedade argentina e se utilizava, dentre outros
recursos, dos meios de comunicação para dialogar com os pais, alunos e docentes; e, nesse
cenário, a imprensa voltada à educação serviu como instrumento para difundir as ações e
objetivos do governo. Dessa maneira, nesse capítulo se analisou a publicação mensal El
Monitor de la Educación Común, que além de ser o periódico oficial do Consejo Nacional de
Educación, trazia muitos textos sobre o docente, o aluno, as escolas urbanas e rurais, os
projetos governamentais, e as divergentes correntes pedagógicas, permitindo que se
verificasse em que medida os discursos oficiais e os debates sobre educação estavam
presentes e atuais nas tiras de Quino, em quais pontos existiam convergências e em quais os
temas se contradiziam. Dessa maneira, estabelecendo um diálogo entre o discurso oficial do
Estado e as tiras, procurou-se analisar as propostas, críticas e visões de educação de Mafalda.
Tendo isso em vista, a partir desses quatro momentos de análise, o trabalho se
propõe a apresentar Mafalda e Quino como importantes agentes socais, capazes de representar
e atuar na sociedade argentina; a entender os processos educativos e o modo pelo qual o
formato escolar tradicional se consolidou no solo argentino, sendo representado e reconhecido
18
por Quino e seus leitores; e por fim, se propõe a analisar as histórias em quadrinhos,
buscando a compreensão acerca do que a imagem nos informa e como ela o faz, fugindo de
qualquer tentativa de utilizá-la apenas para ilustrar algo já concebido. Nesse sentido, a
pesquisa proposta investiga o impacto visual e constrói relações entre Mafalda e o cenário
educacional argentino da época em que a personagem foi produzida. Além das representações
do ambiente escolar, o diálogo com essa fonte documental se faz articulando estudos
históricos e estudos sobre a cultura visual, reconhecendo as especificidades da fonte em suas
características estéticas e como produção cultural e artística, para propor leituras e
interpretações.
Por fim, cabe ressaltar que a pesquisa sobre Mafalda e histórias em quadrinhos se
iniciou em 2012. Para sua realização, após diferentes leituras e análises das fontes primárias e
secundárias, foram essenciais algumas viagens à Argentina afim de melhor conhecer seu local
de nascimento e adentrar na hemeroteca da Biblioteca Nacional – onde se encontravam as
páginas de jornais e revistas repletas de desenhos de Quino e tiras de Mafalda. O livro Toda
Mafalda, facilmente encontrado no Brasil, não possui tiras datadas e organizadas
cronologicamente; e assim, foi imprescindível que a pesquisa se realizasse também naquele
arquivo, para a datação do material e o estabelecimento de relações entre a produção de Quino
e outras histórias em quadrinhos do momento.
19
Capítulo1: Cultura Visual e Histórias em Quadrinhos
20
A sociedade contemporânea está imersa numa profusão de transformações
proporcionadas, principalmente, pelos desenvolvimentos técnicos, de informação e
comunicação, que, entre outras coisas, é responsável pelo uso incessante de mídias,
construções de imagens de pessoas e realidades. Essas novas tecnologias redefiniram noções
fundamentais como tempo e espaço, obrigando-nos a transformar nossas memórias, formas de
produzir cultura, e modo de pensarmos e enxergarmos o mundo. Nesse contexto, diferentes
teóricos, passaram a demonstrar a necessidade de uma alfabetização visual, pautada na leitura
de imagens e na Cultura Visual.
Num primeiro momento, visou-se aperfeiçoar a leitura de imagens, a partir da
proposta de ensinar a ver e ler os dados visuais, já que a linguagem visual é considerada mais
que uma forma de facilitar a comunicação, sendo também uma manifestação cultural de
determinada sociedade (SARDELICH, 2006, p. 455). A imagem passou a ser compreendida
como uma experiência de produção e recepção, que transforma as informações geradas e as
recebidas, alterando a própria percepção e modos de visualização. Ao passo que a proposta de
fortalecer a leitura de imagens se apresentava como caminho educativo, pesquisadores de
diversas áreas também começaram a indagar sobre a noção de visualidade. De acordo com
Meneses (2003, p. 15), desde os anos 1960 a antropologia reconhece o potencial informativo
das fontes visuais; e a partir de então, surgiram novas propostas que compreendem a imagem
como objeto e produto cultural, que participam das relações e tem capacidade de agência na
sociedade.
As aproximações com o campo visual se restringiam à imagem, transformada em
informação ou em demonstração visual de algo que outro documento já havia enunciado.
Entretanto, nos estudos mais recentes propostos pela Cultura Visual, discute-se o potencial
cognitivo das imagens, e o que se defende é o abandono da antiga postura de utilizá-las
apenas como fontes, para um tratamento mais abrangente da visualidade, compreendida como
“(...) dimensão importante da vida social e dos processos sociais” (Ibidem, p. 2). Dessa forma,
o que se sugere é uma inversão no trato das imagens, sendo que ao invés de iluminar as
imagens com informações externas a elas, visa-se produzir conhecimento novo a partir dessas
imagens. Conforme discorre Hernandez (2001, p.5) a Cultura Visual é um campo que emerge
de diversas áreas e se constitui das inúmeras formas culturais vinculadas ao olhar, às práticas
de visualidade, e ao estudo de um dos artefatos visuais para além das Artes Plásticas.
Destarte, para o efetivo estudo das manifestações do visual, é necessário que articulemos os
métodos e conhecimentos da História da Arte, da estética, e semiótica, com campos, como
21
teoria crítica, estudos culturais, psicanálise, e linguística – a fim de explorar a “dimensão
social do olhar” (Idem, 2000, p. 24).
Assim, a imagem passa a ser vista como uma representação social, como uma
forma de produção e/ou reprodução cultural capaz de criar símbolos de uma realidade comum
(GRALIK, 2007). Não existem leitores nem meros receptores, mas sim construtores e
intérpretes, visto que a aproximação com a obra não é passiva, ao contrário, é interativa e
condizente com as experiências que cada sujeito vive no seu cotidiano. A Cultura Visual
seria, então, a interação entre o espectador e o que ele olha e observa, já que entende o visual
como o local em que se criam e discutem os significados. Desse modo, essa abordagem
abarca desde a pintura a óleo, a televisão, os jornais, até a internet.
Em relação às histórias em quadrinho, Freedman (2002), torna-se uma referência
importante, por enfatizar que a cultura visual dá forma ao mundo em que vivemos ao passo
em que se torna também a nossa forma de olhar para ele. Nessa perspectiva, para a autora,
trabalhar com HQs não significa tratar somente das imagens e dos personagens, mas sim de
visualizar, “a partir da narrativa dessas produções uma outra sociedade que também enfrenta
conflitos, e propor soluções para eles”. (FREEDMAN apud SARDELICH , 2006, p. 462).
A literatura sobre o tema discorre sobre a dificuldade de se estabelecer um
consenso para definir o que seriam as histórias em quadrinhos, visto que apesar de serem
muitos os elementos que as constituem – tais como quadro, balão, recordatório, onomatopeia,
metáforas visuais, e figuras cinéticas -, “nenhum de seus elementos é obrigatório, ou seja,
podem existir HQs sem balões, sem textos e mesmo sem quadrinhos” (CHINEN, 2011, p.7).
Dessa maneira, Ao tomarmos as histórias em quadrinho como fonte de pesquisa, torna-se
necessário compreender o que são os quadrinhos, como eles são constituídos, como podem
ser utilizados nesses estudos, e principalmente, qual a importância deles para a sociedade em
que se formulam.
1.1 – Da marginalização à fonte de pesquisa
O processo de formação do campo dos quadrinhos teve início na segunda metade
o século XIX, quando os avanços nos sistemas de impressão possibilitaram a redução dos
custos e, portanto, o aumento do número de leitores. Além disso, as ilustrações com textos
curtos facilitavam a compreensão e permitiam, desse modo, que grande parte da população,
que não possuía alta instrução e conhecimento da linguagem culta, tivesse acesso às histórias
22
em quadrinhos. As primeiras histórias ilustradas datam de 1860, e eram publicadas em
painéis, ocupando uma ou meia página de um jornal (CHINEN, 2011). Em 1903, no entanto,
foi adotada a forma de tira, e em 1907 surge A. Mutt, de Bud Fisher, a primeira tira publicada
diariamente, que estabeleceu o formato horizontal, preto e branco e que, além da piada,
apresentava uma continuidade1. A partir desse momento, os quadrinhos tornam-se mais
frequentes e passam a ser uma linguagem mundialmente conhecida, apesar de ainda serem
marginalizados, publicados nas áreas menos nobres dos jornais.
Figura 1: Tira A. Mutt, de Bud Fisher, publicada no jornal Chronicle. 2
Fonte: Disponível em: < http://commons.wikimedia.org >. Data de acesso: 24/ago/2017.
Como assinala Junior (2003), na década de 1950 os debates acerca dos malefícios
das histórias em quadrinhos se intensificaram, e propostas de censura vieram à tona em todo o
mundo. Quadrinhos foram queimados em praças públicas, e ainda, se produziram manifestos
de repúdio a fim de denunciarem o “(...) posicionamento de empresas jornalísticas e editoras
inescrupulosas que amealham lucros à custa das publicações que empeçonham a alma de
nossa infância e de nossa adolescência” (p. 398). Um dos marcos de repúdio aos quadrinhos
no Brasil se deu em 1951, a partir da matéria “O que lêem as crianças no Brasil?” publicada
1 Harry Conway "Bud" Fisher (1885 – 1954) nasceu em Chicago, Illinois. Fisher publicou a tira A. Mutt por um
ano. As piadas são variações das histórias de vagabundos dos cartuns da época. No entanto, o autor inova
aproximando as tiras da realidade: os cavalos em que o personagem Mutt montava eram cavalos reais, e tanto os
leitores quanto o próprio Fisher tinham que esperar o dia seguinte para saber o resultado das apostas do
personagem. 2 Nesse trabalho decidiu-se pela não tradução dos diálogos presentes das imagens, e das citações, buscando
assegurar significados e sentidos das obras. Desta forma, optamos por contextualizar elementos ou passagens
escritas quando se fizer necessário para o pleno entendimento dos quadrinhos e do texto.
23
pelo jornal Tribuna da Imprensa, cujo conteúdo criticava as histórias em quadrinhos
protagonizadas por monstros sanguinários, entre outros do tipo.
O preconceito em relação aos quadrinhos atingiu seu auge quando o livro The
Seduction of the Innocent, escrito pelo psiquiatra alemão Dr. Frederic Wertham, foi publicado
e traduzido para muitas línguas, inclusive o português. Segundo o autor, os quadrinhos seriam
os principais responsáveis pelas crianças abandonarem os estudos, agirem de forma agressiva
e se tornarem homossexuais (RODRIGUES, 2011, p.20). Além disso, Wertham, dentro do
contexto da Guerra Fria, acusava as histórias em quadrinhos de promoverem o comunismo, o
que consequentemente, energizou a investigação da possibilidade de incentivo ao comunismo
em quase todas as HQs publicadas na sociedade norte-americana. Contudo, as pesquisas de
Wertham foram posteriormente desacreditadas, uma vez comprovado que o psiquiatra forjara
os seus dados a fim de incriminar os quadrinhos pelos considerados danos sociais3.
Mesmo após este episódio e, até trabalhos mais recentes, costumava-se dizer que
os quadrinhos eram leitura de gente preguiçosa, uma vez que diferentemente da literatura, não
exigiam tanto da imaginação e criatividade do leitor na hora de criar os rostos dos
personagens ou alguma paisagem, o que nos permite perceber que no âmbito dos estudos
sobre a função social da leitura, o preconceito quanto aos quadrinhos persistiu. Entretanto, o
estudo mais detalhado acerca dos recursos de construção narrativa do quadrinho nos permite
compreender a complexidade desse processo criativo e diminui o espaço para tal abordagem
sendo que
(...) esse tipo de crítica era equivocada, pois uma das riquezas dos gibis é
justamente permitir que, entre um quadrinho e outro, a imaginação voe. Se
numa vinheta vemos o mocinho sair a galope e, na sequencia, um outro
quadrinho o mostra prestes a desmontar do cavalo, todo o percurso, a
paisagem ensolarada, o ruído dos cascos do animal batendo no solo é criado
pela mente do leitor. (CHINEN, 2011, p.40-1)
Os anos 1960 marcaram uma ruptura no processo de produção de quadrinhos.
As transformações que ocorriam na Europa desencadearam a mudança do público alvo das
HQs europeias e latinas. Na Itália, por exemplo, se inicia um processo de classificação do
gênero, até então pouco avaliado. Umberto Eco (2001) estuda a cultura de massa,
desmistificando parte dos preconceitos existentes sobre o uso da televisão, música pop e
quadrinhos como fontes de pesquisa. A partir da apresentação do debate entre os apocalípticos
3 Sobre a relação entre as HQs, o comunismo e o anticomunismo ver WRIGHT, Bradford W. Reds, Romance
and Renegades – Comic Books and the Culture of the Cold War, 1947-1954. In: Comic book nation: the
transformation of youth culture in America. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2001.
24
– grupo de teóricos que antagonizam a cultura de massa, vista como uma “anticultura” – e os
integrados – que encaram positivamente as produções da massa como um alargamento
cultural, que outrora era restrito –, o autor analisa as histórias em quadrinhos de Charlie
Brown, impulsionando a consolidação do gênero como objeto de estudo4. Segundo o autor,
desde então os quadrinhos ganham espaço na cultura da sociedade, realizando-se na Itália, em
1966, o Congresso Internacional de Lucca, no qual foi oferecido, pela primeira vez, o prêmio
Yellow Kid, reconhecido como mais importante relativo às histórias em quadrinhos.
As histórias em quadrinhos sejam de cunho fantástico ou não, possuem inúmeras
referências às conjunturas politicas e sociais do seu tempo, possibilitando aos pesquisadores,
uma maior percepção de uma sociedade em um determinado tempo e espaço. Conforme
Vergueiro (2006), uma das formas de trabalhar com as tiras seria, por exemplo, por meio de
estudos quanto à relação da produção em um determinado período histórico, partindo de um
estudo do local e tempo em que o quadrinho se insere, acreditando que através da leitura
aprofundada das tiras, é possível realizar uma “análise do contexto sociocultural de uma
nação pela perspectiva dos quadrinhos” (p. 8). Dessa forma, mesmo se os quadrinhos fossem
apenas entretenimento, ainda seriam extremamente úteis aos pesquisadores, visto que eles
apresentam a fusão das aspirações do autor, das inclinações e direção dos produtores e
editores, bem como os meios de produção e a produção em si. De acordo com Cirne (1982)
“(...) não existem quadrinhos inocentes, assim como não existem leitura inocente e livros
inocentes” (p.11).
1.2 – As histórias em quadrinho
A história em quadrinho é uma forma artística e literária que lida com a
disposição de imagens e palavras, narra uma história ou dramatiza uma ideia (EISNER, 2010,
p. IX). Compreendidos como construções comunicativas, nas quais simultaneamente
encontramos uma criação conceitual ou verbal e uma criação gráfica ou desenhada, os
quadrinhos seriam obras desenhadas e impressas para sua difusão em múltiplas cópias, que
4 Charlie Brown, Peanuts (no Brasil também conhecido como Minduim) foi uma tira de jornal escrita e
desenhada pelo cartunista estadunidense Charles Schulz, publicada em outubro de 1950 em um jornal local.
Rapidamente a tira se popularizou, aparecendo em mais de 2600 jornais, com um número de leitores estimado
em 355 milhões em 75 países, e foi traduzido para 40 línguas. Diante disso, Umberto Eco (2001), em seu
propósito de estudar a cultura de massa, encara a turma de crianças de Peanuts como um microcosmo, através do
qual se torna possível compreender o mundo. Charlie Brown, Snoopy, entre outros seriam então, personagens
inocentes que com seus discursos livres de impurezas, retratam e questionam os costumes e obscuridades do
mundo dos adultos.
25
contém elementos verbais e icônicos articulados entre si, com o propósito de emitir um relato
humorístico ou não (BARREIRO, 2011).
Dessa maneira, as tiras podem ser analisadas como uma arte de comunicação,
uma vez que seus elementos e a disposição dos mesmos a transformam em uma forma de
linguagem própria, que – diferente de outros meios, como a literatura – se valem da
experiência visual comum ao criador e ao público, porquanto “empregam uma série de
imagens repetitivas e símbolos reconhecíveis”, criando a “gramática da arte sequencial”
(EISNER, 2010, p.2). Ou seja, para que a mensagem da tira seja entendida, o artista deve
compreender a experiência de vida do leitor e proporcionar a interação e evocação das
imagens armazenadas na mente de ambas as partes; permitindo ao leitor reconhecer e ser
impactado emocionalmente pela produção.
Semelhante à crítica apresentada por Cirne (2011), Eisner (2010), também pontua
o esforço intelectual que a leitura do quadrinho exige, já que a sobreposição de imagens e
palavras força o leitor a exercer suas habilidades interpretativas visuais – como, por exemplo,
a perspectiva, a simetria, os traços – e as verbais – como a gramática, enredo, e sintaxe.
Dentro dessa perspectiva, Scareli (2002) ressalta as duas formas de linguagem (imagem e
escrita) como ponto de análise dos quadrinhos, discorrendo que o desenho é o marco das
histórias em quadrinho e sua elaboração ultrapassa o enredo da história, revelando-nos,
também, a intencionalidade do desenhista, que através de sua criação consegue transmitir uma
mensagem icônica. Concomitante, a linguagem escrita, presente na maior parte dos
quadrinhos, complementa a imagem e direciona o leitor segundo o interesse do autor.
O processo de construção das histórias em quadrinhos é complexo e quando é
bem realizado, explora não apenas a sequência entre um quadro e outro, mas a de ações
dentro de um mesmo quadrinho. Essa seria uma das grandes diferenças entre a fotografia e a
tira, visto que “(...) enquanto na primeira a cena é congelada no instante em que acontece, os
quadrinhos sintetizam vários instantes em um só quadro.” (CHINEN, 2011, p. 34). O que
torna isso possível é o estabelecimento de uma hierarquia, uma ordem segundo a qual nossos
olhos percorrem os quadros em busca das informações. Além disso, como pontua Eco (2001),
as histórias em quadrinhos também podem ser comparadas à Sétima Arte, sendo que o autor
do quadrinho, assim como um diretor de cinema, se utiliza de recursos como enquadramento e
ângulo para atingir seus objetivos de narração, podendo assim escolher um distanciamento
conforme queria mostrar uma paisagem, os personagens ou apenas um detalhe ou algum
objeto.
26
Os elementos que compõem os quadrinhos são diversificados e permitem a
manipulação e criação de tiras conforme as sensações e ideias que pretendem incidir no leitor.
Dessa maneira, o próprio texto se torna uma imagem, sendo as letras, através da estilização,
utilizadas para compor as emoções e expressões corporais dos personagens. Ainda, elas
podem corroborar para a sensação de frio, chuva, medo, sendo usadas, também, para
acrescentar sons, como observado pelas onomatopeias.
O enquadramento da fala, por sua vez, é um recurso empregado para tornar visível
o som. Os balões, sua disposição e contornos permitem que o leitor perceba se na cena
acontece um diálogo comum, um pensamento ou grito. Além disso, por precisarem ser lidos
em uma sequência determinada, colaboram para a marcação do tempo da tira. Nesse sentido,
além do autor, o leitor é fundamental na elaboração do quadrinho, uma vez que ele não é
passivo à obra produzida. As diversas produções culturais, tais como cinema, textos e
pinturas, pressupõem formas particulares de leituras e interpretações. No caso da história em
quadrinho, semelhante ao que acontece no cinema, o leitor (ou espectador) constrói narrativas
e conclusões a partir de uma sequência de imagens; entretanto, o leitor do quadrinho tem um
papel bem mais ativo, visto que ele possui certo controle sobre o ritmo e entendimento da
história, é ele que determina o tempo e a quantidade de vezes que olhará para determinada
imagem. Destarte, cabe ao leitor imaginar o que ocorre entre um quadro e outro, completar as
imagens e os sentidos; e assim, acaba se tornando “(...) cúmplice do desenhista, como é o
leitor quem conclui, de certa forma, também é ele quem age”. (SCARELI, 2002, p. 54).
Outro elemento fundamental no processo de elaboração de uma história em
quadrinho é o tempo. O tempo dos quadrinhos é marcado pelo tamanho dos quadros e das
sarjetas, visto que o perímetro da cena estabelece a posição do leitor e indica a duração do
evento. O número dos quadros também contribui para marcar o ritmo da história, aumentando
e segmentado a ação conforme a necessidade de compressão do conteúdo. Dessa maneira,
(...) a criação do quadrinho começa com a seleção dos elementos necessários
à narração, a escolha da perspectiva a partir da qual se permitirá que o leitor
os veja e a definição da porção de cada símbolo ou elemento a ser incluído.
Assim, a execução de cada quadrinho implica o desenho, a composição,
além de seu alcance narrativo. (EISNER, 2010, p. 42).
A narrativa, nesse cenário, também se torna um conceito fundamental para a
análise dos quadrinhos, visto que possui a capacidade de articular as experiências vividas ao
longo do tempo; tornando-as compreensíveis para homem, justamente porque pensa os
acontecimentos de modo narrativo e de fácil acesso. As diversas formas de narrativas
27
permitem representações e percepções de determinado tempo histórico, já que a narrativa
histórica é marcada pelo modo como as sociedades apreendem os momentos ou
acontecimentos. Assim, como pontua Oliveira (2006) toda produção historiográfica, seja ela
tradicional ou não, é regulada pelos princípios narrativos, já que “(...) os elementos com os
quais o historiador trabalha – mentalidades, sociedade, memória coletiva ou eventos pontuais
– são como personagens de um enredo” (p. 2). Dessa maneira, a história, mesmo quando se
afasta do modelo escrito, é uma narrativa na medida em que permite a uma sociedade se situar
e se expressar no tempo e no espaço.
Chartier (1994) ressalta que a narrativa histórica não visa necessariamente ao
relato completo e ordenado de fatos. Em muitos casos o próprio acontecimento histórico é
produto do processo de construção e representação de memórias e experiências da população.
Nesse contexto, as histórias em quadrinhos são narrativas, que compreendidas em sua
historicidade, e contando com tais aspectos iconográficos, já abordados, nos permitem
conhecer tais percepções e representações de determinadas sociedades. E assim, como
proposto pela Cultura Visual, o ideal seria buscar a compreensão acerca do que a imagem nos
informa e como ela o faz, fugindo de qualquer tentativa de utilizá-la apenas para ilustrar algo
já concebido.
Conforme Cagnin (2014) os quadrinhos são histórias em imagens, que podem ser
analisados por diferentes perspectivas, tais como a literária, histórica, psicológica,
sociológica, didática, e publicitária. A despeito de sua variedade de leitura e circulação, as
imagens desenhadas nos quadrinhos são um signo analógico, uma vez que possuem “íntima
relação de semelhança com o objeto representado, dando a impressão de uma quase
realidade” (p. 30). O quadrinho, politizado ou não, ficcional ou não, pode, então, servir como
objeto para o pesquisador, visto que, até mesmo as narrativas compostas por personagens
fantásticos e poderosos, expressam uma realidade alternativa na qual são questionados e
problematizados medos, anseios e valores da sociedade em que são produzidos. Segundo
Meneses (2003) ao se aproximar do campo visual, o pesquisador deve indagar sobre
percepção do potencial cognitivo da imagem, compreender como ela pode ser melhor
explorada, implicando também na percepção de quem a produziu e editou, e ainda, das
apropriações e receptividade do público leitor.
28
1.3 - Historietas: As Histórias em quadrinhos na Argentina
Ao passo que as histórias em quadrinhos se aperfeiçoavam nos Estados Unidos,
no início do século XX, na Argentina se desenvolvia um espaço propício para receber todo o
tipo de publicação gráfica. Sendo assim, o leitor argentino esbarrava em diversas revistas
como Jungle Jim (Jim de la Selva, de Alex Raymond), em que os negros, ignorantes e inábeis,
são liderados por Jim, capaz de protegê-los; Barney Google (na versão local, O Vinagreta),
com enredo distante dos argentinos, devido as suas tramas localistas; ou Little Orphan Annie
(Annie la Huerfanita), na qual os ricos são generosos e o pobres agradecidos. Nesse
momento, como assinalam Bróccolli e Trillo (1971), é possível verificar uma série de
quadrinhos que, além de não se aproximarem da realidade argentina, evidenciavam a
supremacia do homem ocidental, branco e norte-americano.
As primeiras histórias em quadrinho argentinas (historietas) apareceram no início
do século XX, em Caras y Caretas. Surgiram em forma de quadros unitários, sem
continuidade de personagens. Se destacavam, nesse momento, os caricaturistas que produziam
algumas sequências políticas. Entretanto, em 1912 surge a primeira historieta propriamente
dita: Las Aventuras de Viruta y Chicharrón, de Manuel Redondo. Um ano depois, o mesmo
autor desenvolve para Caras y Caretas, uma segunda historieta, Sarrasqueta, que também era
composta por seis quadros, mas diferente da primeira, apresentava tiras de crítica social.
Somente em 1924 é que apareceu uma historieta mais completa: La família de Don Sofanor,
de Arístides Rechain, publicada pela revista La Novela Semanal. Seu autor se destaca por
conseguir observar acuradamente a sociedade de Buenos Aires, apresentando todos os tipos
de pessoas, como de ladrões, políticos corruptos e policiais; e assim, produzir humor na
construção da linguagem e modos portenhos.
A excelente receptividade do público argentino para com as histórias em
quadrinhos permitiu que o gênero se consolidasse já na década de 1920, quando surgem as
revistas dedicadas exclusivamente ao humor gráfico e historietas (GOCIOL, 2003, p. 22). A
primeira delas, Páginas de Columba, batizada com o sobrenome do seu criador Rámon
Columba, passou a utilizar as historietas nas propagandas publicitárias, o que conferiu maior
sucesso às tiras e foi, em grande medida, responsável pela difusão dos quadrinhos no
ambiente argentino. Na mesma época, a revista El Titbits, dirigida por Manuel de Puga, passa
a publicar Los sobrinhos del capitán e La mula de Maud, intercalando historietas entre as
29
notícias diárias. Em 1926, Dante Quintenero5 produz Las andanzas de Manolo Quaranta em
La Novela Semanal, e em 1929 também cria Julián de Montepio, que logo se tornaria Isidoro,
um dos companheiros do índio Patoruzú, personagem de destaque entre os argentinos.
Nesse contexto de expansão, nos últimos anos da década de 1920, aparecem os
primeiros quadrinhos sem intenções humorísticas, relacionados a obras literárias, na maioria
das vezes. Em 1928, Raúl Roux6 publica El Tony, que em pouco tempo passou a vender cerca
de 300 mil exemplares semanais; o que, de certa forma, é indicativo do consumo e inserção
dos quadrinhos no hábito de leitura dos argentinos. As historietas, então, se converteram em
um sistema de promoção das próprias revistas. Algumas, até mesmo, convocavam seus
leitores a participar ativamente das narrativas escolhendo quando os personagens deveriam
morrer, o que deveriam fazer, e “(...) en algún caso, se publicaban tiras con el remate en
blanco para que los concursantes lo completaran y mandaran por correo.” (GOCIOL, 2003,
p.22)
Em 1930, a revista Crítica, que antes publicava os quadrinhos norte-americanos,
decide publicar historietas noticia, desenhadas por Pedro de Rojas, inovando a maneira de
levar ao quadrinho os temas da atualidade, e “de suplir, com dibujos, la falta de fotos sobre
los hechos de último momento” (BRÓCCOLLI; TRILLO, 1971, p. 26). Em 1931 a revista La
Razón publica Patoruzú, que rapidamente se transforma em um sucesso popular.
Concomitantemente, Caras y Caretas inicia a publicação de Las desventuras de Maneco, de
Eduardo Linage, tira semanal popularizadora da frase “Sonaste Maneco”, que se difundiu na
cidade de Buenos Aires, tornando-se um jargão muito utilizado. Dessa maneira, a partir da
década de 1930 “(…) ya se podia decir que la historieta argentina tenía una personalidad
propia y definida. Ya estaban los gauchos perseguidos por la partida, ya estaban los porteños
y los marginados.” (Ibidem, p.24).
Na década de 1940, outras transformações se mostraram fundamentais para o
processo de difusão das historietas argentinas. A Editora Abril se instalou em Buenos Aires
com a missão de intensificar a inserção, no território portenho, dos personagens famosos de
Walt Disney como Mickey e Pato Donald. Entretanto, diante das produções nacionais, decidiu
também criar o primeiro sindicato argentino de historietas, o Surameris, cuja principal missão
5 Dante Quintenero, desenhista muito conceituado no solo argentino, foi colaborador de Páginas de Columba,
revista de cunho político e social antes de iniciar suas publicações para La Novela Semanal. 6 Raúl Roux é considerado o iniciador das “historietas sérias”, trabalhou com histórias literárias, produzindo
quadrinhos como Hansel y Gretel, Robinson Crusoe, La islã del tesoro, Simbad el marino e Buffalo Bill. Roux
também foi precursor da temática gauchesca e das historietas de ficção científica.
30
era publicar histórias em quadrinhos argentinas – como Misterix e Cinemisterio – e organizar
sua distribuição pelo mundo.
Dessa maneira, com o passar do tempo outras historietas, personagens e autores
foram aparecendo no solo argentino e mundial. São inúmeros os títulos que passam a ser
publicados, principalmente por Rico Tipo e Patoruzú, responsáveis, na década de 1950, por
mais de metade da circulação total das revistas argentinas. Entretanto, grande parte das
revistas ainda contava com a presença das criações norte-americanas, uma vez que seus
editores estavam convencidos de que o público se interessava mais pelas histórias em
quadrinhos estrangeiras; e assim, apenas algumas editoras apostavam na publicação exclusiva
dos materiais nacionais, como Poncho Negro, Rayo Rojo, Fantasia e Frontera.
É nesse momento, contudo, que um roteirista argentino escreve Bull Rocket para a
revista Campani e revoluciona a maneira de encarar as histórias em quadrinho, diferenciando,
definitivamente, a historieta argentina da do resto do mundo. Seu nome: Héctor Germán
Oesterheld. Fundador das revistas Hora Cero e Frontera, Oesterheld redefiniu a forma de
elaborar os quadrinhos na medida em que humanizava seus personagens, criando narrativas
nas quais não existiam mocinhos completamente bons, nem vilões inteiramente ruins. Criou
histórias renomadas mundialmente como El Eternauta, Ernie Pike e Sargento Kirk. Ademais,
publicada em 1962, sua obra Mort Cinder, passou a ser considerada por muitos a melhor
história em quadrinhos da Argentina. Produção de ficção científica, narra a história de Cinder,
um homem enigmático que volta do túmulo a cada vez que morre: vive desde a Antiguidade,
e participa de famosos episódios, como a construção da Torre de Babel e a Primeira Guerra
Mundial. Dessa forma, conforme ressalta Gociol (2003), o autor se caracterizava por permitir
que seus personagens tivessem alguma chance redentora, através dos ideais de lealdade,
coragem, amor e amizade.
No início da década de 1970, inicia-se com o jornal Clarín um processo de
nacionalização da publicação de historias em quadrinhos nos jornais portenhos. Uma nova
seção destinada às historietas foi criada, e novos autores como Crist, Fontanarrosa, Bróccolli
e Caloi, passaram a publicar tiras e cartuns que, de certa forma, lidavam com as experiências e
problemas nacionais. Como assinala Ramos (2010), essa mudança editorial marcou, em pelo
menos dois aspectos, a produção de historietas, visto que além de ser um sinal concreto da
valorização das histórias em quadrinho na Argentina, possibilitou que os problemas sociais do
país aparecessem nas pautas dessa nova seção. A obra de Broccólli, Pérez-Man, por exemplo,
31
apresentava ao leitor um super-herói que tinha como desafio resolver os problemas
financeiros e sociais vividos no país.
Clemente, de Caloi foi outra grande obra nacional que, não só retratou, como
influenciou a sociedade argentina. Uma espécie de pássaro listrado que, ao lado do condutor
de bonde Bartolo, viveu muitas aventuras e conquistou grande popularidade. Clemente é um
tipo portenho, “fissurado por azeitonas, fanático por futebol e pelo Boca Juniors” (RAMOS,
2010, p.39), que entrou na vida dos argentinos e é um exemplo claro da importância da
historieta para essa sociedade:
Um dos costumes da torcida nos estádios de futebol é fazer uma chuva de
papel picado durante as partidas. Tradição que os militares quiseram coibir
durante a Copa Mundial de 1978. (...) Os militares promoveram uma
campanha oficial que procurava conscientizar a população a causar uma boa
impressão durante o mundial de futebol.(...) Foi onde Caloi achou uma
brecha para dar uma resposta. Pôs as palavras na boca de Clemente: ‘Como
não vamos atirar papéis se nós, argentinos, atiramos papéis?’. Iniciou, assim,
a guerra de los papelitos. (Ibidem, p. 40)
Destarte, o que acontecia com os personagens saía das páginas do jornal e caía na
boca das pessoas, em maior ou menor grau. Clemente foi selecionado para aparecer no placar
dos estádios de futebol, chegou a protagonizar um programa de TV, e em 2001, extrapolou
mais uma vez as tiras, sendo escolhido como voto de protesto dos argentinos na eleição
daquele ano: as cédulas mostravam o personagem com o indicado para uma das cadeiras do
Senado.
