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THALITA COELHO DANTES O USO SOCIAL DO CURRÍCULO: RELAÇÕES ENTRE O SUCESSO ESCOLAR DE ALUNOS DE UMA ESCOLA PÚBLICA E O ENSINO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS GRADUADOS EM EDUCAÇÃO: HISTÓRIA, POLÍTICA, SOCIEDADE PUC SP 2012

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THALITA COELHO DANTES

O USO SOCIAL DO CURRÍCULO: RELAÇÕES ENTRE O SUCESSO ESCOLAR

DE ALUNOS DE UMA ESCOLA PÚBLICA E O ENSINO DE HISTÓRIA

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS GRADUADOS EM EDUCAÇÃO:

HISTÓRIA, POLÍTICA, SOCIEDADE

PUC – SP

2012

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THALITA COELHO DANTES

O USO SOCIAL DO CURRÍCULO: RELAÇÕES ENTRE O SUCESSO ESCOLAR

DE ALUNOS DE UMA ESCOLA PÚBLICA E O ENSINO DE HISTÓRIA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da PONTIFÍCIA

UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO como requisito

parcial à obtenção do grau de MESTRE em Educação: História,

Política e Sociedade, sob a orientação da Profa. Dra. Leda Maria

de Oliveira Rodrigues.

São Paulo

2012

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ERRATA

Na página 4, onde se lê:

“(...) problemas do ensino de História em relação à historiografia, como em Selva

(2011)”.

Leia-se:

“(...) problemas do ensino de História em relação à historiografia, como em Fonseca

(2011)”.

Na página 98, onde se lê:

“Galzeroni”

Leia-se:

“Galzerani”.

Nas Referências Bibliográficas, página 122 inclui-se:

ABUD, Kátia (1998). Currículo de História e políticas públicas: os programas de

História do Brasil na escola secundária. In: BITTENCOURT, Circe (org.). O saber

histórico em sala de aula. São Paulo: Contexto, 1998, p. 28 – 41.

FONSECA, Selva Guimarães; BORGES, Vilmar José; SILVA Jr., Astrogildo

Fernandes. In: FONSECA, Selva Guimarães (org). Currículos, saberes e culturas

escolares. Campinas, SP: Alínea, 2011.p. 31 – 60.

PINSKY, Jaime & PINSKY, Carla Bassanezi (2009). Por uma História prazerosa e

consequente. In: KARNAL, Leandro (org.) História na sala de aula: conceitos, práticas

e propostas. São Paulo: Contexto, 2009. p. 17 – 36.

SCHMIDT, Ma. Auxiliadora & CAINELLI, Marlene. (2009). Ensinar História. São

Paulo: Scipione.

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BANCA EXAMINADORA

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AGRADECIMENTOS

Toda lista de agradecimentos acaba por cometer injustiças, espero conseguir

agradecer a todos que partilharam dessa jornada de alguma forma.

Agradeço a minha orientadora Profa. Dra. Leda Maria de Oliveira Rodrigues

pela atenção que dedicou a minha pesquisa.

À Profa. Dra. Maria Carolina Bovério Galzerani pela participação na banca

qualificadora e pelas orientações e contribuições feitas no momento do exame de

qualificação.

Em especial ao Prof. Dr. José Geraldo Silveira Bueno, pela contribuição

oferecida a este trabalho no exame de qualificação, mas principalmente por tudo que

aprendi em suas aulas e pelo acolhimento nos momentos mais difíceis.

À Elisabete Adania, secretária do EHPS, por sua paciência, gentileza e

disponibilidade.

À diretora da E. E. Profa. Zenaide Lopes de Oliveira Godoy que permitiu a

realização dessa pesquisa - em especial Wilma, professora de História assim como eu e

que abriu as portas de sua sala de aula e auxiliou na escolha dos alunos investigados.

Aos alunos e seus familiares que fizeram parte da pesquisa, partilhando seus

universos e suas opiniões.

Agradeço também aos colegas de trabalho da E.M.E.F Carlos Augusto de

Queiroz Rocha pelo incentivo e, em especial ao apoio e compreensão dado pela vice-

diretora, Rosiane Lopes.

À amiga de toda a vida, Ana Luiz O. Duarte, pelo incentivo nas horas mais

difíceis e pela cuidadosa leitura.

Agradeço à Ane Greice Valério, coordenadora do Colégio Jean Piaget, onde

iniciei minha trajetória como professora e que é grande responsável por muitas das

minhas escolhas.

À Mariana Rocha pelo apoio e ajuda na configuração do trabalho.

Aos amigos do EHPS, em especial Kelly, Eloá, Rafael e Álvaro cuja amizade

ultrapassou o ambiente acadêmico.

Agradeço aos amigos de toda a vida: Flávia Paniz, Andressa Santalucia, Arthur

Mendes, Daniel Yamaoka e Luciana Garcia por fazerem parte dela e não me deixarem

esmorecer.

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Aos meus familiares, em especial, minha mãe Edith, meu irmão Matheus e meu

avô Antônio, pelo apoio, compreensão, carinho e por sempre acreditarem em mim.

Muito obrigada a todos!

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DANTES, Thalita Coelho. 2012. O uso social do currículo: relações entre o sucesso

escolar de alunos de uma escola pública e o ensino de História. Dissertação de

Mestrado. Educação: História, Política, Sociedade. Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo, São Paulo.

RESUMO

O presente trabalho avalia qual relação alunos de uma escola pública da periferia de São

Paulo estabelecem com o ensino de História a ponto de serem bem sucedidos na

disciplina. A hipótese para tal desempenho se baseia na idéia de possibilidade de

rendimento do capital cultural, conforme proposto nos estudos de Pierre Bourdieu

(2010), sugerindo que esses alunos em situação de sucesso se apropriariam dos

conteúdos da disciplina de História como forma de conseguir algum uso social. Foram

utilizados para esse fim questionário e entrevista semi-estruturada com todos os alunos

investigados, além de quatro entrevistas realizadas com pais desses alunos. Nas

referências teóricas de apoio foram utilizados também, os estudos de Bernard Lahire

(1997) para composição dos “perfis familiares”, no sentido de compreender se existe

entre as famílias um investimento capaz de levar ao sucesso na disciplina de História.

Dessa forma, além de investigar como os alunos em situação de sucesso extraem sua

aprendizagem real, a pesquisa investigará a partir dos documentos oficiais o currículo

prescrito da disciplina de História, utilizando como referência os estudos de Michael

Apple (2006) sobre o currículo, a fim de analisar a relação em termos de adequação, os

objetivos da disciplina, confrontando o PCN e a Proposta Curricular do Estado de São

Paulo, averiguando, portanto, se oferecem possibilidade de uso. As entrevistas e

questionários, também serão utilizados para avaliar a relação dos indivíduos com o

conteúdo da disciplina na perspectiva do uso e das possíveis ações sociais previstas e sua

relação com o capital cultural de origem. Dessa forma, a análise dos documentos

demonstrou que apesar da consonância de pressupostos e objetivos, tanto o PCN quanto

a Proposta Estadual de São Paulo não permitem pela ênfase no saber acadêmico e nas

competências que os alunos sejam sujeitos de suas aprendizagens e estabeleçam vínculos

com a disciplina, considerando-a útil. Observou-se ainda que o desempenho dos alunos é

correlato ao capital cultural e a posição social familiar.

Palavras-chave: capital cultural; currículo de História; uso social; desempenho escolar.

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ABSTRACT

The present study aims to assess what students regarding a public school in the outskirts

of São Paulo established with the teaching of history as to be successful in the grade.

The hypothesis for this performance is based on the idea of the possibility of return of

cultural capital, as proposed in the studies of Pierre Bourdieu (2010), suggesting that

these students who are in a successful situation would appropriate the content of the

discipline of history as a way to get some social use. Were used for this purpose

questionnaire and semi-structured interviews with all students surveyed, and four

interviews with parents of these students. In the theoretical references were also used to

support the studies of Bernard Lahire (1997) for composition of "family profiles" in

order to understand if there is an investment capable of leading families to success in

the discipline of history. Thus, in addition to investigate how students in a position to

successfully draw their real learning, the research will investigate the official documents

from the prescribed curriculum of the discipline of history, using as reference the

studies of Michael Apple (2006) on the curriculum, order to analyze the relationship in

terms of adequacy, the goals of discipline, confronting the PCN and the Proposed

Structure for the State of Sao Paulo, checking, if they offer the possibility of use. The

interviews and questionnaires will also be used to evaluate the relationship between

individuals and content of the discipline from the perspective of the use and possible

social actions envisaged and their strings to the cultural capital of origin. Thus, analysis

of documents showed that despite the consonance of assumptions and goals, both the

PCN and the State of Sao Paulo Proposal does not allow for emphasis on academic

knowledge and skills that students are the subjects of their learning and establish links

with discipline, considering it useful. It was also observed that the performance of

students is correlated to cultural capital and family status.

Keywords: cultural capital, curriculum, history, social use, school performance.

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Sumário Introdução ..................................................................................................................... 3

Capítulo I - O papel do capital cultural e do currículo na reprodução social ................. 16

1. Capital cultural e seletividade .............................................................................. 17

2 – O Habitus como um esquema classificatório ..................................................... 22

3 – Currículo como distribuição desigual e capital cultural ...................................... 27

Capítulo II – Procedimentos de Pesquisa ..................................................................... 32

2.1 - Escolha dos alunos: ......................................................................................... 32

2.2 – Escolha da escola: .......................................................................................... 33

2.3 – Entrevistas e questionários:............................................................................. 34

2.4 – Análise de documentos: .................................................................................. 39

Capítulo III: Distribuição cultural e rendimento escolar............................................... 41

3.1 - A heterogeneidade como característica: descrição familiar .............................. 42

3.2 – Análise dos dados: patrimônio possuído e as diferenças de rendimento ........... 44

3. 3 - Perfis familiares: o papel das diferenças culturais no desempenho .................. 69

Capítulo IV: Para que serve a História? ....................................................................... 85

4.1 Organização geral das propostas: estrutura e pressupostos dos documentos. ...... 86

4.1.1 - Pressupostos dos documentos: ...................................................................... 90

4.2 – Como os documentos tomam a noção de conteúdo disciplinar ........................ 95

4.3 – A visão dos alunos ........................................................................................ 103

4.4 – A contradição dos saberes históricos escolares .............................................. 107

Considerações finais: ................................................................................................ 115

Referências bibliográficas: ........................................................................................ 122

Anexos: .................................................................................................................... 126

1 - Questionário sobre práticas culturais ............................................................... 126

2 – Roteiro de entrevista semi-estrutura para alunos .............................................. 133

3 – Roteiro de entrevista com pais de alunos ......................................................... 134

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LISTA DE QUADROS E FIGURA

Quadro 1: Descrição familiar: pessoas com quem reside ...............................................41

Quadro 2: Interesse pelo ensino superior, curso e motivação para escolha .................. 43

Quadro 3: Escolaridade dos pais.....................................................................................43

Quadro 4: Rotina durante o tempo livre .........................................................................46

Quadro 5: Último livro lido e por quê? ..........................................................................47

Quadro 6: Já visitou museus? Em companhia de quem? ............................................... 53

Quadro 7: Lugares que frequenta ...................................................................................53

Quadro 8: Costuma frequentar cinema? Número de vezes por semestre. Critérios para

escolha do filme ............................................................................................................. 55

Quadro 9: Tem acesso a TV por assinatura? Quais programas costuma assistir? ..........57

Quadro 10: Estilos musicais ouvidos com maior frequência ........................................ 58

Quadro 11: Estilos musicais comuns à outros parentes.................................................. 58

Quadro 12: Lugar em que utiliza a internet. Ambientes virtuais frequentes ..................59

Quadro 13: Local onde ocorrem as atividades de Lazer ............................................... 60

Quadro 14: Costuma viajar com frequência? Para quais lugares já viajou? ................ 60

Quadro 16: Qual ou quais programas costuma fazer em companhia da família? ......... 61

Quadro 17: Categoria profissional do pai ou responsável .............................................64

Figura 1: Capital global segundo a chefia familiar ........................................................65

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Introdução

Entre as principais discussões a respeito do ensino de História estão aquelas

relacionadas à temática dos currículos. Tal interesse deve-se ao fato de que o currículo

sistematiza as funções e os papéis de professores e alunos na construção do saber,

aglutinando questões referentes ao ensino e a aprendizagem, demandas políticas e sociais

além do um caráter ideológico da educação.

Como sugere Abud (1998) os currículos são responsáveis em grande parte pela

formação e pelo conceito de História dos cidadãos alfabetizados e por isso constituem o

instrumento mais eficaz das políticas públicas no ensino.

Nesse sentido, as discussões sobre o ensino de História têm o currículo como

principal pano de fundo, principalmente porque este incorpora os principais

questionamentos de professores e alunos.

No entanto, como coloca Abud (1998) tais incorporações são feitas de acordo com

os interesses dos grupos dominantes. Isso se verifica no ensino de História segundo a

autora, pela permanência de interesses, ligados a perspectiva de formar o cidadão nos

moldes dos interesses dominantes.

A autora coloca que um dos grandes problemas apontados pela literatura sobre o

assunto é a distância entre os saberes curriculares e a realidade dos indivíduos

envolvidos, sejam eles professores ou alunos.

Abud (1998) demonstra pelas mudanças curriculares a trajetória da História como

disciplina escolar e as razões para o debate sobre essa distância entre o conteúdo

curricular e a realidade dos indivíduos. Segundo a autora, a História como disciplina

escolar é contemporânea de sua versão acadêmica, quando da criação no mesmo ano,

1837, do Colégio Pedro II e do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), cuja

ligação entre as duas instituições levou a formulação de um objetivo comum tanto para a

história acadêmica quanto escolar: o fortalecimento do Estado e a conformação material

da nação (ABUD, 1998, p. 30).

