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PRODUÇÃO MUSICAL 42 www.backstage.com.br Ticiano Paludo é produtor musical, publicitário, músico, compositor e soundesigner. Leciona Áudio Publicitário e Atendimento na FAMECOS - Faculdade dos Meios de Comunicação Social (PUC/RS) e Arranjo e Produção Musical Nível III no IGAP - Instituto Gaúcho de Áudio Profissional. http://www.pontowav.com.br/hotsite/ e analisarmos o surgimento da in- dústria do disco (isso lá no início do século passado), veremos que o mercado se comportou praticamente de forma imutável – no que se refere à pro- dução e difusão das obras musicais – até a virada dos anos 2000. O processo básico de gravação e lançamento sempre funci- onou assim: o artista procurava uma gra- vadora munido de uma demo tape (prin- cipalmente em formato de fita K7 ou rolinho) com o simples objetivo de mos- trar que existia e que seu trabalho era aquele ali gravado na fitinha. Algumas vezes esse processo possuía um cata- lisador Q.I. (Quem Indica) e em outros casos a fitinha ficava em companhia de centenas de outras mais esperando pela tão sonhada chance de ser ouvida e me- lhor, despertar interesse da gravadora. Se isso ocorria, a gravadora então entrava em contato com o artista e aprofundava seus conhecimentos sobre a trajetória deste artista (se possuía de fato um públi- co que justificasse o investimento ou se era possível – através de estratégias de mídia e marketing – construir essa car- reira de modo que ela desse um retorno razoável a curto, médio e longo prazo). Era tudo caríssimo e complexo. Os equipamentos de estúdio eram caros (principalmente os profissionais top de li- nha), a mídia era muito cara (e além dis- so, havia poucos canais de exposição) e a distribuição também tinha seus empeci- lhos. Por mais que o artista lutasse para se profissionalizar, dependia totalmente das grandes gravadoras para poder existir fonograficamente no mercado. Por outro lado, a concorrência musical era consi- deravelmente menor (se comparada aos dias de hoje) o que significava que ao se entrar para este seleto hall de artistas que conseguia registrar e lançar satisfatoria- mente seu material, entrava-se igual- mente no chamado mainstream. Mainstream significava pertencer ao cast (time de artistas contratados) de um grupo internacional forte (conhecido como major – do inglês, “maior”) que tinha condições de oferecer estrutura em todos os níveis (bons estúdios, técnicos e produto- res, distribuição, mídia e marketing), além de logicamente agregar um valor natural ao trabalho por levar o aval e assinatura des- tes grupos poderosos. Ou seja, associar seu nome a uma major ajudava a “fazer o filme” com o público e com a mídia. Atu- almente, tudo o que se entendia por mainstream estava na mão de um dos quatro grandes grupos fonográficos: SonyBMG, Universal, EMI ou Warner. MAINSTREAM Em conversa de bar recente com meu grande amigo e também produtor musical, Gustavo Demarchi, nos demos conta de algo incrível: a pirâmide do mercado fonográfico está virando de ponta à cabeça e agora o underground representa o mainstream e o mainstream representa o underground. O quê? Não entendeu nada? Vamos lá, então... S UNDERGROUND? UNDERGROUND? A fábula da indústria fonográfica Nos anos 90, começou-se a falar em outro termo: Mercado Independente, o que é uma fábula, pois todos dependem de todos. Sem estúdios, não se pode gravar. Sem prensadoras, não se pode fazer com que a obra tome forma no plano material

razoável a curto, médio e longo prazo). A fábula · 2008-06-24 · das bandas, quase todas se situavam (e esta era a auto-imagem que projetavam) no Mercado Independente, ... do

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PRODUÇÃO MUSICAL

42 www.backstage.com.br

Ticiano Paludo é produtor musical, publicitário,

músico, compositor e soundesigner. Leciona

Áudio Publicitário e Atendimento na FAMECOS -

Faculdade dos Meios de Comunicação Social

(PUC/RS) e Arranjo e Produção Musical Nível III no

IGAP - Instituto Gaúcho de Áudio Profissional.

http://www.pontowav.com.br/hotsite/

e analisarmos o surgimento da in-dústria do disco (isso lá no iníciodo século passado), veremos que o

mercado se comportou praticamente deforma imutável – no que se refere à pro-dução e difusão das obras musicais – atéa virada dos anos 2000. O processo básicode gravação e lançamento sempre funci-onou assim: o artista procurava uma gra-vadora munido de uma demo tape (prin-cipalmente em formato de fita K7 ourolinho) com o simples objetivo de mos-trar que existia e que seu trabalho eraaquele ali gravado na fitinha. Algumasvezes esse processo possuía um cata-lisador Q.I. (Quem Indica) e em outroscasos a fitinha ficava em companhia de

centenas de outras mais esperando pelatão sonhada chance de ser ouvida e me-lhor, despertar interesse da gravadora. Seisso ocorria, a gravadora então entravaem contato com o artista e aprofundavaseus conhecimentos sobre a trajetóriadeste artista (se possuía de fato um públi-

co que justificasse o investimento ou seera possível – através de estratégias demídia e marketing – construir essa car-reira de modo que ela desse um retornorazoável a curto, médio e longo prazo).

