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paper apresentado no IX Fórum Nacional de Professores de Jornalismo - Campos/RJ 2006
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Razão & Sensibilidade: Experiência em Redação Jornalística Autor: Gerson Dudus
Resumo
Este trabalho tem o objetivo de compartilhar uma experiência pedagógica em Redação
Jornalística. Propõe o estudo de outras narrativas jornalísticas que não o lead/pirâmide
invertida, mormente as que produzem uma hibridização entre literatura e jornalismo. O novo
jornalismo, o jornalismo literário, o jornalismo narrativo, o gonzo jornalismo, com suas
correspondentes reportagens-conto, reportagens-ensaio, perfis e entrevistas em profundidade
são os modelos. Esta experiência está sendo aplicada do quinto ao oitavo semestre nas turmas
de jornalismo da Faculdade de Filosofia de Campos, no Centro Universitário Fluminense, em
Campos dos Goytacazes, desde 2003.
Palavras-chaveAtividades pedagógicas – linguagens jornalísticas – literatura e jornalismo
A Gênese
A comunicação tem passado a representar o cerne das discussões no mundo
contemporâneo. Com essa guinada, o próprio ensino em Comunicação teve que se adequar às
mudanças advindas pelas novas tecnologias da comunicação, pelas questões políticas e sociais
que as mega-corporações de comunicação levantam, etc. Como nos diz Michel Serres, filósofo
francês que pensa a comunicação profundamente, "(...)a concepção, a construção, a produção
dos contatos, das relações, dos transportes, da comunicação em geral evoluem tão rápido que
constróem incessantemente, em tempo real, um novo mundo"(Luzes 2003)
Esse novo mundo se engendrando afeta o currículo da Comunicação Social, que está
sempre em transformação. No caso do curso na Faculdade de Filosofia de Campos(Fafic), pela
alteração do curso anual para semestral, e também por mudanças no Projeto
Pedagógico.Assim, em 2003, começo a ministrar a matéria Redação Jornalística separada de
Língua Portuguesa – matéria à qual até então esteve vinculada, com professores de formação
em Letras ministrando-a. Agora, seu estudo estaria voltado especificamente para as questões
do jornalismo. A matéria toma todos os semestres ‘profissionalizantes’, do quinto ao oitavo.
Mas vou me ater às experiências com os três primeiros semestres. Logo que assumo a cadeira,
percebo que outra matéria, Técnicas de Reportagem, tem muitos pontos de contato com
Redação Jornalística. Em conversas com o professor de Técnicas de Reportagem, também
Coordenador do Curso de Jornalismo, proponho me concentrar nas outras possibilidades
narrativas do jornalismo, já que na matéria citada o teor está respaldado no modelo de
jornalismo que se encontra na mídia. Ele concorda. Assim começo.
O Conceito
Razão e Sensibilidade é o primeiro romance publicado de Jane Austen, escritora
celebrizada pela precisão de detalhes e pela ironia com que descreve a vida provinciana na
Inglaterra, foi escrito em 1797. Contrapõe as emoções exageradas de Marianne à prudência de
Elinor, num mundo regido pelo dinheiro. A versão para o cinema, assinada pela atriz Emma
Thompson(Elinor), com Kate Winslet(Marianne) e dirigido por Ang Lee, recebeu Oscar de
melhor roteiro adaptado(1995). Elinor e Marianne – a racionalidade e a emoção, tão
tensionadas nas vidas das duas irmãs do romance, podem caminhar juntas.
O título deste trabalho quer demonstrar a possibilidade do jornalismo contemporâneo
poder se tornar melhor, aliando ao seu tradicional modelo fundamentado na notícia e sua
fôrma (lead e pirâmide invertida) outras formas narrativas que também são jornalismo (novo
jornalismo, gonzo jornalismo, jornalismo narrativo).Este é o desafio para uma outra narrativa
jornalística que respeite o acontecimento, a complexidade do humano e do mundo,
informando com profundidade.
Batismo de fogo
O primeiro semestre desta experiência em Redação Jornalística apresenta aos alunos
do quinto período a ementa e a proposta da mudança conceitual da matéria. Eles se sentem
desafiados e ameaçados ao mesmo tempo. Não conhecem aquilo que a matéria propõe, só
tinham tomado contato com o lead, como no jornalismo impresso convencional.