Portanto, a História escolar adquiriu em consonância com a vertente acadêmica

um caráter de disciplina formativa, que colocava o Estado como responsável pela

formação da nacionalidade e pela direção povo. Dessa forma, construiu-se uma História

caracterizada pela linearidade do processo histórico e pelo distanciamento do locutor ao

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hierarquizar quais fatos deveriam ser centros explicadores. Para Abud (1998), essa

concepção apesar das inúmeras reformas, pouco se alterou.

Ao avaliar as transformações sofridas a partir da década de 1960 com a

tecnização da formação escolar em consonância com as demandas econômicas daquele

momento, especialmente da indústria, o que aponta é a permanência nas orientações

governamentais de uma noção de cidadania voltada ao Estado.

Nesse sentido, as mudanças iniciadas pela abertura política, com a

redemocratização do país na década de 1980, permitiram novas propostas influenciadas

pela concepção de cultura e saber escolar, além de propor a reformulação da disciplina

tanto no ensino básico como universitário.

Essa reformulação buscava superar o caráter historicamente reprodutivista da

disciplina e o esvaziamento sofrido durante a ditadura militar. Buscou-se nesse contexto

redefinir o papel do ensino de História diante daquele novo momento da educação que

democratizava o acesso à escola.

Influenciada pelas mudanças no campo da pesquisa educacional e historiográfica,

a História como disciplina escolar tentou superar o afastamento colocando alunos e

professores como sujeitos históricos e produtores de conhecimento como forma de

recuperar o papel da disciplina como espaço para o ensino crítico (SCHMIDT e

CAINELLI, p. 14).

Nesse sentido, as pesquisas sobre o ensino de História têm nas relações

contraditórias do currículo com o público a que se destina sua principal área de

concentração. Demonstrando a importância de se conectar o presente vivenciado pelos

envolvidos, portanto suas realidades, com o passado para se superar tanto o desinteresse

pela disciplina quanto torná-la funcional.

Essas propostas elaboradas a partir dos anos de 1990 incorporaram as novas

perspectivas da pesquisa acadêmica cujos paradigmas eram mais adequados à

apropriação do conhecimento prévio do aluno, seu trabalho e sua historicidade como

objeto da disciplina. Tais procedimentos vistos como necessários para a superação do

desinteresse pela disciplina, a tornariam mais utilitária diante dessas demandas que a

democratização trazia.

Tal perspectiva de aproximação está presente tanto em Pinsky (2009) ao discutir

os problemas do ensino de História em relação à historiografia, como em Selva (2011),

cujo estudo buscou compreender como professores de História e Geografia reconstroem

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em sala de aula os saberes históricos e geográficos e que investiga quais saberes os

professores consideram importantes de serem ensinados.

No entanto, Cerri (2004) demonstra que a noção de cidadania ligada aos

interesses do governo continua presente. Ao tratar da visão cristalizada da disciplina

como pouco utilitária, o autor avalia como presente a visão do senso comum, de

disciplina pouco prática para a contemporaneidade, voltada à racionalidade-técnica e a

formação para o trabalho. O autor cita como exemplo inclusive a nomenclatura adotada

nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino médio - Ciências Humanas e suas

Tecnologias, onde a tecnologia corresponde ao horizonte contemporâneo, portanto,

atualizando a disciplina.

Nesse sentido, a crítica ao currículo, evidencia que o debate sobre o que se

ensina e por quê ainda está em curso e que mesmo com as mudanças, permanecem as

mesmas questões: o currículo continua desconectado daqueles que se destina, de forma

que professores e alunos não são sujeitos da História, mas sim, estão sujeitos a ela,

tanto pela distância na elaboração dessas propostas quanto pela definição de identidade

e cidadania dada pelo Estado.

Dessa forma, esse trabalho ao orientar suas buscas para a relação que alunos de

uma escola pública de periferia estabelecem como ensino de História, focou o currículo

no sentido de avaliar que possibilidades oferece a esses alunos e como tais

possibilidades são sentidas por eles.

Para tal, buscou-se também em trabalhos recentes essa mesma perspectiva com o

intuito de avaliar a partir desses trabalhos de pesquisa, os principais argumentos que têm

sido desenvolvidos e discutidos nos estudos sobre o ensino de História atualmente.

Dos 400 resumos de trabalhos, retirados do Banco de Teses e Dissertações da

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), foram

selecionados 20 resumos que tratavam da disciplina de História e tinham como foco

principal essa relação dos alunos com os saberes históricos. Desses 20 resumos optei por

selecionar 10 trabalhos, cujas pesquisas tinham entre seus procedimentos o inquérito dos

alunos.

Essa opção se deve ao fato de que a grande maioria das pesquisas tem como foco

de análise os professores e suas metodologias para a relação dos alunos com o ensino de

História. E, principalmente, porque esta pesquisa busca compreender as variáveis de

comportamento e práticas em relação à escola, na perspectiva de avaliar como isso se

relaciona ao desempenho obtido pelos alunos e sua visão da disciplina de História.

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Entre os principais temas dessas pesquisas recentes estão a forma como se dá a

aprendizagem e o desinteresse dos alunos pelo ensino de História. Em ―Eles não estão

nem aí: impactos da contemporaneidade sobre o ato de educar‖ (GUIMARÃES, 2008), é

avaliada a questão da desvalorização da História pelo viés da psicanálise. Partindo da

influência do mundo moderno nas transformações das relações sociais, a autora avalia a

escola como tributária do individualismo, da deterioração das relações de coletividade

que, em suma, descreditam o professor e deslocam a relação com o conhecimento, o que

causaria o desinteresse dos alunos.

Essa análise é feita com base em entrevistas com pais e professores que refletem

sobre os desafios da tarefa educativa nos dias de hoje e também com alunos que avaliam

a dificuldade em aprender. Estes últimos avaliam que dificuldade de aprender é própria

da dificuldade de transmissão desses saberes, avaliando-os como distantes de sua

realidade.

Em ―Representações de História na escola: construção do conhecimento histórico

e construção de si mesmo‖ (MEINERZ, 1999), a visão dos alunos também permite

refletir a questão do desinteresse pela disciplina, a partir de uma investigação sobre as

representações acerca do conhecimento histórico construídas por adolescentes em fase

de conclusão do Ensino Fundamental, investigando a relação das experiências

socioculturais e escolares dos sujeitos pesquisados com aprendizagem de História. Essa

pesquisa aponta como resultado para o desinteresse que o conhecimento histórico não

desenvolve a reflexão de natureza histórica entre os alunos, no que diz respeito à

possibilidade do sujeito pensar sobre si mesmo e o mundo.

Na mesma perspectiva de investigação da relação dos alunos com o saber

histórico, partindo da visão do aluno para compreensão da aprendizagem destes

enquanto sujeitos estão: ―O sentido que os alunos de uma escola da Rede Pública

Estadual Paulista atribuem ao ensino de História‖ (SILVA, 2008) e ―O jovem e o ensino

de História: a compreensão do conceito de História por alunos do Ensino Médio‖

(HOLLERBACH, 2007).

Em Silva (2008) é investigado, a partir das representações dos alunos a questão

da formação profissional do professor e de sua atuação política e humana para a reflexão

sobre sua prática. Essa questão também é discutida por Hollerbach (2007) que inclui em

sua investigação, além do significado de História entre os alunos, a influência das

condições sócio-econômicas que distinguem os sujeitos. No entanto a autora verifica que

não há indícios de interferência do meio social que se sobreponham aos efeitos do ensino

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da História. Ambos acabam avaliando que a concepção tradicional de História é a mais

comum e constitui o fator decisivo para a permanência de práticas pouco

problematizadoras entre os alunos.

A formação e a experiência docente para a aprendizagem são objeto de estudo

de: ―(Des) Gostar de História: (des) (re) velado pela metaforização‖ (LEAL, 2001) e

―Diálogos na escola: o professor de História em fase de transição‖ (COSTA, 2006). Leal

(2001) considera a construção dos conteúdos e seus fundamentos teóricos para

compreensão da metodologia adotada pelos professores avaliando que se tratam de

inibidores do ―fazer histórico‖.

A mesma perspectiva é adotada por Costa, que, a partir de entrevistas com

professores e alunos, analisa o método de ensino dos professores como potencial

estímulo ou não ao ensino de História, na busca segundo ele, dos ―fatores causadores‖

do desinteresse pelo ensino de História. Para o autor, a metodologia estaria ligada a

formação e aperfeiçoamento profissional. Das constatações sobre os alunos, explica que

o clima de desordem das escolas de periferia analisadas influenciam a aprendizagem dos

alunos e que eles compartilham dos mais variados sentimentos em relação à disciplina.

A partir dos resultados da pesquisa o autor atribui ao carisma do professor o sucesso na

aprendizagem dos alunos.

A didática para o ensino de História também é considerada em: ―Despertando o

interesse dos alunos do ensino médio pela História: estratégias didático pedagógicas na

utilização da historiografia e dos recursos audiovisuais no processo

ensino/aprendizagem‖ (ALMEIDA, 2005), ―Um objeto de ensino chamado História: a

disciplina História nas tramas Didatização‖(ANHORN, 2005) e ―O Ensino da História –

uma narrativa aberta‖ (FORTUNA, 2001).

Almeida (2005) propõe uma valorização do aluno, levando em conta seu

imaginário, suas experiências e suas diferenças, como forma de construir o

conhecimento histórico apelando para experiências que sejam inovadoras,

exemplificando o uso da tecnologia nessa perspectiva de valorização e não apenas como

um recurso didático em si.

Já Anhorn (2005), foca sua análise no que chama de ―superação‖ de alguns

desafios referentes à problemática dos saberes situados no campo do ensino de história.

Ao reconhecer a relevância e complexidade do elemento saber no processo de ensino-

aprendizagem, oferece uma avaliação das permanências e mudanças do saber histórico

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"a-ser-ensinado" e "ensinado" ao longo da trajetória de construção dessa disciplina,

confrontando os PCN’s com o que acontece em sala de aula.

Fortuna (2001), por meio de duas experiências de alunos, procura sistematizar

procedimentos metodológicos voltados para a construção de conceitos e categorias

explicativas do real e para experiências voltadas para a pesquisa e para a linguagem.

Dessa forma, ao tratar do aluno como foco principal, tais pesquisas sugerem o

desinteresse como algo inerente a disciplina e avaliam como causa, em sua maioria, a

metodologia como principal razão, condicionando ao professor, sua formação,

organização escolar, a responsabilidade por esse desinteresse e muito pouco ao

currículo. Além disso, essas pesquisas ignoram que a questão do desinteresse suscita

diferentes desempenhos.

Portanto, parece adequado para compreender a relação que os alunos estabelecem

com o ensino de História, principalmente a visão que compartilham da disciplina, avaliar

o significado político e social dos currículos para assim, compreender o direcionamento

da educação escolar e o papel das disciplinas para este chamado novo público, cuja

demanda por saberes apresentaria uma tendência mais utilitária e que é também o

principal argumento para as mudanças curriculares dos anos de 1990 (Bittencourt,

2009).

Essa perspectiva foi adotada porque esta pesquisa foi realizada em uma região

considerada periférica, posto que apresenta baixo IDH e os índices de conclusão do

Ensino Médio também estão entre os menores, portanto, pelos dados estatísticos, a

escola investigada atende a um público cujas relações com a escolarização não são

estreitas.

Nesse sentido, Bittencourt (2009) salienta que toda renovação curricular

incorpora aos conteúdos prescritos das disciplinas, valores, habilidades e competências

que fazem parte das práticas escolares e não apenas dos saberes históricos oriundos da

academia. O que segundo autora, deixa claro as intenções da escola, como instituição em

que além de conteúdos sistematizados pelas disciplinas, ensinam-se ―conteúdos sociais e

culturais associados a comportamentos, valores e ideários políticos‖ (2009, p. 103 –

106).

Por isso, o papel central atribuído a ―formação das identidades‖ pelos Parâmetros

Curriculares Nacionais de História (PCN), ao propor como objetivo da disciplina ao

longo do Ensino Fundamental a instrumentalização do aluno para compreensão de sua

realidade, a partir do confronto com outras realidades históricas e outras vivências

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sociais ao longo do tempo, para através disso fazer suas escolhas e estabelecer critérios

para orientar suas ações.

Tal centralidade na ―formação de identidades‖ também influencia a opção por

temas ou eixos temáticos, cujo objetivo seria flexibilizar os currículos à heterogeneidade

de públicos atendidos.

Para isso os PCN oferecem uma proposta para seleção dos conteúdos, cuja

eficácia e consonância com os objetivos gerais gera inúmeros debates e a acusação de

que tais conteúdos são pouco reflexivos em relação às realidades dos alunos.

Dessa forma, os trabalhos acima expostos evidenciam essa distância entre os

saberes históricos e a realidade dos indivíduos a quem se destinam. No entanto, apesar

de problematizar a distância dos saberes históricos escolares e o desinteresse que ela

gera, não observam as condições de apropriação desses sujeitos, ignorando que o

desinteresse leva a diferentes desempenhos, que depreendem diferentes níveis de

apropriação. Nesse sentido, se como apontam Abud (1998) e Bittencourt (2009) as

reformas do currículo tentaram aproximá-lo do público, a qual se destina, é necessário

investigar porque essa aproximação não acontece e por que se evidenciam então

diferenças de desempenho.

Diante disso e da aparente afirmativa de que os alunos pouco se interessam pela

aprendizagem dos saberes históricos, pois os objetivos, sistematizados pelo currículo da

disciplina pouco problematizam sobre suas realidades, o problema central dessa pesquisa

é compreender qual a relação que alguns alunos de uma escola pública da periferia do

município de São Paulo estabelecem com o ensino de História a ponto de alguns serem

considerados bem sucedidos. Portanto compreender o que motiva sua diferença de

desempenho. Busca-se para tal, compreender se o ensino de História, representado pelo

currículo da disciplina, tem servido para reiterar ou transformar o capital cultural desses

alunos.