Era tudo caríssimo e complexo. Osequipamentos de estúdio eram caros(principalmente os profissionais top de li-nha), a mídia era muito cara (e além dis-so, havia poucos canais de exposição) e adistribuição também tinha seus empeci-lhos. Por mais que o artista lutasse para seprofissionalizar, dependia totalmente dasgrandes gravadoras para poder existirfonograficamente no mercado. Por outrolado, a concorrência musical era consi-deravelmente menor (se comparada aosdias de hoje) o que significava que ao seentrar para este seleto hall de artistas queconseguia registrar e lançar satisfatoria-mente seu material, entrava-se igual-mente no chamado mainstream.

Mainstream significava pertencer aocast (time de artistas contratados) de umgrupo internacional forte (conhecidocomo major – do inglês, “maior”) que tinhacondições de oferecer estrutura em todosos níveis (bons estúdios, técnicos e produto-res, distribuição, mídia e marketing), alémde logicamente agregar um valor naturalao trabalho por levar o aval e assinatura des-

tes grupos poderosos. Ou seja, associarseu nome a uma major ajudava a “fazer ofilme” com o público e com a mídia. Atu-almente, tudo o que se entendia pormainstream estava na mão de um dosquatro grandes grupos fonográficos:SonyBMG, Universal, EMI ou Warner.

MAINSTREAM

Em conversa de barrecente com meugrande amigo etambém produtormusical, GustavoDemarchi, nos demosconta de algo incrível:a pirâmide domercado fonográficoestá virando de pontaà cabeça e agora oundergroundrepresenta omainstream e omainstreamrepresenta ounderground. O quê?Não entendeu nada?Vamos lá, então...

S

UNDERGROUND?UNDERGROUND?A fábula

da indústria fonográfica

Nos anos 90, começou-se a falar em outro termo:Mercado Independente, o que é uma fábula, pois

todos dependem de todos. Sem estúdios, não se podegravar. Sem prensadoras, não se pode fazer com que a

obra tome forma no plano material

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E o underground? Underground era o “buraco negro” emque permaneciam todos os demais artistas, uma espécie de pur-gatório no qual o povo amargava ansioso pelo seu destino. Estedestino era composto por dois caminhos: o inferno (falência dacarreira artística) ou o paraíso (a entrada em uma major).

Nos anos 90, começou-se a falar em outro termo: MercadoIndependente, o que é uma fábula, pois todos dependem de to-dos. Sem estúdios, não se pode gravar. Sem prensadoras, não sepode fazer com que a obra saia do plano mental e tome corpo eforma no plano material. Sem gravar e prensar, não se pode distri-buir. Não adianta só distribuir, as pessoas precisam saber que exis-timos. Daí vem a mídia e o marketing. Sem eles, fica difícil ven-der um número significativo de álbuns que cubra o mínimo dospesados investimentos financeiros realizados no início do proces-so. Precisamos de público consumidor também. E sem vender,pode-se ir dormir no paraíso (nas majors) e acordar no purgatório(underground), ou pior, no inferno (falência da carreira).

Analisando o que ocorria no início dos anos 90 com a maioriadas bandas, quase todas se situavam (e esta era a auto-imagemque projetavam) no Mercado Independente, pois quando estetermo começou a ser utilizado em larga escala, underground eraentão lugar de “coisas muito alternativas” que não visavam suces-so nem lucro. Mas será mesmo? Será que alguém compõe cançõese as grava (mesmo que de modo semiprofissional) com o objetivode que poucas pessoas os ouçam e que ninguém os consuma, istonum século em que o capitalismo cresce cada vez mais? Ou isso éposicionamento de gente louca ou uma estratégia blasé que dis-farça um sonho real oculto: ir para o mainstream, fazer parte deuma major. Salvo casos isolados em que a música é um hobby,uma terapia, me parece lógico este raciocínio.

Veja como são as coisas. Há poucos anos, aconteceu um eventode e-music aqui em Porto Alegre (RS) do qual participei comoouvinte. No referido evento, algumas pessoas “importantes” dacena – principalmente de São Paulo (e que fique claro que eu amoSão Paulo e tenho muitos amigos paulistas, portanto, sem ter ata-ques histéricos com o que escreverei a seguir, pois estou me referin-do a estas pessoas que vieram aqui e não à população inteira de São

Underground era lugar de “coisasmuito alternativas”. Mas será mesmo?Será que alguém compõe canções e asgrava com o objetivo de que ninguém

consuma?