Começo por mostrar as diversas escritas jornalísticas presentes no jornalismo diário:
informativa, interpretativa, opinativa, investigativa. A amostragem vai à fonte das outras
narrativas jornalísticas – como o novo jornalismo, o jornalismo literário ou jornalismo
narrativo, o gonzo jornalismo. O primeiro exercício é a leitura do Caderno da Comunicação da
Prefeitura do Rio, totalmente dedicado ao New Journalism. Eles lêem pequenos excertso dos
grandes nomes com John Hersey, Truman Capote, Tom Wolfe, e os nossos Euclides da Cunha,
Ivan Ângelo, Gianni Carta. Também tomam contato com as discussões e propostas teóricas de
pesquisadores como Cremilda Medina, Edvaldo Pereira Lima, Dimas Kunsch.
Proporciono uma pequena história crítica do padrão de jornalismo pautado pelo lead e pela
pirâmide invertida. Falo do jornalismo literário, remetendo a Euclides da Cunha, João do Rio e
Lima Barreto, no nosso caso, as raízes do estilo. Depois, falo da história do lead e da pirâmide
invertida, enfocando suas razões mercadológicas, políticas, tecnológicas. E sua lógica
particular, que descende de uma certa tradição científica, o racionalismo cartesiano.
Nas aulas seguintes, passo a considerar as mudanças de cosmovisão que a realidade
em que estamos vivendo está atravessando. Falo da mudança de paradigma científico,que
muda o mundo e os modos de pensá-lo . É que o paradigma clássico tinha como trindade o
primado da ciência, da experiência e da razão. Ele defendia a idéia do homem como
dominador do planeta, já que a ciência – sua filha – resolveria todos os principais problemas
humanos. Ele era determinista – com Newton, o mundo passa a ser visto como uma grande
máquina regida por leis fixas e invariáveis, bastando conhecê-las para manipulá-las. Esse
aspecto mecanicista das ciências físicas passa para as humanas, donde os behaviorismos e
outras correntes criadas para conduzir a homem e sociedade.
Então acontece a física moderna, que vira de ponta-cabeça este modelo mecanicista
da natureza. A teoria da relatividade, mexendo com nossa visão de tempo e também de
espaço; a física quântica , encontrando no mundo subatômico coisas difíceis de aceitar como o
comportamento dual da matéria – ora partícula, ora onda, que mexe com nosso conceito de
identidade. Outra coisa: descobre-se que o observador está incluído, faz parte do que descreve
e em certo sentido, a observação só acontece nessa conexão entre observador e objeto . Vai
pelo ralo a neutralidade do observador. Descrição objetiva também. Incerteza passa a ser uma
palavra científica, impensável para a ciência do século XVIII.
As mudanças são muitas: de sujeito e objeto para sujeitos intercondicionantes num
processo de reversibilidade; de causa e efeito para a de intercausalidade, rede de forças
interagindo; de universo sólido a universo poroso como enxame ou redemoinho; de substância
e acidente para a relação complexa; do certo e errado para a coerência, encaixe e sustentação
no todo. Tudo isso e muito mais, deu origem ao pensamento da complexidade, já que o
mundo não se mostrou tão previsível quanto a ciência clássica desejava.
Assim é que, se a base científica mudou, é preciso também que a narrativa jornalística
mude. A visão da ciência do séc XVIII, como detentora da verdade, que a nova ciência nem
considera mais desta forma, precisa ser revista também no jornalismo em sua busca pela
verdade.O método científico, impessoal, imparcial, neutro, que o lead se propôs ser não dá
conta deste (novo) mundo que a ciência contemporânea trouxe à tona:
"O menor vírus da AIDS nos faz passar do sexo ao inconsciente, à África, às culturas de células, ao DNA, a São Francisco, mas os analistas os pensadores, os jornalistas e todos aqueles que tomam decisões irão cortar a fina rede desenhada pelo vírus em pequenos compartimentos específicos, onde encontraremos apenas ciência, apenas economia, apenas representações sociais, apenas generalidades, apenas piedade, apenas sexo."(Jamais Fomos Modernos- Bruno Latour pg. 8)
Bruno Latour demonstra que cada fato é uma rede que interliga vários estratos do saber e da
vida, não sendo possível compreender a tessitura do mundo sem construir um sentido, e isso
se faz aprofundando o fato com seu quadro contextual, seus antecedentes e consequentes.