Dessa forma, estão entre os objetivos dessa pesquisa analisar a seleção dos

conteúdos em relação à adequação entre seus objetivos e eixos temáticos e entre o uso

social descrito pelos Parâmetros Curriculares e o pretendido pelos alunos, com o objetivo

de compreender como tais alunos se relacionam com os conteúdos selecionados.

A partir dos documentos oficiais será possível analisar especificamente o que é o

currículo prescrito e regulado da disciplina. Avaliando em termos de adequação, os

objetivos do currículo da disciplina de História, conforme o proposto pelo PCN, em

relação às orientações da Secretaria Estadual de Educação (SEE/SP). Tal análise pretende

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indagar quais as práticas organizativas que tais documentos propõem, na perspectiva do

que deve ser ensinado e das intenções externas que carregam.

Busca também compreender como os indivíduos analisados extraem sua

experiência educativa real, da relação que estabelecem com o conteúdo do currículo de

História na perspectiva do uso e das possíveis ações sociais previstas pelos Parâmetros

Curriculares Nacionais. Além disso, se espera averiguar a existência, entre os indivíduos

analisados, de práticas culturais que são mobilizadas de forma a alcançar o sucesso na

disciplina de História e se essas práticas são fruto de suas posições sociais. Assim, para

compreender as diferenças de desempenho dos alunos na disciplina de História e o papel

dos currículos nesse desempenho, parece adequado analisá-los sob a ótica do capital

cultural e seu papel para a distinção social.

Se o objetivo dos PCN é admissível, pelos conteúdos e eixos temáticos

propostos, há então um possível uso social dos saberes históricos escolares pelos alunos

e tais objetivos deveriam ser alcançados por todos. No entanto, a apropriação dos

conteúdos da disciplina é desigual. Dessa forma, a hipótese que se abre é a de que apesar

de frequentarem a mesma escola de periferia, o desempenho dos alunos mantêm relação

estreita com o capital cultural de sua origem social, tendo como consequência uma

diferença de apropriação diretamente proporcional a esse capital herdado.

Tal hipótese está baseada na teoria de Pierre Bourdieu sobre o campo social,

considerado por ele um espaço de luta no qual as classes ou frações de classe, buscam

por meio de estratégias de reprodução, manter ou melhorar sua posição social,

transformando um capital já existente em outra forma de capital considerada mais

rentável.

No entanto, essas estratégias dependem em grande parte do próprio capital

cultural que o indivíduo possui para reproduzir e do rendimento que os instrumentos

institucionalizados disponíveis de reprodução (do qual o sistema escolar é parte

integrante) podem oferecer.

Por isso, a análise do possível uso social do currículo de História depende

também da análise das condições objetivas que os indivíduos possuem. Tornando

possível compreender como esses indivíduos extraem sua experiência educativa e como

os currículos permitem essa interação e a reflexão sobre as diferentes realidades,

possibilitando ou não a orientação das ações para que sejam sujeitos ativos de sua

aprendizagem e de suas realidades.

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Para tal serão adotados como procedimentos metodológicos para análise das

diferenças de desempenho na disciplina de História a avaliação externa dos alunos

realizada pelo estado de São Paulo, o SARESP, que possibilitou a escolha da escola de

periferia bem classificada1.

O SARESP (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São

Paulo) é uma avaliação externa da Educação Básica, realizada desde 1996 pela

Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, cuja finalidade, segundo a secretaria é

fornecer informações periódicas e comparáveis sobre a situação da escolaridade básica

na rede pública de ensino paulista. Seus resultados ―servirão como instrumentos de

melhoria dos processos de ensinar e aprender nas escolas, do monitoramento das

políticas públicas de educação e do plano de metas das escolas, diretamente vinculados à

gestão escolar e à política de incentivos da SEE/SP e ao cumprimento das metas

IDESP‖2.

O SARESP avalia as 2ª, 4ª, 6ª e 8ª séries do Ensino Fundamental e a 3ª série do

Ensino Médio, em provas construídas a partir das Matrizes de Referência da Avaliação,

baseadas no Currículo do Estado de São Paulo e que incluem as habilidades avaliadas no

SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica). Além da avaliação, também é

aplicado um questionário destinado aos pais e alunos, e demais agentes educacionais

(diretores, professores, professores-coordenadores e supervisores de ensino), em todas as

escolas estaduais, cujo objetivo é identificar as variáveis que interferem no desempenho

dos alunos.

A partir de 2007, o resultado do SARESP passou a ser comparado com os índices

nacionais obtidos pelo SAEB e pela Prova Brasil, bem como as próprias edições

anteriores. Em 2008, além de Matemática e Língua Portuguesa, o exame passou a incluir

nas escolas da rede estadual, as áreas de Ciências Humanas e da Natureza, que serão

intercaladas. Assim, em 2008 os estudantes foram avaliados em Matemática, Língua

Portuguesa e Ciências da Natureza (Ciências, Física, Biologia e Química) e em 2009,

além de Matemática e Língua Portuguesa também em Ciências Humanas (História e

Geografia).

1 A escola foi escolhida com base em sua classificação no SARESP de História realizado em 2009.

2 O governo estadual utiliza os resultados obtidos no SARESP como parte da composição do IDESP:

indicador oficial de qualidade das séries iniciais (1ª a 4ª séries) e finais (5ª a 8ª séries) do Ensino

Fundamental e do Ensino Médio.

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No final do primeiro semestre de 2010, o governo do estado de São Paulo

divulgou os níveis de proficiência e os resultados gerais obtidos pelos alunos nessa

primeira avaliação de Ciências Humanas, realizada em 2009. Segundo tais resultados, a

maioria dos estudantes avaliados em Ciências Humanas encontra-se no nível de

proficiência descrito como ―Suficiente‖, que corresponde à somatória dos níveis

―Básico‖ e ―Adequado‖, cujos percentuais de estudantes distribuem-se da seguinte

forma para os alunos da 8ª série do Ensino Fundamental: 31,2 % no nível ―Básico‖ e

49,5% no nível ―Adequado‖, o que para o governo os caracteriza como aptos para o ano

seguinte de escolarização.3

Essa avaliação faz parte da iniciativa de uniformização do currículo no estado de

São Paulo, orientada para uma maior integração com os objetivos dos Parâmetros

Curriculares Nacionais e a Lei de Diretrizes e Bases.

Nesse sentido, sua organização atual reflete os pressupostos teóricos adotados

pela Secretaria Estadual de Educação a partir de 2008 quando foi implementada a atual

proposta curricular.

Segundo a secretaria, a implantação e aprimoramento da avaliação se baseia na

necessidade de se diagnosticar e aperfeiçoar os currículos oferecendo um conhecimento

comum capaz de caracterizar a educação no estado de São Paulo como uma rede. Além

disso, busca organizar uma base comum de conhecimentos e das competências e

habilidades a serem efetivamente desenvolvidas pelos alunos na escola, cuja

transparência quanto às expectativas de aprendizagem e resultados ficaria evidente.

O diferencial da avaliação é sua organização em matrizes de referência que

foram constituídas a partir dos pressupostos do currículo estadual, que se estrutura em

cinco princípios: currículo é cultura; currículo referido a competências; currículo que

tem como prioridade a competência leitora e escritora; currículo que articula as

competências para aprender e currículo contextualizado no mundo do trabalho.

As matrizes não têm por objetivo diagnosticar tudo o que foi aprendido, mas sim

retratar as estruturas conceituais mais gerais das disciplinas e também as competências

mais gerais dos alunos, que se traduzem em habilidades específicas. Estas sim seriam

responsáveis pela aprendizagem segundo o documento.

Essas matrizes organizam-se em cinco temas: história, cultura e sociedade;

historia e trabalho; historia e temporalidade; fontes históricas e história, movimentos e

3 Os alunos no nível básico apresentam domínio mínimo das habilidades e competências exigidas, mas

apresentam condições de interagir com a proposta curricular do ano seguinte.

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conflitos, que motivam cinco competências gerais que por sua vez se desdobram em

habilidades. Essas competências são: reconhecer que a formação das sociedades

contemporâneas é resultado de interações e conflitos de caráter econômico, político e

cultural; compreender as características essenciais das relações sociais de trabalho ao

longo da história; compreender, em seus contextos específicos, os conceitos básicos

relativos à temporalidade histórica; identificar as características fundamentais de fontes

históricas de variada natureza e compreender os processos históricos e sociais de

formação das instituições políticas e sociais.

A origem dessa organização é mais bem descrita nas propostas curriculares

implementadas a partir de 2008 na qual o SARESP se apoia, em que a escolha pela

abordagem por habilidades e competências é colocada como forma de priorizar a

aprendizagem.

Essa abordagem por competências privilegiaria não apenas os recursos

cognitivos, mas também os recursos afetivos e sociais pois, corresponderiam ao mínimo

necessário para que os alunos interpretem o mundo de forma crítica. Essa perspectiva de

resolução de problemas que o enfoque por competências traz é a forma encontrada para

abordar o mais geral dos objetivos tanto a nível federal quanto estadual do ensino e

especialmente do ensino de história, que é a formação das identidades. As competências

permitiriam conectar a escola aos problemas e vivências posteriores atuando, portanto,

na formação do indivíduo para a sociedade.

Outra preocupação da proposta em consonância com os PCN é o tratamento da

tecnologia e do trabalho pela escola. Desse modo, um dos objetivos da abordagem por

competências é a aproximação entre teoria e prática em cada área do currículo,

integrando a tecnologia como parte dessa aproximação, visto que essa preside a

produção moderna.

A proposta enfatiza que todos somos produtores de bens e serviços através do

trabalho e que essa é a melhor forma de conectar prática e currículo. Essa prioridade do

contexto do trabalho é atribuída a um valor filosófico que o trabalho desempenha na

sociedade, e também como forma de combater o que chama de ―bacharelismo

ilustrado‖.

A abordagem por competências conectaria currículo e prática buscando

democratizar o conhecimento e permitindo ao indivíduo construir competências a partir

de suas experiências para uma participação mais efetiva em seu próprio grupo social,

tomando parte de processos de crítica e renovação social.

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A efetivação desses objetivos será analisada não apenas em termos de adequação,

mas de percepção dos próprios indivíduos aos quais se dirige. Essa etapa da pesquisa

utilizou questionários e entrevistas com o objetivo de verificar o capital cultural

disponível dos alunos e também para compreensão das expectativas desses alunos em

relação à possibilidade de uso social dos saberes históricos escolares.

A princípio foi aplicado aos alunos um questionário formulado tendo como

referência o questionário proposto por Pierre Bourdieu em ―A Distinção‖. Esse

instrumento tem como finalidade investigar as práticas culturais desses alunos. O intuito

era verificar se os alunos em situações opostas de rendimento possuíam também um

capital cultural diferente.

Nessa etapa da pesquisa os alunos foram entrevistados de forma objetiva, com

perguntas sobre seu capital cultural mobilizado para o ensino de História (consumo de

bens culturais, lazer, categoria profissional dos pais, gostos, entre outros), procurando

compreender o capital cultural, como um pré-requisito que instrumentalizaria e

adequaria tais alunos aos saberes propostos pelo currículo, possibilitando-os maior

aptidão ou não em relação a eles.

Os alunos em situações opostas em termos de desempenho escolar na disciplina de

História foram entrevistados a partir de um roteiro semi-estruturado. Na perspectiva de

verificar sua relação com os saberes históricos escolares disponíveis e a aplicabilidade

de tais saberes, no sentido de compreender o possível uso social pretendido por tais

alunos.

De acordo com Thiollent (1982) a entrevista semi-estruturada realizada com um

pequeno número de sujeitos – uma amostragem dos alunos em situações opostas na

disciplina de História e com perguntas de grande abertura – permite captar informações

mais profundas, de caráter mais afetivo do que cognitivo. Tal perspectiva interessa à

pesquisa, pois, é uma preocupação investigar as expectativas desses alunos em relação à

disciplina de História.

Os pais dos alunos em situações opostas também foram entrevistados de forma a

tentar compreender a configuração familiar e se nessas famílias há um investimento

escolar que criaria uma disposição social capaz de levar ao sucesso escolar na

aprendizagem de História.

A combinação das técnicas de questionário e entrevista, enquanto procedimento da

enquete sociológica se baseia na necessidade de estabelecer um contato efetivo com os

indivíduos implicados no problema a ser estudado, visto que se pretende não apenas a

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verificação dos objetivos da disciplina de História, que poderia ser feita com a base na

análise documental, mas também a crença dos indivíduos estudados em relação a tais

objetivos, seus sentimentos em relação a eles e seus padrões de ação4.

Tal combinação permite, portanto uma maior profundidade das informações

captadas na obtenção das representações ou descrições de elementos das realidades

sociais dos indivíduos investigados, buscando explorar o universo cultural desses

indivíduos em relação ao grupo ao qual pertencem.

Dessa forma, com a combinação das enquetes sociológicas e a análise

documental procuramos compreender, em parte, o que está por trás do sucesso na

disciplina de História em alunos de periferia, pretensamente homogêneos.

Para isso, serão apresentados no primeiro capítulo alguns dos conceitos que

orientam essa pesquisa, como capital cultural e currículo hegemônico, entendidos como

mecanismos de seletividade. No capítulo 2, são apresentados os procedimentos

metodológicos utilizados destacando a escolha da escola, dos indivíduos e a forma

como foram inqueridos, além dos critérios de análise das práticas culturais utilizados no

capítulo 3. Esse capítulo averigua o capital cultural possuído pelas famílias e sua relação

com o rendimento dos alunos. Por fim, o Capitulo 4, apresenta uma descrição das

propostas (PCN e Proposta Curricular do Estado de SP) e suas principais orientações,

confrontando as possíveis dissonâncias entre elas, além de uma análise das

possibilidades que oferecem em relação aos sujeitos a que se destina, avaliando se os

objetivos da disciplina são percebidos por tais sujeitos, portanto se o que se propõe tem

consonância com o que se efetiva.

4 THIOLLENT, Michel J. M. (1982) Crítica Metodológica, Investigação Social e Enquete Operária.São

Paulo, SP: Polis. p. 31 a 39.

