Rbde16 08 Michael w Apple

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/14/2019 Rbde16 08 Michael w Apple

    1/7

    Polticas de direita e branquidade: a presena ausente da raa nas reformas educacionais

    Revista Brasileira de Educao 61

    Polticas de direita e branquidade: a presenaausente da raa nas reformas educacionais*

    Michael W. Apple Universidade de Winsconsin, Madison, USA

    Traduo: Maria Isabel Edelweiss Bujes * Uma verso anterior deste ensaio foi apresentada no simpsio Racismo e Reforma no Reino Unido: Mercado, Seleo e Desigual- dade ? da American Educational Research Association, San Diego, abril de 1998. Uma verso abreviada deste artigo ser publicadaem Race, Ethnicity and Education.

    Na excepcional anlise que fizeram sobre a formade operar dos discursos raciais nos Estados Unidos, Omi

    e Winant argumentam que raa no apenas algo amais (algo que adicionado) mas parte constitutivade muitas de nossas experincias cotidianas mais corri-queiras.

    Nos Estados Unidos, a raa est presente em cada insti-tuio, em cada relao, em cada indivduo. Isto no ocorreapenas em razo do modo pelo qual a sociedade organiza-da espacial e culturalmente e em termos de estratificaoetc. mas tambm em razo de nossas percepes e compre-

    enses acerca da experincia pessoal. Assim, quando vemos ovideoteipe de Rodney King sendo surrado, quando compara-

    mos o preo de propriedades em diversos bairros, quando ava-liamos um cliente potencial, um vizinho ou um professor, quan-do fazemos parte de uma fila de desempregados numa agnciagovernamental, ou quando levamos a efeito milhares de outrastarefas usuais, somos compelidos a pensar racialmente, a usaras categorias e os sistemas de significado relativos a raa nosquais fomos socializados. A despeito de exortaes, tanto sin-ceras quanto hipcritas, no possvel nem mesmo desejvelque nos tornemos cegos em relao cor (color-blind ). (Omi& Winant, 1994, p. 158-159)

    No possvel desconhecer as questes relativas cor; como dizem os autores opor-se raa requer quens a notemos e no que a ignoremos. Apenas atentan-do para a raa que podemos desafi-la, por reduzirde forma absurda a experincia humana a uma essnciaatribuda a todos sem nenhum respeito ao contexto his-trico e social. Ao nos defrontarmos diretamente coma raa, podemos desafiar o Estado, as instituies dasociedade civil e a ns mesmos como indivduos a com-

    bater o legado de desigualdade e injustia herdado do

    * Nota da tradutora:Como j o fez Tomaz Tadeu da Silva, aorevisar traduo de texto deste mesmo autor intitulado Consumindoo outro branquidade, educao e batatas fritas baratas, em M. C.V. Costa (org.) Escola bsica na virada do sculo: cultura, polticae currculo , Porto Alegre, FACED/UFRGS, 1995, utilizo neste textoa palavra branquidade para traduzir o termowhiteness , como a qua-lidade ou condio de ser branco, conforme a verso eletrnica dodicionrio Merriam Webster, em ingls. Para uma discusso das difi-culdades que isto implica ver Nota do Revisor, p. 10, na referida

    obra.

  • 8/14/2019 Rbde16 08 Michael w Apple

    2/7

    Michael W. Apple

    62 Jan/Fev/Mar/Abr 2001 N 16

    passado e continuamente reproduzido no presente (Omi& Winant, 1994, p. 159).

    Embora Omi e Winant estejam analisando dinmi-

    cas raciais nos Estados Unidos, espero que agora tam-bm se torne claro que suas anlises se estendem paraalm dessas fronteiras geogrficas, incluindo a Austr-lia, o Reino Unido e muitas outras naes. No seriapossvel entender a histria, o estado atual e os mlti-plos efeitos da poltica educacional sem colocar a raacomo um elemento central dessas anlises.