Mafalda, obra mais conhecida e publicada de Quino, é também um dos cartões de
visita da cultura argentina apresentado aos turistas que visitam Buenos Aires. Considerada
ídolo popular, possui sua imagem no interior da Casa Rosada, e foi homenageada com uma
estátua em San Telmo, na esquina da rua Defensa com a rua Chile. Na capital argentina, a
menina graciosa e questionadora é vendida em forma de canecas, bonecas, chaveiros,
camisetas, bolsas, calendários, entre outros.
Nesse cenário, Gociol e Rosemberg (2003) questionam a existência de uma
historieta nacional. Qual a importância dos quadrinhos argentinos? Quais são quadrinhos
argentinos? Sobre essas questões Alberto Breccia afirma que “Si definimos como argentina a
toda historieta realizada en el país llegaremos seguramente a la conclusión de que no sólo
existe una historieta nacional sino que ella es una de las que han dejado su huella con más
fuerza en el mundo” (Ibidem, p. 15). Sendo assim, quando o assunto é histórias em quadrinho,
a Argentina se destaca, não somente pela quantidade e qualidade de produções e autores que
fizeram sucesso, mas também, e principalmente, pela valorização social das produções
32
nacionais. Tendo em vista a capacidade dos quadrinhos de educar os sentidos e comunicar
ideias, as historietas adquirem importância na medida em que também contribuem para a
formação do próprio leitor argentino.
Figura 2: Homenagem ao personagem de Caloi, Clemente em Buenos Aires
7
Fonte: Foto tirada pela mestranda. Bairro San Telmo.
7 Homenagem ao personagem de Caloi, pertencente ao Paseo por la Historieta, iniciativa do Governo de
Buenos Aires para homenagear “al humor, la creatividad y la autocrítica que distinguen a nuestros artistas en
todo el mundo”. São homenageados dez personagens: Mafalda, Isidoro Cañones, Larguirucho, Matías, El Loco
Chávez, Clemente, Chicas Divito, Don Fulgencio, Patoruzú e Gaturro.
33
Figura 3: Estátua de Mafalda, Susanita e Manolito no bairro San Telmo
Fonte: Imagem disponível em: < https://www.dedmundoafora.com.br/2017/04/buenos-aires-estatua-mafalda-
argentina.html>. Data de acesso: 22/jan/2018
34
Capítulo 2: O autor e sua obra
35
2.1 – Quino
(...) Hay días que me considero un dibujante cuando me quedo contento con mi trabajo... Pero más
que un dibujante, soy un comunicador de ideas. O un periodista, si se quiere. Mi tarea es más de
hacerle notar a la gente algo que sin uno no hubieran notado. Aunque sean tonterías o pequeñas
cosas
Quino8.
Do tio herdou o nome e o gosto pelas artes. Dos pais, o apelido com o qual ficaria
conhecido em todo o mundo. Filho de imigrantes espanhóis da Andaluzia, Joaquim Salvador
Lavado, o autor de Mafalda, nasceu em 17 de julho de 1932, na cidade de Mendoza,
Argentina. O apelido – Joaquinito; Quinito; Quino – foi criado para diferenciá-lo de Joaquim
Tejón, seu tio, desenhista publicitário, com quem descobriu o mundo das artes.
Walter Benjamin (1994), ao comentar sobre o papel do narrador dentro da
discussão das práticas culturais, aponta que na contemporaneidade o autor sofre com o
problema da sua autonomia, da liberdade de escrever o que quiser, já que precisa se adequar
ao meio editorial no qual se encontra, e à situação social do momento, que o força a decidir a
favor de que causa se colocará. Partindo da premissa de que “(...) a missão do autor não é
relatar, mas combater, não ser espectador, mas participante ativo” (p.123); torna-se necessário
conhecer quem são esses autores e os locais onde eles estão inseridos. É, portanto, essencial
que nos atentemos à função exercida pela obra no interior das relações com as demais
produções de sua época, observando-se a necessidade de também se conhecer os materiais, as
possiblidades e as técnicas de produção dos humoristas gráficos, visto que, como assinala
Barreiro (2011) “(...) toda imagem humorística é gerada condicionada ao contexto no qual vai
se difundir e ao suporte no qual se publica” (p. 13-4).
Nesse sentido, embora exista vasta informação sobre Quino e suas obras – que
pode ser facilmente acessada através da internet, nos mais variados blogs e sites destinados à
Mafalda e seu autor –, há uma menor quantidade de trabalhos que articulam o desenhista com
outros nomes e produções desenvolvidas dentro do contexto histórico em que foram
publicados. E dessa forma, através de um breve estudo sobre sua carreira, mestres, trajetória
profissional e obras produzidas, é possível melhor compreender o autor, narrador, desenhista e
8 “Quino 50 años”. 2005. Disponível em: <http://www.losandes.com.ar/noticia/sociedad-161334>. Data de
acesso: 10/05/2017.
36
ator social, que através dos seus desenhos, não só reflete os questionamentos da sociedade em
que vive, como suas próprias indagações.
Quando questionado sobre suas inspirações e influências, Quino explica que o
desenhista de humor deve escolher que mestre seguir e que estilo adotar, até mesmo para
conseguir encontrar o seu próprio (QUINO, s.d. Data de acesso: dez/2016)9. Seu tio foi
responsável em grande parte por proporcionar o contato do sobrinho com as revistas
argentinas e estrangeiras que comprava, como Paris Match; na qual publicavam Bosc e
Chaval, desenhistas responsáveis por revelar o tipo de humor que a Quino interessava: “(...)
sintético, sem texto, direto, com uma grande doses de surrealismo mas, sobretudo,
completamente afastado do humor tradicional”(Idem). Além destes, muitos outros desenhistas
foram essenciais para seu aprendizado e descoberta de estilo e postura profissional. De acordo
com Quino, com Lin Palacio, por exemplo, se atentou ao traço da linha, à harmonia na
proporção dos personagens e à temática mais ampla e universal. Ademais, com o desenhista
francês Sempé (figura 4) – a quem se proclama irmão de tinta – compartilha o estilo de
humor, que “(...) não produz gargalhada imediata, mas deve ser observado com muita atenção,
inclusive pensado”10
.
Figura 4: Desenho de Sempé
Fonte: Disponível em: <http://ddotb.wordpress.com>. Data de acesso: 27/nov/2013
9 Alguns dos relatos de Quino não estão datados, mas estão disponíveis em seu site oficial:
<http://www.quino.com.ar>. 10
Idem. Conforme ressalta, nosso desenhista acredita ser um dos últimos expoentes de um tipo de humor em
extinção, o humor humanista, não contaminado pela sátira exclusivamente política do momento Além disso,
sobre o tipo de humor “mudo” e universal, Quino afirma ter se inspirado também no cinema, inclusive nos
filmes de Charles Chaplin, que por não possuírem diálogos, enfatizavam as expressões faciais e detalhes de
cenário.
37
Com Oski, Quino aprendeu a observar e extrair algo do que se observa, seja um
objeto ou uma pessoa; além de entender a necessidade de se ter disciplina e se documentar
seriamente antes de desenhar aquilo que foi observado. Quando já produzia Mafalda, visando
a verossimilhança de sua produção com o que notava da realidade, Quino até mesmo entrava
em lojas de roupas infantis, olhava as vitrines à procura de vestidos e sapatos que coubessem
na personagem (COSSE, 2014, p. 85). Dessa forma, conforme produzia suas tiras, os
personagens passaram a transcender o papel e dialogar com os leitores, o que – como melhor
abordaremos nesse trabalho – foi também responsável pelo sucesso de sua obra.
Ademais, pensando sobre seus grandes mestres, Quino afirma que é a Divito
quem atribui maior impacto sobre seu trabalho11
:
Cuando yo trabajaba en "Rico Tipo" le llevaba mis dibujos en lápiz, él me
los corregía y me decía «Esto estaría mejor de tal manera, aquí sobra este
árbol o esta nube, etc.», luego yo los pasaba a tinta y recién entonces, si le
parecía que estaban bien, me los publicaba. Aprendí de él una conducta
profesional, jamás copiar ideas o, descaradamente, la línea de otros
dibujantes (QUINO, s.d. Data de acesso: mar/2017).
Para a jornalista espanhola Maruja Torres, o desenhista tem algo de personagem
de desenho animado, com pernas magras, compridas e muito juntas, com pés grandes e
separados, e com o cabelo comprido desgrenhando-se onde a calvície permite (QUINO, 2003,
p. VI). À jornalista, ele revela que desde pequeno nunca desejou trabalhar com outra coisa.
Sua família estava constantemente exposta à arte, seja pela música cantada pela mãe e tocada
pelo violão dos irmãos ou pelos desenhos que todos faziam sobre a mesa de jantar. Além
disso, o fato de sua avó ser comunista e seus pais tenderem ao pensamento socialista fez com
que Quino crescesse em um ambiente extremamente politizado, republicano e anticlerical:
quando pequeno seu avô lhe ensinara que uma missa “(...) é uma congregação de ignorantes,
adorando a bunda de um velhaco” (QUINO, 2013). Hoje, quando questionado sobre sua
postura política, o autor diz ser “prescindista”, uma vez que para ele o problema não está nos
regimes políticos, e sim no ser humano.
No decorrer de sua juventude, muitos foram essenciais na formação de Quino
como profissional. Todavia, conforme entrevista concedida à Revista Samuel (2013), somente
depois de algumas aulas com Demetrio Urruchúa, pintor argentino, conseguiu definir um
estilo próprio, o formato dos narizes, o tamanhos dos pés, entre outros detalhes de seus
11
José Antonio Guillermo Divito, conhecido simplesmente como Divito, era desenhista, humorista e editor. Seus
principais trabalhos são das décadas de 1940 a 1960, quando fundou e dirigiu uma das mais famosas revistas
argentinas, Rico Tipo.
38
personagens, isso já em 1965. Desde que iniciou sua carreira na produção de humor gráfico,
alguns foram os procedimentos por ele adotados. Atualmente, quando discorre sobre o
processo de elaboração do desenho, afirma que primeiro elabora um esboço com lápis para
depois desenhar com tinta nanquim. Quando não consegue ter ideias – o que de acordo com
ele acontece com relativa frequência –, elabora muitos esboços em blocos de nota e os guarda
num arquivo, recorrendo a ele sempre que necessário. Ademais, sempre manteve um caderno
ao lado da cama para anotar as ideias sobre as quais refletia antes de dormir. Atualmente, com
oitenta e cinco anos, e sofrendo de glaucoma, Quino afirma: “já não mais anoto. Agora as
guardo para mim”12
.
2.1.1 - A trajetória
Quino nasceu no início da década de 1930 em uma família de imigrantes
espanhóis, pertencentes à classe média argentina. Em 1939 iniciou a escola primária, onde
sofreu com sua timidez e dificuldades de aprendizado13
. Após terminar o colégio, Quino
entrou para a Escola de Belas Artes de Mendoza, mas as aulas não o empolgaram e ele as
abandonou por estar “cansado de desenhar ânforas e gessos” (QUINO, s.d. Data de acesso:
mar/2017). Seu objetivo já estava definido: era ser desenhista de histórias em quadrinhos de
humor, de preferência na revista portenha Rico Tipo, de Divito, com quem sonhara trabalhar
desde a infância. Todavia, enquanto isso não acontecia, ele tentava vender sua primeira
historieta.
Na tentativa de conseguir mais oportunidades de trabalho, em 1951, Quino viajou
para Buenos Aires, onde percorreu várias redações de revistas e jornais. No entanto, após três
semanas voltou à Mendonza sem qualquer oferta de trabalho. Em 1953, para o aumento de
sua angústia, se viu obrigado a servir ao Exército, o que de certo modo alterou sua percepção
do mundo e seus próprios desenhos, visto que compartilhar sua “vida com rapazes de origem
social diferente... Foi uma grande ruptura, um enriquecimento, que permitiu desenhar algo
diferente” (Idem). No ano seguinte se instalou em Buenos Aires e continuou a percorrer as
redações na procura de um emprego. Conforme observou, esse foi um período muito sofrido,
12
Idem. Sobre sua condição atual ver também a entrevista concedida para El País. Disponível em:
<http://brasil.elpais.com/brasil/2014/10/17/sociedad/1413566259_284551.html>. Data de acesso: 13/02/2017. 13
Sua relação com a escola, como veremos no próximo capítulo, foi fundamental para a representação da escola
de Mafalda e a construção dos personagens enquanto estudantes. Felipe, por exemplo, é o personagem a quem
Quino revela mais se identificar, e ele, como seu criador, é extremamente tímido, com dificuldades de
aprendizado e medo da professora.
39
suas condições de vida eram muito precárias e para conseguir se sustentar na capital teve de
conviver com mais três ou quatro pessoas no mesmo quarto de pensão.
Finalmente, para a felicidade do autor, em 1954, o semanário portenho Esto Es
publicou sua primeira página de humor gráfico, alternando as publicações de Quino com as de
outros desenhistas (figura 5 e 6). A partir daquele ano, passou a publicar em diversos meios,
como Vea y Lea, Leoplán, Damas y Damitas, TV Guía, Usted, Che, Panorama Atlántida,
Adán, Democracia, entre outros. Desde então, seus desenhos de humor têm sido publicados
ininterruptamente em diversos jornais e revistas da América Latina e da Europa.
Em 1957, Quino concretiza seu maior desejo e começa a trabalhar com Divito,
publicando regularmente em Rico Tipo. A revista, criada por José Antonio Guillermo Divito,
em novembro de 1944, ficou famosa pela produção das Chicas de Divito (figura 7), mulheres
sensuais que, de tão populares que se tornaram, passaram a ditar moda em Buenos Aires na
década de 1950. Além das Chicas, Divito criou uma série de personagens que retratavam
diferentes aspectos de um cidadão comum: Pochita Morfoni, por exemplo, era uma mulher
obesa que só pensava em comida; Fallutelli, um típico empregado bajulador que traía seus
colegas para agradar ao chefe; Fúlmine, um homem feio que aonde ia levava consigo azar e
desgraças; El abuelo, um velhinho inofensivo e apaixonado pelas jovens; e Gracielita, uma
menina muito moderna e inteligente.
40
Figura 5: Desenho assinado como Quino Tejón, publicado por Esto Es em 1955.
Fonte: Imagem disponível em: < http://quinohumor.blogspot.com.br/> Data de acesso: 13/jun/2016
Figura 6: Desenho publicado por Esto Es, nº 63, fevereiro de 1955.
Fonte: Imagem disponível em: < http://quinohumor.blogspot.com.br/> Data de acesso: 13/jun/2016
41
Figura 7: Chicas de Divito na Capa. Rico Tipo ano I nº4
Fonte: Imagem disponível em: <hhtp://www.retratoenlinea.com>. Data de acesso: 27/nov/2016
Além disso, ganha espaço em Dr. Merengue e Tía Vicenta, revista extremamente
politizada. Nesta última, Quino trabalhou com desenhistas como Landrú, Vilar, Nowens e
Siulnas, com quem compartilhou temáticas, formas de abordagem e de sátira humorística. Tía
Vicenta foi criada em 20 de agosto de 1957 por Juan Carlos Colombres, Landrú, juntamente
com Oscar Conti, Oski. A personagem central fora inspiração de Landrú, baseada em sua tia
Cora, quem acreditava tudo saber mesmo não tendo ideia do que estava dizendo. Revista de
oposição, dedicou-se a temas políticos e sociais como a censura, a proibição do peronismo e a
alta inflação sofrida pela sociedade argentina. Tía Vicenta era famosa pela sua satirização dos
políticos argentinos através de caricaturas e associações com animais. Por exemplo, o general
Juan Carlos Onganía – que em 1966 instauraria a ditadura militar na Argentina – era
desenhado como uma morsa com bigodes. Dentre outras razões, esses desenhos foram
responsáveis pelo fechamento da revista em julho de 1966.
Na análise dos trabalhos dos desenhistas argentinos que publicavam na mesma
época ou, até mesmo, nas mesmas redações que Quino, foi possível observar como os autores
se parecem nas abordagens realizadas e tópicos propostos. Em Tía Vicenta, por exemplo,
42
encontramos páginas exclusivamente destinadas aos colaboradores desenhistas, o que nos
permite visualizar as diferentes produções que aparecem em uma mesma publicação:
Figura 8: Desenhos de Quino, Flax, Miguel Brascó, Siulnas e Politesse, 7 de maio de 1962.
Fonte: Hemeroteca Biblioteca Nacional da Argentina. Tía Vicenta, ano VI, n 209.
Na página em questão, todos os desenhistas produziram sátiras ou desenhos
contestatórios da sociedade da época. Apesar das diferentes abordagens, traços, tamanhos de
corpos, e composições de cena, é possível verificar uma mesma tendência – ou desejo – de
43
expressar as críticas ao comportamento humano face aos problemas do cotidiano ou aos
acontecimentos políticos argentinos. É o que vemos no desenho de Quino, que mostra o ser
humano preso ao consumismo, expressado pela garrafa de Coca-Cola (símbolo do capitalismo
e da supremacia estadunidense), a qual acredita ser uma excelente bebida; e o desenho de
Pesadilla, que remete ao ex-presidente Perón e aos grupos atrelados ao peronismo que
tentavam retomar o poder na Argentina.
Dessa forma, ao passo que as publicações foram analisadas, encontraram-se
muitos quadros humorísticos sobre o mesmo tema produzidos por diferentes autores. Além
disso, por muitos anos, enquanto Quino elaborava tiras para Tía Vicenta e Rico Tipo, já
publicava Mafalda no diário El Mundo, o que também possibilita comparações entre as
diversas produções humorísticas e a tira. Sobre o tema da passagem de ano, por exemplo,
encontramos as seguintes figuras:
Figura 9: Tira da Mafalda publicada por El Mundo, dezembro de 1965.
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 1993, p 195.
44
Figura 10: Tira de Landrú publicada em 19 dezembro 1965. Tía Vicenta ano IX nº 339
Fonte: Hemeroteca Biblioteca Nacional da Argentina.
A tira de Quino (figura 9) apresenta as personagens Mafalda e Susanita
caminhando pela calçada do bairro. As duas iniciam um diálogo sobre o ano que se acaba,
com uma expressão amena no rosto. O fato de as duas personagens estarem caminhando uma
frente a outra, corrobora para a produção da ideia de continuidade do tempo. No segundo
quadro, entretanto, a caminhada se interrompe com a indagação de Susanita sobre o ano que
está por vir. Mafalda adota uma expressão de dúvida e, como se refletisse sobre o fato,
afirma, no último quadro, que o próximo ano será muito valente visto que “como anda la cosa,
animarse a venir!...”. Susanita perde sua expressão leve e Mafalda se mostra desesperada. Seu
corpo voltado para a amiga e o movimento das mãos, revelam sua alteração. O humor da tira
se mostra no fato de Susanita estar esperando uma resposta positiva sobre o novo ano e
receber em troca um desabafo sobre a situação atual do país. Também, a graça se faz pela
protagonista compreender que o ano vem caminhando (no sentido literal), e que possui muita
coragem por decidir continuar seu curso.
45
Já o desenho de Landrú (figura 10), que, diferente de Quino, acontece em um só
quadro, também representa o final de ano 1965, nos mostra uma família reunida à mesa,
composta por uma mulher, um homem, uma criança e um senhor idoso. Percebe-se que se
trata de uma celebração da passagem de ano, visto que todos estão com um vestuário mais
formal, com ternos e vestido, e que seguram nas mãos taças de alguma bebida espumante,
utilizada em brindes e festas. A legenda nos ratifica essa ideia: “viva el 66!”. Nesse cenário de
possível festa, ainda vemos que um dos homens, com uma expressão de seriedade, discursa
sobre a passagem do ano, desejando saúde e dinheiro a todos. O humor e crítica aparecem
quando ele completa seu raciocínio, anunciando que devido ao cenário atual, já estariam no
lucro se “lleguemos al año que viene!”. Para também apresentar a ironia, toalha remendada, as
vestimentas surradas, e a pouca comida sobre a mesa servem de indicativos da dificuldade
econômica vivida pela família em questão. Apesar de se distanciarem quanto aos elementos
gráficos, os desenhos se aproximam na medida em que apresentam o mesmo tom pessimista
sobre a possibilidade de alteração da situação sócio-política do país
Em 1960 Quino se casa com Alicia Colombo e viaja ao Rio de Janeiro,
aproveitando também para relacionar-se com colegas e editoras estrangeiras. Sua primeira
exposição ocorre em 1962, em uma livraria de Buenos Aires, e no ano seguinte é publicado
seu primeiro livro, Mundo Quino, uma compilação dos desenhos de humor gráfico sem texto,
com prólogo escrito por seu grande amigo, Miguel Brascó. Nesse mesmo ano, Quino é
contratado para elaborar tiras que divulgassem os produtos eletrodomésticos Mansfield:
Mafalda é criada. Sua mais famosa obra, a enfant terrible, é lançada em 1964 pelo
suplemento humorístico da revista Leoplán, e em 29 de setembro passa a ser publicada
semanalmente em Primera Plana, passando depois para o diário El Mundo e a revista Siete
Días Ilustrados14
.
Na década de 1970 as outras produções de humor gráfico de Quino também se
expandiriam para o resto do mundo; e em 1978, o Salão Internacional do Humorismo de
Bridigher confere-lhe o Troféu Palma de Ouro, sua mais alta distinção. Em 1980, Quino, não
mais produzindo Mafalda, passa a publicar suas páginas de humor na revista dominical do
jornal Clarín (figura 11).
14
A trajetória de Mafalda será mais bem desenvolvida ainda nesse capítulo.
46
Figura 11: Desenho de Quino publicado por Clarín
Fonte: Imagem disponível em: <http://www.tierra21.com.ar> Data de acesso: 20/nov/2016
Além dessas produções, suas contínuas publicações, tanto na Argentina como em
todo o planeta, lhe conferem o título de Desenhista do Ano, em 1982; e, devido a isso, o autor
passa a presidir o júri do Salão Internacional de Humorismo de Montreal, no Canadá. Nesse
mesmo ano, Quino também recebe o prêmio Konez de Platina de Artes Visuais e Humos
Gráfico.
Nesse desenho, em questão, observamos um pai ensinando aos filhos os valores
da vida moderna. Semelhante ao que se espera de uma boa educação familiar, o pai aponta e
procura mostrar ao filho como se anda, se pensa, o que se ama, o que se venera, e onde se
encontram os valores morais da sociedade. Contudo, o humor se faz na mistura de crítica e
denúncia apresentadas de forma clara e irônica.
47
A despeito de ter interrompido a produção de Mafalda em 1973, as obras de
Quino ultrapassam a sua mais famosa personagem, transformando-o em um nome conhecido
em diversos países. Em 1984, o desenhista é convidado para integrar o júri do festival de
Cinema Latino-Americano de Havana, onde inicia sua amizade com o diretor de cinema de
animação Juan Padrón, assinando um contrato com o ICAC para a realização de curtas-
metragens com suas páginas de humor, os Quinoscopios. De volta à Argentina, a Fundación
San Telmo organiza uma exposição retrospectiva de Quino em Buenos Aires, e, no final de
novembro do mesmo ano, outra exposição é organizada na sua cidade natal, Mendoza; onde,
em 1988, é outorgado com o título de Cidadão Ilustre, recebendo a chave da cidade.
Sua obra Mafalda, ainda publicada em diversas línguas e formatos é, também em
1988, condecorada com o grande prêmio internacional Max und Moritz, em Erlangen, na
Alemanha, durante o Terceiro Salão Internacional da História em Quadrinhos. Em 1992, a
Sociedade Estatal Quinto Centenário organiza, em Madri, uma grande mostra intitulada “El
Mundo de Mafalda”, durante a qual também é exibido um curta-metragem dirigido por Juan
Padrón. Enfim, muitos foram os títulos, prêmios e homenagens prestadas a Quino e suas
obras. O desenhista torna-se, até mesmo, a segunda pessoa do mundo a receber o prêmio
Quevedos de Humor Gráfico, em 15 de outubro de 2001. Suas obras, são expostas até hoje em
países como França, Cuba, Espanha, Bolívia, Itália, Holanda e Marrocos. Em 7 de setembro
de 2005, dia do professor na Argentina, a Confederación de Trabajadores de la educación de
la República Argentina (CTERA) entrega a distinção “Maestro de Vida” a Quino, em
reconhecimento a sua memorável trajetória15
.
Quino publicou ao longo de duas décadas em diversas páginas de humor e
atualidade. E ao adaptar-se às diversas linhas editoriais, explorou várias formas de humor, de
desenho, de temáticas. Destarte, estudar sua trajetória é imprescindível para a maior
compreensão acerca do autor, de sua obra e do seu papel como agente social. Ao passar dos
anos as demais produções além de Mafalda, também se tornaram livros, e, em 2001, a editora
15
No Dia dos Professores, a Ctera se reuniu em um teatro portenho para homenagear “aquellas personalidades
que con su testimonio de vida o con su ejemplo de entrega van iluminando el contorno de una sociedad más
justa” (PAGINA/12). Nesse evento foi entregue uma distinção de “Maestros de vida” à presidenta das Avós da
Praça de Maio, Estela Carlotto, a Eduardo Galeano, Quino, Alfredo Alcón, Joan Manuel Serrat, entre outros.
Quino, através de suas tiras contribuiu para a formação do argentino, seja pela crítica ou consolidação de ideias e
elementos culturais da sociedade. Sua produção era lida por alunos e professores, e, dessa maneira, conforme
expandia suas publicações, se tornava um sujeito distinto, compreendido como “maestro” da vida, pela
Confederación de Trabajadores de la educación de la República Argentina.
48
Ediciones de la Flor as compila no livro Esto no es todo16
. Observando seus trabalhos
anteriores, os desenhos de Mafalda e os mais recentes, é perceptível a mudança do traço, o
aumento dos detalhes e a complexidade dos desenhos.
A imagem abaixo, por exemplo, apresenta uma narrativa sobre ao amor
malsucedido, que “no pudo ser”, a partir do encontro de dois personagens que se conhecem
em uma galeria de arte, rica em detalhes, e terminam o possível relacionamento em cafés
diferentes na mesma cidade. Os personagens possuem cabelos, formato de mãos e narizes que
passam a ser característicos dos desenhos mais recentes de Quino. Ainda, o modo como a rua,
os demais personagens, a senhora observando as frutas em frente ao mercado, o cachorro, o
lixo na calçada, e os carros se dispõem na cena, além de enriquecerem o cartoon, produzem
um efeito de causalidade, até mesmo, normalidade, no desencontro dos apaixonados, como se
a cidade presenciasse tais cenas cotidianamente.
16
As outras obras de Quino viraram livros: ¿Quién anda ahí?, Déjenme inventar, Quinoterapia, Gente en su
sitio, Si, cariño, Potentes, prepotentes e impotentes, A la buena mesa, Ni arte ni parte, La aventura de comer,
¡Cuánta bondad!, ¡A mí no me grite!, ¡Qué presente impresentable!, Bien, gracias. ¿Y usted?, Humano se nace,
Yo no fui, Cuentecillos, ¡Qué mala es la gente!.
49
Figura 12: Desenho de Quino
Fonte: QUINO. ¡Que Mala es la gente!. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 2013, p 82.
50
2.1.2 – Humor e Humor em Quino
O humor é complexo e de difícil análise. Como aponta Saliba (2016), realizar um
estudo histórico das teorias a respeito do riso e do humor seria quase impossível de se fazer de
forma completa, visto que “trata-se de uma experiência humana tão variável e imprecisa que
resiste a qualquer tentativa de categorização” (p.3). A partir dos anos 1970 começaram a
aparecer alguns trabalhos destinados ao estudo do humor na perspectiva da História Cultural,
marcados pela grande variedade de temas, abordagens e documentos utilizados, tais como:
manuais de trotes e de civilidade, escritos apócrifos, livros de piadas, periódicos humorísticos,
coleções de anedotas, registros cinematográficos, biografias de humoristas obscuros, e
histórias em quadrinhos. Nesse contexto, a partir do variado espectro de fontes, se objetivava
compreender o quanto, nas sociedades ocidentais, o humor “incentivou laços de sociabilidade,
sublimou agressões ou ressentimentos, administrou o cinismo ou estilizou a violência”
(Ibidem, p. 1). Desse modo, o humor passou a ser visto pelo meio acadêmico como
importante fonte para entender o funcionamento das sociedades, uma vez que também é
relevante nos processos de construção política, social e cultural em diferentes épocas e locais.
Dentre as manifestações culturais do humor destacam-se as histórias em
quadrinhos, mais precisamente, as tiras humorísticas. Estas, publicadas, na
contemporaneidade, em jornais e revistas, são estruturadas em três momentos, segundo
Ramos (2005, p. 1160): o de “normalização da cena”, mediante a apresentação dos
personagens; o de “locução de deflagração”, responsável por apresentar o problema a ser
resolvido; e o de “interlocução de distinção”, encarregado de transitar a narrativa para o modo
cômico. Essa estrutura, semelhante a uma piada, promove mudanças de curso nas histórias
reproduzidas, e surpreendem os leitores, provocando desfechos “inesperados”, que tendem a
se tornar as fontes de risos do leitor.
Ao discorrer sobre a produção das tiras humorísticas, muitos teóricos a tratam
como uma piada, assinalando que cada tira possui um texto completo com início,
desenvolvimento e desfecho, e assim, cada uma delas “apresenta uma piada (gag) que precisa
ser contada em algumas vinhetas” (SANTOS, 2004, p. 47). Além dele, Marcelino (2003),
Vergueiro (2005) e Cagnin (1975) apontam que as histórias em quadrinhos curtas possibilitam
suprimir facilmente os textos e, utilizando dos recursos gráficos e linguísticos, conseguem
apresentar a piada em três ou quatro quadros. Dessa maneira, apesar dos variados recursos e
elementos das tiras, os autores são consonantes quanto à estrutura cômica, defendendo que a
51
grande diferença entre a piada e a tira consiste na apresentação do elemento visual e na
tendência de repetição temática.
Dentro dessa perspectiva, a figura abaixo (figura 13), obra de Mário Latino,
apresenta Roberval, um personagem que também é cartunista, e conversa com o filho sobre o
momento de produção das tiras cômicas17
. De acordo com ele, antes de desenhar a tira, é
necessária a elaboração da ideia, dos diálogos e do ambiente para que se possa averiguar o
sucesso da “gag”. E então, corroborando com a ideia de compreender a tira como uma piada,
Roberval explica os três momentos apresentados por Ramos (2005; 2007): um primeiro
quadrinho que cria a situação, o segundo que funciona como ponte entre o primeiro e o
último, e a vinheta final, na qual “tudo descamba”, ou seja, surge o inesperado, a piada.
Eisner (2005, p. 106) também parte do princípio da incongruência – do final
inesperado –, para explicar o efeito de humor das tiras. De acordo com o autor, a história em
quadrinho não é, mas contém uma piada, visto que estruturalmente ela é a dramatização do
texto cômico e surpreendente. Contudo, a comicidade não é produto exclusivo do artista, visto
que também conta com a colaboração constante do leitor na medida em que depende do
segundo a compreensão dos discursos e elementos visuais. Nesse sentido, a ironia também é
apresentada como característica da produção de humor, visto que além da quebra do
raciocínio linear, requer uma cumplicidade ativa com os sujeitos, exigindo que os leitores
completem o raciocínio proposto pela tira e descubram a crítica apontada ironicamente pelos
personagens.
Ainda sobre o tema, Marcelino (2003), articula uma teoria que classifica o humor
das tiras em três níveis: o “diegético”, no qual o elemento cômico está no personagem, que
age de forma ridícula ou engraçada propositadamente; no “extradiegético”, que delega ao
narrador a articulação do cômico; e o “extratextual”, no qual o leitor enxerga uma situação
cômica na atitude do personagem ou no enredo da cena, sem que o personagem em si tenha
ciência da situação humorística em questão.
17
Mário Latino é um cartunista nicaraguense radicado no Brasil. Dentre outras obras, no final de 1996, criou
Roberval, seu personagem mais popular. O personagem é uma mistura de "cartunista e escritor", como bem diz o
próprio autor no texto de abertura da revista. É casado e tem um filho muito criativo. Sua esposa Regina,
caracterizada como contraponto aos devaneios de Roberval, é uma mulher pragmática, e assim, os conflitos
familiares e cotidianos são os temas principais da obra.
52
Figura 13: Roberval
Fonte: RAMOS, Paulo. Tiras cômicas e piadas: duas leituras, um efeito de humor, 2007. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8142/tde-04092007-141941/pt-br.php>. Data de acesso: jan/2018.