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Capítulo I - O papel do capital cultural e do currículo na reprodução

social

Quais os efeitos da classe ou da fração de classe sobre seus indivíduos? Como o

currículo hegemônico e o capital cultural de classe se relacionam de forma a produzir o

sucesso ou o insucesso escolar de estudantes da periferia? Essas são algumas das

perguntas que orientam a investigação que se propõe este trabalho, a saber, a

possibilidade de uso social dos saberes históricos escolares por indivíduos da periferia.

Tais questionamentos nascidos da prática cotidiana de professora, indagada

sobre a utilidade dos saberes históricos, se rebuscaram no contato com os conceitos

teóricos desenvolvidos por Bourdieu (2006 e 2008) e Apple (2006). De forma que quilo

que parecia uma indagação própria de alunos pouco interessados revelou – a partir dos

estudos desses autores – que o destino desses alunos tem forte relação com sua origem

social. Isso demonstra que a pergunta aparentemente infantil do ―por que estudar

História?‖, tem de fato muito valor se pensada em relação a esses alunos, cuja origem

social parece inadequada em relação à cultura privilegiada pela escola.

Em seus estudos Bourdieu (2008a) coloca que a herança cultural, ou seja, o

capital cultural herdado por um aluno é responsável pela apropriação da experiência

escolar e, portanto por seu sucesso ou insucesso. Desse modo, a distribuição desigual do

capital cultural entre as classes e frações de classe condiciona os diferentes

desempenhos escolares.

Isso significa dizer que aquilo que um indivíduo pode ou não vir a ser depende

da escola que chancela se a herança que esse indivíduo carrega é ou não adequada e se

permite ou não o sucesso escolar.

Assim, para investigar como alguns alunos conseguem sucesso na disciplina de

História é necessário investigar quais mecanismos determinam a eliminação de uma

maioria. Possibilitando compreender a seleção condicionada pela herança, ou seja, pelo

capital cultural familiar e também a seleção imposta pelo conhecimento legítimo, ou

seja, o currículo.

Nessa perspectiva, aos estudos de Bourdieu (2008a) se somam os estudos de

Apple (2006) sobre o currículo, como forma de investigar que interesses sociais a

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seleção e a organização dos currículos carregam. A análise de Apple possibilita

demonstrar a distribuição de poderes por meio da imposição de significados –

sistematizado pelo currículo – cujo acesso pela distribuição cultural existente privilegia

as classes dominantes colocando-se como um obstáculo às classes populares. Portanto,

não é possível ignorar que o sistema de ensino contribui para a reprodução da estrutura

social ao sancionar ou não o capital cultural herdado.

1. Capital cultural e seletividade

Compreender, portanto, o conceito de capital cultural é fundamental para uma

análise do rendimento desigual obtido por sujeitos cuja origem social é aparentemente

igual.

O capital cultural é para Bourdieu (2008b) a noção que permite explicar a

diferença de desempenho escolar de indivíduos provenientes de diferentes classes

sociais e frações de classe, relacionando, portanto, distribuição desigual do capital

cultural aos benefícios específicos que podem ser obtidos no mercado escolar.

Para compreender como indivíduos sujeitos as mesmas condições (escola e

residência), obtêm rendimentos distintos é necessário averiguar o investimento cultural

feito pelas famílias, que é expresso por seu capital cultural, posto que o volume e a

estrutura de seu capital possibilitam lucros diferenciados em relação aos diferentes

mercados, inclusive o escolar.

Essa perspectiva de análise orienta esse trabalho, tendo por intuito averiguar se

os indivíduos residentes na periferia - pretensamente homogêneos – e que obtêm

sucesso na disciplina de História, o fazem por conseguirem a partir de seu capital

cultural assimilar os objetivos do ensino de História e por sua vez destinam um possível

uso desse conhecimento.

Esse uso não se caracteriza por uma aplicação imediata, que gere um lucro

objetivo, mas sim a possibilidade de instrumentalização do aluno para compreensão de

sua realidade. No confronto com outras realidades históricas e outras vivências sociais

ao longo do tempo. Dessa forma, suas escolhas e critérios de suas ações seriam

influenciados por tais objetivos, tendo implicação direta na noção de identidade e

reconhecimento desses indivíduos.

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Esse reconhecimento de si e do outro, compõe uma rede de relações que é o

produto de estratégias de investimento social consciente ou inconscientemente

orientadas para a transformação de relações possíveis. Tais relações são eletivas, ou seja,

passíveis de lucro, cuja possibilidade advém da própria noção de pertencimento ao

grupo, e é nesse sentido que a realização dos objetivos do ensino de História por parte de

alguns alunos demonstra um conjunto de recursos atuais ou potenciais, capazes de

distingui-los dos demais.

Torna-se necessário investigar o que fundamenta essa noção de pertencimento,

ou seja, os esforços e o tempo que são dispendidos. Para tal, se busca averiguar o capital

cultural herdado que possibilita a esses indivíduos distinção em relação à outros.

Essa perspectiva de transmissão doméstica do capital cultural é para Bourdieu

(2008a) o mais determinante e oculto investimento educativo. Pressupõe um

investimento em tempo e em capital cultural dissimulando que a possibilidade de lucro

depende do volume e estrutura do capital cultural familiar e não apenas da vontade do

indivíduo.

Essa importância do capital cultural destacada por Bourdieu (2008a) permitiu

desvelar alguns pressupostos em relação ao rendimento desigual dos alunos,

demonstrando que as oportunidades reais de aproveitamento do sistema de ensino estão

atreladas ao volume e estrutura do capital possuído para investimento. Portanto, a

pretensa democratização do sistema de ensino não permite à grande maioria dos alunos

das classes populares as mesmas oportunidades dos alunos da classe média e da elite.

A democratização do sistema de ensino com a entrada das classes populares na

escola serviu de esteio para teoria do capital econômico e da ideologia do ―dom‖. Essas

teoria aponta que o lucro objetivo do sistema de ensino é correlato ao investimento

educativo e econômico possível a todos pela universalização do ensino. Por essa teoria

as chances de lucro seriam dadas a todos, porém alguns teriam mais condição de

alcançar o sucesso escolar por sua disposição individual, vista como uma espécie de

dom.

O que Bourdieu (2008a) aponta é que essa teoria desconsidera que no momento

de partida – quando ingressam no sistema de ensino – os indivíduos não apresentam

chances iguais, pois têm em sua bagagem diferentes heranças culturais familiares.

Portanto, a distribuição desigual do capital cultural tem parte no rendimento possível do

indivíduo, de forma a condicionar sua aptidão ou não ao sistema de ensino.

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Em outras palavras, a teoria do capital humano e seu forte cunho economicista

ignoram o papel fundamental do sistema de ensino na reprodução da estrutura social.

Dessa forma as heranças desiguais do capital cultural familiar projetam diferentes

rendimentos escolares que são sancionados pela escola como uma maior ou menor

aptidão do aluno.

(...) ― capital humano‖ que, apesar de suas conotações ―humanistas‖,

não escapa ao economicismo e ignora dentre outras coisas, que o

rendimento escolar da ação escolar depende do capital cultural

previamente investido pela família e que o rendimento econômico e

social do certificado escolar depende do capital social- também

herdado-que pode ser colocado a seu serviço. ( BOURDIEU, 2008 - b

p. 74)

Essa diferença no momento de partida é explicada por Bourdieu como tributária

da diferença de capital cultural dos indivíduos e é definitiva no desempenho da grande

maioria dos alunos.

O capital cultural corresponde aos bens culturais, que previamente investidos

pela família, definem a forma como esta lida com a cultura disponível. Ele é

pessoalmente incorporado pelo indivíduo, sendo parte de um sistema de disposições

duráveis e gerador de práticas, chamado de habitus, que em suma, traduz as condições e

os condicionamentos de uma classe e que garante determinadas posições e rendimentos.

O capital cultural é um ter que se tornou ser, uma propriedade que se

fez corpo e tornou-se parte integrante da ―pessoa‖, um habitu.

(BOURDIEU, 2008 – b, p. 75)

Para Bourdieu (2008b) o capital cultural pode existir em três formas: no estado

incorporado, na forma de disposições que se fazem corpo; no estado objetivado sob a

forma de bens culturais e no estado institucionalizado sob a forma de um diploma.

O estado incorporado exige tempo – ao contrário do capital econômico que pode

ser transmitido instantaneamente – o que torna sua aquisição inconsciente e

marcadamente dissimulada pelas condições primeiras em que foi transmitido. Desse

modo, a incorporação de capital cultural por parte do indivíduo depende não apenas do

volume do capital cultural a ser incorporado, mas também do tempo e da forma de

incorporação desse capital.

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O tempo de aquisição desse capital não pode nunca ser reduzido ao tempo de

escolarização, mas sim como primordialmente tributário da educação familiar. Ela, de

acordo com o volume de capital cultural e habitus de classe pode favorecer a etapa

escolar ao inculcar e estimular disposições favoráveis a aprendizagem formal. Ou, ao

contrário, pode significar um atraso ou retardo, no sentido de um tempo perdido, visto

que será necessário criar na criança as disposições exigidas pelo mercado escolar.

Esse aproveitamento do tempo denota a própria diferença de capital cultural e

econômico entre as classes e seu funcionamento como capital simbólico. As famílias de

forte capital econômico, possuidoras de um maior capital cultural dispõem não apenas

da possibilidade de iniciar a transmissão e acumulação de capitais mais precocemente

como também possuem maior tempo livre para investimento em práticas culturais que

por serem prolongadas e acumuláveis exigem do indivíduo um comportamento diletante.

(...) o tempo durante o qual determinado indivíduo pode prolongar seu

empreendimento de aquisição depende do tempo livre que sua família

pode lhe assegurar, ou seja, do tempo liberado da necessidade

econômica que é a condição da acumulação inicial (tempo que pode

ser avaliado como tempo em que se deixa de ganhar). (BOURDIEU,

2008b , p. 76)

Essa exploração e utilização do tempo de aquisição do capital cultural demonstra

sua dissimulação enquanto estratégia de reprodução muito maior que o capital

econômico, funcionando de forma muito mais efetiva como capital simbólico.

Um bem cultural pode ser apropriado de forma material, pressupondo um

determinado capital econômico e de forma simbólica, pressupondo um capital cultural.

Tal apropriação do bem cultural como simbólico constitui a relação que o capital

cultural objetivado mantém com sua forma incorporada.

Assim, o capital cultural em estado objetivado se define por sua materialidade

(por exemplo, pinturas, monumentos, suportes materiais escritos, etc), cujas

propriedades dependem do capital incorporado – apenas a posse jurídica de um bem

cultural não assegura sua incorporação e utilização como capital simbólico.

Sua eficácia como capital simbólico depende da forma como esse capital é

incorporado pelo indivíduo que o recebe, ou seja, sua eficácia ideológica depende de

uma lógica de transmissão, pois essa forma de capital só existe e subsiste como forma de

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distinção na condição de ser apropriado pelos indivíduos, portanto do domínio que dele

possuem.

Esse domínio que é sua própria lógica de transmissão vai além da posse de

instrumentos de produção ou bens, mas corresponde a um trabalho de apropriação

desses instrumentos e bens, portanto define-se pela relação que estabelece com a forma

incorporada do capital cultural. Em suma, significa dizer que é necessário dispor de um

capital cultural em seu estado incorporado, para que os instrumentos objetivos de

dominação (como instrumentos de produção e bens) tornem-se instrumentos simbólicos

para este fim.

Assim como em seu estado incorporado o capital cultural objetivado – apesar de

determinado por uma herança familiar – apresenta também um caráter individual. Isso

porque um indivíduo só detêm um certo número de propriedades simbólicas se estas

forem pessoalmente investidas, ou seja incorporadas pelo indivíduo. Dessa forma os

benefícios possíveis do domínio desse capital objetivado dependem da medida como ele

é incorporado.

Por isso, entre os objetivos desse trabalho está o levantamento do capital cultural

das famílias investigadas. Busca-se compreender se há diferenças de capital cultural em

seu estado objetivado e incorporado que sejam significativas para a aprendizagem dos

saberes históricos escolares.

Bourdieu (2008b) define ainda outra forma de capital cultural, o

institucionalizado. Esse estado compreende a raridade conferida pelo título escolar e se

aplica aos objetivos dessa pesquisa por possibilitar compreender e relativizar o valor da

escolaridade para essas famílias, no sentido de diferenciação.

Isso porque o reconhecimento institucional encerra o indivíduo em um grupo

teoricamente homogêneo, o dos possuidores de um certificado escolar, e institui uma

diferença de essência entre a competência estatutariamente reconhecida e garantida e o

simples capital cultural, constantemente intimado a demonstrar seu valor (BOURDIEU,

2008b, p. 78).

Além disso, o capital cultural em seu estado institucionalizado na forma do

certificado escolar permite a comparação e seleção dos indivíduos conforme o diploma

que possuem. Possibilita compreender desse modo a taxa de convertibilidade entre o

capital econômico e cultural e o rendimento possível do capital escolar, estabelecendo

no plano do capital cultural o valor do detentor do diploma em relação aos outros

detentores e seu valor objetivo pelo qual pode ser trocado no mercado de trabalho.

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O estado institucionalizado do capital cultural – que em tese poderia ser

alcançado por todos aqueles considerados aptos aos estudos – compreende o ponto

máximo de dissimulação do capital cultural. Ele demonstra a dissimulação que se opera

por dentro e pela própria escola, pois o indivíduo ao alcançar um diploma se coloca em

uma condição homogênea, mas também de diferenciação, já que os benefícios materiais

de seu diploma dependem de sua raridade em relação à outros certificados.

Essa raridade por sua vez depende do investimento escolar e, portanto, do capital

econômico. Isso significa que já no momento de partida há uma diferenciação, cuja

tendência se potencializa ao longo da escolarização, pela própria lógica de

funcionamento do sistema de ensino, que classifica os indivíduos em função do capital

que podem mobilizar.