    Colocar a raa numa posio central bem menosfcil do que se poderia esperar, mas se deve faz-lo, re-conhecendo sua complexidade. Raa no uma catego-

    ria estvel. Qual o seu significado, como usada, porquem, como mobilizada no discurso pblico e qual oseu papel na polticas sociais mais amplas e na polticaeducacional tudo isto contingente e histrico. De fato,seria enganoso falar de raa como uma coisa. Algo que reificado, um objeto que pode ser medido como se fos-se uma simples entidade biolgica. Raa uma constru-o, um conjunto inteiro de relaes sociais. Isso infe-lizmente no impede as pessoas de falar de raa de ummodo simplista que ignora como as realidades se dife-

    renciam historicamente e em termos de poder.1 No en-tanto, precisamos reconhecer a complexidade envolvi-da, neste caso. Dinmicas raciais tm a suas prpriashistrias e so relativamente autnomas. Mas elas tam-bm participam em formam e so formadas por ou-tras dinmicas relativamente autnomas envolvendo clas-se, realidades coloniais e ps-coloniais, e assim pordiante todas elas implicadas e relacionadas com a cons-truo social da raa. Alm disso, as dinmicas raciaisoperam de modo sutil e poderoso mesmo quando elasno se encontram claramente nas mentes dos atores en-volvidos.

    Podemos aqui fazer uma distino entre explica-es funcionais e intencionais. Explicaes intencionaisso aquelas intenes autoconscientes que guiam nos-sas polticas e prticas. Explicaes funcionais, em con-

    trapartida, esto implicadas com os efeitos latentes daspolticas e das prticas (ver Liston, 1998). No meu en-tendimento, as ltimas so mais fortes que as primeiras.

    Em resumo, este argumento vira de cabea parabaixo a lgica da assim chamada falcia gentica. Sereimais especfico. Podemos pensar sobre a falcia genti-ca de maneiras particulares. Tendemos a criticar os au-tores que se apiam no pressuposto de que a importn-cia e o significado de qualquer posio so totalmentedeterminados pela sua origem. Assim, por exemplo, E.L. Thorndike um dos fundadores da Psicologia Educa-cional foi confirmadamente um eugenista, estava pro-fundamente comprometido com o projeto de melhora-

    mento racial e tinha uma viso da educao que erainerentemente no democrtica. No entanto, estaremospisando em terreno instvel se concluirmos que todos osaspectos de seu trabalho esto comprometidos pelassuas (repugnantes) crenas sociais. O programa de pes-quisa de Thorndike pode ter sido epistemolgica e em-piricamente problemtico, mas necessrio um tipo di-ferente de evidncia e uma anlise mais complexa paradesmascarar toda ela do que para afirmar (corretamen-te) que ela era freqentemente racista, sexista, e elitista

    (ver Gould, 1981 e Harraway, 1989, em relao a comoesta anlise mais complexa poderia ser realizada). Defato, no raro encontrar educadores progressistas sevalendo do trabalho de Thorndike para servir de apoio aposies vistas como mais radicais.

    Quando falamos sobre racismo e sobre reformasnas polticas atuais, necessitamos subverter a falciagentica. As motivaes explcitas dos apoiadores daspolticas do Partido Trabalhista no Reino Unido ou aspropostas de Clinton para educao, como a de uma ava-liao nacional nos Estados Unidos, podem no ter tra-tado especificamente de raa ou terem pressuposto quetais propostas aplainariam o campo de jogo para to-dos. Suas intenes podem ter sido conscientementemeritrias. Entretanto, motivos conscientes no ga-rantem de maneira alguma o modo como os argumentose as polticas sero empregados, quais sero seus mlti-plos e determinados efeitos e funes, a que interessesem ltima anlise eles atendero e que padres identifi-cveis de benefcios diferenciais surgiro, dado que exis-tem relaes desiguais de capital econmico, cultural e

    1 Estou aqui pensando no livro A curva do sino de Herrnstein eMurray. Ver Herrnstein e Murray (1994) e Kincheloe e Steinberg(1996).