53
Considerando tais elementos sobre o humor, produção e caraterização das tiras
humorísticas, a análise dos quadrinhos de Mafalda neste trabalho, parte do pressuporto que é
possível apreender não somente as informações presentes nos elementos gráficos e textuais,
mas também o processo de produção humorística, sua recepção e compreensão por parte dos
leitores, bem como a cultura do humor na sociedade argentina. Mafalda se encontra em uma
zona entre o amadurecimento biológico e a maturidade intelectual. Tem raciocínio e interesses
de adulto apesar de ter somente seis anos. Essa incongruência gerava riso. O pensamento
adulto vindo de uma inocente criança gera o humor, e isso adquiria ainda mais força porque
dialogava com as concepções da época sobre infância e criação dos filhos18
. Dessa maneira,
como assinala Cosse (2014), ao passo que Quino incorporava debates e conflitos vivenciados
pelos leitores de suas tiras, ele consolidava seu espaço com o público e garantia a produção de
um humor pautado na identificação e reflexão que Mafalda exigia de seus leitores.
Ademais, Quino utiliza da ironia constantemente como ferramenta humorística.
Na tira abaixo vemos uma cena em que Mafalda interroga Pelicarpo sobre ser um bom pai, o
que já traz o elemento surpreendente, visto que invertia a situação habitual, na qual são os
adultos que questionam as atitudes infantis e perguntam às crianças se elas eram ou não
bondosas. Uma das primeiras tiras de Quino publicada na Primera Plana em 24 de setembro
de 1964, apresenta pouco detalhamento dos corpos e cenário. Os traços e definições corporais
que assumiriam os personagens ainda estavam em construção. No primeiro quadro vemos a
menina em pé, indagar ao pai que se encontrava sentado, com as pernas cruzadas, lendo um
livro. Ele abre um leve sorriso e responde que “sí”. No entanto, no quadro seguinte, a menina
ainda insatisfeita com a resposta, assume uma expressão de felicidade, abre os lábios em um
grande sorriso, ergue os braços como que enaltecendo enquanto o questiona sobre ser “más
bueno de todos los papas del mundo”.
18
Na metade do século XX ocorre uma transformação da noção de infância, que deixa de ver a criança como
depositório de sentimentos puros e inocentes, e passa a enxergá-la com símbolo de progresso e bem estar para as
famílias, para a nação e para a humanidade. Na medida e que Quino produz Mafalda, ele dialoga com essas
transformações, e mais do que isso, colabora para a entronização da infância, para a ideia de que a criança
deveria ser preocupação da família e do Estado (COSSE, 2014, p. 45)
54
Figura 14: Tira de Mafalda publicada por Primera Plana
Fonte: QUINO. Mafalda Inédita. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1988, p.567.
Enquanto Mafalda o questiona ele coloca a mão sobre a boca e a observa
atentamente, refletindo sobre a pergunta, e logo responde: não era o melhor, mas era um bom
pai. Seus braços se abrem como que num abraço, e o sorriso em seus lábios nos permitem
inferir que ele acreditava ser essa uma resposta satisfatória. Contudo, Mafalda permanece ao
seu lado com os braços paralelos ao corpo, e contrariando o pensamento do pai, vira de costas
e o abandona, indignada com a resposta recebida. Percebemos sua revolta não pela fala, mas
pela sua expressão fácil e corporal, uma vez que sua boca está aberta e seus olhos se contraem
ao mesmo tempo em que seu corpo anda curvado e suas mãos, numa espécie de “murro”,
acompanham o andar pesado. O pai, assim como o leitor, é pego pela surpresa da reação da
filha, seus olhos se arregalam e ele fica sem compreender.
A resposta do pai no terceiro quadro permite que o elemento disjuntor atue na
cena, e rompa com a linearidade do pensamento, promovendo incongruência e humor. O pai,
diferente do que se esperava, desloca sua própria autoridade e duvida de sua capacidade
enquanto melhor pai do mundo, permitindo que sua filha também assim questionasse. Suas
suspeitas foram confirmadas e sua reação irônica nos mostra isso. Dessa maneira, o humor é
gerado pela inversão de papeis, pela ironia da personagem, bem como pelo reconhecimento
do diálogo por parte dos leitores. O riso é provocado, assim, não só pelas situações
apresentadas, mas pelo modo como elas se desenvolvem na sucessão de quadros da tira.
Desse modo, uma vez analisada a totalidade das tiras de Mafalda, pode-se inferir
que – conforme a teoria apresentada por Marcelino (2003) –, o humor presente nas tiras é, na
sua maioria, extratextual, visto que os personagens vivenciam situações cotidianas, e somos
nós leitores que percebemos a comicidade na ironia, na incongruência, e nos elementos
estruturais da tira. Ademais, o recurso humorístico utilizado por Quino requere, por parte do
55
leitor, a capacidade de estabelecer empatia e reconhecimento com a situação exposta pela tira;
além de exigir reflexão sobre a realidade, e modos de pensar e agir, muitas vezes denunciados
e criticados pela obra.
56
2.2– Mafalda
“No tiene importancia lo que yo pienso de Mafalda. Lo importante es lo que
Mafalda piensa de mí”
Julio Cortázar
La enfant terrible
Mafalda surgiu na década de 1960 num cenário de organização dos jovens
latino-americanos e europeus, que se manifestavam em prol de maior participação política, da
consolidação de direitos sociais e pelo fim da arbitrariedade de alguns governos latino-
americanos. As gerações pós-guerra se distanciavam dos mais velhos na medida em que
viviam tempos de crescimento econômico e expansão dos direitos sociais, e por isso,
protagonizaram revoltas políticas e culturais, que bradavam por uma nova ordem mundial.
Nos anos 1960 e 70, a Argentina, especificamente, se encontrou num período de
grande conturbação política e social. Após dois mandatos presidenciais de Juan Domingo
Perón, o país se deparou com uma instabilidade política já que, durante anos, o poder oscilou
nas mãos de militares e civis como Arturo Frondizi19
e Umberto Illia. Este, governou o país
de 1963 a 1966, período no qual os militares como o General Juan Carlos Organía cultivavam
a imagem de sucessores mais moderados de Perón. A despeito das tentativas de
redemocratização de Illia – permitindo, até mesmo, que os peronistas apresentassem
candidatura nas próximas eleições –, em 28 de junho de 1966, Onganía depõe o presidente
através de um golpe militar20
. Nesse momento as manifestações sociais e culturais se
intensificaram, e enquanto os militares governaram, o peronismo continuou a crescer na
Argentina, corroborando para as crises internas que acompanharam o governo ditatorial, até
que, em 1973, a crise desembocou em uma eleição que contou com 50% dos votos para o
peronismo21
.
19
Arturo Frondizi foi presidente da Argentina de 1958 a 1962. Durante o processo eleitoral que o elegeu, o
peronismo estava proibido no país. No entanto, Frondizi, se comprometeu a anular as leis de proibição do partido
de Juan Perón, em troca dos votos de seus seguidores. Durante seu governo, promoveu a lei de anistia para os
presos políticos, e impulsionou o desenvolvimentismo, propondo o investimento em indústrias de base. 20
Umberto Illia, ao assegurar o direito dos peronistas de apresentar candidatura às eleições, determinou, porém,
algumas condições, dentro das quais a principal era a de que Perón nunca poderia ser candidato a nada. Perón,
colocando à prova essa decisão tenta, em dezembro de 1964, retornar a Argentina, mas é interceptado pelas
autoridades do Rio de Janeiro, a pedido das autoridades argentinas. 21
Onganía, comandante do Exército argentino, dirigiu o golpe e assumiu a presidência do país em 30 de junho
de 1966. Pouco tempo depois, decretou a intervenção policial nas universidades, o que gerou protestos de
docentes e estudantes. Suas manifestações foram duramente reprimidas na chamada “noche de los bastones
largos”, que além de violenta foi responsável pela demissão e exílio de muitos professores universitários. Tanto
57
Assim, naquele ano, o novo governo, que também contava com o apoio de outros
setores como o frondizismo, os democratas cristãos e socialistas – unidos no intento de vencer
as eleições contra Lanusse – trouxe Perón novamente para o solo argentino, uma vez que ele
era considerado o líder capaz de controlar e moderar a população22
. Perón soube conciliar e
fazer dialogar os lados mais extremistas da direita e da esquerda, propiciando que muitos se
aproximassem do governo. Entretanto, em julho de 1974 Perón sofre um infarto e falece,
ascendendo ao poder sua esposa María Estela Martínez, conhecida como Isabelita Perón.
Somado ao contexto propício a um golpe militar, já apresentada por Onganía, Isabelita e seu
ministro José López Rega, adotaram práticas e ações políticas impopulares que
desencadearam novas manifestações e insatisfações em diversos setores sociais. Ademais, as
Forças Armadas encontravam-se cada vez mais autônomas e presentes no governo argentino,
o que resultou em março de 1976 num outro golpe militar que designou a Presidência a Jorge
Rafael Videla.
Este trabalho percorre esse período da história argentina, seguindo os rastros de
Mafalda – a obra –, partindo da premissa de que a personagem possui significação social e
política, que a converteram em uma riquíssima fonte para compreender as comoções culturais
e sociais do período. Como afirma Cosse (2014), essa produção encarnou as novas gerações
contestatárias e a história foi lida, discutida e usada como uma representação emblemática da
sociedade argentina. Sua capacidade de suscitar identificação em uma forma global, lhe deu
uma popularidade que “sobrepasó Argentina, Mafalda trascendió su origen clasemediero y el
humor de Quino iluminó la condición humana” (p. 19).
A historieta nasceu atrelada aos processos culturais, sociais e econômicos próprios
da metade dos anos 60, e, dessa maneira, encarna as tensões e trabalha sobre as contradições,
impossibilidades e frustrações que acometiam a sociedade argentina. Mafalda, além de
dialogar com o mundo em que surgiu, foi capaz de operar sobre essa realidade, na medida em
que produziu e circulou uma representação e forma de humor que corroboraram para afirmar,
pensar e discutir a identidade da classe média e discuti-la em um contexto cada vez mais
polarizado.
os acontecimentos políticos, como os sociais e culturais foram fundamentais no diólogo que Mafalda estebeleu
com seus leitores, tendo em vista suas posturas antiditatoriais e antiautoritárias. 22
O frondizismo era um movimento criado pelos seguidores de Arturo Frondizi e adeptos ao peronismo, que
após o pacto firmado pelos dois presidentes, se uniram e contribuíram para o retorno de Juan Perón ao país.
58
2.2.1 - A trajetória
A trajetória de Mafalda abarca o período compreendido entre os anos 1964 e
1973, em três diferentes publicações: a revista semanal Primeira Plana, o jornal diário El
Mundo e a revista semanal Siete Días Ilustrados. O humorista e escritor Miguel Brascó,
amigo pessoal de Quino, define o nascimento de Mafalda como “una historia curiosa”:
Quino me había comentado que tenía ganas de dibujar una tira con chicos.
Un día llaman de Agens Publicidad y me piden un dibujante capaz de urdir
una tira cómica que habria de publicarse de manera encubierta en algún
médio, para promocionar los electrodomésticos Mansfield producidos por
Siam Di Tella. (QUINO, 1988).
Brascó automaticamente pensa em Quino e o indica para o trabalho, sugerindo
que ele imaginasse uma historieta que combinasse os estilos de Peanuts - em espanhol
Snoopy ou Charlie Browm - e Blondie, conhecida também como Dagwood ou Pepita y
Lorenzo (figura 15 e 16)23
. O autor cria, então, uma família típica de classe média,
respeitando também uma das regras da agência: os nome dos personagens deveriam começar
com as letras M e A. Dessa forma, em homenagem a personagem da novela de David Vinas,
Dar la cara, Quino pensa ser Mafalda um nome alegre e ideal para sua protagonista. Após a
realização das oito primeiras tiras, a agência resolve entrega-las ao diário Clarín, que não
cobraria pelo espaço no jornal. No entanto, o diário percebe a publicidade disfarçada nas tiras
e o acordo se rompe; a campanha não acontece, e Quino leva suas tiras a Gregório, o
suplemento de humor da revista Leoplán, criado e dirigido pelo próprio Brascó, no qual
publica três tiras (figura 17).
23
Peanuts, desenhada pelo estadunidense Charles Schulz, surge na década de 1950, e se torna extremamente
popular, sendo publicada em mais 2600 jornais, e traduzida para 40 idiomas. Sua importância está, também, na
consolidação de um padrão de tiras que se estabelece nos Estados Unidos e em muitos locais do mundo:
sequência de quatro quadrinhos retangulares. Blondie, por sua vez, também é uma tira norte-americana, criada
por Chic Young, criada na década de 1930, baseada em uma família de classe média. A tira foi bem sucedida e
teve adaptações para filmes e programas de rádio.
59
Figura 15: Snoopy. Tira de Schulz, publicada em 27 de maio de 1957
Fonte: Imagem disponível em: <https://jennthebenn.wordpress.com/category/greatest-peanuts-strips/>. Último
acesso: 25 de março de 2017.
Figura 16: Pepita y Lorenzo. Tira de Chic Young.
Fonte: Imagem disponível em: <www.taringa.net>. Último acesso: 25 de março de 2017.
Figura 17: Tira de Quino publicada por Leoplán
Fonte: QUINO. Mafalda Inédita. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1988, p.7.
Felizmente, o fracasso da campanha Mansfield não impediu que Mafalda se
formalizasse como tira, uma vez que outro grande amigo de Quino, Julián Delgado, redator
chefe da revista Primera Plana convida o desenhista para incorporar-se à revista. Assim, no
dia 29 de setembro de 1964 Mafalda aparece, juntamente com uma homenagem a Quino, na
sessão Cartas ao Leitor, escrita pelo diretor Victorio Dalle Nogare:
Ya antes de aparecer PRIMERA PLANA, el humorista Quino fue invitado a
colaborar en estas columnas. Poco menos de dos años le costó decidirse, y la
aceptación llegó una vez que tuvo la seguridad de entregar algo distinto de
60
sus trabajos habituales: una historieta casi de la vida real, por la que desfilan
una intelectualizada niña, Mafalda, y su peculiar mundo de familiares y de
amigos. Quino, quien a los 32 años es, sin duda, el humorista más brillante
de su geración, se introcude en la revista con Mafalda. (PRIMERA PLANA, Ano II, n. 99, 29 setembro de 1964, p.1.)
A revista Primera Plana, criada em 1962, e dirigida por Jacob Timerman, tinha
como público-alvo homens de classe média, que se preocupavam em se diferenciar
socialmente, e que se satisfaziam com a ilusão de pertencer a um círculo elitista, crítico e
leitor. De acordo com Cosse (2014, p. 37), a linha editorial era contraditória na medida em
que no plano econômico defendia o desenvolvimentismo, na cultura impulsionava a
modernização social e as vanguardas literárias, mas na política assumia-se em favor da
intervenção das Forças Armadas. Nesse sentido, os elogios à Mafalda e Quino proferidos na
Carta ao Leitor, também eram parte da estratégia para construir um perfil de leitores e afirmar
o prestígio da revista. De qualquer forma, durante a década de 1960, estima-se que a revista
atendia aproximadamente 250 mil leitores, majoritariamente empresários, universitários e
trabalhadores com alto nível de formação.
Após dezesseis semanas elaborando histórias típicas de Mafalda e seus pais, o
autor introduz Felipe, apresentando-o como vizinho de Mafalda, sendo os dois, moradores do
mesmo condomínio de apartamentos do bairro San Telmo em Buenos Aires. Logo ambos se
tornariam grandes amigos. A historieta parecia, então, estar definitivamente instalada em
Primera Plana, até que em março de 1965 um diário do interior da Argentina se interessou
em também publicar a tira e Quino, ao tentar retirar os originais do arquivo para enviá-los,
descobriu que o semanário se considerava proprietário das tiras publicadas. Quino rompe sua
relação com Primera Plana, publicando pela última vez em 9 de março de 1965 (figura 18).
Em Primera Plana, Quino publicou 48 tiras.
61
Figura 18: Tira publicada por Primera Plana em tira em 9 de março de 1965
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p 550.
Sobre o fim de suas relações com seu amigo Julián Delgado Quino declara:
Seis meses depois de começar a publicar a tira no Primera Plana, um jornal
de Bahía Blanca veio me pedi-la. Então fui falar com Julián, que era o
secretário de redação, e ele me disse que os originais eram da revista, não
meus. Meu amigo de toda a vida me disse isso! Foi uma dor enorme. Então
fui ao arquivo, perguntei ao estagiário se tinha meus originais, e ele me
deu... E por isso esses cuzões o demitiram! Foi então que deixei o Primera
Plana (QUINO, 2013).
Após o rompimento, Brascó mais uma vez vem ao socorro do amigo,
recomendando Mafalda ao diretor do jornal diário El Mundo, Carlos Infante. O diário El
Mundo, fundado em 1928 pela editorial Haynes, era dirigido por Alberto Gernuchoff e se
posicionava como um matutino “moderno, cómodo, sintético, serio, noticioso”
(ULANOVSKY, 1996, p. 40-7). Destinado às camadas médias e populares da Argentina,
contava sessões dedicadas ao cinema, à mulher, à vida cotidiana, e às crianças. Com grandes
ilustrações e formato de tabloide, era vendido a cinco centavos e rapidamente alcançou
popularidade, visto que já em seus primeiros anos vendia cerca de 127 mil exemplares24
(SARLO, 1988, p. 20).
Em 1962, o jornal aparecia em quarto lugar entre as preferências dos entrevistados
portenhos que liam matutinos, sendo que cerca de 70% dos entrevistados declaravam ter
apenas educação primária. Era um público muito diferente do de Primera Plana, que exigia
leitores antenados e dispostos a gastar cinco vezes mais por um exemplar. Em seus últimos
anos, época em que Quino incorpora-se ao diário, sua linha editorial havia se modificado
24
Ainda sobre El Mundo, Sarlo (1988) diz: “El Mundo quiere diferenciarse de los diarios de ‘señores’, los
órganos escritos y leídos por la clase política y los sectores ilustrados. Proporciona un material configurado sobre
la base de artículos breves, que pueden ser consumidos por entero durante los viajes al trabajo (...) El diario, por
su formato tabloid, no exige la comodidad de la casa o del bufete.” p.20.
62
bastante, e assumia um perfil mais progressista, se opondo às ideias de golpe de Estado e às
posturas antidemocráticas. Um de seus diretores era Landrú, quem publicava ilustrações na
página principal e abriu espaços para diversas historietas, como Patoruzú de Dante
Quintenero, e Periquita de Ernie Bushmiller.25
Desse modo, a partir de 15 de março de 1965, a tira passa a ser acolhida pelo
diário, publicada sozinha na página do Editorial. Sua entrada em El Mundo produziu grandes
transformações na tira em termos de produção, visto que a frequência diária obrigou um ritmo
de produção bem mais acelerado e consonante com os acontecimentos apresentados pela
imprensa em que estava agora inserida. Por conseguinte, essas novas exigências e
possibilidades colaboraram para a complexificação da tira, expressada nas narrativas
(diálogos), mas também na incorporação de novos personagens e cenários mais urbanos.
Nesse momento, então, a tira altera sua estrutura, abordando temas mais sociais e políticos,
Quino cria diversos protótipos sociais, com os quais construiu uma visão de classe média
marcada pela heterogeneidade. Mafalda gera um ambiente que, na medida em que articulava
o político e o cultural com as questões familiares e sociais, se enquadrava cada vez mais na
linha editorial do jornal, remetendo-se à classe média intelectual e progressista.
Entretanto, em 22 de dezembro de 1967, Mafalda novamente se encontra na busca
por um novo lar, uma vez que o jornal El Mundo é fechado pelo governo, devido ao golpe e
ao início da ditadura de Onganía. Um mês depois, Quino recebe uma carta de Jorge B., um
leitor que lhe contava:
El domingo estábamos aqui, en mi casa, con Silvia, mi amiga, y queríamos ir
hasta su casa. Después no fuimos porque nos dio vergüenza. [...] Queriamos
perguntale. Ahora que El Mundo no está saliendo, ¿no irá nacer el hermanito
de Mafalda? ¿O sí? Bueno, chau, saludos a Mafalda y a los demás chicos
(COSSE, 2014, p. 85).
A carta recebida pode ser interpretada como um exemplo da íntima relação que
Mafalda estabelecia com seus leitores, a ponto de eles se questionarem sobre problemas e a
continuidade de sua história. Ademais, o elemento da verossimilhança muito bem construído
pelo desenhista, permitia que esse efeito de realidade tirasse a personagem do papel e lhe
desse vida. Felizmente, apesar da preocupação dos leitores, em 2 de junho de 1968, o
semanário Siete Días Ilustrados começa a publicar as tiras de Quino. Para sua primeira
25
Muito se discute sobre as semelhanças físicas entre Mafalda e Periquita. Quanto a isso, Quino assume o fato e
diz ter sido obra de seu subconsciente. Mais tarde, o desenhista ainda produz uma tira ironizando a situação e
mostrando a real semelhança entre as duas personagens. A tira referida a Periqueita se encontra em El Mundo, 15
de março de 1965.
63
aparição a personagem redige uma carta destinada ao diretor da revista, Sergio Morero, na
qual apresenta sua família e amigos:
Señor Director de Siete Días:
Un amigo mío, el dibujante Quino (se llama así pero cuando firma los
cheques pone Joaquín Lavado), me dijo que tenías mucho interés en
contratarnos a mí y a mi amiguitos Susanita, Felipito, Manolito y Miguelito,
para que juntos trabajemos todas las semanas en tu revista. (...) Como me
parece que vos y los lectores de la revista querrán conocerme un poco mejor
antes de firmar el contrato, te envió mi curriculum (¿así se escribe?) más o
menos completo, porque algunas cosas ya no me acuerdo. ¡Ah!, también te
mando algunas fotos de mi álbum familiar que me sacó papá, ¡pero
devolvémelas! (QUINO, 1988, p. 76).
Diante do contexto ditatorial que enfrentava o país, a Editora Abril,
responsável por inúmeras revistas locais, com medo de também precisar fechar as portas
como acontecera com El Mundo, cria Siete Días, inspirada na revista Life, destinada às
futilidades, com diagramação atrativa, moderna, e temáticas da vida cotidiana. Uma revista
semanal de atualidades, havia começado a ser publicada há apenas um ano e possuía uma
tiragem de 125 a 160 mil exemplares por semana, sendo que cada exemplar custava cerca de
100 pesos. Dirigia-se a um público masculino, mas diferente de Primera Plana, objetivava
uma maior amplitude, não apresentando-se como parte da elite econômica e cultural da época.
Além disso, fugindo das polêmicas políticas, o periódico pregava imparcialidade de seus
leitores diante dos acontecimentos nacionais e mundiais. Defendia que o profissionalismo a
impedia de se manifestar pró ou contra o governo ditatorial – o que era muito exigido por
parte do grupo de intelectuais argentinos do período.
A despeito da postura adotada pela linha editorial, quando Quino passa a
integrar a revista, ao contrário do que se esperava, não fez nenhuma adequação de conteúdo e
forma das tiras de Mafalda; trazendo para os debates com os leitores, os mesmos temas e
denúncias acerca do governo autoritário. Entretanto, a frequência de publicação da revista o
impedia de se manter atualizado como em El Mundo, visto que para publicar no semanário as
tiras deveriam ser entregues com quinze dias de antecedência, lhe prendendo muitas vezes aos
temas específicos da personagem e seus amigos. Para solucionar esse problema, o desenhista
inova, incorporando à tira uma vinheta, pequena posta sobreimpressa na margem superior da
página destinada aos quadrinhos de Quino, que a entregava no último dia antes de cada
impressão26
. Essa vinheta ainda contribuiu para a autonomia e criatividade do autor, que
26
Como Quino precisava entregar suas tiras com duas semanas de antecedência e o pouco diálogo com os
acontecimentos diários lhe incomodava, o desenhista criava vinhetas curtas sobre os temas atuais e entregava na
hora da impressão, sobrepondo esse desenho na margem superior da página já editada.
64
passou a abordar diversas temáticas, letras, e até mesmo forma de assinatura. Como vemos na
imagem, os personagens da vinheta não se prendiam ao quadro, conversavam diretamente
com os leitores; o que, por sua vez, ampliou a sensação de realidade, identificação e ligação
da personagem com seus assíduos fãs (figura 19).
Figura 19: vinheta publicada por Siete Días Ilustrados em 23 de agosto de 197127
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 575.
Para a decepção dos assíduos leitores da menina contestadora, em maio de 1973,
Quino anuncia que já não consegue produzir tiras inéditas e originais como antes, e faz com
que seus personagens comecem a se despedir dos leitores nas vinhetas que acompanham as
tiras de 28 de maio, 4,11, 18 e 25 de junho. De acordo com o próprio autor muitas são razões
pra o seu fim, e dentre elas está o fato de que “(...) a los diez años de publicar Mafalda, yo
estaba harto de denunciar el desastre de las guerras y los males del capitalismo.” (RAMOS,
2010, p. 13).
Figura 20: vinheta publicada por Siete Días Ilustrados em 20 de maio de 1973
Fonte: QUINO. Mafalda Inédita. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1988, p. 104
27
Vinheta alude à desvalorização monetária de 20%, que gerou crises e aumento da inflação na Argentina nos
primeiros anos da década de 1970, registrando-se uma hiperinflação de 50% em 1975.
65
Figura 21: vinheta publicada por Siete Días Ilustrados em 4 de junho de 1973
Fonte: QUINO. Mafalda Inédita. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1988, p. 104
2.2.2 – Mafalda e a classe média argentina
O que era a classe média argentina na década de 1960? Quais elementos
corroboram para sua identidade de classe? Como ela surgiu e se consolidou? Muitos desses
questionamentos foram discutidos pelos intelectuais da época e pelos pesquisadores
argentinos na atualidade, mas pouco se consente sobre sua caracterização e formas de ação.
Estudos sociológicos da primeira metade do século XX apontavam para a importância do
processo de imigração europeia na concepção da identidade nacional argentina, visto que
tornou necessário o estabelecimento de uma cultura, educação, e conduta social unificada,
para não dizer homogênea. Nesse contexto, formou-se, também, um setor urbano, imerso no
processo de modernização iniciado no final do século XIX. Entretanto, algumas interpretações
mais recentes, como a de Ezequiel Adamovsky na obra Historia de la clase media argentina
(2009), defendem a ideia de que a classe média se consolidou somente no século XX, como
uma reação ao crescimento da classe trabalhadora na cena política.
Essa discussão se tornou cada vez mais controversa no solo argentino, justamente
porque questiona as ideias tradicionais defendidas pelas ciências sociais. Contudo, nesse
trabalho, o objetivo não é nos atermos ao debate sobre como surgiu e se consolidou a classe
média, mas sim às formas e características que ela assumiu na década de 1960 e 70, e como
ela é tratada por Mafalda. Parte-se do pressuposto de que essa classe é heterogênea, e que ao
mesmo tempo em que atinge o seu apogeu, possui uma identidade contraditória, participando
e influindo sobre os processos de legitimação dos golpes de Estado, da defesa do moralismo,
da radicalização dos jovens, e até mesmo, das redefinições dos valores familiares.
Como aponta Raymond Williams (1981, p. 23), muitos fenômenos sociais são
cristalizados por imagens e formas artísticas diretas, tornando-se capazes de iluminar as
66
condições básicas (sociais e psicológicas) de uma sociedade, além de atuar diretamente sobre
ela. Dessa forma, existem imagens com capacidade para moldar o social e que são
insubstituíveis para compreendê-lo. Mafalda pertence à classe média, foi lida, discutida e
consumida principalmente por esse setor social; e assim como propõe o autor, operou sobre a
sociedade argentina, na medida em que “cristalizou” uma identidade de classe média (seja
pelo cenário, diálogos, vestimentas, comportamentos e ações dos personagens), que dialogava
e produzia práticas concretas que operaram em termos sociais, culturais e políticos. Quino,
enquanto integrante dessa classe média argentina, produziu e reproduziu elementos que
configuram a classe, colaborando, até mesmo de forma educativa, para a consolidação dessas
imagens, das noções de família, homem, mulher, infância, trabalho, economia e gostos, que
distinguiam a classe média das demais. E assim sendo, as discussões e significações sociais
que produziram a historieta, a converteram em uma excelente fonte para a compreensão de
como essa classe se via e era vista.
O cenário humorístico que acompanha o nascimento de Mafalda era denso e
permitiu que Quino encontrasse espaço para desenvolver sua capacidade intelectual e
artística. Desde 1957, sobre a direção de Landrú, Tía Vicenta publicava seus desenhos ao lado
de Oski, César Bruto, Copi e Caloi. Com imprensa de papel barato, esse tipo de humor crítico
e inovador passou a circular pelo país. Nesse contexto, era esperado que Quino, com Mafalda,
rapidamente se destacasse e passasse a dialogar com seu público e com a realidade que
atravessava a sociedade argentina, especialmente a classe média.
Quando surge Mafalda os periódicos eram cônscios da importância da classe
média enquanto público consumidor, leitor e propagador das informações e debates. Esse
setor já representava cerca de 30% da população argentina ainda em 1947. De acordo com
Susana Torrado (1992, p. 187-202), esse número havia crescido nas décadas seguintes junto
ao aumento de comerciantes, empregados administrativos, profissionais em nível técnico e
superior. Nos anos 1960, chegavam à fase adulta e ocupavam o mercado de trabalho os jovens
que haviam vivenciado a expansão do ensino secundário durante o governo peronista e, por
conseguinte, o aumento do ensino universitário nas décadas seguintes. Segundo dados do
Ministerio de Educación y Justicia Argentina, entre as décadas de 1950 e 60, o número de
estudantes inscritos em todos os níveis de ensino haviam duplicado em todo o país; e em
1961, um em cada dez jovens de 20 e 24 anos cursava estudos universitários ou superiores, e
em uma década depois essa proporção se duplicaria novamente. (COSSE, 2014, p. 40).
67
Concomitantemente, cresceu o número de pessoas que trabalhavam em
comércios, escritórios, serviços públicos ou terceirizados. O desenvolvimentismo impulsiona
o fortalecimento da classe de homens e mulheres trabalhadores, que estavam condicionados a
um novo padrão de consumo, marcado pelo estilo de vida moderno, caracterizado pelos
produtos inovadores e campanhas publicitárias. É justamente para atingir essa classe média
que Quino fora contratado para produzir tiras que fizessem publicidade da companhia de
eletrodomésticos Mansfield; e assim, Mafalda esteve situada, desde sua origem, entre o meio
cultural, as estratégias de mercado, e a realidade social sobre a qual atuava.
Após o fracasso da campanha publicitária, a tira passou por uma série de
modificações, justamente para que houvesse adequação com a linha editorial e com o público
que Quino procurava atingir. Quando entra em Primera Plana, Quino alterou alguns detalhes
que deixaram sua composição mais moderna, como o desenho da casa e a mobília. Além
disso, o pai se estilizou, se tornou mais bondoso e moderno, e a família, que era composta por
dois filhos (um menino e uma menina), fica somente com a menina, único personagem que
teve poucas alterações em seus traços fisionômicos.
Quino, ao estabelecer seus personagens como integrantes da classe média,
assumiu o viés ideológico que conduziria os debates dos problemas abordados pela tira; mas
também se propôs a problematizar a própria identidade de classe, apresentando os problemas
que acompanham sua definição e consolidação enquanto classe social. Logo no início de sua
trajetória encontramos Mafalda imersa nesse debate, se descobrindo classe média, na medida
em que se compara e se enxerga na relação com os outros (figura 22). Num quadro sem
cenário vemos a personagem perguntar ao pai se eram ricos ou pobres, e ele lhe responde que
não eram nem um nem outro: “nosotros venimos a ser clase media”. Nesse momento, a
expressão facial da menina mostra seu desgosto, olhos arregalados e bocas que tremem
indicam um certo temor. Mas, após refletir sobre a resposta lhe dada, Mafalda se recompõe e
então lhe contesta: “Y decime... para ser clase media ¿vale la pena venir?”. Nesse momento, é
o pai quem assume a expressão de espanto enquanto termina de dar o nó na gravata e se
arrumar para o trabalho.
68
Figura 22: Tira publicada por Primera Plana em 1 de dezembro de 1964.
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 1993, p 543.
Figura 23: Tira publicada por Primera Plana em 8 de dezembro de 1964.
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 1993, p 544.
Na tira acima (figura 23), publicada na mesma data, Mafalda aparece
inconformada com sua posição social. Era a primeira tira ambientada em um espaço urbano:
Mafalda e sua mãe andam pela calçada, na qual pode-se ver automóveis estacionados na rua.
Os traços do primeiro quadro, retos, simples e sem muitos detalhes, sugerem uma cidade
indistinta e uma sociedade massificada, visto que ninguém possui traços e rostos marcantes. A
menina, observando o cenário, pergunta por que não possuíam um automóvel, e sua mãe
responde que isso se devia ao fato de serem classe média; ou seja, evidencia ao leitor, a
impossibilidade de a classe média ascender economicamente, ao mesmo tempo em que era
marcada pelo desejo de atender aos padrões de consumo impostos pelas classes mais altas da
sociedade. Conforme os quadros avançam, Quino utiliza dos recursos de desenho para
dialogar e enfatizar essa ideia, afinal, ao passo que se evidencia a ideia de que a classe média
não pode alcançar e comprar o que deseja, os objetos e personagens ficam cada vez mais
distantes e irreconhecíveis. As partes dos rostos dos personagens, que aparecem no segundo e
69
último quadros, indicam a movimentação da cena e nos faz sentir a presença de uma câmera
que conforme segue as protagonistas, passam pelas demais pessoas que caminham pela
calçada. Ainda, o fato de as pessoas não possuírem rostos permite a sensação de
reconhecimento e identificação com a situação por parte do leitor.