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e-mail para esta coluna:

[email protected]

Paulo) – estiveram aqui no sul para se van-gloriar de como eram maravilhosas e decomo o resto do país era burro e não sabiade nada sobre mercado. A história musical,conquistas e derrotas do mercado, tudo eraculpa ou mérito exclusivo “DELES”. Den-tre estes palestrantes, um nacionalmenteconhecido produtor musical (que produ-ziu diversos “artistas major” falou em altoe bom tom para quem quisesse ou não ou-vir que agora sim ele fazia o que gostava, eque seus trabalhos anteriores eram um lixopuro, criticando principalmente os artistasproduzidos). Ou seja, ele estava dizendoque o mainstream era um lixo e que agorasim ele estava no seu merecido lugar, nounderground, livre e “in”dependente. Nin-guém é independente de tudo e de todos eninguém vive só. Diz a lenda que é arris-cado conhecer pessoalmente os ídolos eprofissionais que admiramos e neste diaeu pude constatar isso “ao vivo e em co-res”. Perdi não só a admiração por este“profissional” como o respeito por ele.

Concordo que a tendência natural doser humano é evoluir (claro, tendência da-queles que buscam isso) e que meus traba-

lhos atuais me agradam mais do que algunsque realizei há 10 anos. Agora, dizer queeram ruins, ou pior, dizer que os artistaseram ruins (ainda mais num caso desses) éum atestado de completa estupidez, faltade caráter e profissionalismo. O querido

“profissional” acima se esqueceu de queaquele dia eu estava lá sentado para ouvi-lo justamente em função dos “lixos” queele havia produzido ao longo de sua carrei-ra de “$UCE$$OS”. Eu e todo mundo.Caso contrário, ele seria mais um na multi-dão, talvez vivendo no real purgatório. Ah,e esqueceu, principalmente, que se ele po-dia se “dar ao luxo” de produzir coisas bizar-ras (e na minha opinião, essas sim são umlixo) porque estava com os bolsos forradospelo lixo de outrora.

Vamos analisar outro exemplo parachegarmos ao xis da questão que abordoeste mês, linkando com o case que apre-sentei acima. As majors não souberamencarar o novo consumidor de músicaque começou a se formar nos anos 2000 eem menos de uma década, a tecnologiaevoluiu de forma tão espantosa quanto aqueda das majors. Napster, Emule, Kazaa,Rapidshare, blogs, fotologs, Audiogalaxy.Todos os citados (e lógico, sem esquecerdos nossos amigos web de modo geral,MP3 + Gravador de CD/DVD) muda-ram radicalmente a forma de relaciona-mentos entre todos os atores sociais queintegram a chamada indústria do disco,desde quem produz e cria até quem con-some e se delicia. Agora todos têm acessoaos meios de produção (home studios, pe-quenos estúdios, estúdios de médio portee até grandes estúdios), marketing (e-mail, posts, podcasts) e distribuição (sejafísica ou virtual).

E quem foi parar no purgatório? Sim,elas, as majors. E nós, pequenos e médiosartistas, estamos onde? No mainstream!Agora quem manda no mercado somosnós, nós e o público. Grandes sellers comoa Amazon.com faturam alto vendendovários itens que vendem pouco, e nãomais muitas cópias de um mesmo item(pesquise sobre isso, existe uma nova e fas-cinante teoria sobre essa forma de consu-mo chamada “Teoria da Cauda Longa”).A Madonna vai deixar de ser a Madonna?

Lógico que não! O U2 vai deixar de ser oU2? Tampouco. Em um mercado comple-xo como o da indústria fonográfica – queestá aprendendo a se reinventar a cadanovo dia – uma coisa parece acontecer:NÓS SOMOS AS MAJORS, AGORA!!!Nós somos “os maiores”, “os que importam”.Uma nova ordem mundial começa a sedelinear. E quais os dois caminhos pelosquais as majors esperam enquanto ficamno purgatório? Respondo: o inferno (falên-cia definitiva e sumiço do mercado) e para-íso (continuar vivas, procurando umareadaptação de mercado tardia).

Quero o bem do nosso mercado comoum todo. Não torço pela falência denada, muito menos das majors. O queestá falido é o modelo de negócio. Amúsica está viva como nunca. E nós, Ar-tistas Dependentes (e donos do nossonariz, isso sim), vemos o mundo se abrirna tela do computador. E, Gustavo: ren-deu esse nosso café, hein?

Excelente Natal e ótimo Ano Novo!Backstage, obrigado pelo carinho comi-go em 2007. Em 2008, nós da equipeBackstage, estaremos aí, com força total,fazendo parte dessa loucura que é a vida,e dessa loucura maior que é fazer parteda incrível indústria musical. Até...

As majors nãosouberam encarar onovo consumidor de

música que começou ase formar nos anos

2000 e, em menos deuma década, a

tecnologia evoluiu deforma espantosa

Quero o bem do nossomercado como um

todo. Não torço pelafalência de nada,muito menos das

majors. O que estáfalido é o modelo de

negócio. A música estáviva como nunca