2 – O Habitus como um esquema classificatório

Analisar o volume de capital cultural de um indivíduo ou de um grupo de

indivíduos, como essa pesquisa se propõe, tem por objetivo conhecer não apenas o que

os diferencia entre si – o que explicaria a diferença de desempenhos entre indivíduos em

condição social aparentemente homogênea – mas também permite avaliar os sistemas

classificatórios que permeiam as classes.

Os sistemas classificatórios (BOURDIEU, 2006) são com efeito a garantia da

eficácia da divisão de classes, pois abarcam as práticas e os julgamentos produzidos

pelos indivíduos sobre sua posição e a dos demais, permitindo compreender seu lugar

no espaço social.

O espaço social é o lugar que as classes ou frações de classe ocupam no mundo

social. Esse lugar é determinado pelo volume e estrutura do capital (cultural e

econômico) que seus integrantes possuem, como conjunto de recursos ou poderes

efetivamente utilizáveis e que são por sua materialidade objetivamente classificáveis.

No entanto, os indivíduos só se percebem como membros de um mesmo espaço

social pelos esforços que empregam em determinadas práticas que consideram

adequadas a suas posições, ou seja, da abstração que fazem do seu lugar no espaço

social.

Essa adequação de práticas permite compreender como a questão do espaço é

formulada no próprio espaço, pois possibilita enxergar as distâncias mantidas pelos

indivíduos em relação a outros. Enquanto instrumento de análise, o espaço como uma

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abstração social construída pelo pesquisador permite observar aquilo que os indivíduos

consideram ser necessário conservar ou modificar para se manter no espaço social

engendrado que é na verdade uma abstração social construída.

No entanto, para compreender as práticas que geram essa abstração, que é em si

uma representação, é necessário conhecer o princípio que as gera: o habitus.

O habitus é ao mesmo tempo princípio gerador de práticas objetivamente

classificáveis como também sistema de classificação de tais práticas. Assim sendo, o

habitus é capaz de produzir práticas e obras classificáveis, como também de produzir a

capacidade de diferenciar e apreciar essas práticas e seus produtos, os gostos que

determinam os estilos de vida.

A partir do habitus é possível compreender a relação entre a condição

econômica e social e os traços distintivos, produto da posição ocupada pelo indivíduo

no mundo social. Encarado como um princípio gerador, o habitus permite justificar as

práticas e os produtos classificáveis, assim como os julgamentos, que por sua vez são

classificados e que constituem um sistema de sinais distintivos.

Assim, esses sinais distintivos se convertem em disposições gerais – o habitus.

Isso significa dizer que o esquema do habitus é capaz de criar a partir de práticas

estruturantes (o que organiza as práticas, seus sinais distintivos), o estruturado (o que

faz parte do indivíduo), demonstrando assim sua sistematicidade na construção do

mundo social representado, ou seja, o espaço dos estilos de vida.

Nesse sentido, compreender o lugar da classe no mundo social representado é:

(...) Retornar ao principio unificador e gerador das práticas, ou seja, ao

habitus de classe, como forma incorporada da condição de classe e dos

condicionamentos que ela impõe; portanto, construir a classe objetiva,

como conjunto de agentes situados em condições homogêneas de

existência, impondo condicionamentos homogêneos e produzindo

sistemas de disposições homogêneas, próprias a engendrar práticas

semelhantes, além de possuírem um conjunto de propriedades comuns,

propriedades objetivadas, às vezes, garantidas juridicamente - por

exemplo, a posse de bens ou poderes – ou incorporadas, tais como os

habitus de classe – e em particular, os sistemas de esquemas

classificatórios. (BOURDIEU, 2008, p. 97)

Além disso, essa sistematicidade permite compreender a experiência comum do

mundo social como um reconhecimento da posição do indivíduo em uma estrutura.

Porém, aparentemente o que é espontâneo – esse reconhecimento do indivíduo – é na

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verdade gerado pelo esquema do habitus, que também é responsável pela definição da

identidade social desse indivíduo, pois o circunscreve no sistema de diferenças que os

diferentes habitus objetam, ou seja, a identidade social define-se e afirma-se na

diferença de habitus.

Essas diferenças de práticas que constituem o esquema do habitus são princípios

de diferenciação por serem propriamente produto de práticas diferentes, que fazem parte

de uma ordem baseada no reconhecimento, pela procura intencional de determinadas

práticas da classe ou da fração de classe. Porém a necessidade desse reconhecimento é

ignorada e é o que torna essa procura natural e observável do ponto de vista das classes.

A dialética das condições e dos habitus é o fundamento da alquimia

que transforma a distribuição do capital, balanço de uma relação de

forças, em sistema de diferenças percebidas, de propriedades

distintivas, ou seja, em distribuição de capital simbólico, capital

legítimo, irreconhecível em sua verdade objetiva (BOURDIEU, 2006,

p. 164).

Isso significa, que o habitus não é uma resposta mecânica à estruturas

estruturantes, antes envolve formas de classificação, que permitem tanto a integração

quanto a distinção. São, portanto, estratégias de construção e avaliação do mundo social

estruturadas - logo produto de sua própria participação na construção de esquemas de

pensamento e expressão, ou seja, de disposições duráveis geradoras de práticas.

(...)Habitus permite estabelecer uma relação inteligível e necessária

entre determinadas práticas e uma situação, cujo sentido é produzido

por ele em função de categorias de percepção e de apreciação; por

sua vez, estas são produzidas por uma condição objetivamente

observável (BOURDIEU, 2006, p. 96)

Essa condição objetivamente observável que corresponde ao habitus de classe é

a condição incorporada da classe e dos condicionamentos que ela impõe e constrói,

produzindo condições e disposições homogêneas, além de propriedades e poderes. Estes

de acordo com os instrumentos simbólicos, o domínio do mundo social e o lugar

ocupado nele, permitem compreender as distâncias em relação a sua classe e as demais.

Esse domínio do mundo social depende de sistemas classificatórios, que

funcionam como imposições ideológicas ao atribuírem um sentido ao mundo social de

forma a parecerem legítimas. Por isso as tentativas das classes para imporem a sua

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definição do que é o mundo social - a partir das estruturas estruturadas - refletem sua

luta na hierarquização do espaço social.

Isso significa dizer que os sistemas classificatórios só exercem seu poder

simbólico pela própria estrutura onde são produzidos, ou seja, pela própria relação entre

os detentores do poder e os que estão sujeitos a ele. Esta é a própria lógica da estrutura

do espaço social que é estruturante de sua própria condição, posto que já está

estruturada pelas disposições que carrega por herança da classe a que pertence.

É em torno desse poder simbólico, garantido pelas condições e propriedades

homogêneas geradas pelo habitus e pelo capital cultural, que as classes utilizam o

sistema de ensino para garantir sua reprodução.

Dessa forma, os estudos de Bourdieu verificam que as classes mais favorecidas

obtêm um maior rendimento do sistema escolar, em grande parte porque fazem a

reconversão de capital, alcançando assim títulos mais valorizados e obtendo, portanto,

um maior uso social do sistema de ensino, o que lhes assegura a manutenção de suas

posições.

Esse esquema classificatório do sistema de ensino é utilizado como parte das

estratégias de reconversão na luta contra a desclassificação, que não atingem apenas as

classes mais favorecidas, mas também as classes populares.

A entrada de frações, até então fracas utilizadoras da escola, na corrida e na

concorrência pelo título escolar, tem tido como efeito obrigar as frações de

classe, cuja reprodução era assegurada principal ou exclusivamente pela escola,

a intensificar seus investimentos para manter a raridade relativa de seus

diplomas e, correlativamente, sua posição na estrutura de classes; nesse caso, o

diploma, e o sistema escolar que o confere, tornam-se assim um dos objetos

privilegiados de uma concorrência entre as classes que engendra um

crescimento geral e contínuo da demanda por educação e uma inflação dos

títulos escolares (BOURDIEU, 2008a, p. 148)

No entanto, mesmo que a entrada das classes populares altere as estruturas

sociais e as oportunidades de lucros garantidas pelos capitais disponíveis, as classes mais

favorecidas têm maiores condições objetivas de evitar a desclassificação e de se

apropriarem do sistema de ensino para garantir sua raridade. Isso se deve as suas

propriedades e práticas mais adequadas ao sistema de ensino – historicamente marcado

por saberes e condicionamentos oriundos das classes mais favorecidas.

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Dessa forma, para observar os diferentes desempenhos desses alunos como esse

trabalho se propõe, é necessário não apenas compreender as diferenças de capital

cultural dos indivíduos, mas também sua mobilização.

Nesse sentido, as diferenças de desempenho serão analisadas a partir do trabalho

de Lahire (1997) que propõe que ―não se trata de capitais que circulam, mas de seres

sociais que, nas relações de interdependência e em situações singulares, fazem circular

ou não, podem ―transmitir‖ ou não, as suas propriedades sociais‖ (p. 32 - 33). Portanto,

as diferenças de rendimentos não são objetivadas apenas pela propriedade de capitais ou

recursos, em que diferentes capitais objetam diferentes rendimentos, mas sim pelas

relações estabelecidas entre meio social e indivíduo.

Nessa perspectiva para que se possa compreender o rendimento desigual de

alunos da periferia é necessário analisar como ocorre a transmissão do capital cultural na

constituição de disposições sociais, esquemas mentais e comportamentais compatíveis

com as modalidades de socialização escolar.

A nosso ver, só podemos compreender os resultados e os

comportamentos escolares da criança se reconstruirmos a rede de

interdependências familiares através da qual ela constituiu seus

esquemas de percepção, de julgamento, de avaliação, e a maneira pela

qual estes esquemas podem ―reagir‖ quando ―funcionam‖ em formas

escolares de relações sociais. (LAHIRE, 1997, p.19)

Portanto, para analisar as razões do sucesso escolar na disciplina de História em

alunos da periferia, será analisado o que Lahire chama de ―configurações familiares‖, a

fim de compreender como tais alunos e famílias se relacionam com os saberes

disponíveis e usos possíveis que objetam para a disciplina de História.

Colocando-nos no nível das redes de interdependência entre seres

sociais concretos, entre estruturas de coexistência e formas que

assumem as relações entre seres sociais singulares, percebemos de

uma maneira mais precisa aquilo que as grandes pesquisas

estatísticas traçam em linhas gerais. (LAHIRE, 1997, p.39)

Em outras palavras, o que Lahire propõe para explicar o ―sucesso‖ é uma relação

entre as configurações familiares e o espaço escolar. Essas relações são capazes de criar

disposições sociais que dependem de um processo de socialização específico, segundo a

capacidade da família de ajudar a criança na realização dos objetivos que lhe são fixados

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em relação à escola. A perspectiva de Lahire amplia a noção de investimento escolar

possibilitando compreender situações particulares como as que essa pesquisa investiga.

A teoria de Lahire sobre sucesso e investimento escolar, também permite

investigar o lugar que o ensino de História ocupa nessas famílias a fim de compreender o

uso social da escolarização na tentativa de reconversão, conforme a proposta de

Bourdieu.

Nesse sentido, a análise do currículo proposta por Apple (2006) permite avaliar

como os alunos bem sucedidos no ensino de História compreendem as possibilidades de

sua escolarização e os possíveis usos sociais dessa disciplina de acordo com a descrição

do PCN, de que o ensino de História possibilitaria a ampliação gradativa da

compreensão da realidade dos alunos. Estes ao confrontarem e relacionarem sua

realidade com outras realidades históricas tem segundo as orientações do PCN maior

possibilidade de fazer suas escolhas e mais critério para orientar suas ações.

Tal perspectiva de compreensão das possibilidades de escolarização se baseia não

só em Apple (2006), mas tanto nas investigações de Bourdieu (2008a) como de Lahire

(1997) sobre o papel do capital cultural em relação ao desempenho escolar. Posto que o

capital cultural herdado é muitas vezes inadequado do ponto de vista da cultura legítima,

corroborando o desempenho insuficiente das classes populares em relação a escola.

Essa cultura legítima, sistematizada na organização do currículo, interfere na

distribuição cultural, agindo como mecanismo de eliminação e reprodução social. Trata-

se de uma seleção feita a partir de critérios das classes dominantes, de forma que estes

podem assim manter sua raridade, pela distância que tal conhecimento tem da cultura

popular.

Dessa maneira, para avaliar a diferença de desempenho de alunos da periferia

bem sucedidos na disciplina de História é preciso investigar além de seu capital cultural

familiar, a forma como esses alunos se relacionam com esse outro capital cultural que é

o currículo.

3 – Currículo como distribuição desigual e capital cultural

Para Michael Apple (1989), os currículos são um espaço de luta, pois são

produto social de forças conflitantes e que acaba por unir classes, frações de classe e

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movimentos sociais de forma contraditória, pois, para obter legitimidade, precisa

incorporar as demandas desses novos utilizadores da escola.

Na realidade, o fato de que as escolas são na verdade parte do

Estado, parte do aparato político da sociedade, fornece algumas das

condições para uma tal seleção mais ampla de cultura, dada a

necessidade relativamente autônoma de legitimação por parte do

Estado. Não há nenhuma garantia, entretanto, de que essa seleção

mais ampla resultará em vantagens apreciáveis para os grupos que

usualmente não tem poder significativo ( por exemplo, grupos da

classe trabalhadora), uma vez que frequentemente o currículo é

resultado de conflitos, dentro do Estado e entre as classes médias e

a elite. (APPLE, 1989,p. 52)

Para o autor, os currículos têm um importante papel na construção dos esquemas

de pensamento e de ação, na medida em que estabelecem uma relação de mediação

entre a escola e a comunidade ao dissimular o caráter meritocrático e supostamente

igualitário do sistema de ensino.

A escola auxiliaria nos processos de reprodução, empreendendo a seleção e

hierarquização dos alunos ao ensinar valores culturais, normas e habilidades de acordo

com a classe, raça e sexo dos diferentes grupos a qual se destinaria.