Quino se inspira em San Telmo, bairro onde mora, para representar o local
onde viviam Mafalda e seus amigos. As praças, ruas e escola que foram incorporados nas tiras
serviam para fundamentar a representação da classe média, bem como de sua identidade de
classe perante os outros setores sociais. Conforme discorre o autor, Mafalda se inseria no
meio aburguesado, progressista – que defende ideais como liberdade, melhoria do ensino
público, modernização e democracia –, o que lhe confere ainda mais popularidade na medida
em que as tiras compartilham pautas com os movimentos sociais e a ideologia dominante da
classe média argentina.
Ao longo do tempo em que publica a historieta, Quino foi inúmeras vezes
questionado, elogiado e arduamente criticado por adotar essa visão “clasemedeira” da
sociedade e a propagar através da tira. Moacy Cirne (1982), por exemplo, recrimina o
posicionamento de Quino, afirmando que Mafalda é uma tira progressista, na medida em que
ser progressista é próprio de uma pequena-burguesia que se quer esquerdista, que se enxerga
humanista e assimila mal o marxismo. Diante das críticas, Quino assegura que a voz de sua
personagem não deve ser confundida com a sua, visto que Mafalda é somente uma criação; e
ainda observa:
Eu venho de uma família estritamente de classe média, e essa experiência me
foi útil. Tem gente que critica a Mafalda e diz que ela é aburguesada. Mas eu
sou da opinião de que se deve descrever só o que se conhece. Não posso
transformar a Mafalda em proletária, porque é uma classe à qual não
pertenço. (QUINO, 2003, p. VII).
2.2.3 - Mafalda e Personagens
No decorrer dos anos a obra de Quino ultrapassou os olhares de Mafalda, nos
apresentando a heterogeneidade como marco da classe média argentina, com valores e
ideologias contraditórios. Novos personagens foram inseridos na historieta, contribuindo para
o enriquecimento da temática, dos diálogos e da própria complexidade da história. Ademais,
ao passo que novos personagens adentravam nas tiras, o desenho de Quino também se
aprimorou. Se tomarmos como base as primeiras tiras de Mafalda (figura 24) e as
70
compararmos com as produzidas já na revista Siete Días (figura 25), fica evidente que o autor
desenvolveu desenhos mais precisos, com mais detalhes de fundo, noções de profundidade e
até mesmo enquadramento das cenas. Os novos quadros consideravam alturas dos
personagens, bem como os ângulos de visões. Até mesmo o cenário das ruas ganharam mais
precisão, aparecendo sinaleiros de trânsito, sombras de edifícios, e outros personagens que
incorporavam a cena, como trabalhadores andando pela rua e idosos sentados na praça. 28
Figura 24: Tira publicada por El Mundo em 21 de maio de 1965
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 559
Figura 25: Tira publicada por Siete Días (1970)
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 385.
Tendo isso em vista, para melhor compreendermos as relações dos personagens
dentro da tira e o modo como proporcionaram a complexificação da mesma, é fundamental a
apresentação individual dos amigos e familiares de Mafalda:
28
Sobre mais detalhes acerca da aprimoração de desenho de Quino, consultar: COSSE, Isabella. Mafalda:
historia social y política. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2014.
71
A. MAFALDA
Conforme apontado anteriormente, sua primeira aparição foi em 29 de setembro
de 1964. Seu sobrenome nunca fora mencionado. Seus pensamentos e inconformismos
refletem as preocupações sociais e políticas dos anos 60. Ela é filha de uma típica família de
classe média argentina, composta pelo pai, a mãe e o irmão Guille; além disso, sabemos que
possui pelo menos uma avó, a quem envia um cartão de natal.
Mafalda dialoga com a juventude da época também em termos gráficos: o
desenho de seu corpo era desproporcional, não sendo nem de criança nem de adulto; sua
cabeça arredondada e grande, fazia alusão à capacidade intelectual da personagem. Ademais,
nossa protagonista possuía características andrógenas, visto que seu contorno, expressões de
desgosto e ironias remetiam às características consideradas masculinas na época, contrariando
a forma suave e doce como as mulheres representadas.
As grandes admirações de Mafalda são The Beatles, a paz, os Direitos Humanos e
a democracia. Constantemente se preocupa com a situação mundial e está frequentemente se
atualizando através do rádio, como vemos na tira abaixo.
Figura 26: Tira publicada pelo jornal El Mundo
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 145.
Na imagem acima nos deparamos com a personagem e posicionando para matar
um mosquito que pousa na parede de sua casa. Ela coloca um rádio perto do inseto e com a
outra mão segura uma lata com veneno em spray. No segundo quadro, com o rádio ligado,
ouvimos o noticiário sobre o aumento da reserva de armas nucleares, e outros problemas
sociais como a fome e a violência. Após as notícias trágicas, a menina mata o inseto,
acreditando que a mosca não se lamentará de morrer e deixar um mundo tão ruim. A tira, ao
mesmo tempo em que denuncia os problemas mundiais e traz uma criança se preocupando
com eles a ponto de acreditar serem suficientes para amenizar uma morte, apresenta o lado
72
doce e inocente da menina, que não quis simplesmente matar a mosca, mas minimizar seu
sofrimento.
B – RAQUEL
Dona de casa, mãe e esposa em tempo integral, Raquel representa o ideal de
mulher doméstica e maternal, construído desde as primeiras décadas do século XX, pelas
políticas e discursos da elite intelectual, do Estado e da Igreja. (COSSE, 2014, p. 48)
Contudo, esse modelo que por décadas havia sido símbolo de prosperidade familiar, agora
encontrava-se em cheque e em acelerada alteração. De acordo com o Censo Nacional
argentino de 1970, o trabalho feminino cresceu cerca de oito por cento a partir da metade do
século. A mudança na posição da mulher também se refletia em sua presença no sistema
educativo, uma vez que mais de dois terços das jovens de 20 a 24 anos haviam alcançado a
educação secundária e quase metade o nível universitário ou superior (Ibidem). Diante das
transformações, passou-se a valorizar a mulher moderna, independente, que, associada às
novas gerações, possuía prestigio social e cultural. Exemplo disso, vemos em revistas como
Primeira Plana, que exaltavam as imagens de mulheres jovens batalhando por melhores
posições na sociedade e participação na política do país.
Quino, ao caracterizar Raquel com os elementos do modelo feminino
anteriormente consolidado, incorpora na trama da tira as tensões geracionais existentes, bem
como as questões de gênero debatidas nas décadas de 1960 e 70. A mãe da “menina
intelectualizada” era constante alvo de crítica da filha, e se encontrava desamparada diante
dos comentários e desafios de Mafalda. Na tira abaixo, por exemplo, vemos a protagonista
descobrindo que a mãe havia abandonado o estudo, principalmente porque se casara e passara
a se dedicar à vida doméstica.
Figura 27: Tira publicada por Primera Plana em 10 de novembro de 1964.
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 542.
73
No primeiro quadro, enquanto a menina questiona a mãe sobre sua escolha de
largar a faculdade, Raquel se encontra sentada em um banco, levemente inclinada para frente
costurando, com os óculos sobre o nariz, olha concentrada para o bordado, enquanto apresenta
um leve sorriso nos lábios. Nos próximos quadros Mafalda ganha feições de felicidade e até
mesmo se exalta enquanto conclui que se a mãe não tivesse se casado, teria uma carreira, teria
um título, “serias ALGUIEN”. Os lábios de Raquel somem, ela assume uma posição mais
ereta e rígida, levando a cabeça para cima. Por fim, no último quadro, seus lábios se abrem e
sua cabeça inclinada é cercada por gotas que saem de seus olhos, que somadas a onomatopeia
“Uuaa” nos permitem inferir seu choro. Dessa maneira, ao se deparar com a perspectiva de
futuro exibida pela filha, a mãe se desespera e começa a chorar, deixando Mafalda com cara
de espanto ao perceber que sua inconformidade diante da situação da mãe, também era algo
que a acometia.
C. PELICARPO
Enquanto sua mulher cuidava da casa e dos filhos, o pai de Mafalda representava
o provedor moderno, um funcionário de escritório, caseiro, que cuidava de plantas nas horas
livres. Trabalhava em um escritório, no qual se ocupava com livros de contabilidade. Ganhava
um salário suficiente para cobrir as despesas da família, mas constantemente se encontrava
desesperado com as contas a pagar. Pelicarpo, além de profissional padrão, serviu para que
Quino trouxesse para a tira os debates acerca da infância e paternidade que estavam em pauta
nas grandes discussões, meios de comunicação e literatura do momento.
Conforme aponta Cosse (2014, p. 52), na década de 1960 o modelo de pai
desejado conflitava com o executivo glamouroso, dedicado exclusivamente ao trabalho, sem
tempo para sua família; e Pelicarpo representa essa contradição, a distância entre os homens
“bem sucedidos” e os pais modernos, voltados para as necessidades de seus filhos. O humor
de Quino supunha uma relação de empatia, na medida em que o leitor reconhecia em
Pelicarpo as dificuldades de lidar com a nova geração de crianças, com os problemas
financeiros e com a subordinação no trabalho. Enfim, os homens argentinos de classe média
se encontravam em uma mesma posição social e cultural que o pai de Mafalda. Dessa forma,
adequando-se às novas tendências, Pelicarpo sofreu algumas alterações desde o início de sua
produção. Seus momentos de raiva e indignação se transformaram em medos e embaraços.
Diante dos posicionamentos de Mafalda, ele ficava mudo e desconcertado, não sendo capaz
de respondê-la quando esta lhe fazia perguntas ou comentários sobre os problemas do mundo.
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De acordo com Andrew Graham-Yooll (1967, p. 8) a historieta continha uma
representação verossímil de uma família “tipo”, que operava sobre a hegemonia normativa da
família doméstica, nuclear, afetiva, reduzida, e com a divisão entre o pai provedor e a mãe
dona de casa. No entanto, diferentemente de outras representações familiares do momento, a
tira problematizou esse modelo desde o princípio, apontando, por exemplo a frustração de
ambos os pais com suas funções sociais e a condição de vida; além de refletir acerca do papel
das mulheres e homens, pais e mães a partir dos diálogos que Mafalda estabelece. Em muitas
tiras, por exemplo, observamos Pelicarpo frustrado com o seu trabalho, ao passo que vemos
Raquel infeliz com as tarefas domésticas, cansada e sem o devido reconhecimento da
importância de sua função de dona de casa. Abaixo temos uma tira que exemplifica essa
situação.
Figura 28: Tira publicada por El Mundo
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 57.
No primeiro quadro vemos um fundo distorcido, de pessoas sem muita forma,
dando um foco para Pelicarpo, que caminha de volta para casa após um dia de trabalho. Ele
anda curvado e com passos pesados, evidenciando o seu cansaço e insatisfação. Para reforçar
o que a imagem já nos informa, o personagem desabafa sobre seu dia ter sido “maldito! Con
el malhumor del jefe y ese condenado balance”. Mas, ao chegar ao destino, no segundo
quadro, ele se anima. Sua postura já ereta, com menos cansaço em sua face agradece por estar
finalmente em casa, onde se “olvida del mundo!”. Sua filha, contudo, representando todas as
exigências do mundo moderno, lhe revela que passara o dia a espera-lo para questionar sobre
a Guerra do Vietnã. Sua mulher, como se espera de uma boa esposa, o recebe com beijos e
abraços, mas não é suficiente para retirar a expressão de desespero de seu rosto exausto.
No último quadro, enfim, aparece um elemento surpresa, provocador das
gargalhadas: o pai não aguentou diante de tantas obrigações, e sua esposa precisou ir a
75
farmácia comprar um “Nervo Calm” para poder tranquilizar o marido. O cenário da farmácia,
a placa da propaganda do remédio, bem com a expressão tranquila no rosto do farmacêutico,
ainda podem nos contar que os picos de estresse se tornavam cada vez mais comuns naquela
sociedade.
Destarte, as relações de Mafalda com seus pais eram marcadas pelo conflito das
novas gerações que contestavam o mundo político e cultural dos adultos. A tira oferecia ao
leitor uma representação dos anseios e contradições geradas pela modernização como
programa e processo histórico, que afetavam principalmente a classe média argentina. Diante
desse contexto,
Quino trabajó sobre las contradicciones abiertas por esas mutaciones
socioculturales que habían forjado a la clase media y que, al mismo tiempo,
la estaban atravesando. Lo central es que, en vez de una visión ascendente y
exitosa, Mafalda – la niña/joven – desenmascaraba as frustraciones, las
dificultades – cuando no directmente las imposibilidades – que ese proceso
de modernización sociocultural imponía a los varones e mujeres de clase
media: las limitaciones de los provedores, las frustaciones de las madres y
amas de casa, las impugnaciones de las nuevas geraciones al orden familiar.
(COSSE, 2014, p. 52-3).
D. FELIPE
A primeira aparição de Felipe aconteceu em 19 de janeiro de 1965 quando já tinha
8 anos, sendo dois anos mais velhos do que Mafalda. De acordo com o próprio desenhista, a
fisionomia do personagem era inspirada em seu amigo Jorge Timossi. Vizinho de Mafalda,
Felipe é um menino sonhador, tímido e preguiçoso. Adora historias em quadrinhos e seu herói
favorito é o Cavaleiro Solitário. Odeia a escola e o fato de ter de fazer tarefas de casa. É muito
parecido com sua mãe, mas seu pai nunca apareceu nas tiras. É o personagem do qual se
conhece menos detalhes. Quando entrevistado por Jorge Coscia, no programa Puerto Cultura,
Quino revela que de todos os personagens, é com Felipe que mais se identifica:
Jorge Coscia: ¿Hay muchas cosas de Mafalda que vienes de vós? ¿Algún de
los personajes varones, por ejemplo?
- Quino: Sí, Felipe sí. La timidez y las dificultades en colegio. El tener
miedo de no responder a maestra como se debe. Todo esto es autobiográfico.
Jorge Coscia: ¿Y de Mafalda hay algo?
- Quino: No. Mafalda en realidad es la personaje más fabricada de todos
porque yo no pensaba ser una historieta. Fue un encargo de una campaña de
publicidad. (PUERTO CULTURA, 2012)29
29
Vídeo de entrevista realizada no programa Puerto Cultura. O programa é um ciclo semanal de entrevistas
conduzidas por Jorge Coscia, com a participação de referências da cultura, do pensamento, das artes, dos direitos
humanos, da ciência, entre outros. Vídeo disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=O7Fh65hW0tY>.
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Na tira abaixo vemos Felipe meio sentado-meio deitado em uma cadeira. Com
postura solta e os olhos fechados ele reflete sobre precisar fazer a tarefa de casa. O fato de
Quino ter utilizado um balão de pensamento ao invés de um de fala - somado à sua expressão
de sonolência - corrobora para a construção do personagem como alguém preguiçoso, uma
vez que ele não se move nem para dizer o que pensa ou travar uma espécie de conversa com o
leitor - o que aconteceria se fosse Mafalda quem estivesse tendo algum tipo de reflexão. Por
fim, após muitos quadros repetidos, que enfatizam a sua pouca vontade de realizar as tarefas,
ele decide ceder à sua vontade e permanece em posição de descanso.
Figura 29: tira publicada pelo jornal El Mundo
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 485
E. MANOLITO
Manuel Goreiro aparece em 29 de março de 1965. Como Mafalda possui seis
anos de idade, e pode ser caracterizado como ambicioso e materialista, representando o
espírito capitalista do pequeno comerciante. O personagem foi inspirado no pai de Julián
Delgado, proprietário de uma padaria situada na esquina da rua Cochabamba com a rua
Defensa, em San Telmo. É um admirador de Rockfeller, odeia hippies e The Beatles. O pai é
dono de um armazém, no qual o menino trabalha, e do qual faz enorme propaganda. A família
é completada pelo seu irmão que aparece uma única vez quando termina seu serviço militar e
volta para casa.
Manolito retomava a figura do “galego bruto”, ao qual se atribuíam os
estereótipos denegratórios e os temores sociais devido ao contingente de imigrantes que
chegaram em Buenos Aires e contribuíram para a transformação da sociedade argentina. O
personagem estava caracterizado com os objetos e pensamentos do mundo empresarial, seja
pela calculadora e campanhas publicitárias que realizava pelo bairro. Como descreve a revista
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Dinamis em 1969, “(...) el personaje era el tenaz hijo del almacenero del barrio negado a todo
lo que no sea un éxito comercial, que sueña com una gran cadena de supermercados” (p. 63).
Figura 30: tira publicada pelo jornal El Mundo
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 85.
Na tira acima encontramos Manolito oferecendo uma bala de caramelo para
Mafalda. Ela aceita e agradece. Os dois se encontram na calçada, provavelmente andavam ou
brincavam perto de suas casas. No segundo quadro, Mafalda aprecia a bala, com expressões e
onomatopeias de prazer, mas Manolito revela sua real intenção: a bala é uma “atención del
almacén de mi papa”, uma forma de fazer propaganda de seus produtos. No terceiro quadro,
ao escutar o amigo, a menina se enfurece, cospe a bala no chão e o acusa de ser interesseiro.
As letras do balão aumentam e ganham destaque de cor, o que, somado a sua postura rígida e
expressão de raiva, fortalece a acusação feita pelo discurso. Por fim, Manolito, já sozinho em
cena (fica subentendido que a amiga o abandona diante da situação) anuncia que o “interés”
que Mafalda acusa é na verdade uma tática comercial, utilizada pelas relações públicas de
uma empresa. Sua postura de mão impositiva e boca aberta revelam que além de estar
gritando para ela, está na defesa de suas ideias voltadas para o negócio.
F. SUSANITA
Susana Beatriz Chirusi aparece pela primeira vez em 6 de junho de 1965. Tem a
mesma idade de Mafalda, mas é o oposto da amiga. É famosa por ser fofoqueira e briguenta,
uma vez que implica com Manolito, ofendendo-o sempre que o encontra. É extremamente
egoísta e possui visão de mundo baseada no individualismo que representa tudo aquilo que
Mafalda questiona no comportamento humano. Seu sonho é ser mãe e dona de casa, e assim,
a personagem representa a geração de mulheres que reproduzem e vivem a lógica
conservadora da sociedade.
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Além das diferenças de interesses, valores e ideologia, Susanita também se difere
na composição fisionômica do desenho. Ela é menos quadrada, com ares femininos, com
penteados mais elaborados e brincos, sempre com uma boneca nos braços, diferenciando-se
de Mafalda. Sobre a personagem, a revista Dinamis também a descreve como doméstica,
“envidiosa, amante de la chismografia, cuya única ambición es ‘casarse y tener hijitos’,
reaccionaria vocacional, su aspiración mayor representa arribar a la más absoluta
mediocridad.” (DINAMIS, 1969, p. 69).
Na tira abaixo podemos visualizar um dos grandes confrontos de ideais entre as
duas personagens.
Figura 31: tira publicada pelo jornal El Mundo
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 151
No primeiro quadro, as meninas caminham pela calçada e se deparam com um
homem cujas vestes sujas, rasgadas e a sacola ao lado no chão, nos fazem inferir que é um
morador de rua. Ao ver a cena, Mafalda se entristece, curva a postura, olha para o chão, como
que envergonhada pela situação de seu país, e desabafa que lhe parte a alma ver gente pobre.
No mesmo quadro, Susanita não demostra as preocupações da amiga, sua postura se mantem
ereta e ela caminha na frente. Mafalda, ainda em seu momento de reflexão, levanta o corpo e
o dedo indicador para compartilhar sua ideia de como proteger e garantir o bem estar dos
pobres. Susanita, por sua vez, para de caminhar diante da solução apontada por Mafalda, e,
com uma expressão confusa, não entende porque o plano de Mafalda é tão elaborado e
trabalhoso, se “bastarias con esconderlos”. Essa tira reflete a postura de um setor conservador
da classe média criticada por ser indiferente diante das desigualdades sociais.
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G. MIGUELITO
Miguel Pitti aparece pela primeira vez no primeiros meses de 1966. É mais novo
que os personagens anteriores e pode ser caracterizado como um sonhador. É muito inocente e
está constantemente refletindo sobre questões consideradas abstratas e, muitas vezes, confusas
pelos outros personagens da tira. O avô é fascista, defensor de Mussolini, seus pais não
aparecem, mas sabemos de suas existências pelas vozes autoritárias em alguns quadrinhos.
Ele mantém uma relação harmônica com os demais personagens.
Em muitas tiras aparece refletindo sobre questões existenciais, sobre para onde
vamos quando morremos, como nascemos, entre outras dúvidas que acometem as crianças
acerca da vida adulta:
Figura 32: tira publicada pelo jornal El Mundo
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 488
Na tirinha acima o vemos pensando, sentado na calçada encolhido, enquanto
Mafalda lê o jornal. No segundo quadro, expõe para o leitor sua linha de pensamento. Suas
mãos caem ao lado do corpo e seu rosto assume um misto de certeza e confusão: ele sabe que
as pessoas trabalham para ganhar a vida, mas no fundo não compreende o sentido disso, sendo
que enquanto trabalham, na verdade, elas desperdiçam suas vidas. No terceiro quadro ele, por
fim, questiona a amiga sobre o assunto. Mafalda dobra o jornal, e com olhos pensativos e
expressão séria no rosto, também reflete a situação.
H. GUILLE
Irmão de Mafalda, inspirado no sobrinho de Quino, aparece pela primeira vez em
2 de junho de 1968. Nas últimas tiras em El Mundo, Raquel estava grávida, e ao chegar em
Siete Días, Quino apresenta o personagem. Enquanto sua irmã representava a juventude
contestatória da década de 1960, Guille encarnou a nova geração dos anos 1970, ainda mais
radicalizada, impulsionada pelos movimentos de 1968 que aconteciam ao redor do mundo.
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A tira abaixo, diferente do costume, se apresenta em um quadro só. Com cenário
estilizado, nos mostra o interior da casa de Mafalda, com as paredes todas rabiscadas com os
desenhos produzidos por Guille. Nosso olhar se inicia no canto esquerdo do quadro e
conforme visualizamos os desenhos, nos deparamos com Raquel, embasbacada, paralisada
diante da cena. Os olhos arregalados e as mãos paradas junto ao corpo nos passam a sensação
de impotência e incredulidade diante do filho e do fato. O menino, fingindo uma inocência
que não lhe corresponde, tenta minimizar a situação dizendo ser incrível tudo o que tem
dentro de um lápis, como se este instrumento de desenho fosse o culpado pelos rabiscos na
parede e chão da casa.
Figura 33: tira publicada pelo jornal El Mundo
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 477
I. LIBERTAD
Em 16 de fevereiro de 1970, aparece Libertad, com idade e sobrenome
desconhecidos. Muitos a encaram como uma Mafalda em miniatura, visto que ela também é
contestadora; porém, muito menos tolerante. Possui um posicionamento político de esquerda,
valorizando a cultura, as lutas sociais e as revoluções. A menina tinha uma estatura muito
pequena, o que aludia ao tamanho da liberdade vivida pelos argentinos num momento
ditatorial, podendo representar, inclusive os ideais de prisioneiros políticos e movimentos de
oposição.
Sua mãe, muito jovem representava o grupo de mulheres universitárias e
intelectuais. Diferente da mãe de Mafalda e Susanita, ela trabalhava e traduzia Sartre. O pai
de Libertad nunca apareceu, mas sabe-se que é socialista sem filiação partidária. Nesse
contexto familiar, era de se esperar que a menina adotasse uma postura mais radical diante
dos conflitos políticos argentinos e mundiais. Na tira abaixo vemos Mafalda na casa de
Libertad, que avisa a mãe sobre o fato de a amiga ter vindo brincar com ela.
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Figura 34: tira publicada pelo Siete Días
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 383
O cenário é bem detalhado, com muitos livros em estantes, almofadas e móveis
que sugerem um ambiente alternativo. A despeito de seu tamanho, ao falar com a mãe,
Libertad grita com letras grandes e em negrito, o que nos faz imaginar que sua mãe estava em
algum cômodo longe das meninas. O segundo quadro nos mostra a resposta da mãe, que é
escrita com letras repetidas e pequenas, aumentando a sensação de distância entre as
personagens. No entanto, no último quadro, descobrimos que a mãe está no mesmo ambiente,
atrás de um armário, fumando e trabalhando em sua máquina de escrever. Em cima de sua
cama se encontram livros e papéis que ela utiliza em seu trabalho como tradutora. O humor da
tira se faz na identificação do leitor com a moradia pequena, e na contradição entre o modo de
falar da mãe e filha, e o tamanho do apartamento.
Dessa maneira, a partir da análise do tipo de humor, contexto de produção e
criação das tiras, e da composição heterogênea dos personagens, é possível melhor
compreender as representações em Mafalda. Para além da classe média, sua capacidade de
atuar na sociedade argentina a torna uma fonte para refletirmos sobre outros temas daquele
país. A educação é um desses temas, bem como o processo de consolidação das escolas, da
estética e das perspectivas e interpretações que a cercam.
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Capítulo 3: Mafalda e a Educação argentina
83
A personagem Mafalda nos permite apresentar, através do humor e da criticidade,
um conjunto de temas polêmicos que fez parte do cotidiano dos argentinos nos anos 1960 e
70. O período que abarca sua produção também representa um momento de transição na
sociedade e, por consequência, na História da Educação argentina, no qual intelectuais e
pesquisadores se debruçaram sobre o tema e consolidaram a área como campo científico,
ampliando problemáticas e formas de abordagem, intensificando os “(...) estudios de historia
de las ideias pedagógicas y de las relaciones en el interior de las instituiciones educativas”.
(ASCOLANI, 1999, p. 18).
A História da Educação argentina surge, fundamentalmente, no início do século
XX, ligada aos meios acadêmicos. De acordo com Ascolani (2001, p. 208), desde sua
formação, o campo tem se constituído em um corpo de saberes associado à formação do
magistério e à criação das instituições de ensino. Contudo, desde a década de 1960, novas
configurações vêm se delimitando e demarcando seu espaço tanto na sociedade comum
quanto nas universidades, haja visto o aumento dos debates e demandas acerca dos contextos
político, social e econômico, e a relação da educação com os mesmos. Nessa direção, muitos
autores se debruçaram diante da temática e diversas obras foram produzidas no intuito de
problematizar a educação argentina, mas também de explanar e sistematizar seu
desenvolvimento. Até os anos 1970, a História da Educação tinha com objeto as ideias
pedagógicas, as instituições e legislação educativas; todavia, nas últimas décadas, as
pesquisas sobre o tema voltam-se à história da educação numa perspectiva ampliada acerca de
seus objetos e produtos.
Em sua obra, Quino representa a educação argentina de inúmeras formas, nos
possibilitando compreender como eram as práticas pedagógicas, o processo de alfabetização e
os objetivos do sistema educacional. A personagem Mafalda é uma menina de seis anos, que
frequenta o Jardim de Infância e depois o Ensino Fundamental, e por ser contestadora e
atrevida, dotada de opiniões e questionamentos desconcertantes sobre o que a cerca, indaga
sobre o formato da educação na Argentina, sobre a forma como a professora se porta em sala,
e até mesmo sobre a finalidade do conteúdo ensinado. Nesse sentido, esse capítulo pretende
discutir sobre as percepções acerca do sistema educacional na Argentina, até a década de
1970, quando Mafalda deixa de ser produzida, visto que transcorrer sobre alguns aspectos da
educação do país colabora para uma melhor compreensão das referências que os personagens
realizam à respeito da escola.
84
3.1 – Educação na Argentina: um panorama
A história da educação é tema de debates e produções científicas desde o final
do século XIX, quando se consolidou o sistema escolar moderno. Através de livros, folhetos,
revistas e manuais escolares, muitos autores se debruçaram sobre a tarefa de contar e recontar
o processo de construção da educação argentina. Entretanto, como aponta Pineau (2010), em
sua maioria, esses trabalhos foram escritos por intelectuais que se afeiçoavam às decisões
estatais e se consideravam parte do projeto civilizador, não discutindo e apresentando críticas
às propostas escolares impulsionadas pelo Estado; frisando assim, a importância da escola e
escrevendo sua história por uma perspectiva evolutiva, como agente e produto do progresso.
Destarte, foram elaboradas versões da história da educação “(...) acontecimental y descriptiva,
limitada a lo político-institucional, que presentaba un relato laudatorio de los desarrollos en
forma acumulativa” (p. 11).
Dessa maneira, as versões mais tradicionais sobre a história da educação
argentina, partem do período colonial apresentando a escolarização como algo natural e
intrínseco nas sociedades. De acordo com autores como Rúben Cucuzza (2004), durante o
período colonial as missões jesuíticas espanholas já defendiam a necessidade de educar os
indígenas locais, uma vez que – além do angariamento de fiéis – os índios eram vistos como
almas ignorantes, seres que necessitavam de uma educação civilizatória. Além da educação
dos nativos, os espanhóis também se preocupavam com a formação dos europeus povoadores
do Novo Mundo e, a partir de 1503, iniciam a elaboração de projetos educacionais na colônia,
garantindo a criação de casas de ensino, dirigidas por sacerdotes, destinadas à instrução da
leitura e escrita, bem como da doutrina cristã. Ainda, segundo o autor, essa aprendizagem era
limitada às elites brancas, e estava estreitamente vinculada à catequização e memorização.
Assim, conforme a sociedade colonial se desenvolve, surgem as escolas e consolida-se a
proposta educacional idealizada pela Igreja Católica e voltada para a classe dominante30
.
A autora Adriana Puiggrós (1997), também ressalta a importância das escolas na
história nacional, apontando que no século XVIII, a inspiração dos pensadores iluministas
passou a influenciar e atemorizar os colégios da colônia. Nesse momento a educação era
sustentada pela Igreja e pela família, encarregados de transmitir os saberes para os mais
jovens, visto que a escola era inacessível à maior parte da população. Contudo, na disputa
30
Conforme discorre Adriana Puigrrós (1997, p. 34), nas últimas décadas do século XVII, aconteceram reformas
educativas e se multiplicaram os estabelecimentos de ensino, formando-se diferentes tipos de escolas: Escuelas
pias, Escuelas de los conventos, Escuelas de los ayuntamientos, Escuelas del rey, e Escuelas particulares.
85
pela manutenção da hegemonia, algumas reformas se estabeleceram no campo educacional,
cujas medidas decorreram no aumento dos estabelecimentos de ensino, na proposição de
ensino público e das instituições voltadas à preparação para o trabalho, na diversificação dos
conteúdos ministrados pelas escolas e universidades latino-americanas, que passaram a
incorporar cursos de Economia, Ciências Exatas, Físicas e Naturais, Desenho, e Línguas (p.
36).
Nos argumentos desta autora, apesar dos esforços de conter os avanços do
liberalismo e do capitalismo, a sociedade colonial rechaçava sua condição de dependência e
submissão aos interesses metropolitanos. As ideias ilustradas se difundiram na América e no
século XIX, ao passo que a Independência nacional era conquistada, a burguesia se
consolidava como classe dominante, preocupando-se com a implantação de sua concepção
cultural, social, política e econômica em toda a sociedade argentina. Mais uma vez a educação
era vista como forma de controlar e promover a incorporação dos valores e modos de vida,
agora burgueses. Para a consolidação desse projeto, inúmeras correntes pedagógicas europeias
foram importadas e combinadas às instituições educativas coloniais já existentes no país. As
grandes províncias do período – Córdoba, Corrientes, Mendoza, San Juan, Tucumán e Salta –
criaram escolas elementares; e na capital, surge também, a Universidad de Buenos Aires, em
1820.
Ainda, o cenário nacional se mostrava conturbado e somado a ele existia uma
grande quantidade de imigrantes que foram para o país em busca de emprego e melhores
condições de vida. Esse novo setor social também precisava ser incorporado à sociedade, e
assim, em 1884 criou-se a Lei de Educação Comum nº 1420, que garantia a educação
obrigatória, laica e gratuita; e cujo principal objetivo era consolidar a unidade nacional a partir
da homogeneização dos estudantes. Nesse momento a educação deixa de pertencer à Igreja e
às famílias, se tornando uma tarefa do Estado, e parte de um projeto nacional. Ao passo que a
obrigatoriedade do ensino visava à integração da maior parte dos habitantes no sistema
educacional argentino, a escola se institucionalizava como espaço físico educativo, e o modo
de transmissão dos conhecimentos também se adequava ao propósito do Estado. Contando
com conhecimentos fragmentados e descontextualizados, a escola ensinava História como um
relato épico da consolidação da Nação, e Geografia a partir da imagem de um território
nacional unificado, delimitado naturalmente (PUIGGRÓS, 1997, p.31).