Depois disto, vêm as aulas específicas sobre os estilos jornalísticos elencados, com leituras de
textos dos melhores autores de cada modelo. E começo a exigir a produção de textos a partir
das principais características destes outros jornalismos, que contrastam com o padrão
jornalístico em voga na mídia. O primeiro exercício, que se coaduna com a necessidade do
retorno da subjetividade no texto – defendido pelo jornalismo literário, novo jornalismo,
gonzo jornalismo, é a proposta de produzirem um perfil. Mas não um perfil de outra pessoa: o
desafio é produzir um auto-perfil. Explico o que é um perfil, dou textos para leitura de perfis
produzidos por Joel Silveira e Gay Talese, e pela revista Realidade. Reitero que são textos
jornalísticos que quero, com dados e fatos sobre o perfilado. Os textos produzidos são na
média pouco expressivos, mas começam a demonstrar a tentativa de superação do neutro e
insípido que se tornou o jornalismo diário.
O segundo exercício é o dos afetos: falar sobre amor ou morte – narrar um relacionamento
afetivo contemporâneo ou entrevistar alguém que tenha tido uma perda importante. Leio
crônicas de Luis Fernando Veríssimo, um texto do Marcos Faerman sobre a subjetividade do
jornalista, um de Claudio Abramo sobre o que é informação jornalística. Aqui, eles conseguem
se soltar um pouco mais e produzem belos textos.
O terceiro exercício é uma pesquisa sobre o jornalismo gonzo e a produção de um texto nesse
estilo. E, quando voltam com os resultados, ficam absolutamente escandalizados com este tipo
de narrativa jornalística, dificilmente produzem um bom texto gonzo. É que o gonzo é o
paroxismo das propostas do retorno da subjetividade e da derrubada dos mitos da
neutralidade e imparcialidade. Depois da pesquisa, leio com eles um texto do criador do estilo,
Hunter Thompson, e demonstro como ele está fazendo jornalismo, com uma apuração bem
feita e uma edição idem.
O desenvolvimento
O sexto semestre começa com a tarefa de dar mais subsídios práticos para a tarefa da escrita
de um jornalismo de profundidade, da pauta, captação até edição. Utilizo o livro fundamental
de Edvaldo Pereira Lima, Páginas Ampliadas, o Ricardo Noblat de ‘A arte de fazer um jornal
diário’.
Na primeira vez (2003), os exercícios são a produção de um texto sobre a rua em que
vivem, o que eu chamo de reportagem-conto. Afinal, a rua onde vivemos é o contexto
imediato de cada um. E é um teste para a capacidade de observação dos detalhes que passam
despercebidos na correria diária. Um novo exercício de sensibilidade. Os textos que
acompanham este exercício vêm de João o Rio, ‘ A alma encantadora das ruas’ – falando das
ruas do Rio no século XIX, e de Eduardo Fenianos, ‘O urbenauta’ – falando das ruas de São
Paulo no século XX.
A partir do segundo ano em que dou esta matéria(2004), percebo a necessidade
enfocar mais detalhadamente o que é um conto e o que é um ensaio.Começo a dar aulas
específicas sobre isso e exercícios de criação de contos e ensaios, antes de exigir a reportagem
conto ou a reportagem-ensaio deles. E percebo claramente que, na média, os textos das
reportagens melhoram.
A leitura exigida para o sexto semestre é a de qualquer livro-reportagem, dando como
referência a Coleção Jornalismo Literário, da Companhia das Letras. Nomes como Gay Talese,
Ryzyard Kapucinski, Joel Silveira, Zuenir Ventura são fundamentais. Eles preparam um
seminário sobre cada um dos livros lidos. Peço para haver bastante diversidade na escolha,
com o mínimo de títulos repetidos para a apresentação em grupos de cinco integrantes, no
máximo. Neste ano de 2005, eles produziram ótimas apresentações – principalmente as do
Hiroshima (John Hersey) e do Fama & Anonimato(Gay Talese).