No entanto, enquanto agências legitimadoras, as escolas também necessitam ser

―legitimadas pelos governados‖, por isso mantêm um funcionamento contraditório

diante das pressões econômicas, políticas e educacionais e de suas próprias demandas –

contradição, expressa, sobretudo, nos currículos tanto em seu estado prescrito como

real.

Em outras palavras, a escola precisa fazer tudo isso parecer natural.

Uma sociedade baseada no capital cultural técnico e na acumulação

individual de capital econômico precisa parecer ser o único mundo

possível. (APPLE, 2006, p. 126)

Apple e King (1989), em trabalho sobre a consonância entre o que ensinam as

escolas e os objetivos das classes dominantes, apontam que a motivação para a criação

das escolas foi justamente o propósito de ensinar normas e objetivos institucionais.

Essas normas e objetivos constituem o currículo oculto e as escolas cumprem o papel

que lhes caberia na imposição de disposições úteis para a vida em uma ordem social e

econômica complexa e estratificada como são as sociedades industriais modernas.

Apple (1989 e 2006) observa que existe uma relação entre os conhecimentos

escolares e os fenômenos extraescolares que determinam as relações de poder, e que

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traduzem a estrutura das relações econômicas. Da mesma forma que há uma

distribuição desigual do capital econômico há também uma distribuição similar do

capital cultural e são as escolas nas sociedades industriais as principais reprodutoras

dessa desigualdade.

De certa forma, o que se ensina está de acordo com a distribuição dos bens e

serviços da sociedade, contudo o que se ensina, ou seja, o currículo representa e

responde aos recursos ideológicos e culturais das classes dominantes na tentativa de

controle social.

Para o autor, ao analisar a constituição do currículo enquanto área de

concentração de conhecimentos é necessário considerar que sua raiz está no controle

social, posto que seus objetivos configuram-se em identificar procedimentos para a

seleção e organização dos saberes escolares e procedimentos que devem ser ensinados,

portanto formas de controle social.

Nesse sentido, o controle social se tornou o aspecto mais evidente do estudo do

currículo, mesmo que, tratando de uma resposta às regularidades das interações

humanas, o domínio dessa seleção cultural que é o currículo, é essencial para a

preservação de privilégios sociais, dos interesses e do conhecimento dito legítimo.

Dessa forma, os estudantes recebem através dos currículos determinados significados,

que são as prerrogativas para manutenção do afastamento de grupos menos poderosos.

A análise do currículo oculto - as normas e valores implícitos - permite delinear

a relação histórica entre o que ensinam as escolas e o contexto mais amplo de

instituições que as rodeiam. Apple (1989) lembra que aquilo que consideramos oculto

foi a função das escolas durante grande parte de seu funcionamento como instituições,

porém ao longo do século XIX a crescente diversidade nos meios culturais reafirmou o

papel da escola para homogeneização, criando também certas expectativas de

inculcação relativas a eficiência e funcionalismo em algumas classes por uma elite

industrial.

Historicamente o ajuste entre o consenso normativo e o econômico, se

constituiu dentro da estrutura da educação formal. A escola incorporaria como função a

seleção e generalização de qualidades pessoais e de significados normativos que

proporcionariam aos alunos uma suposta oportunidade de obter recompensas

econômicas.

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O currículo é, portanto carregado de ideologia que se relaciona ao saber escolar

na medida em que forma parte nas estruturas de poder e na distribuição dos recursos

econômicos, tal qual a distribuição do capital cultural dentro da classe.

Dessa forma, as escolas tem uma papel decisivo no controle do conhecimento e seu

uso, através do currículo oculto, para dominação de classes menos favorecidas, numa

demonstração de que o currículo está dominado por um consenso ideológico que

privilegia as classes dominantes, ao enunciar-se como neutro. Assim, além de não agir

de forma neutra, também despolitizaria os indivíduos ao sugerir o consenso, ignorando

o conflito como uma característica essencial da sociedade.

Ademais, ao tentar reduzir todo o conhecimento que é ensinado a

comportamentos atomizados, como é freqüente o caso hoje, muitas

práticas escolares reduzem também a esfera cultural (a esfera do

discurso democrático e das compreensões coletivas) à aplicação de

regras e procedimentos técnicos. Em essência, também nesse caso

questões referentes ao ―por quê‖ são transformadas em questões

referentes ao ―como―. Quando isso se combina como o fato de que o

ensino do conflito está usualmente ausente do currículo, o debate e a

conscientização política e ética são substituídas pelas ideologias

instrumentais. (Apple, 1989, p. 49).

A análise do conflito é particularmente importante, pois o currículo atua na

formação da consciência dos indivíduos. Assim, não ensinar o conflito leva ao consenso

e à aceitação da distribuição de poder existente, pois impede os alunos de

desenvolverem uma perspectiva em relação à mudança dentro de uma sociedade

desigual e das dinâmicas de poder.

Para Apple, (2006, p.42) é importante observar que as escolas não são neutras

como se apregoa. Essa idéia é corroborada segundo o autor pelo próprio currículo – que

enquanto seleção feita fora da prática educativa compreende a uma escolha feita a partir

de um universo muito maior de conhecimentos e princípios sociais disponíveis, o que o

caracteriza como uma forma de capital cultural, uma mercadoria filtrada por

condicionamentos econômicos e ideológicos das classes dominantes. Assim, o autor

demonstra que a manutenção da hegemonia depende não apenas da propriedade

econômica, mas também da propriedade simbólica – esta última dada pela distribuição

cultural que a escola autoriza pelo currículo de acordo com a classe do indivíduo a que

ela se destina.

Sacristán (1998, p.124) corrobora a perspectiva de Apple sobre distribuição

cultural, ao colocar que o currículo age como um mecanismo pelo qual o conhecimento

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se diversifica socialmente ao interagir com diferenças de idade, sexo, raça e origem

social e que as decisões tomadas em relação a ele compreendem a um problema de

repartição da cultura selecionada em relação as classes distintas. Isso significa dizer que

na escolarização não se aprende tudo e nem todos aprendem o mesmo, por isso tanto

Apple quanto Sacristán apontam a investigação do conteúdo por meio do currículo

como fundamental para compreender a reprodução cultural.

Dessa forma, essa pesquisa pretende ao analisar o currículo prescrito da

disciplina de História, aquele que é delimitado pela instância governamental,

compreender que projeto educativo é pretendido, que tipos de efeitos se pretende

despertar nos indivíduos aos quais esse projeto se dirige, procurando avaliar se há por

parte dos alunos uma percepção desse projeto e se esse seria possível pelos objetivos

propostos tanto pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) quanto pelo currículo

proposto pela Secretaria de Educação Estadual (SEE).

Portanto, confrontar os documentos em termos de adequação de objetivos e

organização permitir compreender o prescrito e sua realização na visão dos alunos, ou

seja, do que compreendem ser sua experiência educativa real na disciplina de História.

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Capítulo II – Procedimentos de Pesquisa

2.1 - Escolha dos alunos:

Os alunos participantes da pesquisa foram escolhidos conforme dois critérios: a

participação na avaliação do SARESP, realizada em 2009, quando cursavam o 9º ano do

Ensino Fundamental e seu rendimento em relação à disciplina, buscando aqueles que

apresentavam rendimentos opostos segundo as avaliações da própria unidade escolar5.

Dessa forma, foram investigados aqueles que têm representatividade diante do

objeto da investigação, ou seja, o sucesso escolar na disciplina de História entre os

alunos da periferia. Para isso, foram escolhidos por amostragem, alunos em faixas

contrárias de desempenho – os que apresentaram maior e menor desempenho – desde a

realização da avaliação do SARESP da disciplina de História em 2009 e que, portanto

estavam cursando o 2º ano do Ensino Médio em 2011.

Para o cumprimento desse critério a pesquisa contou com os apontamentos da

professora regente da disciplina, que acompanha tais alunos desde o 1º ano do Ensino

Médio e das médias obtidas pelas turmas no 1º bimestre de 2011.

Foram selecionados então, 13 alunos – 7 alunos com bom desempenho na

disciplina, dos quais 1 apenas não obteve autorização dos pais para participação na

pesquisa e outros 6 que se encontravam em uma faixa oposta, apresentando baixo

rendimento na disciplina de História – destes 6, apenas 3 foram autorizados à

participarem – totalizando 9 alunos que foram submetidos a um questionário e

entrevistados por meio de um roteiro estruturado.

Nessa etapa verificou-se que dos alunos selecionados apenas 3 haviam

participado avaliação do SARESP de 2009, pois a maior parte dos alunos analisados são

oriundos da rede municipal de educação e ingressaram na escola no primeiro ano do

Ensino Médio.

Dessa forma, apresento a análise de dados coletados entre esses nove sujeitos,

cujos dados foram obtidos a partir de um questionário, que avalia o capital cultural

desses indivíduos participantes. Apresento também a análise dos dados obtidos por

entrevista semi-estruturada realizada com cinco desses nove alunos participantes e suas

5 Consideramos as notas da própria unidade escolar pois as notas obtidas pelos alunos na avaliação do

SARESP não são divulgadas, o governo do estado divulga apenas o resultado geral.

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respectivas famílias, cujo rendimento na disciplina de História encontra-se em posições

contrárias, ou seja, apresentam rendimento acima e abaixo da média na disciplina.

2.2 – Escolha da escola:

A ideia de procurar diferentes desempenhos em relação ao ensino de História na

periferia baseou-se na pretensa homogeneidade que dados estatísticos como o Índice de

Desenvolvimento Municipal (IDH –M) fornecia.

Esse índice foi coletado através do Atlas do Trabalho e Desenvolvimento da

Cidade de São Paulo, que compila além do IDH-M, dados de demografia, educação,

renda, habitação, trabalho e o Índice de Vulnerabilidade Social (IPVS). Este índice

apresenta indicadores relativos à educação e chefia do domicílio segundo renda e faixa

etária.

De posse da classificação das subprefeituras e, portanto dos bairros que as

compõem, a prioridade de investigação foi dada a região da subprefeitura de Cidade

Ademar, cujas escolas pertencem a diretoria estadual da Zona Sul 1.

A escolha dessa subprefeitura se deve ao fato da região se encontrar entre os dez

menores IDH’s da cidade. Essa região ocupa a sexta posição entre os menores índices de

adolescentes entre 15 a 18 anos cursando o Ensino Médio. Além disso, nessa região

apenas 6,95% dos jovens de 18 a 22 anos tem acesso ao Ensino Superior e 46,62% dos

adolescentes entre 15 e 18 tem menos de oito anos de estudo6, evidenciando assim a

relação entre renda e escolarização.

Embora o IDH-M não possibilite afirmar com clareza a classe ou classes que se

encontram na periferia, seu cálculo, enquanto medida comparativa demonstra uma

pretensa homogeneidade.

Nesse sentido, ao escolher uma escola da periferia imaginava-se que seu alunado

fosse homogêneo e pertencente às classes populares, dada a precariedade dos dados

fornecidos pelo IDH-M.

Optou-se pela diretoria de ensino com o maior número de escola nessa

subprefeitura. A diretoria estadual da Zona Sul 1, possui 87 escolas das quais 36

6 Ver Atlas do Trabalho e Desenvolvimento da Cidade de São Paulo, disponível em

http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/trabalho/informacoes/atlas_municipal/index.php

?p=613: Consulta em: 14/03/ 2011.

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pertencem à subprefeitura escolhida, dentre elas foi selecionada a Escola Estadual

Professora Zenaide Lopes de Oliveira Godoy, que obteve o melhor desempenho entre

essas 36 escolas na avaliação de História realizada pelo SARESP em 2009.

A escola, construída há quase cinquenta anos atende segundo a diretora um

público heterogêneo, que pertence não apenas ao bairro de Cidade Ademar, mas aos

demais bairros da subprefeitura.

Segundo a diretora, a escola é mais antiga que o próprio bairro em que se localiza

e hoje atrai o público do entorno, além de receber muitos alunos oriundos da rede

municipal7. Localizada em um terreno plano, possui apenas um andar e não recebeu

nenhuma grande intervenção estrutural ao longo dos anos. Com 17 salas de aulas, atende

aproximadamente 1700 alunos em três períodos: cerca de 900 pertencentes ao Ensino

Fundamental II e pouco mais de 750 no Ensino Médio.

O histórico recente da escola assinala dificuldades em relação à segurança e a

violência. A atual diretora, no cargo há três anos, aponta como principais dificuldades a

falta de recursos financeiros, que obriga a escola a promover eventos para arrecadar

recursos muitas vezes destinados a atividades culturais ou adaptação dos espaços, como

a reforma do refeitório que era descoberto e estava instalado no meio do pátio ou as

reformas da sala de vídeo e dos laboratórios.

Essas modificações são apontadas pela diretora como um dos principais fatores

para o aumento da participação dos pais e da própria confiança da comunidade – a

diretora relembra que antes era necessário um trabalho de aproximação entre a unidade

escolar e a escola municipal para que os pais matriculassem seus filhos na escola.

Hoje, ela avalia que a participação dos pais chega a 80% e que o ponto forte da

escola se deve ao corpo docente, composto por uma maioria de efetivos, dos quais mais

de 40% estão na escola há mais de dez anos, muitos ex-alunos da escola e até mesmo

moradores do bairro.

2.3 – Entrevistas e questionários:

O uso da enquete sociológica, por meio de questionário e entrevista semi-

estruturada foi a forma encontrada para explorar de forma mais ampla o objeto dessa

pesquisa: a relação de alunos da periferia com a disciplina de História.

7 Há uma parceria entre rede estadual e municipal para que as escolas próximas recebam os alunos

conforme a necessidade de vagas. Assim, muitos dos alunos do Ensino Médio são oriundos da rede

municipal pois esta tem vagas limitadas para essa etapa.

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O questionário composto por perguntas fechadas, estabelece a priori algumas

categorizações, permitindo obter dados mais uniformes, já a entrevista semi-estruturada

é menos rígida. Propondo um roteiro previamente elaborado que garante ao mesmo

tempo que os participantes respondam as mesmas questões, portanto mantêm a temática,

e possibilita também outras perguntas e intervenções, para melhor exploração dessa

temática, além da adaptação aos entrevistados.