  • 8/14/2019 Rbde16 08 Michael w Apple

    3/7

    Polticas de direita e branquidade: a presena ausente da raa nas reformas educacionais

    Revista Brasileira de Educao 63

    social e dado que existem estratgias desiguais para con-verter um tipo de capital em outro, em nossas socieda-des (Bourdieu, 1984; Apple, no prelo).

    Tais funes e resultados diferenciais esto clarosem algumas anlises muito recentes sobre raa e educa-o na Inglaterra. Por exemplo, no relatrio dos resulta-dos da investigao de Gillborn e Youdell, sobre os efei-tos do estabelecimento de padres nacionais e dereformas similares nas escolas com grupos significati-vos de crianas de cor, os autores afirmam que os dadosdisponveis sugerem que sob os ganhos superficiais,indicados por melhorias ano a ano em relao ao crit-rio padro... em algumas reas houve uma expanso da

    desigualdade entre estudantes, escolas e, em alguns ca-sos, entre grupos tnicos, especialmente no caso da re-lao entre alunos brancos e afro-caribenhos (Gillborn& Youdell, 1998, p. 7).

    No de surpreender que em seu perspicaz relat-rio Gillborn e Youdell tenham encontrado o que cha-mam de um sistema de triagem educacional, operan-do na escola. De fato, seria surpreendente que isto noacontecesse, tendo em vista o que conhecemos sobre osefeitos, em outras instituies, de padres raciais espe-

    cficos de desigualdade salarial, de emprego e desem-prego, de ateno sade e habitao, de nutrio, deenclausuramento (priso), e de desempenho escolar empases como os Estados Unidos (ver, por exemplo, Apple,1996, p. 68-90). Estes padres e efeitos colocam emdvida qualquer pretenso de que possa existir um cam-po justo para o jogo e no devemos nos surpreender que,em tempos de crise fiscal e ideolgica, mltiplas formasde triagem sejam encontradas em mltiplas instituies.

    Assim, as admoestaes de Gillborn e Youdell de-veriam nos fazer duvidar que a busca constante de pa-dres mais altos e de nveis de desempenho sempre cres-centes coloque apenas em ao aparatos aparentementeneutros de reestratificao. Como eles demonstram (em-bora fosse necessrio uma quantidade considervel depesquisa emprica adicional para apoiar a afirmao maisgeral), em situaes como esta ocorre uma limitao docurrculo. Para aumentar os ndices de uma escola nostestes preciso tanto enfatizar determinados contedosquanto incentivar certos estudantes que possam contri-buir para uma mais alta performance da escola. Como

    os autores ainda demonstram, classe, raa e gnerointeragem de uma maneira complexa neste caso. O de-sempenho dos meninos brancos, especialmente aqueles

    na fronteira entre o D/C2

    bastante seguidamente vistocomo mutvel. Para os estudantes negros do sexo mas-culino, sua suposta menor capacidade um pressu-posto tcito. Estudantes de valor, ento, no so usual-mente negros, supostamente em razo de um conjuntode acidentes naturais (Gillborn & Youdell, 1998). Tudoisso no necessariamente intencional. devido a umconjunto sobredeterminado de relaes histricas e a umcomplexo de micropolticas relacionadas com recursose poder, no interior da escola e entre a escola e o Estado,

    local e nacional, bem como, por certo, s dinmicas depoder presentes na sociedade mais ampla.

    Entretanto, ao dizer isto, no pretendo sugerir quetais dinmicas tornem a raa uma questo menos can-dente. De fato, minha argumentao se ope exatamen-te a esta. A raa obtm boa parte de seu poder em razose seu prprio encobrimento (hiddenness ). E em ne-nhum lugar isso mais verdadeiro do que nos discursosacerca dos mercados e da padronizao.