Uma deriva
No sétimo semestre aprofundo a discussão das relações entre Jornalismo e Literatura,
através da obra de Cremilda Medina ‘A arte de tecer o presente’ e do caderno ‘Jornalismo e
Literatura’, de Gustavo de Castro e Alex Galeno. Em 2005, pude contar com a substancial ajuda
do ‘Pena de Aluguel’, da Cristiane Costa, com uma ótima e profunda discussão dessas relações
e dos híbridos que ela criou: a crônica, o romance-reportagem, por exemplo.
Também começo uma discussão sobre o documentário contemporâneo brasileiro,
passando desde ‘Cabra Marcado para Morrer’, até ‘Edifício Master’, de Eduardo Coutinho,
desde ‘Ônibus 174’ até ‘Nelson Freire’ou ‘Fé’.Depois de cada um discutíamos a linguagem, a
construção do documentário, e o jornalismo de profundidade inserido em suas narrativas.
Discuto também a linguagem do jornalismo de televisão, com especial atenção para a
videorreportagem e o videorrepórter. Ambas como novas formas narrativas jornalísticas para
o audiovisual. E falo, muito brevemente dos jornalismos especializados, como o cultural, o
científico, o político.
Os resultados
As novas perspectivas trazidas pela matéria Redação Jornalística frutificaram numa
série de Trabalhos de Conclusão de Curso e Monografias abordando especificamente as
questões levantadas nela. Até agora, foram três trabalhos enfocando o Jornalismo Literário,
todas ganhando nota máxima da banca. E mais dois trabalhos nos jornalismos especializados –
o cultural e o científico. Estão em pesquisa para os próximos dois semestres o jornalismo
político, o jornalismo científico e o jornalismo gonzo. Esta amplitude de narrativas e
modalidades jornalísticas nunca haviam sido abordadas antes pelos estudantes do curso, que
já tem 40 anos de história. Um dos trabalhos foi apresentado no Sipec2004, teve textos das
reportagens publicadas no site Texto Vivo – específico de Jornalismo Literário, e está publicado
na Biblioteca On Line de Ciências da Comunicação (BOCC), de Portugal.
Hoje, 2005, estou experimentando mais exercícios de sensibilidade, com expressão corporal,
toque, meditação, hai-kai (um tipo de poesia japonesa, que promove a percepção do entorno,
a síntese,o humor), para provocar um texto mais sensível, que espelhe as complexidades do
humano e do mundo humano.
Conclusão
Na década de 70 foi lançado em São Paulo um jogo que era um espelho preparado,
modificado. O tamanho era de mais ou menos 30x30cm. Duas pessoas por vez jogavam.
Colocava-se o espelho num anteparo sobre uma mesa. Era necessário que ficasse na altura do
queixo dos participantes. Então, apagavam-se as luzes e duas velas eram acendidas. Uma
ficava coma a pessoa na frente do espelho, outra com a pessoa atrás do espelho.
Movimentando as velas, os jogadores tinham que encontrar o ponto onde os rostos se
fundiam.
O espelho misturava características de um e outro e o que se via era um novo rosto, o mestiço.
Havia jogadores que não suportavam o que viam. Achavam grotesco, e crispavam. A sensação
provocada tinha uma grande intensidade, como uma perda momentânea de identidade, uma
alucinação lúcida. O jogo, chamado ‘Persona’, tornava-se, para outros, um exercício de
aceitação do outro em si mesmo, uma aproximação solidarizante, uma reflexão sobre o ‘eu’.
Nosso envolvimento – teórico, prático e existencial - com o jornalismo e suas narrativas precisa
ser assim: produzir estranhamento e entranhamento, dar a ver que estamos falando de
histórias de vida, de gente que está inserida naqueles acontecimentos que se tornam notícia. A
palavra precisa encarnar-se numa narrativa que estabeleça conexões com a multifacetada
realidade, para que o leitor, ouvinte ou telespectador possa entender melhor o que se passa
em torno, decidir melhor como cidadão que rumo tomar. Este jornalismo, que não se permita
separar o que em nós sempre esteve junto – razão e sensibilidade.