Essa escolha foi feita também como forma de confirmar ou refutar a hipótese que

orienta essa pesquisa – ou seja, alunos em situação oposta de rendimento tem também

um capital cultural diferenciado, portanto aqueles que obtêm sucesso operam a

reconversão do capital cultural que já possuem.

Nesse sentido, foi aplicado um questionário – entrevista com perguntas

estruturadas, que além de características socioeconômicas familiares, buscava conhecer

as práticas culturais, de lazer e de gostos, dos indivíduos e suas famílias.

Dessa forma, foi possível traçar as consonâncias e dissonâncias em termos de

capitais entre os alunos que apresentavam rendimentos acima e abaixo da média em

História.

Para mensurar o capital cultural foi utilizado como base o questionário proposto

por Pierre Bourdieu em ―A distinção‖ (2006), adaptado à realidade brasileira e as

especificidades dessa pesquisa, que contempla conforme descrito anteriormente não uma

amostragem, mas um grupo de alunos.

Essa opção justifica-se por essa pesquisa buscar, assim como nos estudos de

Bourdieu, ―a análise das variações das práticas e das opiniões segundo unidades sociais

suficientemente homogêneas‖ (2006, p. 461). Tal homogeneidade se refere nesse caso ao

critério obtido a partir dos dados do IDH-M. Entendeu-se a princípio que estudando na

mesma escola e residindo na mesma região periférica, os indivíduos participantes

pertencem à mesma classe.

Assim, o que se buscou foi averiguar se a heterogeneidade de desempenhos

também correspondia à diferenças de posições sociais, permitindo desvelar a pretensa

homogeneidade sugerida pelo IDH – M.

O questionário de Bourdieu (2006) parte da hipótese de unidade dos gostos

perante a classe a qual os indivíduos pertencem e a partir da avaliação desses dados

propõe uma série de proposições e relações, que serviram para a análise dos dados,

possibilitando as seguintes relações:

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a) Relação entre escolaridade e ocupação:

Essa proposição será analisada a partir das questões 10 a 15 que tratam da

escolaridade e ocupação profissional dos pais, buscando assim compreender a relação

entre a categoria profissional e a escolaridade. Além disso, serão avaliadas as questões 3

e 4 do bloco 2, sobre a escolarização pretendida pelos alunos. Buscando identificar se os

alunos almejam destinos de acordo ou não com a escolaridade parental.

b) Práticas culturais de lazer e escrita;

Os tipos de práticas de lazer serão verificados a partir das questões 16 e 17, que

indagam sobre a rotina dos estudantes no tempo livre e nas férias. Também serão

avaliadas as práticas de leitura em seu conteúdo, a partir das questões 23 e 24, sobre a

leitura não escolarizada e as questões 28 a 33, sobre o tipo e a frequência da leitura dos

familiares (pai, mãe e irmãos). Objetivando compreender a relação entre manejo da

linguagem e desempenho escolar.

Essa análise a partir dos questionários pretendeu investigar, pela frequência, a força

das disposições homogêneas entre os grupos. No entanto, essa pesquisa busca

compreender a efetiva ação dos indivíduos sobre cada domínio cultural pertinente às

diferenças de rendimento. Para compreender a qualidade das práticas e a circulação dos

capitais, investigou-se também os gostos em termos de consumo cultural, tanto de bem

legítimos, como o acesso a museus até bens culturais mais difundidos como o

conhecimento em música, cinema e programação de TV.

Além do questionário foi feita uma entrevista semi-estruturada com os alunos e

seus familiares, a fim de compreender se os perfis familiares objetam diferentes

rendimentos.

A entrevista foi realizada pela própria limitação do questionário em relação aos

resultados que possibilitava. O questionário buscava identificar a sistematicidade do

habitus ao demonstrar os produtos, julgamentos e práticas comuns, com o fim perceber

as dissonâncias e consonâncias entre os indivíduos investigados. Tal combinação entre

questionário e entrevista é proposta inclusive por Bourdieu (2006):

tratando-se de captar sistemas de gostos, a pesquisa por meio de

questionário nunca deixa de ser uma solução insatisfatória, imposta pela

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necessidade de obter um número importante de informações comparáveis

sobre uma população suficientemente numerosa para autorizar o

tratamento estatístico: em primeiro lugar, ela deixa escapar quase

completamente o que diz respeito à modalidade das prática; ou, em um

domínio que é aquele da arte, entendido no sentido de maneira de ser e de

fazer particular, como na ―arte de viver‖, a maneira de efetuar as práticas

e a maneira de falar sobre elas, desabusada ou desenvolta, série ou

apaixonada, fazem muitas vezes toda a diferença (pelo menos todas as

vezes em que estivermos diante de práticas comuns, como a televisão ou

o cinema). ( BOURDIEU, p 464).

A entrevista semi-estruturada também foi escolhida pela necessidade de

averiguar a relação desses indivíduos com o ensino de História, com o intuito de

compreender se existem práticas familiares que especificamente mobilizadas favorecem

a aprendizagem dos saberes históricos escolares, ou seja, o lugar da referida disciplina

para essas famílias e entre os estudantes, na tentativa de inferir se os objetivos do PCN

são percebidos ou não.

Para compreender as ações singulares das famílias entrevistadas foram utilizadas

como base as análises de Lahire (1997), que propõe a construção de perfis para

demonstrar o comportamento dos indivíduos em relação à seu grupos.

Cunhando a ideia de variações intra-indivíduos como presente em todos os

indivíduos, não apenas entre aqueles de classes diferentes, Lahire propõe um

questionamento dos mecanismos de transferências de disposições, que em suma

permitem questionar as trocas entre os diferentes campos, no sentido de demonstrar a

fronteira entre as práticas culturais legítimas e ilegítimas que permeiam os indivíduos e

seus grupos e por isso tais análises interessam a essa pesquisa na busca pelas

particularidades do capital cultural possuído pelas famílias.

O objetivo é compreender se entre os indivíduos analisados há perfis destoantes

e se esses perfis dependem da forma com que incorporam as realidades sociais, ou seja,

da pluralidade de disposições a que são sujeitos em diferentes campos de práticas.

Para tal, foram criados perfis familiares através das entrevistas de cinco

indivíduos em situação oposta na disciplina de História e seus familiares: quatro

indivíduos que apresentavam desempenho acima da média na disciplina e um cujo

desempenho era abaixo da média.

Dessa forma, a metodologia adotada teve por objetivo compreender as práticas

culturais de indivíduos teoricamente homogêneos, pois residem na mesma região e

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estudam na mesma escola pública, suas dissonâncias e os mecanismos que as impõem,

dividindo-se em duas etapas:

Na primeira, as práticas culturais e as características das famílias foram

ordenadas segundo dois grupos, organizados a partir do rendimento desses alunos.

Compõem o grupo 1, os alunos que apresentam rendimento acima da média e no grupo

2 estão os alunos abaixo da média. Dessa forma, buscou-se compreender se os alunos

com rendimentos opostos apresentavam semelhanças em relação às práticas culturais e

características familiares. Essa etapa foi realizada a partir do cruzamento dos dados

fornecidos pelo questionário aplicado a todos os alunos envolvidos (nove no total).

Na segunda etapa foram construídos perfis culturais, a partir das entrevistas

realizadas com cinco indivíduos e seus respectivos familiares, de forma a perceber as

preferências e dissonâncias culturais que permitiram classificar esses perfis quanto a

atitude em relação à escola e à cultura legítima.

Além dessa relação, a entrevista semi-estruturada foi utilizada para compreender

não apenas os perfis familiares, mas também a relação desses alunos com ensino de

História, no sentido de verificar se há uma atitude diferenciada em relação à disciplina.

Dessa forma, parte da entrevista semi-estruturada realizada com alunos liga-se a

análise do currículo. Para isso, foram construídas perguntas abertas sobre a

aprendizagem dos saberes históricos e seu possível uso na visão dos alunos, o objetivo

era verificar se o discurso dos alunos converge com os pretensos efeitos do PCN nesses

alunos.

Dessa forma os instrumentos utilizados – questionário e entrevista semi-

estruturada – tentaram mediar as opiniões e atitudes individuais em função dos

condicionamentos exercidos pelo capital cultural.

A análise metodológica desse trabalho articulou-se em torno da problemática do

ensino de História. Tal afirmativa se faz necessário, para justificar o tratamento que os

dados receberam. Como lembra Thiollent (pp. 15 a 17), o uso de questionários e

entrevistas individuais já foi alvo de inúmeras críticas, sob a acusação de que as

medições de opinião e as atitudes individuais captam apenas uma realidade parcial se

não forem problematizadas no sentido do que é uma opinião pública e em relação às

estruturas sociais. Nesse sentido, tomando o capital cultural como hipótese, a análise,

buscou explicar os dados coletados.

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2.4 – Análise de documentos:

A análise de documentos nesta pesquisa tem o objetivo de subsidiar as

afirmações acerca da relação que os alunos estabelecem com a disciplina de História.

Portanto, para compreender algumas das afirmações recolhidas optou-se por explorar

alguns domínios do currículo para indagar se há ou não um impacto real deste na

aprendizagem dos saberes históricos escolares.

Posto que a sistematização do conhecimento que compreende ao currículo, por si

só não garante a aprendizagem dos saberes históricos escolares, seria necessário

investigar não apenas o capital cultural familiar, mas também o papel dos docentes nessa

aprendizagem. No entanto, esse trabalho tem como foco a percepção dos alunos e,

portanto, optou-se por investigar apenas o currículo prescrito, avaliando apenas suas

possibilidades – essas presentes no que é estabelecido pelos documentos.

Essa perspectiva de possibilidade do currículo foi escolhida como forma de

compreender o produto dessa escolarização nesses alunos. Assim, a análise de

documentos permitiu mapear os principais pressupostos do currículo e avaliá-los

segundo a percepção dos indivíduos investigados.

Os critérios para análise do que é currículo prescrito da disciplina de História

basearam-se nas concepções cunhadas por Sacristán (1998). Dessa forma, além de

compreender as principais proposições, foi possível também avaliar a consonância entre

os documentos produzidos nos níveis federais e estaduais no sentido de averiguar o grau

de conformidade entre PCN, as orientações curriculares estaduais, dirigidas à disciplina

de História.

Sacristán (p.120 – 122) avalia que não considerar os conteúdos junto à análise

das atividades significa esfacelar o ensino como objeto de estudo. Para ele, a didática se

ocupou muito mais das atividades, ou seja, do ―como ensinar‖, passível de ser medido e

observado do que dos conteúdos, ou seja, ―o que ensinar‖, pois estes carregam interesses

externos. Para o autor essa ―divisão de funções‖ não permite compreender o objetivo

fundamental da investigação sobre a prática de ensino, a saber: como se cumpre a função

cultural das escolas.

Os documentos foram avaliados quanto a seus objetivos e organização (eixos-

temáticos e subtemas para os PCN e conceitos principais para a Proposta Curricular do

Estado de São Paulo) confrontando as visões desses documentos sobre o papel do ensino

de História, seus objetivos e a metodologia para implantá-los.

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O que se pretendeu foi relacionar o ensino de História aos interesses exteriores

que carrega. Não se trata com isso de diminuir o papel da socialização própria do

ambiente escolar e que efetivamente torna o currículo real. Optou-se apenas por um

recorte do problema curricular, que pudesse ser relacionado aos traços culturais dos

alunos, pois como lembra Sacristán (1998) citando Jackson: ―o currículo oculto tem uma

relação mais estreita com as dificuldades do aluno do que com seus sucessos, afirmava

esse autor, porque é aí que melhor se apreciam as exigências de adaptação aos

requerimentos que propõe aos estudantes (p.132)‖. E esse é o sentido pretendido por este

trabalho: compreender o que impele ou repele a aprendizagem dos saberes históricos

escolares em um determinado grupo.

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Capítulo III: Distribuição cultural e rendimento escolar

Nesse capítulo serão analisados os dados retirados dos questionários respondidos

pelos alunos a fim de compreender se há entre os indivíduos de faixas opostas de

rendimento na disciplina de História, práticas culturais também diferenciadas.

Para isso, buscou-se conhecer algumas das práticas culturais que diferenciam

esses indivíduos quanto ao capital cultural herdado.

Essa noção de capital cultural herdado como forma de explicar a diferença de

desempenhos, se baseia nas análises de Bourdieu (1997) sobre a contradição entre o

projetado pelas famílias no sentido de conservação social e as possibilidades para essa

realização.

Bourdieu (1997) avalia que a herança familiar é a matriz da trajetória social de

um indivíduo e as contradições dessa trajetória variam quanto a seu grau de

discordância entre as disposições do herdeiro e o destino que a herança carrega.

Nesse sentido, avaliar como alunos da periferia obtêm sucesso, significa

compreender as possibilidades de sua herança e a contradição que ela encerra em

relação aos projetos familiares. Os objetivos que tais famílias vislumbram para sua

conservação ou ascensão.

No entanto, essa ascensão depende da chancela do sistema escolar e muitas

vezes o que é herdado, apesar do projeto familiar não condiz com as disposições que a

escola exige.

A escola é, portanto a instituição que corrobora a dominação, impedindo a

realização dos projetos parentais, atuando de forma traumática ao reativar traumatismos

iniciais, ou seja, relativos à origem e ao projeto parental. Os julgamentos negativos

produzidos pela escola que afetam a imagem de si encontram um reforço, que é variável

de acordo com a herança e acabam por obrigar a criança ou o adolescente a se submeter

ou sair do jogo, por diferentes formas de negação, compensação ou regressão.

(BOURDIEU, 1997, p.589).