Nas últimas décadas, iniciou-se então o processo de revisão dessa historiografia, e
os novos trabalhos questionaram as leituras teleológicas, marcadas pela explicitação do
86
processo educacional, assinalando os limites dessas concepções e propondo fortalecer os
estudos sobre educação através do “(...) diálogo con otras ciencias y teorías sociales como la
economía, la sociología, la planificación social y la teoría del desarrollo.” (PINEAU, 2010,
p.20). Dessa forma, os novos olhares para a escola e as práticas escolares se voltam para a
(...) “desnaturalización” de las condiciones en las que se desenvuelve el
fenómeno educativo, eliminando de nuestro vocabulario y análisis términos
como “obvio”, “esperable”, “lógico”, “natural”, “única posibilidad”,
“siempre fue así”. Por el contrario, advierten sobre la necesidad de
comprender las temáticas sociales y educativas no como situaciones
inevitables de origen espontáneo, sino como procesos enmarcados en
temporalidades que den cuenta de su artifi cialidad, contingencia y
arbitrariedad. Esto es, se precisa pensarlos “historicamente”, entender cómo
han ido variando a lo largo del tiempo y se han ido modificando, analizar sus
diacronías y sincronías, y establecer comparaciones entre ellos. (PINEAU,
2010, p. 23)
Dentro dessa perspectiva, Sandra Carli (2006) também adverte sobre a “mirada
homogeneizante” da historiografia argentina, apontado para a necessidade de se pensar as
práticas pedagógicas e a infância pelo prisma das mutações e diversificações das experiências
das crianças dentro e fora da escola. A partir dos anos 1960 – mesma época de Mafalda – o
estudo da infância adquiriu uma conotação mais ampla, que a despeito do tradicional olhar
para a criança como um ser passivo e inacabado, volta-se à singularidade da criança,
analisando suas articulações com contexto histórico-cultural, a fim de produzir um debate
crítico e confrontar o caráter supostamente natural e inerente da infância. E desse modo, as
novas propostas pensam a infância como “el resultado de un entramado de discursos,
prácticas, imágenes. (...) exploran distintos caminos, objetos y momentos históricos. Esa
historización pone en juego a los niños como invención, como experiencia y como memoria.”
(Ibidem, p.2).
Mafalda se insere nesse contexto de efervescência e transformação das práticas e
modos de pensar a educação. Suas representações acerca do ambiente e formato escolar
tendem a apresentar uma articulação entre as novas propostas acerca da infância e a
tradicional estética dominante da relação entre alunos e professores. De todo modo, na medida
em que aborda às temáticas contemporâneas, Quino corrobora para a construção de uma
infância que se distancia das gerações anteriores, mas que valoriza e entende como necessária
a escola. Assim, Mafalda enquanto criança é portadora das expectativas dos argentinos e de
suas construções acerca do processo de ensino, e nesse contexto, a representação escolar na
tira remete ao fato de que a ideia de infância na Argentina está atrelada à escola, sendo
esperado que as crianças da década de 1960 estivessem nesse espaço; e Quino, por sua vez, ao
87
optar por esse discurso narrativo, na medida em que demonstra a sua preocupação com a
verossimilhança, sustenta a construção da escola como espaço infantil.
Pablo Pineau (2012), em seu texto ¿Por qué triunfó la escuela?, parte desse
panorama histórico – que discorre sobre e fortalecimento das instituições e práticas de ensino
como naturais e desejáveis para o progresso e a civilização – para questionar a ideia da escola
como espaço educativo único e genuíno; e ao discorrer sobre a consolidação da escola
moderna no século XIX, critica o modelo mostrando os aspectos coercitivos e estatizantes por
muito tempo defendido e propagado pelo Estado. A escola tradicional era marcada
principalmente pela uniformização dos alunos, a assimetria das relações professor-aluno, o
uso de mecanismos disciplinares, e métodos avaliativos. Se exigia silêncio, formação de filas,
além do controle dos corpos.
O espaço educativo se transformava em um meio de se garantir a igualdade e a
inclusão da população argentina. A fim de promover uma identidade comum que garantisse a
liberdade e a prosperidade geral, se buscava equiparar, nivelar todos os cidadãos, através de
uma mesma linguagem, mesmos ensinamentos e imersões culturais. Entretanto, essa pretensão
igualadora adotada pelo governo e imposta pela escola, também foi responsável pela exclusão
de tudo e todos que estivessem fora do processo de homogeneização; e assim, a escola
argentina, visando a igualação dos seus alunos “a la vez que generaba corrimentos para
igualar – construía parámetros acerca de lo deseable y lo correcto” (SOUTHEWELL, 2004,
s/p.) .
As preocupações pedagógicas do momento abarcavam a profissionalização
docente e a criação de um sistema de ensino próprio, com regulamentações voltadas ao
estabelecimento de horários, atividades diárias, higiene e cultura material das escolas. O
espaço escolar deveria ser arejado, e o mobiliário escolar composto por bancos e cadernos que
condissessem com o bem estar dos alunos, com sua saúde e postura. Além disso, a disciplina
foi um elemento central dentro dessa concepção educativa. Os professores deveriam criar
estratégias de ensino e manutenção da ordem, garantindo a internalização das normas e
valores da nação (ARATA, 2013, p.108).
Nos primeiros anos do século XX, ocorre a difusão da escolarização, que além
de contribuir para a efetivação do projeto nacional, consolidou a “escuela tradicional” que,
como discorre Pineau (2013, p. 22), era uma aposta política e cultural, criada para ser uma
“máquina de educar”, capaz de moldar e aculturar as grandes massas da população. Ainda, de
acordo com o autor:
88
La escuela es un dispositivo de geración de ciudadanos (...). La escuela es a
la vez una conquista social y un aparato de inculcación ideológica de las
clases dominantes que implico tanto la dependencia como la alfaetización
masiva, la expansión de los derechos y la entronización de la meritocracia, la
construcción de las naciones, la imposición de la cultura occidental y la
formación de movimientos de libertación, entre otros efectos (Ibidem, p.28).
Contudo, esse cenário começaria a mudar após a Primeira Guerra Mundial, devido
principalmente às crises econômicas e políticas que assolavam a Europa – que, até então, era
o exemplo seguido pelos países latino-americanos. Concomitante à ideia de crise, anti-
imperialismo e emancipação, surgiam propostas de renovação e políticas voltadas à
transformação social. Nesse momento aconteceram importantes reformas no sistema
educacional argentino, como a Reforma Saavedra Lamas, que retomava a ideia de introduzir
orientações técnicas, e afirmava uma educação menos doutrinária e mais produtiva. Como
aponta Arata (2013) essa proposta de escola buscava solucionar dois problemas centrais da
educação: “la ausencia de un currículo orientado a la enseñanza de saberes prácticos – que
eran requeridos por el resurgimiento de la industria nacional en el contexto internacional de la
primera Guerra Mundial – y las dificultades para contener y disciplinar los instintos juvenis”
(p. 175).
Ainda nesse período se produziu uma multiplicidade de noções, imagens e
sentidos sobre as características que deveria assumir a educação formal na Argentina. Somado
às noções de modernização e nação, estavam as ideias de vitalismo, espiritualismo,
sensibilidade, misticismo e estética (ARATA; SOUTHWELL, 2011, p. 269). Dessa forma, a
primeira metade do século XX foi marcada pela crise de antigas convicções, e surgimento de
novos caminhos para a educação, voltados para a reflexão sobre cultura e sociedade, bem
como a criação de “interpretaciones y lecturas en torno de la Nación, entidad de sentido
conformada desde múltiples visiones y ambivalentes significados al calor de una discusión
que atravesaba tanto el plano filosóficocultural como el político” (Ibidem p.270).
Enquanto se formulavam críticas ao modelo da escola tradicional, algumas
propostas e projetos educacionais se articularam, destacando-se os difusores da Escola Nova.
Conforme Marcelo Caruso (2013, p. 96), as raízes do movimento partem das ideias
pedagógicas de Rousseau que, em sua obra Emílio, discute uma educação embasada na
relação do homem com a natureza, e no contrato socialmente estabelecido. Assim, o
pensamento escolanovista criticava o silêncio, a uniformidade, o excesso de conteúdo e
monotonia das aulas; propondo que o ensino pela memorização e a forte disciplinarização,
dessem lugar a um novo contrato pedagógico, pautado na centralização da criança no
89
processo de aprendizagem, na participação da comunidade educativa na gestão escolar e no
fortalecimento da relação entre escola e natureza.
Entretanto, na Argentina, o movimento escolanovista não se transformou em um
projeto político-pedagógico, mas sim em uma corrente de ideias que propiciou reformas
parciais no sistema educacional. Nesse sentido, Sandra Carli (2002) aponta que a Escola Nova
argentina se articulou a outros movimentos políticos e culturais de mais amplo alcance, sendo
representada por um grupo de professores da elite urbana, capazes de propor algumas
inovações das práticas escolares. Dessa forma, “las ideas de la escuela nueva eran usadas
retóricamente en los discursos políticos, y habían penetrado en las aulas a partir del
consensuado y, a la vez, parcial reclamo de renovación de contenidos y metodos”. (p. 5)
A despeito das tentativas de modernização, a quebra da Bolsa de Nova York, em
1929, afetou a economia de muitos países, inclusive da Argentina – que se firmara
mundialmente como nação agroexportadora. A crise econômica, e o consequente aumento da
inflação, seguido da diminuição do poder aquisitivo da população, inflamaram os conflitos
sociais e os movimentos de oposição ao governo do presidente Hipólito Ygrioyen. A grande
tensão mundial somada aos problemas internos do país geraram condições para que, em
setembro de 1930, um golpe de Estado liderado pelo general José Félix Uriburu, depusesse o
presidente e implantasse uma ditadura militar. Nesse contexto, dialogando com o discurso
nacionalista do governo, a educação retrocede, se posiciona contrária às modificações sociais,
e é implantada a Reforma Fresco-Nobre, que atendia às demandas do conservadorismo,
inserindo práticas militaristas dentro da escola, além da obrigatoriedade do ensino religioso. O
governo “presentaba a la Argentina, ante el mundo, como un modelo de nación católica”
(ARATA, 2013, p. 180).
Quino nasce em 17 de julho de 1932. Sua família defendia a república, a
democracia e se posicionava contra o governo ditatorial. Imerso nesse cenário de acirramentos
políticos, sociais e culturais, nosso autor vai à escola e anos mais tarde, nos permite conhecer
suas memórias, interpretações, representações escolares.
3.2 - 1940 e 50: Quino vai à escola
Com a instauração do governo ditatorial, houve a derrocada das reformas
educacionais e propostas transformadoras – como Saavedra Lama e o movimento
escolanovista, respectivamente – reestabelecendo-se a estrutura tradicional das instituições
90
escolares: o currículo enciclopedista fora retomado, enquanto as orientações voltadas para a
prática e as relações pedagógicas entre escola e trabalho foram eliminadas. A escola assumiu
um papel estratégico na construção de um sentido comum aos argentinos do período, visto
que estava encarregada de “(...) fortalecer la identidade nacional y afianzar la soberania de la
Nación” (ROMERO, 2007, p.20). Ademais, foram renovados os intentos de valorizar os
rituais e símbolos nacionais, que construíam a identidade das escolas públicas. Professores e
alunos participavam ativamente das cerimônias, dos desfiles escolares de 9 de Julho, e das
marchas militares que aconteciam regularmente dentro das escolas.
Durante o governo de José Félix Uriburu, o Ministério da Educação passou por
algumas modificações e trocas de titulares. Juan B. Terán – que assumiu interinamente o
cargo de presidente do Consejo Nacional de Educación – se tornou um dos maiores
representantes dos intentos do governo e do clima cultural da época. Seu discurso defendia
uma educação moral, e repudiava o reformismo universitário e a escola ativa31
Para ele, a
figura do professor – semelhante ao que acontecia no século XIX – deveria se associar ao do
apóstolo, cuja missão era expurgar os pecados e o hedonismo da sociedade e combater o
comunismo entre os estudantes.
No governo de Augustín Pedro Justo, Ramón J. Cácarno passa a comandar o
Consejo Nacional de Educación, recrudescendo as afirmações de seu antecessor, o governo
passa a suprimir os centros estudantis dos colégios secundários e a perseguir e exonerar os
docentes considerados radicais, lacistas e escolanovistas. (PUIGRRÓS, 1997, p. 93). Em
1937, é aprovado o Digesto de Educación Primária, instrumento jurídico destinado a regular
o funcionamento das escolas primárias, que funcionou como um código de disciplina e ética,
que regeu a conduta das escolas argentinas durante as décadas seguintes. Nesse documento, se
tornava obrigatório que os professores de escolas públicas seguissem as leis estaduais
referentes à educação, que controlassem diariamente o asseio dos seus estudantes, e que não
exercessem dentro e fora da escola qualquer ofício que prejudicasse suas funções no
magistério. Além disso, os professores deviam se manter atentos e nunca realizar propaganda
a favor ou contra as crenças religiosas e opiniões políticas, entre outras determinações
(RAMALLO, 2017, p. 8).
Durante a presidência de Roberto Marcelino Ortiz, em 1939 – quando Quino
inicia seu curso no ensino primário –, se elaborou um novo projeto de reforma do sistema 31
A escola ativa, inspirada pelo estadunidense Ovidio Decroly, se fortaleceu no solo argentino através de José
Rezzano, de sua esposa Clotilde Guillen, e de Juan Mantovani. O movimento defendia que o a educação deveria
ser voltada para “la conquista de un magnífico equilíbrio entre espíritu e instinto, idea y sentimiento, disciplina y
libertad, capacidad contemplativa y capacidad de acción” (BALLASTEROS 1979, p. 29).
91
educacional, pautado das observações e anseios dos governos anteriores. Uma comissão
especial presidida pelo ministro da Justiça, Jorge Eduardo Coll, estabeleceu que a instrução
primária e média deveriam se reestruturar da seguinte maneira:
a) Educación primaria, dividida en dos ciclos: infantil y elemental, impartida
en escuelas urbanas y rurales, b) Instrucción complementaria y
especializada, c)Instrucción media, dividida en dos ciclos, d) Instrucción
especial para deficientes mentales o de los sentidos. (...) La escuela, además
de su función principal de educar e instruir al niño, constituirá un centro de
extensión de cultura al medio social; vinculará a los padres y vecinos a su
acción educativa (...)
En cuanto a la educación media, se prescribía que el ingreso en los colégios
e institutos oficiales se efectuaría mediante un examen escrito de selección.
El primer ciclo del liceo comprendería cuatro años de estudios
teóricoprácticos. El bachillerato se obtendría mediante un segundo ciclo de
dos años de estúdios generales intensivos. Los estudios del magisterio
también requerían un segundo ciclo de estudios de dos años de duración
(Ibidem p. 9).
Ademais, em 1940, o Consejo Nacional de Educación aprova um parecer da
Comissão de Didática, que expressava a necessidade de reforçar o patriotismo dentro das
escolas, e instruía os docentes acerca do uso dos livros e cartilhas patrióticas. Ao referir-se ao
seu tempo escolar, Quino o relembra com certo desgosto. Preferia desenhar a estudar e tinha
muita dificuldade em gramática e ortografia32
. O desenhista confessa que por se identificar
muito com o personagem Felipe – que também é tímido e sonhador – Quino representou em
suas tiras muito de suas angustias e medos relativos à escola: valorização da pátria,
autoritarismo dos funcionários do colégio, professoras malvadas, notas baixas, pavor quando
era obrigado a falar em público, entre outros. Nas tiras abaixo podemos visualizar essa relação
entre o autor, o personagem e a escola representada.
32
Sobre isso Quino, em entrevista para Daniel Samper Pizano, conta que quando começou a desenhar Mafalda
precisou fazer um curso de redação para corrigir seus erros gramaticais. Além disso, em mais de um momento o
autor afirma que se projetou muito em Felipe, assegurando as semelhanças entre os dois quanto a postura,
medos, formas de pensar, distração, timidez, entre outros. Entrevista encontrada em QUINO (1993, p. 13).
92
Figura 35: tira publicada pelo Siete Días
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 423.
Logo no primeiro quadro da tira acima percebemos que Felipe se encontra em
uma sala de aula, devido ao uniforme típico das escolas argentinas, o guardapolvo branco.
Além disso, ele está sentado em uma cadeira e apoia o corpo sobre uma carteira escolar, onde
se encontram seu caderno e lápis. Corroborando para nossa primeira impressão, a narrativa do
quadro traz o menino pensando sobre como precisa se manter atento à explicação da
professora. Seus olhos arregalados demonstram sua preocupação em não “perder detalle y
poner todos mis sentidos en no distrairme”. Nesse momento, na medida em que o menino
arregala cada vez mais os olhos e se cobra para manter o foco na aula, sua preocupação pode
demostrar a rigidez escolar vivida por Quino em seu tempo de escola, na qual se exigia do
aluno total atenção e obediência aos professores.
No quarto quadro, entretanto, a professora pergunta aos demais alunos se eles
entenderam o que ela estava explicando, enquanto Felipe devaneava sobre precisar estar
atento. Por fim, o último produz o efeito humorístico no leitor que vê Felipe, com uma
expressão de desespero em seu rosto, se dar conta de que, mais uma vez, havia se distraído e
perdera a explicação da matéria. Além da sua expressão assustada, sua mente projeta um
ponto de interrogação, apresentado no balão de pensamento, ratificando sua confusão e
dúvida diante das aulas dadas. Como discorre Quino, essa distração e falta de interesse nas
aulas eram comum nas suas experiências em sala de aula. Além disso, podemos observar que
a tira toda foca exclusivamente no personagem, não apresentando composição de cenário ou
algum outro colega de turma. Essa escolha artística realizada pelo autor possibilita que o leitor
se conecte com a angústia do personagem, uma vez que além de ler seus pensamentos, não
sofre interferência ou distanciamento causado por outras possíveis sensações.
A próxima tira também apresenta a percepção de escola produzida por Quino,
que a enxergava como um local desinteressante e opressor.
93
Figura 36: tira publicada pelo Siete Días
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 389.
No primeiro quadro vemos Felipe caminhando pela calçada. Por estar vestido com
o guardapolvo e carregar em suas mãos a “maleta” escolar, descobrimos que ele caminha para
a escola. O balão de pensamento nos informa que o personagem está atrasado, porque nos
mostra a professora o acusando de chegar quarenta e cinco minutos depois do início da aula.
No entanto, o que chama a atenção do leitor é o fato de a professora estar vestida com um
uniforme militar que possui uma suástica nazista no braço, e falar agressivamente e com
sotaque alemão. Ao lado da professora vemos que na parede da sala de aula está um quadro
de Hitler e sobre a mesa o seu livro Mein Kampf, que corroboram para o entendimento da
cena. Ainda, no mesmo cenário observamos Felipe com cabelos raspados, vestindo o
uniforme listrado que era comum nos campos de concentração nazistas. Outros elementos
gráficos também nos mostram que a professora assume uma postura de inquisidora, como as
suas mãos apoiadas no cinto e a boca aberta como indício de que estava gritando. O quepe
tampa seu rosto, o que proporciona ao leitor a sensação de frieza e distanciamento nas
relações estabelecidas dentro e fora do desenho. Somente esse quadro já nos proporciona
algumas impressões acerca da escola argentina representada, da escola de Quino e da escola
de Felipe: uma escola rígida, na qual a professora pode ser comparada a uma alemã nazista; e
onde o aluno se sentia tão oprimido e preso como um judeu em um campo de concentração.
No segundo quadro observamos o personagem entrando na escola, cabisbaixo,
com ombros caídos, triste tanto por estar ali, quanto pelo medo da bronca que iria levar pelo
atraso. Ele se imagina um pequeno judeu perseguido, pronunciando um alemão estilizado pelo
humor e entregando, à professora nazista, o bilhete de justificativa do atraso escrito por sua
mãe. O terceiro quadro, contudo, gera uma inversão nos fatos e o retorno à realidade: num
cenário muito similar ao do primeiro quadro, vemos a professora posicionada no mesmo local,
mas agora vestida com o seu próprio uniforme; na parede um quadro mostra uma vaca e os
94
produtos derivados do leite, e na mesa ao lado está um livro de matemática. Para o
estranhamento e felicidade do personagem, ao invés de ficar brava e se alterar, a professora
pega seu bilhete, com carinho passa a mão pelo cabelo do aluno e docilmente o manda se
sentar. Constrangido tanto pelo cuidado recebido quanto pelo estranhamento gerado pela sua
imaginação frente ao acontecido, Felipe caminha pela sala até sua carteira, encabulado e
contente por seu temor não ter se concretizado. Nessa tira, o humor é proporcionado
justamente pela contradição e imaginação fértil do aluno. Contudo, ela permite ao leitor
refletir sobre a postura autoritária e disciplinadora das escolas, bem como sobre o momento
escolar de Quino, marcado pelo fascismo na Europa e o autoritarismo da ditadura argentina.
Mais uma vez, averiguamos a presença dos elementos escolares do autor, e de suas memórias
sobre os mesmos, nas elaborações de suas tiras.
De todo modo, o cenário político e educacional continuaria a se modificar nas
décadas seguintes. Diante de tantas conturbações políticas, sociais e pedagógicas, um novo
golpe de Estado se articulava na Argentina. Um grupo de militares dissidentes do movimento
anterior aproveita do desgaste e perda de legitimidade do sistema político instaurado, e
discursando pela defesa da nação, promove um novo golpe, que acaba por colocar Juan
Domingo Perón na presidência do país, em 1943. O novo governo pensava a sociedade em
termos organicistas, no qual, assim como um organismo biológico, ela era a soma de todas as
partes; e cabia ao Estado garantir a articulação dessas, bem como de suas demandas,
promovendo um desenvolvimento harmonioso da sociedade em sua totalidade (ROMERO,
2004). Assim, visando à regulação das relações sociais e políticas, Perón apresenta um projeto
de preparação moral que orientaria a vida dos argentinos, e para tanto, defendia a educação
como caminho para atingir seus objetivos.
O peronismo herdou o ultranacionalismo do regime ditatorial anterior, que
desejava imprimir na escola o caráter de um regimento, opondo-se às perspectivas mais
liberais. Ao longo do seu governo, o presidente contou com alguns ministros da Educação,
que a despeito de suas particularidades, consonavam quanto a preferência pelo método global
de ensino, na medida em que “(...) rechazaba la organización liberal de las escuelas nuevas;
sostenía que la función del maestro es transmitir un orden y una moral” (PUIGRRÓS, 1997,
p. 99). Sendo assim, em resposta às transformações que vivenciava a Argentina, o projeto
educacional do governo peronista procurou consolidar a massificação do ensino, ampliando o
acesso da população a todos os níveis educacionais. Ainda, o Estado incluiu novas
95
modalidades educativas cujo objetivo era a intervenção político-cultural, capaz de influenciar
na formação da nova identidade argentina proposta pelo governo.
Ao passo que Perón propunha a formação de um novo país, uma Nueva
Argentina, sua estratégia pedagógica se centrava nas massas, remetendo a um modelo
enciclopedista, de formação integral do argentino – nos aspectos intelectual, físico e moral –
principalmente no que concerne ao ensino profissionalizante, tanto instigado pelo governo
que almejava expandir o setor industrial e doutrinar a classe operária. O novo plano
educacional propunha o ensino primário formado por um primeiro ciclo optativo pré-escolar
(para crianças de 4 e 5 anos); um segundo ciclo obrigatório de cinco anos (para alunos de 6 a
11 anos); um terceiro ciclo obrigatório de dois anos (para alunos de 12 a 14 anos). Este último
ciclo era composto por cursos voltados para a formação de operários de todas as
especialidades, incluindo manejo com ferramentas, práticas de hortas e granjas, manufatura e
comércio.
Além disso, foram criadas inúmeras escolas técnicas, destinadas à formação de
mão-de-obra qualificada; e o ensino normal, que em 1943 contava com 55.238 alunos e
passou a contar com 97.306 alunos em 1955 (Ibidem, p. 106). A infância era, então, vista
como uma nova geração de argentinos que precisava ser moldada, e cabia ao Estado intervir e
construir sua identidade. Como salienta Carli (2002, p. 5), nesse momento a perspectiva da
Escola Nova perde sentido e espaço político, uma vez que o protagonismo da criança e a
autonomia infantil não eram promovidas pelo governo peronista.
Entretanto, em 1955, os grupos contrários ao governo autoritário se articulam e
Perón é deposto por uma aliança civil-militar que, num discurso a favor da liberdade –
entendida como anti-peronismo –, proclamara o golpe de “Revolución Libertadora”, e
novamente instaurara no país um período de grande instabilidade política e econômica, que
acabou por intensificar os conflitos entre os setores sociais nas décadas seguintes. A educação
do período também se encontrava imersa nesses conflitos que experimentava a sociedade
argentina, influenciada pelas transformações de um mundo em mudança, provocadas,
sobretudo, pelo recrudescimento da Guerra Fria, pelas constantes lutas pela independência e
pela negação do imperialismo, fatos que ressonavam em todo o mundo, e afetavam direta ou
indiretamente os contextos político, econômico, social e cultural locais. Dessa forma,
conforme Arata (2013), o sistema educacional, não alheio aos acontecimentos do período, se
apresentou como um espaço de experimentações, “(...) de cruces y chispazos entre tendenciais
96
educativas opuestas, pero también de articulación y de creación de nuevos imaginários
pedagógicos” (p. 219).
Nesse momento, Quino com seus 23 anos, já começara a publicar suas criações, e
sua formação escolar – marcada pelo nacionalismo, conservadorismo, valorização da ordem,
disciplina, e do ensino enciclopedista – será fundamental para sua percepção do sistema
educacional argentino. Suas relações familiares e relações dentro e fora dos espaços escolares
são somadas às memórias e experiências dos alunos das décadas de 1940 e 50; e assim,
fomentaram as representações elaboradas pelo desenhista. Em 1962 nasce Mafalda e, a
despeito do momento histórico em que é criada, nas tiras de Quino observamos muitos dos
elementos de um modelo escolar tradicional, conhecido pelo autor.
3.3 – Os anos 1960 e 70: Mafalda vai à escola.
Pedro Eugenio Aramburu assumiu a presidência do país em 13 de outubro de
1955, determinado a limpar o país do peronismo e eliminando sua simbologia, alteraram-se os
textos e planos de estudos, e até mesmo, a vida cotidiana escolar. Conforme discorre Puiggrós
(1997), na prática, “(...) no fue necessário cambiar mucho más porque a través de casi una
década de nacionalismo popular, en la escuela persistia casi intacto el viejo discurso
normalista mechado con enunciados católicos” (p.111). As antigas escolas se mantiveram
conservadas, com retratos de Sarmiento convivendo ao lado das imagens de santos e de
Virgem Maria; e desse modo, as novas diretrizes educacionais, voltadas ao anti-peronismo, se
preocuparam em retirar dos ambientes escolares quaisquer alusões ao ex-presidente, ao
nacionalismo exacerbado e suas práticas pedagógicas.
Além disso, durante os anos 1960, no contexto do confronto entre o capitalismo
norte-americano e o socialismo soviético, a modernização econômica dos países latino-
americanos entrou na pauta de organismos internacionais como a Comissão Econômica para a
América Latina e o Caribe (CEPAL), que visavam avaliar a situação dos países envolvidos a
fim de promover a industrialização dos mesmos (MELLO, 1986). Concomitantemente, na
Argentina se difundiu a ideia de que as economias latino-americanas precisavam recorrer às
intervenções estrangeiras para intensificar o progresso, visto nesse momento como sinônimo
de ampla industrialização. De acordo com Ianni (1970, p.8), a partir de recursos doutrinários –
como a “Corporación Continental”, Beuna Venindad” e “Alianza para el Progreso”, que
procuravam tornar os países latino-americanos dependentes da política exterior dos Estados
97
Unidos – tal intervenção extrapolaria o setor econômico e político, abrangendo a educação,
agora compreendida como uma ferramenta essencial desse processo modernizante. Ainda
sobre essa relação, Arata (2013) discorre que:
el desarrollismo producía un giro novedoso al promover una articulación
entre economía y educación, colocando el énfasis en la generación de
recursos humanos (...). El optimismo pedagógico que se extendió por y para
América Latina formó parte de una estrategia geopolítica y de control
ideológico más amplia encabezaba por los Estados Unidos (p.222).
Além das questões políticas, que se mantinham instáveis, a Argentina – como boa
parte das nações americanas e europeias – enfrentou um amplo processo de modernização
social e cultural, visto que as classes médias impulsionaram a homogeneização do consumo
através da produção em massa, das propagandas e do marketing. Surgiram novas pautas nas
relações sociais e de trabalho, e modificaram-se as concepções de infância, paternidade, e de
gênero. O sistema educacional, dentro da nova realidade que se construía, acompanhava essas
transformações, propondo à sociedade argentina um novo modelo capaz de unir as influências
internacionais, o desejo de modernização, a economia e a educação. Assim, diante da aparição
e massificação das novas temáticas e tecnologias, “la escuela dejó de ser el único espacio que
proveía conocimientos” (SUAREZ, 2011, p.30).
A hegemonia do sistema educacional moderno entra em crise. Passam a ser
questionados os conhecimentos escolares descontextualizados e sem relação com as
experiências sociais dos alunos. A educação conteudista e fragmentada, antes vista como uma
ferramenta para a formação do cidadão integral, global e disciplinado, agora era criticada, e se
concebia um ensino mais utilitário, voltado para a prática, capaz de garantir o acesso ao
mercado de trabalho. A educação se tornava, então, uma alavanca para o desenvolvimento
social e econômico. Dessa maneira, durante esse período observou-se a criação de mais de
quatro mil estabelecimentos educacionais e órgãos destinados ao planejamento da educação e
produção de trabalhos de investigação educativa para compreender o perfil dos estudantes,
dos docentes e reestruturar o projeto educacional para esse público que visavam formar
(ARATA, 2013, p. 202).
Durante a presidência de Arturo Illia, a relação entre os docentes e o governo se
aproximou e permitiu que houvesse maiores aberturas e inovações no campo educacional,
estimulando experiências pedagógicas mais democráticas. Em 1965 se inicia o Programa
Intensivo de Alfabetización y Educación de Adultos. Instigado pela proposta da UNESCO de
98
erradicar a alfabetização em todo o mundo, o governo argentino criou centros educativos em
todo o país, destinado não só à alfabetização de jovens e adultos, como também à renovação
e atualização de conteúdos, e à integração de adultos dentro da comunidade e da nação.
Alguns anos mais tarde, na elaboração do plano de Reconstrucción y Liberación Nacional
1974/1977, a escolarização de adultos é retomada e a educação como direito social recupera
sua centralidade no discurso estatal. A escola, vista como núcleo fundamental de ensino,
juntamente como Estado, assume como prioridade:
la erradicación del analfabetismo, la disminución del semianalfabetismo, la
expansión gradual de jardines maternales y infantes, la educación
permanente, la capacitación técnica, la educación agrícola, la universitária y
la orientada a las investigaciones de la ciencia pura y aplicada que
contribuyeran con el proceso de liberación nacional. (ARATA, 2013, p.
234).
É nesse contexto que a concepção de infância também começava a se modificar.
As crianças passaram a serem vistas como sujeitos de direitos. Internacionalmente elas
ganharam destaque no processo de aprendizagem e preocupação dos órgãos governamentais.
Na década de 1970 a UNICEF declara os Direitos Internacionais da Criança, com caráter
jurídico supranacional. Nesse cenários, as escolas tiveram que reavaliar a forma como o aluno
era concebido, uma vez que o aluno “ (...) dejó de ser entendido como una tabula rasa donde
se imprimia el conocimento, para passar a otorgarle un rol activo en el proceso de
aprendizaje” (SUAREZ, 2011, p. 31). Concomitantemente à transformação do ideário de
aluno, a concepção de professor também foi alterada. Este, deixou de ser o único capaz de
transmitir os saberes legítimos nas mentes infantis, para se tornar um orientador no processo
de aprendizagem, que já não mais acontecia de forma unilateral e assimétrica.
A somatória dessas transformações que ocorreram nas décadas de 1960 e 70
colaborou pra que o sistema educacional moderno, como fora concebido no século XIX e
propagado no século XX, entrasse em decadência. A personagem Mafalda e seus amigos são
crianças, e enquanto alunos vivenciam essas mudanças que começavam a circular na
sociedade argentina da época. Contudo, a despeito do período em que Mafalda é produzida, a
partir da análise das tirinhas é possível verificar que Quino, ao mesmo tempo em que dialoga
com tais mudanças, acaba por representar o formato escolar anteriormente abordado e por ele
experimentado. Como anteriormente destacado pela hipótese de interpretação desse trabalho,
Quino se encontra imerso nesse momento de transformações, expressa suas indagações e
99
críticas ao sistema educacional da época, porém através de desenhos com cenários e estruturas
marcados pela escola tradicional.
3.3.1 – Representação, memória e Mafalda.