    Embora alguns comentadores possam estar certos

    de que o competitivo mercado das escolas no ReinoUnido, imaginado pelos neoliberais, foi criado sem re-ferncia s suas implicaes para as minorias tnicas(Tomlinson, 1998), isso pode ser considerado verdadei-ro apenas quanto s intenes conscientes. Embora areferncia raa possa estar manifestamente ausente nosdiscursos dos mercados, ela permanece uma presenaausente que, eu acredito, est plenamente implicada nasmetas e nas preocupaes que cercam o apoio mercan-tilizao da educao. Um sentimento de declnio eco-nmico e educacional, a crena de que o privado bome que o pblico mau, foi acompanhado por um senti-

    2 Nota da tradutora: os conceitos C ou D referem-se a conceitosatribudos a resultados obtidos em testes de avaliao de desempe-nho. No sistema nacional de avaliao ingls, os conceitos A, B, ou Crepresentam aprovao e um conceito D ou menor que D significamreprovao. Assim, como esclareceu-me o autor, fazem-se tentativasde empurrar certas crianas, em particular, que obtiveram um Dpara uma posio C.

  • 8/14/2019 Rbde16 08 Michael w Apple

    4/7

    Michael W. Apple

    64 Jan/Fev/Mar/Abr 2001 N 16

    mento de perda nem sempre expresso, um sentimento deque as coisas se encontram fora de controle, um senti-mento anmico que associado pelas pessoas perda

    de seu lugar de direito no mundo (de um imprioagora em declnio). O privado o lugar onde as coi-sas correm bem e as organizaes so eficientes, o lugarda autonomia e da escolha individual. O pblico estfora de controle, desorganizado e heterogneo. Nsprecisamos proteger nossa escolha individual daque-les que so os controladores ou os poluidores (cujasculturas e os prprios corpos so exticos ou perigo-sos). Assim, acredito que existam conexes muito pr-ximas entre o apoio para as perspectivas neoliberais de

    liberdade individual e de mercado e as perspectivas dosneoconservadores com suas claras preocupaes rela-cionadas com padres, excelncia e declnio.

    Neste particular, acredito que nas atuais condiesos currculos nacionais representam freqentemente umpasso atrs em relao educao anti-racista (emborano devamos romantizar a situao anterior; pois temoque, na realidade, no ocorriam ali muitos esforos anti-racistas). No de estranhar que, medida que ocor-riam ganhos pelo descentramento das narrativas domi-

    nantes, a dominao retornasse na forma de currculosnacionais (e avaliao nacional) que especificavam freqentemente com minuciosos detalhes como todosns somos? Em muitos pases, por certo, as tentativaspara construir um currculo nacional e/ou padres na-cionais levaram ou levam a solues de compromisso, air alm da mera meno cultura e histria dos ou-tros. (Este , com, certeza, o caso dos Estados Uni-dos). E nestas solues de compromisso que vemos odiscurso hegemnico em sua face mais criativa (Apple,1993; Apple, 1996).

    Tomemos, por exemplo, os novos padres nacio-nais de Histria, nos Estados Unidos, e as tentativas doslivros didticos para responder criao de padres naperspectiva de uma narrativa multicultural que nos unea todos, para criar um indefinido/vago ns. Tal dis-curso, embora tenha vrios elementos que soam progres-sistas, demonstra como as narrativas hegemnicas apa-gam da memria histrica questes especficas dediferena e de opresso. Muitos livros-texto em nossasescolas constroem a histria dos Estados Unidos como

    a histria dos imigrantes (Cornbleth & Waugh, 1995).Ns somos uma nao de imigrantes. Somos todosimigrantes, desde os originais povos americanos nati-

    vos (ndios) que supostamente atravessaram o Estreitode Behring s pessoas que vieram mais recentemente daEuropa, sia, frica e Amrica Latina. Por certo, o so-mos. Mas uma histria deste tipo interpreta de formaequivocada as diferentes condies em que isso ocor-reu. Alguns imigrantes vieram acorrentados, foramescravizados, e enfrentaram sculos de represso e deapartheid obrigatrio patrocinado pelo Estado. Outrosforam condenados morte ou ao enclausuramento for-ado em razo das polticas oficiais. E existem enormes

    diferenas entre a criao de um ns (artificial) e adestruio da experincia e da memria histricas(Apple, 1996).