O conceito de representação foi alvo de muito debate dentro da História e do
campo da História Cultural a partir das propostas da Escola dos Annales, visto que práticas,
metodologias e fontes de pesquisa se ampliaram, passando a abarcar objetos de estudo nunca
antes imaginados. O projeto de História global – capaz de articular os mais diferentes
aspectos, organizar e coletar elementos que produzissem certezas e totalidades – é criticado,
deixando o campo livre para a pluralidade de abordagens e compreensões (CHARTIER, 1991,
p.176). Ao renunciar à descrição da totalidade social, os historiadores se propuseram a
decifrar as sociedades de outras maneiras, partindo de elementos políticos, econômicos e
culturais. Nesse sentido, a noção de representação se torna essencial, visto que como prática e
metodologia, permite a análise cultural e entendimento das sociedades estudadas.
A representação é entendida como “(...) algo que esta en lugar de otra cosa: un
objeto, una idea, una persona” (ARFUCH, 2002, p. 206). Como afirma Chartier (1991),
representação é uma presença que marca a ausência daquilo que é representado, sendo o
“instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente substituindo-lhe
uma ‘imagem’ capaz de repô-lo em memória e de ‘pintá-lo’ tal como é” (p. 184). Para que
essa relação seja inteligível, é também fundamental que se conheça os signos, e o modo como
os mesmos são convencionalmente utilizados. Enquanto discurso e prática, o autor ainda
comenta que, as representações são elaboradas por indivíduos que descrevem a sociedade
como pensam que ela é, ou como gostariam que ela fosse (Idem, 2002, p.19). Assim sendo, o
conceito de representação se constitui como a forma pela qual os sujeitos organizam a
realidade em suas mentes, expressando-se em comportamentos e práticas sociais,
condicionadas por um conjunto de símbolos compartilhados, um “idioma geral” fornecido
pela cultura, como também aponta Robert Darnton (1986, p. XVII-XVIII).
Dessa maneira, se evidencia que a representação nunca corresponde à realidade, e
sim a uma produção e interpretação da mesma; o que torna necessário que se selecione alguns
aspectos do objeto real em detrimento de outros que serão omitidos. Ademais, uma vez que
essa seleção corresponde aos valores e interesses específicos de cada caso,
as representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à
universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre
100
determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o
necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem
os utiliza. (...) As percepções do social não são de forma alguma discursos
neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que
tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a
legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos,
as suas escolhas e condutas. Por isso esta investigação sobre as
representações supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de
concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de
poder e dominação (CHARTIER, 2002, p. 17).
Concomitantemente aos debates acerca da representação também foram
impulsionados os estudos sobre memória, produzindo modificações conceituais no século
XX. Em uma perspectiva renovada, ao entender a memória como uma construção social, os
historiadores passaram a ponderar que os indivíduos recordam daquilo que consideram
importante, sendo que tais “lembranças são sempre coletivas, pois, mesmo que em
determinadas circunstâncias se esteja materialmente só, o indivíduo recorda tendo como
referenciais estruturas simbólicas e culturais de um grupo social” (SOUZA, 2008, p.02).
Dessa maneira, ao tentar retomar a memória coletiva e transformá-la em narrativa, a História
constrói uma interpretação, um relato aproximado do que de fato ocorreu.
Escolano Benito (2010), ao abordar o tema da memória escolar, se propõe a
trabalhar com a memória a partir da subjetividade de alguns entrevistados acerca das
lembranças e imagens de seus tempos escolares. A escola é parte fundamental da vida das
crianças e jovens, sendo ali o local onde suas experiências e memórias se constroem; e nesse
sentido, não é inocente, porque escolhe e age como produtora de signos, e de representações
que acabam por moldar a própria memória escolar daqueles que por ali passaram. A despeito
das experiências individuais de cada aluno, quando questionados sobre suas lembranças, as
memórias de sala de aula, dos professores e dos conteúdos aprendidos, se apresentam
similares, permitindo que qualquer um que olhe uma fotografia, ou uma historia em
quadrinho, reconheça a cena representada.
Assim, partindo de memórias e representações construídas pelos sujeitos, os
historiadores, por sua vez, na análise, manipulação e interpretação das fontes, se propõem a
construir narrativas históricas. Destarte, ao tomarmos por base as tiras de Mafalda acerca da
educação argentina, é imprescindível que ponderemos sobre as influencias dos discursos e
memórias produzidas sobre o tema. Cada época e sociedade fabrica seu universo de símbolos
e significados, produzindo a sua representação do tempo histórico vivido. Quino, não alheio à
sua época e aos acontecimentos nacionais e mundiais, introduzirá em suas produções gráficas
101
símbolos que muitas vezes dialogam com a memória coletiva dos argentinos, com o modo
como eles enxergam o formato escolar, corroborando para a identificação e propagação dessas
representações.
3.3.2 - A escola nas tiras de Mafalda
A primeira tira de Mafalda no jornal El Mundo trazia a personagem discutindo
sobre o jardim de infância e suas perspectivas educacionais. A partir desse momento, muitas
tiras abordarão a temática e mostrarão cenas dos personagens nas salas de aula realizando
tarefas de casa, ou conversando sobre suas experiências escolares.
Figura 37: Tira publicada por El Mundo em 15 de março de 1965.
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p 603.
No primeiro quadro da tira abaixo vemos Raquel segurando o uniforme escolar
de Mafalda, que ela possivelmente estava costurando ou consertando, devido à forma como
segura e analisa os detalhes da roupa, e ao material de costura que se encontra no chão, ao
lado de sua cadeira. Ao mesmo tempo, Mafalda a observa com olhos entristecidos. Sua face
está contorcida numa mistura de compaixão e preocupação. Pelo diálogo, a protagonista nos
revela que, de fato, está preocupada com o fato de sua mãe estar insegura com o início do
jardim de infância da sua filha, já que “tiene miedo que no me guste”. No segundo quadro a
personagem se anima: decide tranquilizar sua mãe, garantir que ela deseja se dedicar ao
estudo, indo à escola, ao colégio e à universidade. Nesse momento, observamos que seus
olhos se abrem e suas mãos se posicionam sobre sua face, indicando que Mafalda reflete
sobre a ideia. Sem mais delongas, a menina vai feliz dizer à mãe o que havia pensado, e com
um sorriso no rosto assegura sua vontade de iniciar a vida escolar, e o seu desejo de estudar
muito para não ser “una mujer frustrada y medíocre como vos!”.
102
O humor aparece tanto pela crítica realizada às mulheres que deixaram de estudar
e foram se dedicar à família e aos filhos, quanto pela ingenuidade da menina, que com olhar
doce não percebe que suas palavras, ao invés de acalmarem sua mãe a deixaram entristecida.
Essa inocência é mais uma vez ressaltada no último quadro, no qual observamos Raquel
cabisbaixa, com o rosto apoiado nas mãos, com olhos tristes voltados ao chão; enquanto
Mafalda caminha alegremente, se felicitando por ter reconfortado sua mãe. A composição
das personagens e dos cenários nos permite averiguar que Quino ainda estava no início de sua
produção, porquanto seus traços são mais simples e os quadros possuem menos detalhes e
recursos, comparados aos trabalhos finais.
Quando partimos da discussão sobre a escola moderna, muitos serão os autores
que nos apresentarão a instituição escolar como produtora e reprodutora dos conceitos,
valores e anseios dominantes da sociedade em que se inserem, corroborando para a
construção e dominação dos indivíduos. De acordo com Foucault (1995, s/p), poder e governo
não estão atrelados somente ao Estado, como se pensava em séculos anteriores. Uma vez que
o poder consiste em dirigir condutas, governar seria organizar e controlar as diversas formas
de ações do outro, a partir de grupos e instituições diferentes. Partindo dessa reflexão, Pineau
(1996, p. 230) também argumenta que a escola moderna era também responsável pelo
governo da sociedade, embasando-se na ordem e na crença de que somente a adequação de
todos os indivíduos ao sistema social, econômico e político proposto, levariam o país ao
progresso almejado. Era exigido silêncio, formação de filas, e obediência aos adultos; além de
castigarem e disciplinarem os comportamentos considerados inadequados.
Além dos comportamentos, o corpo da criança se evidencia como organismo a ser
controlado e doutrinado. Visto que o corpo não existe em “estado natural”, todos os
movimentos, posturas, gestos, olhares e sensações estão atreladas às lógicas sociais e
culturais, que modelam o corpo e decidem o que é ou não permitido, definem dentre outras
coisas as “(...) expresiones de sentimientos y emociones, ritos de interacción corporal,
técnicas corporales, universos morales específicos, reglas de etiqueta y vestido, técnicas de
mantenimiento del cuerpo, usos corporales” (SCHARAGRODSKY , 2011, p. 02). Esse
processo de educação corporal era preocupação das instituições modernas, dentre elas a
escola, que em seu interior e conjunto de práticas participou da fabricação da cultura e dos
corpos infantis. Na tira abaixo podemos observar o formato escolar marcado por esses
elementos.
103
Figura 38: Tira de Mafalda
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p 178.
Representando a relação assimétrica dos professores com os alunos a mesa da
professora, que está em uma espécie de púlpito, num nível mais alto do que o resto da sala, o
que lhe permite ter uma visão privilegiada de todos os alunos e garantir que todos prestem
atenção aos seus ensinamentos. A professora se encontra sentada em sua cadeira, com o corpo
rijo, e o dedo apontado para cima – símbolo muito utilizado em discursos impositivos – nos
dá impressão de ela está, ao mesmo tempo, explicando o conteúdo e garantindo a importância
do que este sendo dito. Sobre sua mesa está um globo terrestre, objeto presente na maioria das
tiras que remetem à estética escolar. Os alunos por sua vez, se encontram sentados,
enfileirados, todos em uma mesma posição, voltados à professora. Suas mãos e pés estão
parados de uma mesma maneira, corroboram para a sensação de controle e obediência dos
corpos. As carteiras representadas na tira eram presas ao chão, equidistantes uma das outras, e
assim, além de não respeitarem os tamanhos das crianças, impediam a mobilidade dos alunos
e forçavam um aprendizado individual, uma vez que dificultava o trabalho em grupo.
Contudo, esse cenário sofre uma interferência – o que produzirá o efeito de humor
– Manolito, o aluno “bruto”, interage com o ensinamento da professora, dizendo que
Colombo era burro por pensar que a terra era redonda. A falta de conhecimento do aluno e sua
ingênua participação na aula gera o riso no leitor; contudo, as expressões e movimento dos
corpos dos alunos nos mostram que a despeito da indignação pelo comentário do colega de
classe, a interrupção da explicação da professora e da ordem da aula não era bem vinda.
Ademais, o fato de Quino não ter dividido a cena em quadros, além de nos permitir ter uma
visão mais ampla da sala de aula de Mafalda, produz uma sensação de continuidade nos
acontecimentos da tira.
A disciplina não era exigida somente por questões pedagógicas. Sua implantação
era coerente com o objetivo primordial da escola nacional: formação de cidadãos. Desse
104
modo, através da ordem e do controle dos corpos infantis, se introduziam nos alunos os
valores considerados corretos, e ensinavam-nos a obedecer a regras e normas sociais. A
docilidade e submissão valorizadas por essa educação era também uma garantia de que,
futuramente, não perturbariam a ordem social estabelecida; e assim, se entendia que o papel
da escola implicava na intervenção estatal e na formação dos docentes, que deveriam ser
exemplos de moralidade para seus alunos. A infância, nesse contexto tradicional, era
compreendida como uma etapa inferior na vida do ser humano, sendo as crianças seres
incompletos e necessitados de conhecimentos garantidos pelos adultos, no caso, seus
professores. E, dessa maneira, estes se tornam os detentores de saberes e virtudes que seriam
depositados nos alunos. Nesse sentindo,
los docentes debían enseñar los valores y las conductas morales desde su
propio ejemplo, tanto dentro como fuera de la escuela. Por eso, se le exigía
no sólo los conocimientos necesarios para transmitirlos, sino el
cumplimiento de una serie de hábitos y la prohibición de otros, como por
ejemplo: no salir de su casa de noche, no pasear por las heladerías, no andar
acompañada de un hombre (excepto su padre o hermano), no fumar ni beber
alcohol, no maquillarse, etc.33
A tira abaixo também nos permite visualizar essa relação entre professores e
alunos, bem como a noção do professor enquanto único capaz e responsável pela instrução
dos alunos.
Figura 39: Tira de Mafalda
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p 289.
No primeiro quadro observamos duas professoras conversando enquanto
observam as crianças que brincam pelo pátio do colégio. Sabemos que não se trata de uma
sala de aula, pelo fato de as crianças não estarem uniformes e sentadas em suas carteiras.
Algumas correm, outras se mostram sorrindo, felizes – o que também é característico das
33
Trecho faz parte do Contrato de las maestras con el Consejo Nacional de Educación, presente em La Revista
del Consejo Nacional de la Mujer, Año 4, n° 12, Buenos Aires, março de 1999 apud SUAREZ, Maria Laura,
2011, p. 48.
105
representações dos recreios. Contudo, enquanto as demais crianças se divertem, Mafalda
revela à colega que na noite anterior pediu ao seu pai que lhe explicasse algumas divisões. A
professora espanta-se com o que ouvira, seus olhos se arregalam, e ela caminha até Mafalda,
questionando a atitude da menina que perguntara ao pai sobre o conteúdo escolar, quando é
papel da docente lhe explicar sobre as divisões. Além de sua fala dura, a professora se
permanece altiva e ao se aproximar da personagem, mantém certo distanciamento, aponta o
dedo impositivo, que, juntamente com sua fala, recrimina a atitude da aluna.
Nos próximos quadros Mafalda interrompida pela bronca da professora, para,
volta o corpo para ela, e observa sua distancia e atitude desproporcional diante do ocorrido.
Seus olhos se levantam, ela analisa a professora, e com certo desdém, retoma seu diálogo com
a colega. A professora se mantém firme ao seu lado, como que esperando um pedido de
desculpas ou alguma forma de reparação pelo erro cometido. Entretanto, o último quadro vem
nos mostrar que Mafalda não só não pediria desculpas, como a errada na cena era a
professora, “detentora” do conhecimento. A protagonista explica que estava perguntando
sobre as divisões sociais, culturais e raciais, e a professora adquire uma expressão de surpresa
e indignação, olhando para o leitor num pedido de ajuda diante de uma aluna tão diferenciada
e da situação embaraçosa. Além da representação das funções e relações dos atores escolares,
a tira produz humor pela surpresa gerada no leitor, que assim como a colega e a professora,
pensou que Mafalda conversava sobre as divisões matemáticas, tanto pelo fato de a
personagem ser uma criança – teoricamente inocente – que indaga sobre os problemas
mundiais e nacionais, que acometem o mundo dos adultos.
Além disso, era importante às professoras conservarem uma fisionomia discreta,
sem exuberâncias, uma postura rígida, porém com um tom de voz cálido, que inspirasse
respeito e ternura. A “maestra” se transformava em uma “segunda madre”, que instruía os
alunos quanto aos conteúdos escolares e às condutas sociais desejadas. Este modelo docente
tem sua raiz na matriz eclesiástica da escola tradicional, nos quais, como visto anteriormente,
os professores herdaram a hierarquização das relações e as obrigações apostólicas e morais
dos sacerdotes, antigos encarregados do processo de ensino. Na tira abaixo podemos
visualizar as duas representações mais tradicionais a respeito da instituição de ensino e dos
docentes: a escola vista como local sagrado, “templo del saber”, e como um local onde os
professores e alunos estabelecem uma relação similar a dos pais com seus filhos (SUAREZ,
2011, p. 49).
106
Figura 40: Tira de Mafalda
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p 127.
No primeiro quadro, presenciamos o primeiro dia de Mafalda na escola. Os alunos
se encontram no pátio, enfileirados, ordenados e quietos, enquanto os professores estão em
um palco para dar as “boas vindas”. A arquitetura escolar do desenho é retilínea, e a opção
gráfica de Quino nos gera a sensação de disciplina, na medida em que as janelas, portas e
pisos quadrados ou retangulares, se alinham com a postura ereta dos professores e dos alunos.
O segundo quadro fecha na professora/diretora da escola, uma senhora gorda, símbolo do
modelo de professora argentina, com seu uniforme, óculos e penteado. Enquanto ela
movimenta as mãos e sorri docemente, expõe aos novos alunos que estes agora fazem parte
do templo de saber, e que podem se tranquilizar, porque cada professora “brindará aquello
que toda madre oferece a sus hijos: amor”.
Contudo, a nossa protagonista questionadora aparece no último quadro
compartilhando sua alegria ao saber que receberiam amor, e não a sopa, como ela imaginava
que fosse. A sopa, em toda a obra de Quino representa o autoritarismo – que Mafalda se
recusa e sofre ao engolir. Muitas tiras trazem Raquel dando sopa aos filhos, e Mafalda
abordando as temáticas da censura e do abuso de poder –, e assim, a menina denuncia e critica
a escola como um local autoritário, onde por trás de um discurso de amor, existia uma postura
rígida, muitas vezes agressiva, preparada para moldar os alunos de acordo com os interesses
da nação. Somado ao seu discurso, vemos o guarda escolar e os professores olhando para
Mafalda com faces desgostosas, num misto de surpresa e desapontamento diante do
comentário da nova aluna.
Ainda, no que diz respeito às ações disciplinantes, nas tiras de Mafalda os
métodos de ensino também se mostram eficazes como mecanismos de controle dos alunos.
Estes supostos estavam em sintonia com o modelo de educação bancária, voltada para a
instrução dos alunos ao invés da educação dos mesmos, entendendo que eles poderiam
107
adquirir los conocimientos impartidos siguiendo una programación
establecida a priori y mediante la utilización de estímulos para obtener
determinadas reacciones. De esta manera, ellos prometían un aprendizaje
exitoso en todos los casos, desconociendo la intervención de diferentes
factores, sean individuales o sociales (SUAREZ, 2011, p. 29).
Na maioria das tiras que trazem a sala de aula de Mafalda, podemos observar
colado nas paredes um mapa da Argentina, frisando a importância da incorporação da noção
de Nação pelos alunos, dentro no sistema tradicional de ensino argentino. Ainda, em algumas
tiras as paredes possuem fotografias dos políticos e importantes homens argentinos,
apresentados como heróis nacionais, uma vez que o ensino de História era transmitido a partir
de epopeias, sem articulação entre os acontecimentos. Quino, ao longo de sua obra, colabora
com nosso entendimento sobre a matéria que Mafalda está aprendendo através da composição
de cenário, seja pelo quadros na parede, pelo globo, desenho de animais, plantas, entre outros.
Na tira abaixo presenciamos um momento de avaliação que, segundo Pineau
(1996, p. 234), também correspondia à lógica disciplinadora, tendo em vista que o exame,
além de medir os conhecimentos apreendidos pelos alunos através da memorização e
repetição, servia como castigo para comportamentos inadequados.
Figura 41: Tira de Mafalda
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p 395.
No primeiro quadro nos deparamos com a professora, em seu estilo inquisidor,
perguntando sobre as principais produções argentinas. No fundo da sala vemos um quadro
com uma vaca e algumas plantas, o que nos remete a uma possível aula de biologia.
Entretanto, Mafalda, a aluna interrogada da vez, responde de forma equivocada, dizendo que
o solo é produtor de pessimistas, fazendo sua crítica à sociedade argentina. Ao responder, a
personagem apresenta uma expressão triste, como que desapontada com o perfil de argentinos
de sua época. O humor gerado nesse quadro se deve ao elemento político-social, num
108
momento de avaliação escolar. No último quadro visualizamos a personagem chegando a sua
casa, ela abre a porta com uma expressão de desespero e tristeza, e, antes de qualquer coisa,
anuncia a nota ruim na prova: “¡¡cero en sinceridade!!”. Novamente, o elemento humorístico
se constrói no inconformismo de Mafalda, que ao seu ver, a despeito da avaliação escolar,
fora sincera e merecia uma nota maior por isso.
Figura 42: Tira de Mafalda publicada por El Mundo em 12 de março de 1966.
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p 558.
O primeiro quadro da tira acima mostra Mafalda sorrindo e comemorando que
ganhara um “MB” por toda sua página de seu palotes34
. Podemos ver que os alunos estavam
aprendendo pela repetição a escrita da letra I. Os outros dois quadros mostram colegas de
Mafalda exaltando sua boa nota pelos seus respectivos palotes. Os alunos estão vestidos com
seus uniformes, o que nos permite inferir que estão no colégio e acabaram de receber o
resultado de sua avaliação. No entanto, no último quadro Manolito aparece triste e pensativo,
sem entender o porquê sua nota ruim “MAL” na sua página de palotes. O humor da tira está
na confusão do aluno, que não compreendera o objetivo da tarefa: era necessário reproduzir a
mesma letra por toda a página, e não apenas fazer uma grande letra I que cobrisse a página.
Além disso, o personagem em questão é representa o aluno com dificuldade, e essa tira
dialoga com as demais, já lidas pelo público de Quino, e nas quais o menino não acompanha
os demais colegas de sala.
Contudo, quando Quino publica a tira, ele não tinha conhecimento de que as
escolas argentinas já não mais usavam palotes como mecanismo de alfabetização. E assim,
em março de 1966, ele recebe inúmeras cartas de seus leitores, tanto professores quanto pais
de alunos, que lhe avisam sobre o fato de que os palotes “se habían dejado de usar tiempos
34
Palotes era uma cartilha destinada à alfabetização das crianças, a partir da repetição do formato das letras,
muito utilizada na primeira metade do século XX na Argentina.
109
atras” (COSSE, 2014, p. 85). Desse modo, além de representar um momento de avaliação
escolar, a tira permite que observemos como Quino estava imerso em suas memórias e antigas
práticas pedagógicas quando produziu sua obra.
A escola moderna tradicional, produtora de conceitos e de uma estética escolar,
também fora responsável pela organização do tempo – horários, recreios, duração das aulas,
entre outros -, elemento fundamental para regular a relação do aluno com o espaço e tempo. O
calendário escolar passa a determinar os horários de convívio entre os familiares, e até mesmo
as datas de viagem da família de Mafalda. Na tira abaixo, nos deparamos com um momento
de controle do tempo dentro do ambiente escolar: a campainha que sinaliza o momento de
dispersão e intervalo das aulas. Mecanismo utilizado até os dias atuais, se estabeleceu há
muito como forma de comandar os corpos dos alunos. No primeiro quadro temos uma
onomatopeia (ring), que como signo de representação é muito conhecido e já avisa o leitor de
que a aula acabara. Num balão unissônico – produtor da sensação de comunhão – as crianças
exaltam o recreio, compondo uma cena feliz junto aos sorrisos que elas apresentam. Saem de
suas carteiras e correm para o pátio, onde poderão se movimentar e brincar.
Figura 43: Tira de Mafalda publicada por El Mundo em 12 de março de 1966.
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p 332.
Contudo, além de trazer mais um representação do formato escolar, Quino vai
além e aborda outras temáticas, criticando o abandono às instituições de ensino. A despeito da
alegria dos outros alunos, Mafalda se mantém séria desde o primeiro quadro. Quando as
crianças se movimentam ela observa um prego que cai da sua carteira; depois no pátio, ela
repara no teto que se desfaz, no encanamento que está quebrado, e nos muros descascados e
rachados. Por fim, diante de tamanha contradição entre o momento de prazer dentro do
ambiente escolar e a preocupação presente nas expressões da personagem, no último quadro
Mafalda desabafa com Felipe sobre o descaso com a edificação da escola. As demais
110
crianças, bem como a professora, não apresentam a mesma preocupação, e em nenhum
momento observam a situação do edifício escolar, como se seus olhos já estivessem
acostumados com a precariedade. Os detalhes do desenho nos permitem verificar esse
processo de deterioração da escola, e inferir uma crítica ao abandono da educação por parte
das autoridades políticas. Além disso, a própria personagem interage com as ruinas e a
degradação ao denominar o abandono do edifício como um trabalho dos “decoradores del
ministerio de educación”.
Dessa maneira, ao passo que as tirinhas de Mafalda nos assinalam aspectos da
educação argentina do período, de seus questionamentos e práticas escolares, elas também são
parte da memória escolar do argentino, que através do desenho se remete às imagens, cores,
sensações de sua própria experiência escolar. A escola, então, pode ser compreendida como
um espaço de imposição de determina estética, voltada para padronização dos alunos dentro
do que era estipulado como aceitável e bom para a sociedade. Conforme Pineau (2008), a
estética escolar permite que, partindo de um mesmo molde, unifiquem-se as experiências
escolares, o modo de se portar, o vestuário, o mobiliário, os comportamentos dos alunos e dos
professores. Ademais, a escola vista como produtora de sensibilidades, de noções de beleza,
limpeza, virtudes e valores, não é ingênua na maneira como pensa sua estética, a utiliza
justamente para introduzir tais noções aos alunos que ali se encontram.
A partir do estudo dos elementos da cultura escolar a material, Pablo Pineau e
Susana Di Pietro (2008) traçam a geometria da vida escolar argentina, considerada por eles
como quadrada e asséptica, caracterizada pelos tradicionais jalecos brancos, as maletas, os
bancos e carteiras equidistantes, os mapas-múndi, cadernos, entre outros objetos que fazem
parte dessa vida escolar35
. As tirinhas de Mafalda também nos permitem visualizar essa
estética escolar problematizada e apresentada pelas imagens de Di Pietro.
Mafalda reflete, assim, a realidade vivida naquele momento histórico, baseando
suas preocupações, críticas e ideologia em experiência concretas, visto que muito do que é
produzido se pauta em memórias e vivências do próprio autor. Quino, ao tratar de aspectos
que envolvem o seu contexto imediato, consegue captar de maneira ímpar as questões mais
relevantes do momento em que vive, expondo-as por meio da imprensa gráfica. A
35
No livro Aseo y presentación: un ensayo sobre la estética escolar (2008) , Pineu e Di Pietro refletem sobre a
estética escolar. Di Pietro retratou - a partir de fotografias de escolas públicas e particulares de Buenos Aires da
década de 1970, principalmente -, os ambientes escolares, as práticas, os alunos e funcionários que compunham
as cenas escolares do período. Da mesma forma, quadrinhos que trazem o vestuário dos alunos e os materiais de
sala nos permitem visualizar e questionar o significado desses objetos e espaços que hegemonizam a forma como
a escola é vivida e recordada, ou melhor identificada, pelos leitores.
111
personagem Mafalda é, desta maneira, um registro histórico e um sujeito histórico. É nesse
sentido que procuramos compreender as HQs não apenas como fontes informativas, mas
também como produção cultural, que possui capacidade de ação na sociedade em que se
insere, e Mafalda, se torna, desse modo, um instrumento para compreender um tempo e uma
linguagem específica.
112
Capítulo 4: 1960 - Mafalda e escola em transformação
113
Em março de 1960, aconteceu no México a Terceira Reunião do Comitê
Consultivo Intergovernamental do Projeto Principal de Educação para a América Latina,
destinada a avaliar o andamento, facilidades e dificuldades de realização das propostas
elaboradas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Além
dos dirigentes da UNESCO, se reuniam os delegados de diferentes países, dentre os quais a
Argentina, além dos observadores de países integrantes do CEPAL, dos integrantes do
UNICEF, bem como a Confederação de Educadores Americanos, a União Mundial dos
Professores Católicos, entre outras organizações.
Dentre vários pontos da pauta, a reunião se destinou também a ratificar as
propostas do Projeto Principal Nº 1 da UNESCO, no qual os governos deveriam se
comprometer com o planejamento da educação, a extensão da educação primária, a revisão
dos planos e programas de estudo e, de formação e aperfeiçoamento dos docentes. Propunha-
se, ainda para os anos seguintes (1961 e 1962), o aumento de investimento em educação
primária por ações dos governos dos países latino-americanos, apostando que, a partir dela, os
problemas educacionais da América Latina passariam a diminuir consideravelmente. Além
disso, representados pela Presidenta do Consejo Nacional de Educación, Clotilde Sabattini de
Barón Biza, os argentinos foram parabenizados pelo entusiasmo diante do desenvolvimento
do Projeto durante o período entre 1957 e 1960, destacando-se a adoção do Estatuto del
Docente – que incluía, entre outros, o ingresso profissional por meio de concurso, assegurava
a estabilidade aos professores , previa bonificações e tempo de aposentadoria – e, a “ (...)
asistencia de más de 2.800.000 niños a las escuelas primarias gracias a las medidas tomadas
en favor de la expansión de los servicios educativos” (EL MONITOR DE LA EDUCACIÓN
COMÚN, 1960, núm. 928, p. 57).
Esse episódio demonstrava o compromisso assumido pelo governo argentino para
promover o avanço educacional no país, apostando, também, nos pontos proferidos pela
UNESCO como norteadores para seus próprios projetos e leis de expansão e melhoria dos
seus sistemas de ensino primário, secundário e de formação profissional. Nesse sentido, o
governo de Frondizi, entre 1958 e 1962, fora marcado por muitos acontecimentos
significativos para a educação argentina. Além da sanção do Estatuto del Docente, criou-se o
Consejo Nacional de Educación Técnica (CONET) e foram promovidos inúmeros debates
acerca do ensino laico e livre. Além disso, Frondizi iniciou o processo de transferência das
escolas primárias nacionais para as províncias, desburocratizando o sistema, descentralizando-
o e permitindo maior heterogeneidade nos processos de ensino e aprendizagem.
114
Durante a presidência de Umberto Illia, a relação entre os docentes e o governo
se afinou e permitiu que houvesse maiores aberturas e inovações no campo educacional.
Muitas experiências pedagógicas democráticas foram desenvolvidas e estimuladas, como o
novo liberalismo laico escolanovista, que, influenciado pela psicanálise e psicologia social, se
desenvolveu em ambientes educativos como jardins de infância, colônias de férias, centros de
recreação e algumas escolas públicas. Essa nova corrente, marcada também pela intervenção
de pensadores e educadores de esquerda, discutia a relação entre educação e tempo livre,
possibilitando a criação de jardins de infância e centros de complementação escolar privados,
que realizavam experiências pedagógicas diferenciadas das escolares tradicionais. Em Buenos
Aires, por exemplo, se destacou Arco Iris, dirigido por Chola Falco e Cory Troianosvsky, na
qual “pasó gran parte de los hijos de los intelectuales y dirigentes progresistas” (PUIGGRÓS,
1997, p. 116), e que se tornou fundamental para a formação de princípios educativos
democráticos, e mais tarde, “contribuyó em buena medida a la gestación de la cultura
pedagógica progresista de la clase media” (Ibidem).
Em 1965, o Consejo Nacional de Educación definiu as orientações para a
expansão dos serviços educacionais do país, tendo como objetivos o planejamento educativo
coordenado juntamente ao planejamento do Ministerio de Educación y Justicia; o
alinhamento com os planos de desenvolvimento do país; planejamento de construção escolar;
assistência integral escolar; e o aperfeiçoamento contínuo do docente (EL MONITOR DE LA
EDUCACIÓN COMÚN, 1965, núm. 939, p. 65). Estes propósitos se relacionavam
principalmente com a educação primária, mas compunham também o objetivo do Consejo
Nacioal de Educación de “recuperar para la vida de la cultura y la capacitación para el
trabajo, 1.000.000 de adultos analfabetos en el término de 4 años, mediante un Programa
Nacional Intensivo de Alfabetización y Educación de Adultos” (Ibidem).
Dessa maneira, durante o ano foram criados cerca de trinta e duas escolas, 301
turmas de ensino fundamental e 172 turmas de jardim de infância. As escolas passaram a
garantir alimentação aos alunos, com a criação dos “comedores” (refeitórios escolares), sendo
que nesse ano, cerca de 282 escolas e 16 mil alunos eram beneficados na capital federal. Além
de alimentação, passou a ser garantida a oferta de melhores serviços médicos-odontológicos,
além de atividades culturais, tais como a recreação para as crianças aos domingos e feriados,
exposições de livros escolares e revistas pedagógicas, e atos em homenagem aos dias das
mães, em escolas e praças.
115
Os esforços para alavancar a educação nacional foram grandes. Em 1969, um
novo projeto de lei aprovado instituía a educação obrigatória dos seis aos quatorze anos de
idade, garantindo a permanência da criança em todas as etapas escolares. Em um momento
que a modernização, expansão cultural e tecnológica também exigiam um aprimoramento e a
expansão da educação, ao longo da década de 1960, o cenário educacional argentino sofreu
grandes alterações quantitativas e qualitativas. Com o apoio de organizações nacionais e
internacionais foram construídas novas escolas, prédios foram reformados e metodologias e
práticas de ensino revisadas, tal qual ocorria em outros países latino-americanos.
4.1 – As revistas pedagógicas: propostas e discursos educacionais
Ao longo do século XIX, as revistas de grande circulação se inovaram e passaram
por um processo de expansão utilizando cada vez mais imagens e textos curtos, o que, além
de facilitar o acesso do público comum, as transformaram em uma mercadoria atrativa, de
leitura rápida e leve. Assim, a publicação de revistas virou moda em países europeus e se
transformou em uma publicação “emblemática de la vida moderna” (FINOCCHIO, 2009, p. 13),
capaz de apresentar modos de viver, ideias de modernidade, e assim, formar seus leitores.