    Esta destruio e o modo como foi conseguida estrelacionada novamente ao modo como a raa funcionacomo uma presena ausente (ao menos para certas pes-soas), em nossas sociedades. Podemos tornar isso maisclaro ao focalizar nossa ateno na invisibilidade dabranquidade. De fato, quero sugerir que aqueles que estoprofundamente comprometidos com os currculos e com

    um ensino anti-racista necessitam atentar mais para aidentidade branca.

    Infelizmente, verdade que muitos brancos aindaacreditam que h um custo social em no ser uma pes-soa de cor, mas em serbranco . Os brancos so os novosperdedores num campo de jogo, que eles acreditam, te-ria sido aplainado agora que os Estados Unidos se tor-naram um pas supostamente igualitrio, uma sociedadeque no atenta para a cor. Uma vez que ostempos sorduos para todos , as polticas para dar ateno agru-

    pos sub-representados como a ao afirmativa es-to injustamente apoiando os no brancos. Assim, osbrancos podem agora reivindicar o status de vtimas(Gallagher, 1995, p. 194). Estes sentimentos tm umaimportncia considervel nas polticas educacionais nosEstados Unidos, mas tambm em muitos outros pases.A ateno dada ao partido australiano antiimigracionistade Pauline Hanson, denominadoUma Nao , por exem-plo, ilustra este fato.

    Como vem sendo construda pela restaurao con-servadora, a branquidade como um produto explicita-

  • 8/14/2019 Rbde16 08 Michael w Apple

    5/7

    Polticas de direita e branquidade: a presena ausente da raa nas reformas educacionais

    Revista Brasileira de Educao 65

    mente cultural est ganhando vida prpria. Os argumen-tos dos discursos conservadores que circulam hoje comtanto poder, as barreiras igualdade social e igualda-

    de de oportunidades foram postos de lado. Os brancos,portanto, no tm privilgios. Grande parte disto, porcerto, no verdadeiro. Embora enfraquecida por ou-tras dinmicas de poder, existe ainda uma vantagem con-sidervel emser branco nesta sociedade. Entretanto, no a verdade ou a falsidade destas afirmaes que estaqui em questo. O que est em questo , muito mais, aproduo de identidades brancas regressivas.

    As implicaes disso tudo so profundas, tanto doponto de vista poltico quanto cultural. Porque, em razo

    do uso cnico das identidades raciais pela direita, em ra-zo dos medos e das ameaas econmicas que muitoscidados experimentam e em razo do poder histrico daraa sobre a psique norte-americana e sobre a formaodas identidades em muitos outros pases, muitos mem-bros dessas sociedades podem desenvolver formas de so-lidariedade baseadas em sua branquidade. Isso, no m-nimo, tem conseqncias em termos das lutas que setravam em torno de significados e identidades e pela ca-racterizao e controle de nossas principais instituies.

    Como podemos interromper essas formaes ideo-lgicas? Como desenvolver prticas pedaggicas anti-racistas que reconheam as identidades brancas semcontudo levar a formaes regressivas? Estas so ques-tes ideolgicas e pedaggicas complexas. Assim, nopodemos lidar com tais questes a menos que nos dete-nhamos diretamente sobre as relaes de poder diferen-cial que criaram o e foram criadas pelo terreno pe-daggico no qual elas operam. Isso requer uma atenoespecial ao papel do Estado, s polticas estatais, mu-dana do trabalhismo em direo direita e reconstru-o do senso comum que a direita empreendeu com tan-to sucesso.

    Se quisermos ser fiis ao registro histrico, abranquidade no , certamente, algo que acabamos dedescobrir. A poltica da branquidade tem sido enorme e,por vezes, terrivelmente eficiente na formao de coali-zes que unem as pessoas, atravessando diferenas cul-turais, relaes de classe e de gnero, mesmo contra osseus interesses (Dyer, 1997, p. 19). No seria possvelescrever a nossa histria econmica, poltica, legal,

    da sade, educacional de fato, de todas as nossas ins-tituies sem colocar a poltica da branquidade tantoconsciente quanto inconscientemente como uma din-

    mica central. Por certo, pouco do que estou dizendo aqui novo. Como os tericos que trabalham com raa e osescritores ps coloniais documentaram, identidades e for-mas raciais tm sido e so blocos constitutivos das es-truturas de nossas vidas dirias, das nossas comunida-des reais ou imaginadas e dos processos e produtosculturais.3

    Vejamos esta situao mais de perto. Raa umacategoria usualmente aplicada a pessoas no brancas.As pessoas brancas usualmente no so vistas nem no-

    meadas. Elas so posicionadas no centro, como a normahumana. Os outros so racializados; ns somosapenas pessoas (Dyer, 1997, p. 1). Richard Dyer nosfala disso no seu esclarecedor livro intituladoWhite .

    No existe posio que tenha mais poder do que aquelade ser apenas humano. O direito ao poder o direito a falarpor toda a humanidade. Pessoas racializadas no podem faz-lo podem apenas falar pela sua raa. Mas pessoas noracializadas podem faz-lo, porque elas no representam o in-teresse de uma raa. Atribuir aos brancos uma raa desloc-los/deslocar-nos da posio de poder, com todas suas desi-gualdades, opresso, privilgios e sofrimentos; desloc-los/des-locar-nos cortar pela raiz a autoridade com a qual eles falame agem/ns falamos e agimos no mundo e sobre ele.

    Nossa prpria linguagem mostra a invisibilidadede relaes de poder na fala comum sobre o que serbranco. Ns falamos de uma folha de papel no escri-ta como em branco. Uma sala toda pintada de branco vista, quem sabe, como necessitada de um pouco decor. Outros exemplos podem ser multiplicados. Mas aidia de branquidade como invisibilidade, como algo queno existe, serve idealmente para designar o grupo so-cial que tomado como a humanidade comum (Dyer,1997, p. 47). Neste sentido, por exemplo, a nossabranquidade d direitos maioria branca de representar

    3 Existe uma vasta literatura a este respeito. Ver, por exemplo,Omi e Winant (1994), Mc Carthy e Crichlow (1994), Tate (1997),Fine, Weis, Powell e Mun (1997) e Mc Carthy (1998).

  • 8/14/2019 Rbde16 08 Michael w Apple

    6/7

    Michael W. Apple

    66 Jan/Fev/Mar/Abr 2001 N 16

    as reivindicaes de terra dos aborgenes australianosna Australian Native Title Act (Lei australiana de pro-priedade de terras indgenas), se no como sinistras, pelo

    menos como algo que se baseia em valores e numa expe-rincia cultural extica. Da um pequeno passo paraque as reivindicaes indgenas sejam tomadas como umtratamento especial dado aos povos aborgenes e queno est disponvel para os australianos comuns.

    Em vista disso, de algo que poderia ser melhor cu-nhado como uma presena ausente, um projeto crucial poltico, cultural e sobretudo pedaggico tornar es-tranha a branquidade (Dyer, 1997, p. 4). Assim, partede nossa tarefa em termos de conscincia e mobilizao

    pedaggica e poltica dizer a ns mesmos e ensinaraos nossos alunos que as identidades so constitudashistoricamente. Necessitamos reconhecer que os sujei-tos so produzidos atravs de mltiplas identificaes.Devemos ver nosso projeto como no reificando a iden-tidade, mas tanto entendendo sua produo como umprocesso continuado de diferenciao quanto, principal-mente, como sujeito redefinio, resistncia e mudan-a (Scott, 1995, p. 11).