Conforme destaca Finocchio (Ibidem), na Argentina, principalmente durante as primeiras
décadas do século XX, as revistas se apresentaram como uma fusão do livro com os jornais, e
se afirmaram como produtos culturais que contava com um publico diversificado. Além disso,
se transformaram em um espaço de confluência entre o culto e o popular, sendo lidas por
pessoas de diferentes gêneros, idades, profissões, gostos e expectativas.
A partir da segunda metade do século XIX, as escolas argentinas, que já estavam
processo de construção, contavam com a formulação de um sistema educacional e com a
opinião pública para efetivar sua aceitação enquanto local seguro de ensino, diferente da
anterior educação familiar e religiosa. O Estado, preocupado em garantir a afirmação da
escola na sociedade, utilizava dentre outros recursos, dos meios de comunicação para dialogar
com os pais, alunos e docentes; e, nesse cenário surge a imprensa voltada à educação –
revistas e jornais educativos – que se expande como instrumento adequado para difundir as
ações do governo, uma vez que através dos textos oficiais e da imprensa alternativa eram
apresentados e discutidos práticas e direcionamentos pedagógicos. Dessa maneira,
(...) la prensa educativa fue un espacio que no sólo expresó creencias, gustos
y preferencias sobre materiales y modos de enseñar, sino que hizo a las
relaciones más o menos amables de la cultura escolar con la cultura política,
116
religiosa, académica, de géneros y popular o masiva. (FINOCCHIO, 2009, p.
19)
Nesse cenário, o sistema educacional apostava na capacidade da imprensa de
contribuir para aperfeiçoamento da imagem dos docentes, uma vez que almejava um professor
leitor assíduo de revistas profissionais, e que se pautasse nos direcionamentos e discussões
pedagógicas propostas. Muitas publicações começaram a circular pelo país. Estas se dividiam
em seis grandes categorias: as revistas sobre o sistema educativo e as instituições escolares;
publicações para docentes; para um tipo particular de educação, como por exemplo, o ensino
religioso, o ensino privado ou o ensino técnico; revistas de educação não formal, destinadas a
recreação e promoção cultural; e as publicações do campo da pedagogia e das ciências da
educação, centradas nos debates de ideais pedagógicas ou teorias educativas. De um modo
geral, eram textos que dialogavam diretamente com os docentes e familiares, capazes de
fomentar os modelos esperados e inspirar modificações desejadas. A maestra (como se chama
a professora da escola primária na Argentina), por exemplo, era constante tema, e sobre ela
deixava-se claro que aquela que não quisesse ser “mal vista” deveria ter uma biblioteca
própria, ser assinante de uma publicação de caráter profissional, ler textos que aumentassem
sua cultura, já que
(...) La maestra que no leer o que perde su tempo en lecturas frívolas o
triviales, pronto olvida lo aprendido y cae en la rutina más desesperante; y
aquella que no está suscripta a una o varias revistas pedagógicas demuestra
su escaso apego a la profesión, porque no desea estar al cabo de los adelantes
y de la evolución que, con el andar del tiempo, van adquiriendo todas as
manifestaciones de la actividad humana, entre as cuales se encuentra
naturalmente la enseñanza. Pobres los niños a quienes les tocan mentores de
esta clase.” (Revista Instrucción Primaria, 1932 apud FINOCCHIO, 2009, p.
18.)
Como aponta Gondra (1997), as revistas pedagógicas, de uma forma geral,
funcionavam como um guia do professor, a quem o Estado desejava fornecer todos os
elementos e auxilio para o perfeito desempenho de sua missão. Dessa maneira, a imprensa
educacional permite identificar tanto as políticas educativas do governo, assim como as
questões e conflitos das próprias instituições, as disciplinas escolares, e as propostas de
formação docente. Além disso, como ressalta Finocchio (2009) a partir da leitura de suas
publicações, é possível conhecer os detalhes da cultura que reina no dia a dia da escola, uma
vez que as revistas remetem “(...) no sólo a la cultura de lo escolar y a los procesos
simbólicos-políticos ligados a la conquista celular de la educación, sino también a la
producción de los propios sujetos del mundo educativo” (p. 28).
117
Criada em 1881, o El Monitor de la Educación Común era a publicação oficial do
Consejo Nacional de Educación, patrocinada tanto pelo governo nacional quanto pelo
governo da província de Buenos Aires36
. Conforme aponta Quadros (2013), a revista era uma
ferramenta de vital importância para o Estado garantir a homogeneização e unificação da
educação no país. Era entregue gratuitamente nas escolas, e diferentemente de outras revistas
pedagógicas, como os Anales de la Educación Común37
, não foi criada para ser uma revista
destinada ao público geral e sim aos inspetores escolares, uma vez que orientava a vida
escolar, se tornando essencial para a organização de um sistema educativo argentino, visto
que, semelhante ao que ocorrera em outros países, estabeleceu ideias, crenças e sentimentos
sobre a cultura escolar e profissional, como o “ amor à profissão, saber do professor,
preparação moral, formação do caráter”, assim como difundiu “(...) postulados pelos quais se
buscava formar a opinião pública, circunscrever as opções de profissionalização e informar
acerca do domínio de saber e do cumprimento de prescrições dos governos” (p.340).
Ao longo de suas páginas, reproduzia notificações oficiais, e abarcava temas como
a arquitetura e planos de construção de edifícios escolares, os materiais educativos, o sistema
de inspeção e a assistência escolar. Ainda, contava com uma série de artigos nacionais e
internacionais, que discutiam as ideias pedagógicas e suas práticas38
. Durante o século XX, a
revista passou por modificações, acompanhando os interesses e objetivos do governo e as
novas formas de pensar a educação nacional, incentivando práticas que valorizassem ora a
normatização, ora a pátria, os rituais solenes, ora os professores como parte fundamental do
processo educativo. Com estes, a revista passou a dialogar ativamente, através de boletins,
fotografias, mensagens e até mesmo espaços abertos para publicação de diários e experiências
profissionais. Por exemplo, na edição de 1932, a revista publica a seguinte mensagem:
Maestros:
36O Consejo Nacional de Educación era um órgão dependente do Poder Executivo Nacional da Argentina, criado
pelo presidente Julio Argentino Roca, em 1881. Inicialmente sua função era administrar as escolas prímárias
públicas, e sua autoridade se limitava aos estabelecimentos localizados na cidade de Buenos Aires. Depois de
alguns anos seu poder e ação foi estendido às escolas nacionais em todo o país. Sua primeira autoridade foi
Domingo Faustino Sarmiento com o cargo de superintendente geral. 37
Os Anales de la Educación Común passou a ser publicado desde 1858, era dirigida por Sarmiento, chefe do
Departamiento de Escuelas de la Provincia de Buenos Aires. Conforme Quadros (2013), a revista procurava
disseminar o discurso da necessidade e relevância da implantação da instituição escolar, conquistar e convencer
a sociedade da importância de um sistema escolar ou, em outras palavras, produzir uma opinião pública e
difundir os sentidos da escolarização: civilização e progresso social. 38
Existia, no período, uma preocupação do Consejo Nacional de Educación em trazer também publicações
internacionais, garantindo um intercâmbio e o reconhecimento da revista produzida. Em 1890, os artigos de El
Monitor de la Educación Común já eram publicados em revistas de ampla circulação internacional, como o
Journal d’Education Populaire, editado em Paris, e o Education Times, produzido na Inglaterra, entre outros.
(FINOCCHIO, 2009, p. 20).
118
El Monitor de la Educación Común es de vosotros y para vosotros.
Contribuid a sua obra enviándonos el resultado de vuestro trabajo y estúdios,
y la expresión de vuestros ideales, necesidades y aspiraciones. (...)
Aprovechad el material que lleva, en las clases, en lecturas comentadas con
otros compañeros, reuniones con los padres y en centros obreiros para
sembraren ellos la preocupación por todos los problemas educativos. (EL
MONITOR DE LA EDUCACIÓN COMÚN, 1932, p. 68 apud
FINOCCHIO, 2009, p. 73)
No contexto de mudanças e questionamentos do modelo tradicional escolar e da
criação de novas correntes pedagógicas surge um pequeno grupo de professores que se
opunha à visão de El Monitor de la Educación Común, e cria uma nova revista, La Obra, na
qual publicavam suas ideias e propostas educacionais39
. Diante da vigência do normalismo e
do positivismo, o grupo, de orientação socialista, assumiu os postulados do movimento da
Escola Nova, defendendo que tanto o processo como o sistema educativo deveriam estar
centrados na figura da criança40
. Assim sendo, em suas páginas, ela explicava aos leitores que
“(...) la escuela de leer, escribir y las cuatro operaciones es un resíduo fóssil de las sociedades
medievales como los castigos y los exámesses” (LA OBRA, 1932, p. 4 apud FINOCCHIO,
2009). Ainda, o grupo afirmava que o novo modelo educacional teria como função
demonstrar que as atividades escolares podem ser prazerosas quando aplicadas com afeto: “el
niño debe aprender a trabajar jugando entre caricias y sonrias, entre pájaros y flores”.
(Ibidem)
A partir da segunda metade do século XX, as temáticas de La Obra e El Monitor
de la Educación Común se modificaram diante do quadro internacional e nacional. A saída de
Perón do poder e o intento de “desperonizar” a Argentina desencadearam uma necessidade de
reconstrução dos aparelhos estatais, e, por conseguinte, da educação nacional. Muitas
correntes pedagógicas disputavam o espaço, e as revistas tiveram papel essencial para a
promoção das novas ideias e defesa das antigas. Era comum a existência de múltiplas visões
de mundo e, por conseguinte, os embates entre elas. A imprensa e os manuais de ensino
vieram a balizar a agenda das escolas, dando ênfase a determinadas propostas curriculares e
até mesmo a manifestações públicas de cunho cívico ou religioso. (GATTI; GATTI, 2015).
Nos anos 1940 e 50, ocorreu a massificação do sistema educativo. As revistas
pedagógicas eram cada vez mais lidas, sendo utilizadas pelas professoras fora e dentro da sala
39
La obra nasceu como iniciativa de um grupo de professores que foram da Escola Normal Mariano Acosta. O
grupo era composto por Benito Cometta Manzini, Luis Ciroli, Juan Franchi, Francisco Ramospé e José
Schiappasse. Sobre La Obra, ver FINOCCHIO, 2009. 40
No final do século XIX e início do XX, predominava, na Argentina, a filosofia positivista. Esta se manifestava
no âmbito educacional a partir do normalismo, corrente educativa que valorizava as ciências naturais, o
evolucionismo como explicação para a história da humanidade, e a ordem e o rigor para o alcance do progresso.
119
de aula. As novas propostas de ensino ofereciam aos docentes formas de transformar suas
aulas para além da pedagogia tradicional. Entretanto, o sistema educativo argentino, que
desde seus primórdios foi alvo de bastante interesse por parte do Estado e da população,
consolidou a escola como marca da cultura e sociedade desse país; e assim, as revistas, por
mais inovadoras que pudessem ser, não se distanciavam dos interesses pátrios. Dessa maneira,
por exemplo, o nacionalismo e os rituais solenes não eram criticados, mas ao invés de
oferecerem biografias e rituais estereotipados, procurava-se promover um conhecimento mais
profundo da realidade do país, através da educação histórica e geográfica.
A partir de 1950, a revista La Obra objetivava uma renovação de ideias
pedagógicas compreendendo o leitor como participante e responsável pela mudança na
educação. Em razão disso, propunha o fortalecimento da cultura empírica dos professores; o
desenvolvimento concreto dos diversos saberes escolares; maior aproximação entre a escola e
a comunidade; o nacionalismo discutido com certo distanciamento; e o laicismo escolar sui
generis (que ainda permitia alguns rituais católicos como Páscoa e Natal). Em contrapartida,
as publicações oficiais, como El Monitor de la Educación Común, assumiram uma função
muito mais informativa do que reflexiva. Nos períodos de maior autoritarismo político,
marcados pelos golpes e ditatura, essa revista divulgava as ideias diretivas, os decretos,
resoluções e alguns artigos científicos que correspondiam ao ideal de educação do Estado,
voltado para a promoção da renovação educativa por meio de decretos.
Ademais, diante das novas tendências, tendo a criança ganhado maior importância
no processo de aprendizagem, cabia agora ao docente se aperfeiçoar novamente: sobre o
professor, recaia a ideia que ele não era mais o detentor de conhecimento, sério e rígido com
seus alunos, mas que, agora, ele deveria ensinar “com la dulzura en el trato de los niños” (LA
OBRA, 1921 apud FINOCCHIO, 2009). Este comportamento docente se propagou nas
revistas e, nas décadas de 1950 e 1960, já não era mais preciso seguir defendendo como
deviam se comportar as professoras. O estereótipo sobre o afeto magistral se estabeleceu na
sociedade, aparecendo, inclusive, juntamente com outras representações culturais sobre a
educação escolar, nas tiras produzidas por Quino.
O desenvolvimento da educação no período, em âmbito internacional, é marcado
pela comum experiência reformista no campo da educação e da administração educacional,
difundida principalmente pelas organizações intergovernamentais de cooperação técnica e
assistência financeira. A despeito dos interesses institucionais – seja de transmissão de
conhecimento, ou de intervenção nos processos internos de decisão política e culturas locais –
120
organizações como a UNESCO influenciaram o processo de formulação de políticas públicas
e orientaram o desenvolvimento educacional na Argentina e em muitos outros países do globo
(SANDERS, 2008, p. 160). Foram criados muitos programas de cooperação internacional,
como o Projeto Principal, estabelecido em 1959, após um informe da UNESCO, que
apresentava um panorama sobre o cenário educacional da América Latina, afirmando que
metade das crianças em idade escolar não frequentava a escola primária.
Para solucionar o problema, o Projeto defendia a descentralização da gestão
educacional e destacava o docente como fundamental no processo, uma vez que acreditava-se
no cultivo da personalidade do professor, no enriquecimento de sua cultura e no progresso de
sua técnica profissional como ingredientes para saber ensinar e conhecer a quem ensina,
melhorando assim, a educação do país. (UNESCO, 1959, vol. nº7. Julho, 1959 apud ARATA,
2013). Contudo, de acordo com Finocchio (2009), apesar do período ser marcado pelas
mudanças sociais e educacionais, nos anos 1960 e 1970, mesmo com todas as publicações
voltadas à transformação da educação nacional, o que se observava era o atraso e não um
compromisso com a renovação educacional. Em 1961, o editorial de La Obra afirmava que:
La escuela, desde la época sarmientina, ya cumplió una importante etapa
civilizadora. Pero en este momento tiene un atraso de medio siglo. Pareciera
prácticamente paralizada porque, pese a los esfuerzos que desde hace algún
tiempo se realizan, son luces de bengala que nacen y se apagan en las esferas
burocráticas. (LA OBRA, 1961 apud FINOCCHIO, 2009).
É nesse contexto que Mafalda surge. Quino era funcionário de revistas e
jornais do país, se inteirava das mais diversas discussões e, trazia para suas criações, temáticas
complexas que dialogavam diretamente com os acontecimentos nacionais e internacionais. Da
mesma maneira, as diferentes propostas educacionais, suas ideias, metodologias e apelo
social, também se tornam alvos de suas tiras.
4.2 – As tiras: a educação pela Mafalda
Os muitos textos publicados – sobre o docente, o aluno, as escolas urbanas, as
escolas rurais, os projetos governamentais, o combate ao analfabetismo, as divergentes
correntes pedagógicas, entre outros – permitem verificar em que medida os discursos oficiais
e os debates sobre educação estavam presentes e atuais nas tiras de Quino, em quais pontos
existiam convergências e em quais os temas se contradiziam. Na primeira metade do século
XX a imprensa educativa oficial foi uma preocupação do Estado argentino, que a adotou
121
como instrumento ativo no processo de organização e afirmação do sistema educacional, e
mais tarde se converteu em uma grande difusora “(...) del cambio y la reforma llegando
incluso a convertise en una extradordinaria impulsora de una transformación drástica del
sistema” (FINOCCHIO, 2009, p. 140). Dessa maneira, estabelecendo um diálogo entre o
discurso oficial do Estado, presente em El Monitor de La Educación Comum, e as tiras
produzidas por Quino, procurou-se analisar as propostas, censuras e visões de educação de
Mafalda.
Figura 44: Tira de Mafalda publicada por El Mundo
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 128
A tira acima dialoga com as críticas proferidas ao modelo educacional tradicional,
e as práticas de ensino por ele adotadas, que, ao invés de proporcionar a aprendizagem a partir
da realidade do aluno, se valia de exemplificações, repetições e memorizações de frases,
muitas vezes, desconexas e sem relevância. No primeiro quadro, vemos a professora, vestida
com seu uniforme, parada e apontando para os escritos da lousa enquanto os lê para os alunos.
A leitura acontece com o uso do giz, que sublinha as frases principais. Seus braços são
desenhados duas vezes para produzir a sensação de movimento. Sua expressão corporal é
rígida e ereta, mas sua face apresenta um sorriso, o que pode simbolizar a dualidade vivida
pelos professores que, ao mesmo tempo, deveriam impor disciplina e ser amorosos com os
alunos. As orações ensinadas são simples “mi mamá me mima, mi mamá me ama”, mas
incomodam Mafalda, que se levanta de sua carteira, e caminha até a professora. Além da
composição e detalhamento do cenário (com as carteiras fixas, mesa da professora, mapa da
América e os quadros dos grandes heróis nacionais), a tira apresenta uma sequência de quatro
quadros menores, contribuindo para a marcação do tempo e sensação de simultaneidade da
ação.
122
No segundo quadro, vemos a professora parada com uma expressão de
incompreensão diante do comportamento da aluna, que, além de interromper a explicação,
não o faz com o usual levantar de mãos, mas anda até ela, se posicionando em sua frente. A
professora, atônita, vê Mafalda pegando sua mão em um cumprimento, lhe felicitando pela
“mamá excelente”, e caminhando novamente para sua carteira. Os outros alunos a
acompanham com os olhos e cabeças, e a observam enquanto, no último quadro, já sentada,
finaliza seu raciocínio: era hora de ensinar algo realmente importante. A professora, nesse
momento, adquire maior inconformidade e assusta diante do pedido da aluna. A sua expressão
marca, também, o desconcerto que os professores vivenciavam diariamente nas aulas, uma
vez que foram formados pelo modelo tradicional escolar, e agora se deparavam com
transformações e solicitações diversas. E assim, ao invés de olhar para Mafalda, vira a cabeça
para o lado, como num pedido de ajuda diante das novas demandas.
Ao professor, a revista El Monitor de la Educación Común de agosto de 1960,
escreveu um decálogo com as normas e regras para se seguir e garantir um bom ensino. Era
necessário cuidar da disciplina, pois “(...) sin disciplina no es posible enseñar”; ter sempre
uma ou duas lições preparadas antecipadamente, para estar preparado em caso de “novedades
cotidianas”; não falar em sala nada alheio ao conteúdo e aos materiais didáticos; não falar mal
de nada ou ninguém para evitar inimizades no ambiente escolar; ser cordial e converter os
alunos em discípulos, mantendo sempre uma “(...) cariñosa distancia entre unos y otros, y
Dios sobre todos”. Ademais, recomendava-se ao professor dissertar pouco, interrogar muito;
garantir que a escola continue sendo um “templo del saber” resguardado; respeitar os
superiores, “(...) las jerarquias y procura no plantear cuestiones personales”; e, por fim, o
professor não deveria assustar seus alunos, ajudando aquele que está sendo avaliado,
perdoando seus erros. (EL MONITOR DE LA EDUCACIÓN COMÚN, 1960, núm. 932, p.
17).
A crise que o modelo tradicional enfrentava na segunda metade do século XX era
notória, tanto nas tiras quanto nos debates presentes pelos jornais diários e pelas revistas
educacionais do período. As novas correntes pedagógicas contribuíram para a transformação
do ideal de educação em um processo mais democrático e compreensível diante do tempo e
dificuldades do aluno. O governo argentino, imerso entre o tradicional e o renovador, passou
também a questionar antigas práticas e a defender uma educação moderna, marcada pela
articulação entre a já conhecida estética escolar (uniformes, material escolar, formato de
prédios, salas e posicionamentos, marcação de tempo e calendário) e as práticas de ensino
123
consideradas mais humanas, com conteúdos mais próprios e coerentes com a realidade do
aluno. As professoras, antes detentoras de saber, agora deveriam mediar a construção dos
saberes; e estes deveriam ser significativos, ou seja, “realmente importantes”.
A partir da leitura da totalidade de tiras da obra produzida por Quino, podemos
inferir sobre o que era importante para Mafalda. A personagem queria aprender sobre
democracia, sobre a Guerra do Vietnã, o comunismo, a Guerra Fria, e sobre desigualdades
sociais. Destarte, ao passo em que apresentam suas demandas, as tiras fazem referências à
desconexão entre a realidade argentina e mundial e os conteúdos escolares, e trazem à tona a
discussão sobre o papel da escola e o tipo de aluno que se queria formar, um aluno capacitado
para analisar e transformar a sociedade, ou um formado somente para o mercado de trabalho,
com conteúdos memorizados e pouca capacidade crítica. A tira abaixo foi publicada em 29 de
junho de 1966, dia em que, após o golpe, o General Onganía assumiu a presidência do país,
iniciando uma nova ditadura militar no país.
Figura 45: Tira de Mafalda publicada por El Mundo em 28 de junho de 1966.
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 548.
A tira de quadro único mostra a personagem triste. Suas sobrancelhas e boca
estão voltadas para baixo, e seu olhar apresenta um misto de profundidade e confusão. A cena
utiliza como recurso o close-up, enfocando somente no rosto da menina, como que nos
permitindo adentrar em sua intimidade e presenciar um momento de desabafo. Se
soubéssemos do acontecimento do dia, somente a imagem já seria suficiente para
compreender o temor e desgosto pela situação do país. No entanto, Quino trouxe uma fala
para a personagem, que ao mesmo tempo em que dialoga com os fatos nacionais, critica, mais
uma vez, a falta de vinculação entre o que se ensinava na escola e a realidade social e política
do país. Ao mesmo tempo em que na escola se aprendia as noções valores democráticos, amor
à Argentina e grandes marcos da história nacional, na realidade, os argentinos vivenciavam,
mais uma vez, a destruição dos direitos e liberdades civis. Além disso, a expressão de
124
Mafalda também nos permite deduzir que essa educação descontextualizada provocava
desconcertos no aluno, fazendo-o questionar o sentido da escola.
Figura 46: Tira de Mafalda publicada por El Mundo
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 367
O primeiro quadro da tira acima mostra uma professora vestida com seu uniforme
terminando de escrever o tema da aula preparada para o dia: História Nacional. Ela está ereta,
e diante da lousa num paralelo, prevalecendo, mais uma vez, os traços retilíneos na
composição da cena. A docente tem os cabelos presos num coque perfeito, sem fios soltos, e a
posição de seus braços também dialoga com a rigidez no formato escolar – rigidez vivida por
Quino, e agora, por ele criticada. No segundo quadro, a professora, já de frente para os alunos,
mexe suas mãos na vertical. O recurso de linhas fragmentadas produz a sensação de
movimento, e num ângulo reto, enfatizam a importância do que se estava dizendo aos alunos.
De acordo com ela, a matéria ensinada no ano anterior possibilitou que os alunos
conhecessem os processos de formação da Argentina, e da “esencia misma de nuestra
nacionalidad”. Entretanto, o que vemos no próximo quadro traz a contradição – e,
consequentemente, o humor da tira – os alunos respondem à professora, consonantes,
afirmando a sentença da mesma, de que aprenderam sobre a história argentina e sobre o que
significa ser um argentino. Respondem, contudo, com uma palavra, ou gíria, em inglês
“yeah”. Corpos rijos e idênticos colocam Mafalda ao centro da cena, a única aluna que nada
diz, e observa a cena atônita, com uma expressão contrariada, percebendo a incoerência entre
a valorização da identidade nacional pretendida pela professora, e o uso de expressões
estrangeiras por parte dos alunos.
A tira, apesar de possibilitar uma crítica à própria noção de identidade nacional, e
o “ser argentino”, mostrando as fraquezas do discurso escolar estatal, permite também que
verifiquemos a posição de nossa personagem sobre a educação e sobre a matéria ensinada em
125
suas aulas. O Ensino de História e Geografia por muitas décadas foi fundamental para a
formação do argentino. A educação fora incumbida de garantir a homogeneização e
desenvolvimento do tipo argentino desejado: aquele que conhece e valoriza a história
nacional, compreende os desenhos geográficos do país, bem como seus grandes nomes e
heróis. Entretanto, a partir das mudanças educacionais que se potencializavam, muito dessa
concepção passou a ser questionada, procurando-se ensinar a história nacional e sua
importância a partir de novas perspectivas. Nesse sentido, Quino, ao produzir a tira, dialoga
com essas novas tendências, criticando e propondo que o ensino da constituição da “esencia”
dos argentinos era ultrapassado e ineficaz na formação do aluno.
Nos muitos textos da revista El Monitor de la Educación Común, procurou-se
refletir sobre os problemas da educação argentina, e as maneiras de melhor solucioná-los. O
discurso oficial defendia que os argentinos deveriam construir o país superando a
improvisação, as velhas desvirtuações e a irresponsabilidade cômoda, que transformaram a
sociedade em algo demasiadamente universalista e superficial, ocultando as raízes e índole
própria do povo argentino. Dessa maneira, se tornava imprescindível o distanciamento do
internacionalismo, pensar em uma educação com sentido nacional, que ao invés de datas,
nomes e símbolos, costumeiramente, apresentados à criança, visava compreender a história do
povo, seu estilo de vida, e a “vocación argentina” (EL MONITOR DE LA EDUCACIÓN
COMÚN, 1960, núm. 929, p. 12). Dialogando com a tira (figura 46), de certa maneira, esse
discurso mostrava um possível fracasso na forma de ensinar história nas escolas, fato,
apresentado de forma irônica por Mafalda.
Da mesma maneira, na tira abaixo observamos o questionamento sobre o ensino
de história nos moldes em que acontecia nas escolas mais tradicionais.
Figura 47: Tira de Mafalda publicada por El Mundo
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 218
126
No primeiro quadro observamos Mafalda e Miguelito caminhando possivelmente
para a escola, ou voltando da mesma, visto que ambos estão vestidos com o uniforme escolar
e carregam suas “maletas”. Enquanto andam – a mais velha à frente do mais novo –,
Miguelito pronuncia sua insatisfação com a escola, um local em que ele achava que
aprenderia outras coisas, e não velhices. Mafalda está inexpressiva, olhando fixamente para
frente, mas a sobrancelha alta e a boca aberta e caída de Miguelito, demonstram sua
indignação. Diante da colocação, a menina para e se vira para o amigo olhando de forma
confusa e contrariada enquanto ele continuava seu discurso sobre o que aprendera na escola: a
história de Cristovão Colombo, da conquista da América, dos indígenas, e de outras passagens
“del tiempo de ñaupa”41
. Mafalda, então, abre os braços gerando uma conotação de
obviedade, e assegura que não teria como as aulas serem diferentes, porque “así es la
Historia”. Por fim, o último quadro retoma a crítica, a partir do raciocínio progressista do
menino inconformado: as aulas, a escola e a própria História deveriam seguir “adelante”
(adiante). A estilização das letras garrafais transformam o texto em mais um componente da
imagem, que somado à expressão exaltada nos permite deduzir que o menino, enquanto
levanta o dedo de forma enfática, grita sua maior crítica ao modelo tradicional, marcado pela
memorização de grandes datas e nomes, com aulas que não procuravam maiores relações com
a atualidade e cotidiano dos alunos.
Além das ponderações sobre a pouca relevância dos conteúdos escolares
ensinados e dos formatos das aulas, Quino trouxe, através de suas tiras, outras temáticas
relacionadas ao sistema educacional argentino, como a noção de infância, que no período
passara por grandes transformações. Na tira abaixo vemos Mafalda sentada em sua sala,
assistindo ao noticiário televisivo. No primeiro quadro vê-se uma mulher – possível docente
ou integrante do aparelho estatal – que afirma, em rede nacional, a necessidade de se proteger
a criança porque ela é o futuro da nação. O fato de isso aparecer na tira, implica que a cena
seria minimamente reconhecida pelos leitores, o que, por sua vez, nos permite inferir que as
notícias e discussões sobre o tema eram recorrentes nos meios de comunicação de uma forma
geral.
41 Expressão muito antiga e muito popular para indicar que uma coisa ou um evento aconteceu há muito tempo.
A crença popular considera que Ñaupa era uma pessoa muito antiga ou que tinha uma existência incrivelmente
prolongada. A frase é também entendida quando se descobre que a palavra ñaupa vem da palavra quechua
ñawpa, o que significa, exatamente, velho ou antigo.
127
Figura 48: Tira de Mafalda publicada por El Mundo
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 59
Diante do discurso proferido, Mafalda olha para si. A posição da “câmera”, da
perspectiva enquadrada, se altera, vemos a personagem agora mais voltada para frente, se
olhando e refletindo. Ela estica os pés, se mede e por fim, num cruzar de pernas muito adulto,
com uma expressão de lamento, conclui que “esta frita la pátria con un futuro tan chiquito”. O
humor produzido pela tira vem da inocência de Mafalda ao compreender a fala no sentido
literal e, ao se medir, constatar que é muito pequena para ser o futuro do país. Contudo, sua
fala também nos permite refletir sobre a noção de infância do período. Na década de 1960,
muito se discutia sobre o assunto. A noção de criança como uma tábula rasa, inocente e
desprovida de desejos e conhecimentos já estava ultrapassada, e então o que era ser criança?
Qual a importância e papel dos pais diante das novas gerações que nasciam?
As novas correntes pedagógicas, atreladas aos discursos da psicologia e biologia,
defendiam a infância como uma etapa fundamental para o a formação do homem e, por isso,
um momento que em se deveria permitir e guiar o desenvolvimento de sua personalidade e
criatividade. Dessa maneira, se propunha a “liberación del niño y, a través de sus
articulaciones con el trabajo, la psicología, la comunidade y otros princípios, la liberación del
desarrollo social.” (CARUSO, 2013, p. 129). Ademais, conforme aponta Cosse (2014, p. 45),
nesse momento acontece a entronização da infância, e as crianças passaram a ser vistas não
mais como um depositório, e sim como um símbolo de progresso e bem estar futuro para suas
famílias, para a nação e, inclusive, para a humanidade.
Sobre a preocupação com as crianças, a revista El Monitor de la Educación
Común, publicou diversos artigos sobre a proteção à infância, uma vez que “la proteción al
niño, en todo lo que el niño significa, entró en las consideraciones de protección social” (EL
MONITOR DE LA EDUCACIÓN COMÚN, 1960, núm. 932, p. 65). Ademais, além de
discutir as noções de infância e as determinações governamentais sobre o assunto, a revista
publicava cartas de inspetoras e professoras. Berta Elena Vidal de Battini, inspetora da escola
128
de Puna, escrevera em uma carta destinada a outra professora da escola, seus posicionamentos
acerca dos problemas relacionados à infância no âmbito nacional. De acordo com ela, o
Estado cumpria seu papel com paternalismo social, cuidando de toda a infância através das
escolas e de outras organizações, e cabia aos docentes compreender esse papel de resguardo
das crianças argentinas (Ibidem, p. 73).
A tira abaixo reflete outra das grandes preocupações nacionais e internacionais da
época: o analfabetismo. No primeiro quadro, vemos que Mafalda se atualiza dos
acontecimentos pela leitura do jornal – o que, mais uma vez, reforça as características adultas
da personagem. O cenário é simples, a personagem se encontra em sua sala de estar, num
ângulo que nos permite somente verificar um vaso de planta como decoração e a poltrona
sobre a qual ela apoia o jornal. Em pé, com um cruzar de braços despreocupado, apoia a
cabeça sobre a mão enquanto lê as reportagens. Seus pés estão cruzados e a tranquilidade de
sua expressão facial e corporal passa a impressão de que sua ação e posição eram costumeiras.
A UNESCO – que, como vimos, era muito influente nos programas educacionais pelo
planeta, principalmente na América Latina – informava que, em todo o planeta, existiam cerca
de 700 milhões de adultos analfabetos.
Figura 49: Tira de Mafalda publicada por El Mundo
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 206
A notícia alarmante interrompe a leitura da menina. Ela levanta a cabeça e fica
ereta, apoiando-se sobre o jornal aberto. Seus lábios se curvam para baixo dando a conotação
de tristeza à sua expressão. Ela, inconformada, desabafa sua angústia em letras garrafais:
“SETECIENTOS millones” são muitas pessoas que, ao contrário dela própria, não sabiam ler
e escrever. Por fim, após refletir, ela vira o corpo de lado, assume uma expressão de angústia
e contrariedade pelo fato de que, apesar dos discursos modernizadores, das novas invenções e
129
tecnologias, do conjunto de esforços pelo progresso da humanidade, no âmbito educacional
ainda reinava o atraso. A tira nos permite perceber o quanto o tema da educação e das ações
da UNESCO estavam presentes no cotidiano do argentino, e, por consequência, nas tiras de
Mafalda. O humor aqui se pronuncia pelo jogo de palavras construído por Quino que,
paradoxalmente, afirma o progresso estar atrasado. Mais uma vez, observamos o texto como
composição artística da tira, servindo mais para a imagem e humor do quadro, do que para
expressar uma ideia através de sua leitura.