    Existem perigos ao fazer isso, por certo. Como ar-

    gumento emCultural Politics and Education (Apple,1996), fazer com que os brancos focalizem a branquidadepode ter efeitos contraditrios, dos quais precisamos es-tar bem conscientes. Isso pode possibilitar o reconheci-mento do poder diferencial e da natureza racializada detodos e isto muito bom. Entretanto, pode servir tam-bm para outros propsitos alm de desafiar a autoridadedo Ocidente branco. Pode correr o risco de levar ao indi-vidualismo possessivo que tem tanta fora em nossa so-ciedade. Isto , tal processo pode servir assustadora fun-o de que se diga simplesmente Chega de falarmos devoc, deixe que eu lhe fale de mim. A menos que seja-mos bastante cuidadosos e reflexivos, isso ainda podeacabar privilegiando homens a mulheres brancos de clas-se mdia, necessitados de exposio pblica. Esta pareceser uma necessidade sem fim de muitas dessas pessoas.Acadmicos que fazem parte da comunidade educacio-nal crtica nem sempre estaro imunes a tais tenses.Assim, precisamos estar em guarda para assegurar queum foco na branquidade no se torne mais uma desculpapara recolocar no centro as vozes dominantes e ignorar

    as vozes e os testemunhos daqueles grupos cujos sonhos,esperanas, vidas e mesmo corpos tm sido destrudospelas relaes atuais de explorao e de dominao.

    Alm disso, manter a ateno sobre a branquidadepode simplesmente gerar culpa, hostilidade ou sentimen-tos de perda do poder, por parte dos brancos. Pode, defato, impedir a criao daquelas unidades descentradasque falam atravs das diferenas e podem levar a coali-zes que desafiem as relaes culturais, polticas e eco-nmicas dominantes. Portanto, fazer isto requer umaimensa sensibilidade, um sentido claro das mltiplas di-nmicas de poder envolvidas em cada situao e umapedagogia nuanada (e, por vezes, arriscada).

    Questes como branquidade podem parecer dema-siado tericas para alguns leitores ou mais um tpicona moda que encontrou um jeito de imiscuir-se na agen-da educacional crtica. Esse seria um erro grave. Aquiloque considerado como conhecimento oficial carregade forma consistente a marca de tenses, lutas, e com-promissos nos quais a raa desempenha um papel im-portante (Apple, 1993, 1999). Alm disso, como StevenSelden mostrou claramente em sua recente histria dasestreitas relaes entre eugenia e prtica e poltica edu-

    cacionais, quase toda prtica atual em educao pa-dres, avaliao, modelos sistematizados de planejamen-to curricular, educao para superdotados, e muitosoutros temas tem suas razes em preocupaes comomelhoramento da raa, medo do outro etc. (Selden,1999). E tais preocupaes esto, elas tambm, enrai-zadas no olhar da branquidade como norma no reco-nhecida. Assim, questes de branquidade se encontramno prprio mago da poltica e da prtica educacionais.O risco de ignor-las nosso.

    Isto , por certo, em parte uma questo das polti-cas de identidade e, na ltima dcada tem havido umcrescente interesse pelas questes de identidade na edu-cao e nos Estudos Culturais. Entretanto, uma das maio-res falhas na pesquisa sobre identidade seu fracassoem tratar de modo adequado as polticas hegemnicasda direita. Como mostrei com pesar em outro lugar, arestaurao conservadora tem tido muito sucesso em criarativas posies de sujeito que incorporam vrios grupossob o guarda-chuva de uma nova aliana hegemnica.Ela tem sido capaz de assumir uma poltica dentro e fora

  • 8/14/2019 Rbde16 08 Michael w Apple

    7/7

    Polticas de direita e branquidade: a presena ausente da raa nas reformas educacionais

    Revista Brasileira de Educao 67

    da educao, na qual o medo de um outro racializadoest associado a medos que dizem respeito nao, cul-tura, controle, e declnio e a medos pessoais intensos

    sobre o futuro dos filhos numa economia em crise. Tudoisto est associado de uma maneira tensa, criativa e com-plexa (Apple, 1993; Apple, 1996; Carlson e Apple,1998). Deste modo, trajetrias socialmente muito maisdemocrticas de reforma so interrompidas (ver, porexemplo, Apple e Beane, 1999) e grupos de pessoas soempurradas para projetos direitistas implicitamenteracializados pelo sucesso da direita em institucionalizarsua lgica e seus pressupostos.