Sobre o analfabetismo, em 1966, a revista El Monitor de la Educación Común,
publicou um artigo afirmando que “el problema más serio e importante que debe afrontar a
América Latina, en el aspecto educativo, es el enormes número de iletrados que integran su
población.” (EL MONITOR DE LA EDUCACIÓN COMÚN, 1966, núm. 946, p. 35). Além
disso, conforme os estudos realizados pela UNESCO, a renda anual por habitante tinha
relação direta com a quantidade de analfabetos que tinha o país, e, dessa maneira, a melhor
maneira de solucionar até mesmo os problemas econômicos da Argentina era a expansão da
escola primária e a alfabetização de adultos ou jovens acima de quatorze anos. O autor do
artigo, Carlos Alberto Compabassi, ainda traz diversos dados estatísticos e comparativos,
procurando evidenciar o quanto os argentinos sempre investiram na educação nacional, mas o
quanto ainda precisam caminhar. O censo nacional do ano 1960 informava que existiam cerca
de 14 milhões de habitantes com mais de quatorze anos, sendo que destes, um milhão era
analfabeto. Assim, em 1960 a taxa de analfabetismo adulto representava 8,6% da população
argentina, enquanto em demais países como o Brasil e a Bolívia, esses números giravam entre
50,5% e 67,9%, respectivamente. Dessa maneira, apesar dos esforços relativos à extinação do
analfabetismo, tanto os meios de comunicação quanto os quadrinhos de Quino apontavam
para a demora e dificuldade do processo.
Ao longo da obra, concomitante com as críticas ao conteúdo, aos discursos e
programas do governo, Quino produz tiras que questionam as práticas escolares e as
metodologias de ensino. Na tira abaixo, vemos Manolito escrevendo repetidas vezes em seu
caderno que deve ser mais cuidadoso com suas tarefas de casa. No primeiro quadro, vemos o
menino sentado e debruçado sobre o seu caderno, com a língua para fora da boca,
demonstrando sua concentração e dificuldade na execução do dever. Mafalda observa o
amigo escrevendo e percebe o seu erro gramatical: o certo é “prolijo” e não “polijro”, como
ele escreve na segunda tentativa.
130
Figura 50: Tira de Mafalda publicada por El Mundo
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 353
No segundo quadro, o enquadramento se modifica e aproxima o leitor das
crianças, como que nos permitindo participar da cena. Mafalda aponta para o caderno e
mostra onde ele havia escrito errado. É nesse momento, então, que Manolito age de forma
pouco prolija – apesar do que era solicitado pela professora diante dos outras tarefas mal
executadas –, e apaga o erro com a borracha da sola de seu sapato, e não com a borracha
escolar, como era esperado pelos alunos, professores e leitores da tira. A onomatopeia “Yip-
Yip” corrobora para a ideia de que ele está apagando seu erro de escrita. Enquanto ele faz o
serviço, a menina arregala os olhos e o observa assustada. Por fim, o último quadro, produtor
de mais risadas, nos mostra Manolito novamente imerso em sua árdua tarefa, com
naturalidade apesar da atitude anterior, concentrado em tentar ser mais cuidadoso. A amiga
vira o corpo contra ele e faz uma expressão de desaprovação, visto a contradição da cena
apresentada. Os elementos que compõem o cenário são simples, somente as duas crianças e a
mesa na qual Manolito apoia o caderno para escrever. Ele está vestido com o guardapolvo,
seu uniforme escolar, mas Mafalda já veste um de seus vestidos comuns. Ambos estão
sentados em postura de descontraída, com o corpo curvado, o que não acontece nas
representações de ambiente escolar, e desse modo, podemos deduzir que Manolito acabou de
chegar da escola, ou então, não se trocou e foi fazer a tarefa solicitada pela professora. Em
muitas tiras observamos as crianças realizando as tarefas de casa em conjunto, ou ajudando-se
nas realizações das mesmas.
Além do humor gerado, a tira proporciona reflexão sobre o processo de ensino e
as dificuldades de aprendizagem de alguns alunos. Manolito representa as falhas do sistema, o
aluno que não condiz com o esperado e não responde na velocidade desejada pela professora.
Ele é em si uma denúncia e crítica ao modelo tradicional escolar, que não o atinge, não o
interessa, e o obriga a agir e pensar a partir de uma lógica com a qual ele não compactua.
131
Conforme assinala Pineau (2005), Manolito se encontra sempre à margem da integração
social, e todo o discurso de preservação e valorização da criança, é alheio ao menino. Ao
contrário dos demais personagens que vivem sua infância, Manolito precisa lutar pelo seu
direito de ser incluído e ser criança. Mafalda, por outro lado, apesar dos constantes
questionamentos, é uma “boa aluna”, com facilidade, e apresenta o outro lado, o lado
insatisfeito com a forma como o ensino acontece, muito simplório, sem significados reais.
Nesse sentido, a tira abaixo também nos apresenta uma situação de inadequação
do personagem. No primeiro quadro vemos os dois amigos vestidos com o uniforme escolar e
conversando sobre a forma correta de se escrever a palavra “árbol”. Manolito escrevera com a
letra H, e Mafalda lhe disse que o correto é com a letra A. O fato de Manolito assumir que a
amiga estava correta e se propor a apagar a letra H já nos pontua que Mafalda era uma aluna
considerada exemplar, e que ele, por sua vez, diante dos constantes erros, já duvidava de sua
própria capacidade. Além disso, ele, como aluno mais descuidado, não possui uma “goma de
borrar” e pede emprestada a da amiga.
Figura 51: Tira de Mafalda publicada por El Mundo
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 367
Manolito se abaixa e se senta no chão para apagar a letra H. Ao invés de um,
três quadros se passam com ele apagando, escolha artística para prolongar o tempo da ação e
realçar a emoção. A onomaopéia “Yip-Yip” nos evidencia a continuidade da ação, enquanto
a expressão de Mafalda passa de um sorriso para a indignação. Seus lábios se contorcem e ela
abre os olhos arregalados. No último quadro, enfim, o menino olha para o caderno e devolve a
borracha usada e minúscula para a amiga. O humor vem tanto do exagero da cena promovido
pelo tamanho da borracha devolvida, quanto da constatação do personagem que, após refletir
sobre a cena, percebe que a professora talvez tenha razão ao dizer que sua letra era muito
grande, afinal, fora quase uma borracha inteira para apagar somente uma letra. A despeito da
132
graça promovida por sua ingenuidade, mais uma vez a tira nos traz o personagem sendo alvo
de críticas ou ponderações de sua professora, mostrando-nos o quanto ele era considerado
inadequado por parte do sistema.
A revista El Monitor de la Educación Común, além dos informativos, boletins,
relatórios e fotografias, publicava textos que discutiam e defendiam práticas didáticas e
correntes pedagógicas. A temática da caligrafia e aulas de ortografia aparecem em diversas
publicações, apresentando as transformações decorrentes do confronto entre as propostas das
novas correntes e a educação moderna defendida pelo governo, marcada pela inserção de
algumas inovações e pela articulação da pedagogia com outras áreas do conhecimento, tais
como filosofia, biologia, e psicologia. Nessa perspectiva, uma das matérias da revista
defendia a caligrafia como psicopedagogia, forma de moldar e desenvolver a personalidade e
caráter das crianças. A escrita deveria ser para a criança um meio natural e rápido de
expressar suas ideias, além de ser um instrumento para aprimorar suas capacidades (EL
MONITOR DE LA EDUCACIÓN COMÚN, 1960, núm 931). De acordo com Marja Van
Woerkom de González Roura, a docente autora do artigo, a disciplina de caligrafia corria
risco de ser extinta do quadro de disciplinas escolares, visto que muitas maestras adeptas das
mais novas correntes pedagógicas não acreditavam no método e utilidade da caligrafia, que
concebiam como produtora de uma escrita rígida e impessoal. Entretanto, não aceitando o
modelo de exclusiva liberdade, nem ratificando uma tradicional prática de ensino, a revista
trazia uma nova proposta grafo-pedagógica, marcada pela reabilitação da caligrafia associada
ao desenvolvimento psicológico do aluno.
Diante disso, Marja Roura, diz que assim como diferentes violonistas aprendem
uma mesma técnica e uma mesma composição, e a interpretam de forma única e marcada por
suas próprias personalidades, a criança submetidas às regras de escrita também apresentam
formas únicas de escrever. Dessa forma, de acordo com a autora, o ideal é a união entre o
tradicional e o moderno: respeitar as crianças, mas ensinar com metodologia; visto que os
professores sofriam com o ensino sem disciplina e método, podendo apenas sugerir
recomendações aos alunos na hora de corrigir suas tarefas, tais como “mejore su letra” ou
“haga sus deberes con más prolijidad” (p. 35). Sendo assim, tanto Quino quanto o discurso
educacional estatal criticavam a forma como alguns ensinamentos se davam no cotidiano
escolar.
133
Figura 52: Tira de Mafalda publicada por El Mundo
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 231
A tira acima mostra Miguelito conversando com Mafalda sobre a metodologia
utilizada por sua professora para ensinar matemática. De acordo com ele, era um processo que
não promovia a compreensão e sim a memorização de um resultado numérico, a partir da
reiteração do mesmo. Os dois caminham, de volta para casa, vestidos com o uniforme escolar
– a mesma cena já fora vista em sua crítica às aulas de história. Mafalda para diante do
comentário do colega, e o observa inexpressiva, enquanto ele narrava sua aula: primeiro
aprendera que dois mais dois é quatro, depois todos repetiram em voz alta, e depois
“tooooooodos” copiaram em seu caderno. Conforme ele fala, suas mãos acompanham o
raciocínio, seus braços se abrem corroborando para a noção de que todos faziam a mesma
coisa. Mafalda permanece atenta, como que esperando o término da narração. No último
quadro, contudo, a cena se transforma: Miguelito adquire uma expressão triste, com olhos
cabisbaixos e boca torcida para baixo. Sua mão vai ao encontro do peito, num gesto de
lamentação. A amiga se vira para o leitor, e seus olhos somados à inexistência do desenho de
sua boca, evidenciam sua surpresa diante da constatação final: com esse método de ensino
focado na memorização e não na aprendizagem, Miguelito nunca seria como Von Braun42
; ou
seja, a escola não poderia ajudá-lo a se tornar uma pessoa inteligente.
A crítica promovida pelo raciocínio de Miguelito é retomada pela tira abaixo. Na
sala de aula, a professora questiona os alunos porque multiplicar 2x3 é igual a multiplicar 3x2.
Na lousa observamos os números escritos e ela aponta para eles com uma régua de madeira.
Perfeitamente ereta, e com o rosto virado para os alunos, formando ângulos retos, novamente
42
Wernher Von Braun (1912-1977) foi um alemão que dedicou-se às experiências com foguetes e, a partir de
1932, desenvolveu modelos com combustível líquido para o exército. Durante o regime de Adolf Hitler, tornou-
se figura-chave no programa do programa de rearmamento da Alemanha. Após o fim da guerra foi levado aos
Estados Unidos, se nacionalizou estadunidense e passou a desenhar foguetes para a Nasa, como o Saturno V, que
levou o homem à Lua.
134
constatamos que Quino ao representar os momentos escolares, sempre o faz, visando
expressar rigidez.
Figura 53: Tira de Mafalda publicada por El Mundo
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 474
No segundo quadro vemos que Manolito levantou a mão e respondeu
assertivamente à pergunta feita pela professora. Os colegas de sala olham para ele assustados,
com olhos arregalados, diante da situação. A professora, por sua vez, fica satisfeita com o fato
de seu “aluno problema” ter acertado a resposta, e diz a todos com um sorriso no rosto, que
ele acertara porque havia estudado. Logo ele, o aluno desajustado, que sempre tirara notas
ruins, participou da aula e contribuiu com a resposta correta. Entretanto, o último quadro
quebra a sequência dos acontecimentos, gera o riso e nos permite refletir sobre o sistema
educacional, por consequência. O aluno não sabia porque tinha estudado, sabia porque “es
vox Populi”. Os conhecimentos adquiridos por ele não eram de fato apreendidos, e, sim,
memorizados. Assim, sabia reproduzir o que era de conhecimento geral, popular, sem
necessariamente aprender tais ensinamentos no ambiente escolar.
Nesse sentido, as novas vertentes pedagógicas, na medida em que estabeleceram
uma estreita relação entre a Pedagogia e outras ciências, como a Biologia, Psicologia,
Filosofia e Sociologia, passaram a questionar desde as mais simples às mais complexas
técnicas de ensino. Foram repensadas as formas de ensinar a ler e escrever, somar e subtrair,
bem como os conteúdos, disciplinas e cargas horárias que deveriam se estabelecer. Nesse
período, por exemplo, o docente Julio Américo Vidal, publica um texto retomando as
discussões recorrentes, e demonstrando sua preocupação em ensinar a leitura a partir do
Método Natural, que, de acordo com ele, se preocupava em respeitar características
“biopsicológicas” dos alunos, colaborando para a formação de sua personalidade. Para uma
boa execução do método, o professor deveria esquecer de horários estipulados, deixando a
135
criança trabalhar com liberdade para cultivar o cérebro e estimular potências como afetividade
e autonomia (EL MONITOR DE LA EDUCACIÓN COMÚN, 1961, núm. 936).
Além dele, dentro do movimento renovador, as revistas pedagógicas, assim como
o Estado que as financiavam traziam aos professores modelos de aprimoramento das práticas
de ensino. Em 1965, foram expostas algumas experiências realizadas com os alunos de seis e
sete anos de idade para o ensino de gramática. Em uma aula que durou cerca de uma hora e
meia, se ensinou a distinguir o nome, o adjetivo, o verbo, e reconhecer e formular orações. As
crianças foram capazes de dar exemplos e construir orações a partir do que vivenciavam e
conheciam de casa, e das tarefas domésticas de suas mães. As principais frases formuladas
foram “mama lava; mamá buena; buena lava; mamá buena lava” (EL MONITOR DE LA
EDUCACIÓN COMÚN, 1965, núm. 939, p. 46). A partir dessa experiência, a revista criou,
então, um modelo de aula gramatical para as professoras aplicarem aos seus alunos, no qual
era necessário “limitar la realidade”, escolher substantivos e adjetivos “que tienen relación
con el aula”, e apresentar os verbos e compor frases unindo todos os componentes, a partir da
realidade escolhida (Ibidem).
Figura 54: Tira de Mafalda publicada por El Mundo
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 130
A tira acima apresenta Susanita e Mafalda conversando na calçada. Elas se
vestem com vestidos do cotidiano e, assim, sabemos que não estão na escola e sim em um
possível momento de lazer. Entretanto, as duas praticam, através do diálogo, as frases
elaboradas em sala pela professora, como “Mi mamá amasa”. Ao longo dos quadros elas
continuam a conversa sem sentido, uma respondendo à outra com frases que nada dizem de
significativo. O detalhe essencial dessa tira é o uso da letra cursiva dentro dos balões,
enfatizando ainda mais o caráter educacional da conversa travada pelas duas amigas. Aqui a
letra é transformada em imagem, compondo a cena apresentada. O cenário é simples, pois
136
somente vemos a calçada e alguns detalhes do muro atrás das personagens. Por fim, após
finalizarem a conversa, cada uma segue para um lado, Mafalda sorri levemente e reflete sobre
a utilidade da escola, do ensino da escrita e das letras cursivas: estas permitem “conversar en
un nivel literario”. O humor dessa tira provém justamente da ironia trazida por ela, visto que,
a partir dos novos discursos educacionais, os alunos deveriam aprender, gostar do que
aprendem e sentir proximidade com sua realidade cotidiana. As duas amigas, ao trazerem as
frases escolares para seu cotidiano, dialogam justamente com essa ideia; no entanto, o fato de
as conversas serem desconectadas e despropositadas, nos permitem inferir que não são
relevantes para a vida de Susanita e Mafalda, são somente reproduções.
Ainda sobre esse conflito, em 1965, a revista El Monitor de la Educación Común
publica um artigo, contrastando a pedagogia tradicional e a pedagogia moderna renovada, das
escolas ativas e escola nova. Apresentando ao leitor os desejos, preocupações e visões de
aluno que as duas concepções possuíam, o texto deixa claro seu apelo à corrente moderna. De
acordo com Gustavo Cirigliano, filósofo e pedagogo, professor universitário, e autor do
artigo, a escola tradicional possuía maior vigência no século XIX, mas que agora, no novo
século, diferentes escolas e orientações passaram a disputar o espaço. Partindo da própria
noção de homem, é possível perceber as diferenças, visto que para a primeira, o indivíduo é
entendido como um animal racional, que possui como características a capacidades de pensar,
entender e principalmente de memorizar. Desse modo, aquele que fosse consideração
“inteligente”, teria acesso a uma educação voltada à transmissão e depósito de conhecimentos,
realizado, sobretudo, pelo professor. Contudo, na perspectiva moderna, o homem é entendido
como um organismo inteligente somado ao meio em que está inserido, assim, “el hombre en
una interpretación más moderna, más propia de nuestro tempo” (EL MONITOR DE LA
EDUCACIÓN COMÚN, 1965, núm. 939, p.6), é um ser biológico, que se vale de sua
inteligência para vivenciar situações e problemas gerados pelo meio. Enquanto aluno, inserido
no contexto educacional, ao invés de ter sua inteligência reduzida à capacidade de memorizar,
é visto como um ser que experimenta e, portanto, está em constante atuação. Como pontua
Cirigliano,
En la actividad diária, el único que sabe donde vá (y a veces), es el educador;
el alumno no tiene idea de donde vá, no tiene idea de lo qué le van a enseñar
mañana, ni para que le enseñan lo que le están enseñando hoy. (...) Dentro de
la concepción moderna, hay que coloarlo en uma situación para que le sirva
en este momento, o si no cuando sea el momento en que le vaya a servir,
entonces que lo aprenda; porque si no lo adquiere como un elemento
dissociado de su propia actividad, como una mera ideia. (EL MONITOR DE
LA EDUCACIÓN COMÚN, 1965, núm. 939, p.12).
137
Dentro desse contexto de debate, as tiras de Quino dialogam com muitas das
ponderações realizadas sobre o sistema e modelo educacional, inclusive acerca das liberdades
e atividades dos alunos diante dos professores. A tira abaixo apresenta Mafalda em um
formato de aula diferente do tradicional, trazendo algumas das mudanças defendidas pelas
correntes pedagógicas mais modernas.
Figura 55: Tira de Mafalda publicada por El Mundo
Fonte:
QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 553
Contrastando com os outros momentos escolares dos personagens, no primeiro
quadro vemos Mafalda com outros dois colegas de sala. Os três se sentam diante de uma
mesma mesa grande e possuem um papel em branco e um lápis nas mãos. A disposição da
mesa favorecia o trabalho em grupo, uma vez que os alunos poderiam trocar ideias e se
ajudar. Conforme aponta Suarez (2011), para as novas correntes pedagógicas, o trabalho
individual deveria ser evitado e os trabalhos coletivos, valorizados. Além disso, uma vez
estando em grupos, os sujeitos do processo de aprendizagem também se alteram, porquanto o
professor deixa de ser o único detentor de conhecimento, e os próprios alunos aprendem a
partir dos conhecimentos que possuem, implicando “(...) una horizontalidad del saber que
rompe con la relación asimétrica entre docentes y alunos” e assim, “el aprendizaje pasa a ser
una construcción, en la que los alunos tienen un papel activo” (p.47).
A professora se aproxima e sua mão toca docemente a cabeça de um aluno. Seu
corpo não está ereto e seu cabelo apresenta uma curvatura nas pontas, com, até mesmo, alguns
fios mais bagunçados na franja. Com um sorriso no rosto ela e explica o que devem fazer:
desenhar o que quiserem. Estavam livres para improvisar. Diante disso, ou melhor, diante de
todo o discurso tradicional da escola e da sociedade acerca da escola, Mafalda se assusta e
indaga sobre a falta de planos, orientações, restrições. No terceiro quadro vemos a partir do
balão de pensamento que Mafalda está pensativa, confusa repetindo o que a professora havia
dito, procurando compreender a escola como um espaço para improviso. O resultado de sua
138
análise não foi tranquilo. No último quadro, produzindo o humor, Mafalda se levanta e aos
gritos indaga a professora sobre o fato de a escola inculcar “defectos nacionales”.
Na tira, a menina faz alusão à inabilidade do governo argentino, que age por
improviso, sem planejamento, e gera os “defeitos nacionais”. Contudo, apesar da conotação
política da cena, a tira também nos permite vislumbrar alguns aspectos que opõe a pedagogia
tradicional à moderna. Além da estética da aula estar alterada, a professora e os alunos se
comportam de forma mais leve e livre. A aula não estava pronta em uma cartilha, não era
fundamentada em algum conteúdo que precisava ser memorizado pelos alunos. Era uma aula
de improviso, sem muitas normas e disciplina. O estranhamento de Mafalda e até mesmo sua
acusação nos permitem inferir o quanto essas novas propostas pedagógicas eram
questionadas, principalmente pelos professores mais antigos ou defensores de um modelo
mais rígido. No entanto, mesmo quando, no último quadro, a aluna questiona a proposta da
professora, ela o faz de forma libertária: sobe na cadeira e grita – atos impensáveis em outras
tiras e no modelo tradicional, no qual a hierarquia e assimetria prevalecia na relação entre
professor e aluno.
Figura 56: Tira de Mafalda publicada por El Mundo
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 120
Na tira acima temos uma referência clara de Quino sobre as reformulações que
aconteceram na escola e no sistema educacional de uma forma geral. No primeiro quadro
vemos Manolito perguntando a Felipe – que é um ano mais velho que os demais, e já estava
no ensino primário – se era verdade que nas escolas os professores castigam os alunos. Sua
expressão é uma mistura de preocupação e tristeza. No entanto, Felipe, para sua felicidade,
responde que não mais, que hoje “las cosas han cambiado mucho”. Manolito então, arregala
os olhos, abre a boca sorrindo e movimenta o braço enfatizando sua alegria, afinal, se as
coisas mudaram, os alunos agora batiam e castigavam os professores?
139
Contudo, conforme explica o amigo, com uma expressão taciturna, não era
para tanto. Suas sobrancelhas cerradas e sua boca rígida demostram indignação diante da
alegria do amigo. Ele vira as costas, sai caminhando e deixa Manolito sozinho, refletindo
sobre as mudanças na escola, que semelhante ao que ocorria no país “nunca son de fondo”.
Sua fala e expressão amarguradas, podem demonstrar a insatisfação com os novos modelos
escolares, que apesar de muito questionarem e proporem práticas docentes, não realizam
mudanças estruturais de fato. Dessa maneira, o discurso oficial defendia uma educação
moderna, mas mantém vivo métodos e estruturas antigas, presentes até os dias atuais; e assim,
as mudanças, como denunciado, não eram de fato totalizadoras.
Figura 57: Tira de Mafalda publicada por El Mundo
Fonte: QUINO. Toda Mafalda. Buenos Aires: Ediciones de las Flores, 1993, p. 367
No primeiro quadro da tira acima vemos Mafalda e outros colegas de sala na aula
de música. Sabemos que cantam porque além da entonação das falas, com letras repetidas,
existem notas musicais desenhadas ao redor da canção proferida. O tema da música era
bastante habitual nas escolas: o amor à pátria. O ensino tradicional, marcado pelo
nacionalismo, incentivava músicas, homenagens às bandeiras e ícones nacionais, e assim
como Quino, Mafalda era ensinada a valorizar as canções e mitos argentinos. No entanto, o
olhar da personagem, seu virar de olhos, nos permite visualizar sua insatisfação. Ela não
aceitava esse patriotismo, não compreendia a real importância de aprender e cantar tais
canções. Essa observação se confirma nos próximos quadros, quando a aluna interrompe a
professora e pergunta porque não cantam outros estilos musicais, como The Beatles – banda
favorita da personagem. No segundo quadro, enquanto Mafalda pede para falar, a professora
se mostra amigável e sorridente; contudo, como vemos no último quadro, o comentário da
aluna fora mal recebido, e a professora solicitou uma reunião individual com a sua mãe.
140
Além da crítica ao nacionalismo e ao formato tradicional de aula, a tira nos
revela a possibilidade de mudança. Se Mafalda questiona a música ensinada ou o método é
porque era possível ser questionado. Assim, imerso entre as antigas e novas pedagogias,
Quino revela o desprezo por uma escola arcaica, rígida e hierarquizada, através das críticas e
propostas que Mafalda realiza aos professores, pais e sociedade. Ademais, a comicidade da
tira aparece, também, pela ingenuidade da aluna, que não compreendendo a suposta gravidade
de sua colocação, acredita que a professora queira conversar sobre os Beatles com a mãe, e
não sobre o seu mau comportamento durante a aula.
Destarte, tendo em vista que a pedagogia moderna, já agora abordada por Quino,
não fez parte de seu momento escolar, é possível inferir que o autor estava, mesmo que
minimamente, cônscio dos principais debates educacionais do momento de produção da sua
principal criação. Assim sendo, quando pensamos na escola pelos olhos da obra, concluímos
que Mafalda e seus amigos se deslocam entre o tradicional e o moderno. As paisagens,
formatos de aula, vestimentas, objetos utilizados, bem como as posturas em sala dos alunos e
professores, mostram as marcas do tradicionalismo, a memória escolar e a vitória de um
modelo consolidado nacional e internacionalmente. Contudo, os questionamentos, gostos e
desgostos, olhares críticos e intransigentes dos personagens, apontam que apesar de serem
representados nesse formato, eles não compactuam com ele, desejam modificações, melhorias
e novos métodos de ensino.
Quino não se resume à Mafalda, ele é soma de todo o conjunto, de personagens,
cenários, experiências, debates reais, companheiros de trabalho, editoras, entre outros.
Mafalda não é sua porta-voz, mas ela serve para que ao menos algumas de suas questões
sejam escutadas. A educação é uma delas.
141
Considerações finais
Mafalda desejava aprender. Aprender algo significativo, relacionado ao seu
cotidiano e aos acontecimentos de seu país. Mafalda desejava aprender de forma livre, sem
tantas burocracias e limitações. Apesar de adorar a escola – ou a ideia de escola como
promotora de conhecimento – a personagem desejava um ambiente melhor cuidado, horários
mais flexíveis, métodos de ensino e de avalição diferentes. Mafalda era a favor da inclusão
dos alunos com maiores dificuldades, não aceitava o fato de sempre estar vigiada pelos
professores e funcionários da escola. Por fim, almejava acabar com conflitos, guerras,
desigualdades, transformando o mundo pela educação. Personagens e cenários contribuíam
para a apresentação de suas demandas, ironias e proposições. Ao criticar Susanita ela se
opunha ao conservadorismo da época. Ao ajudar Manolito com as lições de casa, ela
demostrava sua preocupação com a aprendizagem. E ao destacar a interrupção dos estudos de
sua mãe, ela lamentava a desigualdade de acesso ao sistema educacional e, em certa medida
as representações sobre o feminino que tal desigualdade acarretava.
Quino, entretanto, não estudou no modelo escolar explicitado em suas tiras, mas
representou a escola de acordo com várias referências. Sabemos que, ao longo do século XIX
e primeira metade do XX, predominou nas escolas argentinas a concepção mais tradicional da
educação, pautada na relação pedagógica assimétrica, na qual os alunos eram considerados
corpos a serem moldados e mentes vazias a serem preenchidas. Estado e escola estavam
vinculados pelo propósito de unificar e formar o cidadão argentino comprometido com a
nação. Dessa forma, o formato escolar vivenciado por grande parte dos leitores, e pelo seu
próprio autor era muito diferente daquele desejado pelos seus personagens. A escola,
consolidada já no século XIX como instituição detentora de saber, é um grande marco da
cultura argentina e as memórias escolares experimentadas e valorizadas por todos, tornaram
essencial que a obra apresentasse uma infância localizada no ambiente educacional. Tendo
isso em vista, Mafalda e seus amigos vão ao jardim de infância e à escola primária, dialogam
com seus professores, fazem deveres de casa, e trazem os debates escolares para seu
cotidiano, sendo essa escola representada, marcada pela estética tradicional, pela
hierarquização e rigidez. Ângulos retos, condutas, falas e expressões corporais desenhados,
serviram para a comprovação dessa hipótese.
Por meio das novas correntes pedagógicas, que já existiam desde o começo do
século XX, mas melhor se desenvolveram a partir dos anos 1950, esse modelo escolar
142
representado passou a ser questionado, e promoveu-se, então, outra noção de infância e de
processos educativos. Defendendo uma educação libertária – na qual as crianças seriam
consideradas seres inteligentes, capazes de construir conhecimento relacionado ao meio em
que se inseriam – a escola moderna propunha o ensino de forma prazerosa e funcional,
respeitando os limites e tempos de cada indivíduo. É nesse contexto que, a partir da análise
das tiras, pode-se averiguar que Quino se mostrava perspicaz e atualizado, na medida em que
trazia em suas tiras as mudanças e discussões que rondavam a educação e os principais
acontecimentos nacionais e internacionais. Ao longo da obra, podemos visualizar as
contradições do próprio sistema educacional da época, as tentativas de rupturas de um lado, e
de resguardo dos antigos costumes, de outro. A heterogeneidade dos personagens também
corroborava para isso, porquanto era possível em uma mesma tira presenciarmos o
tradicionalismo de Susanita, o neoliberalismo de Manolito, o conformismo de Felipe, e o
progressismo de Mafalda.
Quando o assunto é educação todos são especialistas. Muito se fala sobre a escola
e seus problemas, seja a falta de material, de infraestrutura, ou a violência escolar e
despreparo dos professores. Tais discursos circulam, por dentro e por fora da escola, e dessa
forma, o que se diz a respeito da escola e da educação interfere no modo como os próprios
atores se enxergam, pensam e agem, sendo base também para se pensar os projetos, os anseios
e decisões que tomam os professores, pais e alunos, no cotidiano escolar. Tendo isso em vista,
sabendo que Mafalda era amplamente lida por adultos, crianças, professores e pais, Quino
como observador e produtor de um material, que discutia e debatia a escola, também interfere
e altera, de certa forma, o cotidiano escolar, seja através do incentivo à crítica, à reflexão do
papel docente, e às novas práticas e propostas pedagógicas.
Nessa perspectiva, Quino apresenta a educação argentina de diferentes maneiras,
nos permitindo analisar as práticas, o processo de alfabetização, de avaliação, bem como as
visões do sistema educacional nacional. As transformações educacionais que aconteciam no
período em toda a América Latina, subsidiadas principalmente pela UNESCO, eram
constantes em sua produção. E assim, as convergências entre as novas correntes pedagógicas
e a proposta de educação de Mafalda são vistas a partir das críticas ao conhecimento vazio e
distante da realidade do aluno, ao ensino fundamentado na memorização, à noção de escola
como único local detentor de conhecimento, ao modelo de avaliação, à tentativa de
homogeneização do aluno, entre outros aspectos trazidos pelos personagens.
143
Dessa maneira, o trabalho se propôs a apresentar Mafalda e Quino como
importantes agentes socais, investigando seu impacto visual na sociedade argentina, e
construindo relações entre Mafalda e o cenário educacional da década de 1960. O estudo das
histórias em quadrinho e a compreensão de seus elementos constituintes foram fundamentais
para a melhor análise das tiras, uma vez que, partindo da Cultura Visual, a leitura da obra
extrapolou a contextualização e informações textuais, verificando as discussões propostas pela
composição dos quadros, linhas de expressão, estilização de letras, quantidade e tamanho de
quadros, marcação do tempo, detalhamento dos personagens, vestuários e cenários, e sua
adequação com o seu meio de produção, ou seja, o periódico em que seria publicada.
Criatura e criador são responsáveis, até os dias atuais, por milhares de gargalhadas
e reflexões. O modelo educacional e o formato escolar são por eles criticados. Com censuras e
propostas que perpassaram as décadas de 1960 e 70 e ainda fazem sentido em nossa realidade
tão pouco avançada, as tiras desenhadas saíram do papel e ganharam vida, roubaram a cena e
continuam a nos provocar, a nos instigar: é preciso mudar.
Figura 58: Tira de Laerte em homenagem aos 50 anos de Mafalda
Fonte: Imagem disponível em: < http://trabalhosujo.com.br/parabens-brasileiros-aos-50-anos-de-mafalda/>.
Data de acesso: 15/01/2018.
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Entrevista realizada por Miguel Rep, relatada pelo jornalista Enrico Fantoni para a Revista
Samuel. Disponível em: < http://revistasamuel.uol.com.br>.
Entrevista encontrada no site oficial de Quino. Disponível em: <www.quino.com.ar>.
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Vídeo de entrevista concedida a Universidade Federal de Integração Latino-Americana.
Disponível em: < http://www.unila.edu.br>.
Vídeo de entrevista realizada no programa Puerto Cultura. Disponível em:
<www.youtube.com>.