    Em face disto, aqueles dentre ns que esto com-

    prometidos com prticas e polticas educacionais anti-racistas e engajados em observar o funcionamento realde reformas recentemente propostas ou daquelas emcurso, deveriam estar atentos no apenas para os efeitosraciais de mercados e padres, mas tambm aos modoscriativos com os quais movimentos neoliberais e neo-conservadores operam para convencer tantas pessoas(incluindo muitos lderes do Partido Trabalhista, no Rei-no Unido e na Austrlia, e do Partido Democrtico, nosEstados Unidos) de que estas polticas so apenas tec-

    nologias neutras. E elas no o so.

    MICHAEL W. APPLE professor da ctedra John Bascom deCurrculo, Ensino e Estudos de Poltica Educacional, na Universida-de de Wisconsin, Madison USA. Endereo para correspondncia:Professor Michael W. Apple, University of Wisconsin, Department of Curriculum and Instruction, 225 North Mills Street, Madison, WI53706 e-mail : [email protected]

    Referncias Bibliogrficas

    APPLE, M. W., (1993).Official knowledge . New York : Routledge.

    , (1996).Cultural politics and education . New York :Teachers College Press; Buckingham: Open University Press.

    , (1999).Power, meaning, and identity . New York: Peter Lang.

    , (no prelo). The shock of the real: Critical pedagogiesand rightist reconstructions. In P. Trifonas (ed.) Revolutionary

    pedagogies . New York : Routledge.

    APPLE, M. W., BEANE, J. A., (1999). (eds.) Democratic schools: Lessons from the chalk face . Buckingham : Open University Press.

    BOURDIEU, P., (1984). Distinction . Cambridge : Harvard UniversityPress.

    CARLSON, D., APPLE, M. W., (1998). (eds.)Power/knowledge/

    pedagogy . Boulder : Westview Press.

    CORNBLETH, C., WAUGH, D., (1995).The great speckled bird .New York : St. Martins Press.

    DYER, R., (1997).White . New York : Routledge.

    FINE, M. WEIS, L., POWELL, L., e MUN, W., (1997). (eds.)Off white . New York: Routledge.

    GALLAGHER, C., (1995). White reconstruction in the university,Socialist Review 94 : 165-187.

    GILLBORN, D., YOUDELL, D., (1998). Raising standards anddeepening inequality: League tables and selection in multi-ethnicsecondary schools, trabalho apresentado no simpsio Racism andReform in the United Kingdom, American Educational ResearchAssociation, San Diego.

    GOULD, S. J., (1981).The mismeasure of man . New York : W. W.Norton.

    HARRAWAY, D., (1989).Primate visions . New York : Routledge.

    HERRNSTEIN, R., MURRAY, C., (1994).The bell curve . New York :The Free Press, 1994.

    KINCHELOE, J., STEINBERG, S., (1996). Measured lies . NewYork : St. Martins Press.

    LISTON, D., (1998).Capitalist schools . New York : Routledge.

    McCARTHY, C., (1998).The uses of culture . New York : Routledge.

    McCARTHY, C., CRICHLOW, W., (1994). Race, identity and representation in education . New York : Routledge.

    OMI, M., WINANT, H., (1994). Racial formation in the United States . New York : Routledge.

    SCOTT, J., (1995). Multiculturalism and the politics of identity. In J.RAJCHMAN (ed.)The identity in question . New York : Routledge.

    SELDEN, S., (1999). Inheriting shame: The story of race and eugenics in America . New York : Teachers College Press.

    TATE, W., (1997). Critical race theory and education. In: M. W.Apple (ed.) Review of research in education: 22. Washington :American Educational Research Association.

    TOMLINSON, S., (1998). New inequalities? Educational marketsand ethnic minorities, trabalho apresentado no simpsio Racismand Reform in the United Kingdom , American EducationalResearch Association, San Diego.