A realização do projeto de ascensão, que em suma é um projeto de sucessão,

visto que carrega as expectativas familiares, é fonte de outra contradição ligada ao

interior do indivíduo. Ainda segundo Boudieu (1997), essa contradição é exposta a

partir da ambivalência de sentimentos que o projeto familiar experimenta diante do

afastamento do filho de sua classe social de origem. Assim, o pai camponês deseja que

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o filho tenha sucesso, portanto o ultrapasse, mas ao mesmo tempo mantenha sua

identidade social de origem – nas palavras do autor significa viver entre a altivez, da

realização do projeto, portanto do sucesso e o fracasso de ser deixado para trás pela

origem.

Dessa forma, analisar como indivíduos oriundos da periferia, pretensamente

homogêneos, obtêm sucesso na disciplina de História significa observar esse tipo de

contradição, entre o possível e o realizado, que longe da explicação interior, tem para

Bourdieu (1997) uma explicação exterior.

Para o autor, essas tensões aparentemente individuais expõem as próprias

estruturas do mundo social, que criadas pelo habitus, estruturam elementos simbólicos

de poder e a própria estratificação social nos indivíduos.

Nesse sentido, é a escola quem vai reafirmar a identidade social inicial, a partir

da adequação ou não da herança e aqueles que obterão sucesso serão aqueles cujas

exigências explícitas e implícitas do sistema de ensino foram melhor compreendidas

pela família, no sentido de um ―contrato pedagógico‖8.

Assim, para analisar as diferenças de desempenho dos indivíduos oriundos da

periferia é necessário analisar essa herança, também no sentido da transmissão do

capital cultural.

É nesse sentido que se organiza esse capítulo ao avaliar o capital cultural

possuído pelas famílias e sua relação com o rendimento dos filhos.

3.1 - A heterogeneidade como característica: descrição familiar

Para efeito de maior compreensão, os alunos participantes dessa pesquisa foram

divididos em dois grupos identificados como 1 e 2 e que correspondem respectivamente

aos indivíduos que apresentam rendimento acima e abaixo da média na disciplina de

História.

Os dados apresentados nesse capítulo foram retirados dos questionários

aplicados aos nove indivíduos com rendimentos opostos na disciplina de História e tem

por objetivo verificar se há algum investimento específico que leve ao sucesso na

disciplina de História.

8 Esse contrato pedagógico compreende o julgamento e o conhecimento do sistema de ensino, que acaba

por objetivar expectativas de ascensão pela escola.

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Para tal cabe antes apresentar de forma concisa as particularidades familiares

desses alunos e o porquê se considerou inicialmente que eram homogêneos. Conforme

descrito no capítulo anterior sobre os procedimentos metodológicos, tais alunos foram

considerados homogêneos por frequentarem a mesma escola pública e residirem na

mesma região considerada periférica segundo os dados do IDH municipal9, portanto

entre outros critérios, temos a renda per capita também entre as menores. Isso fez com

que acreditássemos que tais alunos teriam configurações e práticas familiares muito

próximas, no entanto, algumas dissonâncias merecem ser melhor apresentadas.

Entre elas, cabe destacar a constituição familiar inter e intra grupos. Não há um

perfil familiar, no sentido de configuração, comum ao grupo.

Quadro 1: Descrição familiar: pessoas com quem reside

Grupo 1

Giovana Pais e duas irmãs Sérgio Mãe, 2 irmãs, 3 sobrinhos Iago Pais e duas irmãs Tais Mãe, padrasto e 2 irmãos Bruno Mãe, padrasto e irmão Daniela Pais e 2 irmãos

Grupo 2

Ricardo Avó e dois tios Márcia Pai, mãe, avó e 3 irmãos Vinicius Pais, irmão e casal de tios Fonte: questionários preenchidos pelos alunos10.

No caso dos indivíduos do grupo 1, três famílias são constituídas por pai e mãe e

limitadas a no máximo três filhos, outras duas também apresentam um universo

limitado de filhos, mas de um segundo casamento, sendo formadas por mãe, irmãos

desse novo casamento e padrasto e uma única família é monoparental, sendo a chefia

familiar da mãe, além do número limitado de filhos a três. Já entre os indivíduos que

apresentam um desempenho ruim a configuração familiar é ainda mais dispersa – em

cada família há uma particularidade – mesmo o no caso de Vinícius11

que mora com os

pais e um irmão, há a presença de um casal de tios; Ricardo mora com a avó e dois tios,

não tem contato com o pai e visita a mãe que mora em outro estado nas férias, e Márcia

9 A região em que se localiza a escola se encontra entre os dez menores IDH’s de São Paulo, ocupando a

sexta posição. 10

Todos os quadros foram construídos a partir das informações fornecidas pelos alunos no questionário. 11 Cabe lembrar que todos os nome utilizados nessa pesquisa são fictícios.

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que declara viver com os pais e três irmãos tem mais dois irmãos de um primeiro

casamento do pai.

Mesmo no grupo 1, que aparentemente apresenta uma organização familiar

maior no sentido da configuração dos papéis familiares, não é possível considerar esse

dado como generalizável dada as diferenças intragrupais. Assim, as características que

podem ser mobilizadas em função da escolaridade e que parecem mais relevantes estão

melhor descritas nas análises que se seguem.

Para Bourdieu (2008a) a ação do meio familiar é quase que exclusivamente

cultural, por isso justifica-se essa pesquisa para compreender o papel dessa transmissão

do capital cultural e sua relação com o desempenho. Nesse sentido, o autor coloca que a

antiguidade da escolaridade dos pais e até mesmo da família extensa acaba por separar

os indivíduos, já que a própria antiguidade proporciona maior investimento escolar e

permite outras categorias profissionais e isso se reflete na escolha dos filhos quanto às

escolhas futuras.

A escolha da residência também está ligada à categoria profissional e depende

da escolarização. A residência proporciona mais ou menos acesso a bens culturais,

como no caso do campo e da cidade. No entanto, como os alunos pesquisados, são

habitantes da mesma região e estudantes da mesma escola, o que parece ser

determinante é a heterogeneidade das famílias.

O que se procurou averiguar diante da heterogeneidade da estrutura das famílias

foi justamente as sutilezas diante das práticas culturais e dos níveis de escolaridade dos

membros do universo familiar próximo, ou seja, daqueles com quem esses alunos

residem.

3.2 – Análise dos dados: patrimônio possuído e as diferenças de rendimento

a) Escolaridade dos pais: a relação com o capital cultural institucionalizado

A perspectiva de futuro, inscrita no interesse e escolha da carreira universitária

pretendida permite compreender a diferença de capital cultural e principalmente a

diferenciação na trajetória.

Para Bourdieu (2008c), essas escolhas não são aleatórias, fazem parte do que ele

chama de ―causalidade do provável‖, a noção de futuro está estruturada pelo que já está

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apropriado, portanto pelo que é possuído pela classe a que pertence e cuja identificação

do indivíduo se dá pela existência de outros indivíduos em oposição.

Isso significa dizer que a escolha por determinadas carreiras é condicionada pela

herança, que é também um conjunto de direitos de precedência sobre o futuro, sobre as

posições passíveis de serem ocupadas e a própria maneira de ser (Bourdieu, 2008c, p.

96), que é dado pelo lugar ocupado no espaço social12

.

Dessa forma, segundo Bourdieu, no que chama de ―ordem de sucessões‖ optar

por carreiras mais prestigiadas e portanto, mais exigentes quanto as condições para

alcançá-las significa assumir um risco e isso só é feito quando se tem certeza de que não

é possível fracassar, quando se possui um capital (econômico , cultural ou social) que

permita ocupar determinado espaço social. Diante das possibilidades delimitadas pelo

espaço possível de ser ocupado é que se define o sentimento de fracasso ou sucesso e

que o indivíduo vislumbra a categoria profissional possível.

Quadro 2: Interesse pelo ensino superior, curso e motivação para escolha:

Grupo 1

Giovana Sim Química Habilidade em exatas Sérgio Sim Área de humanas Facilidade; interesse Iago Sim Filosofia Interesse Tais Sim Direito Familiares na área Bruno Sim Não sabe Não respondeu Daniela Sim Gastronomia Interesse.

Grupo 2

Ricardo Sim Faculdade Não respondeu Márcia Sim Pedagogia Interesse Vinicius Sim Gestão financeira Habilidade em exatas e interesse

Quadro 3: Escolaridade dos pais:

Pai Mãe

Grupo 1

Giovana Pós- Graduação Ensino Superior

Sérgio* Ensino Superior (tios) Ensino Médio

Iago Ensino Fundamental E. Fundamental (até a 7ª série)

Tais Ensino Médio (padrasto) Ensino Superior (em curso)

Bruno Ensino Médio (padrasto) Ensino Fundamental

Daniela Ensino Fundamental E. Fundamental (até a 5ª série)

Grupo 2

Ricardo* Ensino Médio (tios) Analfabeta (avó)

Márcia E. Fundamental (5ª série) E. Fundamental (5ª série)

Vinicius . Médio incompleto E. Médio Incompleto

*Esses alunos não têm contato com os pais.

12 O espaço social corresponde a uma abstração, pois compreende o lugar que ocupa a classe, sendo

portanto dependente do habitus e do volume do capital econômico.

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Embora todos os alunos tenham declarado interesse pelo ensino superior, as

carreiras escolhidas demonstram a incorporação dessa limitação em relação ao espaço

social. Entre os alunos do grupo 1 caracterizados pelo bom rendimento, apesar de um

dos indivíduos não ter escolhido ainda o curso pretendido (Bruno), e de outro ter

escolhido apenas a área pretendida (Sérgio) o que se nota é uma maior correspondência

entre a escolha de cursos mais privilegiados e o nível mais alto dos pais ou parentes

próximos quanto a escolaridade e que portanto demonstra um maior conhecimento e

familiaridade do sistema de ensino.

Taís optou por um curso que além de privilegiado é tradicional, o de Direito,

mas mesmo no caso de alunos como Giovana e Iago, que optaram por Química e

Filosofia o conhecimento da rentabilidade de cursos mais privilegiados fica evidente,

pois além da licenciatura as escolhas possibilitam o bacharelado ou a carreira acadêmica

tradicional, mesma lógica da opção de Daniela por gastronomia, um curso relativamente

novo, muito mais próximo das classes médias e elites, pelo público a qual se dirige do

que das classes populares.

Assim, o que se evidencia na maioria desses casos para esse conhecimento do

ensino superior é a relação entre a escolaridade de pais ou parentes próximos. No caso

de Giovana, pai e mãe cursaram o ensino superior, sendo que o pai cursou ainda duas

pós-graduações, Sérgio tem tios historiadores e a mãe concluiu o Ensino Médio. Assim

como os padrastos de Bruno e Taís que também concluíram o Ensino Médio. No caso

de Taís, a mãe e o irmão mais velho estão cursando o ensino superior, assim como os

irmãos de Daniela, que embora tenham interrompido essa etapa chegaram ao ensino

superior. Desse grupo apenas Iago não remete contato com parentes no ensino superior.

Nesse sentido, a perspectiva de Bourdieu de desconhecimento do sistema de

ensino, no sentido de sua rentabilidade quanto a reconversão de capital cultural,

portanto escolar em econômico, ou seja, em escolha profissional, fica evidente nas

escolhas dos indivíduos do grupo 2, composto por alunos que apresentam um

desempenho ruim na disciplina de História. Entre esses alunos, apenas Vinícius tem

contato com o ensino superior através do irmão, optando pelo mesmo curso que este.

No entanto, o curso pretendido demonstra uma outra característica desse

desconhecimento, a que Bourdieu (2008c) chama de ―apropriação por um bem

desvalorizado‖.

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O autor avalia que sem um capital econômico que permita rendimentos ou um

capital cultural que mobilizado permita escapar ao fracasso, as classes populares se

apropriam apenas do que já está difundido e, portanto desvalorizado.

Dessa forma, Vinicius optou por um curso cuja duração é menor, dois anos e

Márcia por um curso de Pedagogia, ambos desvalorizados na hierarquia profissional,

seja pela qualidade dos cursos ou pela própria carreira, como no caso da carreira de

professor. Essa difusão também fica evidente na escolha de Ricardo e que optou por

―faculdade‖, demonstrando assim seu desconhecimento em relação a organização do

Ensino Superior, não distinguindo curso, faculdade e universidade, apenas escolhendo

aquilo que já está posto como uma opção.

Nesse grupo, a escolarização dos pais ou parentes próximos é menor do que a

dos indivíduos acima da média na disciplina de História, demonstrando não apenas um

menor conhecimento do sistema de ensino como também um universo cultural limitado.

Apenas os tios de Ricardo completaram o Ensino Médio, no entanto, sua responsável

direta, a avó é analfabeta, já os pais de Vinícius não completaram essa etapa da

escolarização, sendo que os pais de Márcia tem a menor escolarização dos grupos, tendo

cursado o ensino fundamental até a 5ª série.

Nesse sentido, a opção pela carreira universitária, demonstra para além da

―causalidade do provável‖ o papel do capital cultural institucionalizado, posto que esse

capital institui uma diferenciação a quem o possui, possibilitando um reconhecimento

mais claro e uma rentabilidade mais efetiva. O que se pode depreender é que os

indivíduos do grupo 1 por sua antiguidade em relação a escolarização, no sentido de

maior escolarização familiar e portanto maior conhecimento sobre ela buscam títulos

mais raros, portanto mais rentáveis.

Como avalia Bourdieu (2008a), a escolarização dos pais ou parentes próximos é

determinante para que alunos com níveis econômicos aproximados tenham

desempenhos diferentes na escola, ou seja, a posse de um capital cultural

institucionalizado presume um maior conhecimento do sistema escolar, permitindo,

portanto o acesso a um capital social, visível pelo projeto vislumbrado para os filhos a

partir desse contato e que redunda em um maior investimento na escola.

b) Práticas culturais individuais e familiares:

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Se escolaridade dos familiares tem papel importante no conhecimento do sistema de

ensino e distingue decisivamente os membros das classes e frações de classe quanto às

escolhas futuras, pouco é possível inferir a partir dessa relação sobre o conteúdo das

práticas culturais familiares que a compõem.

Assim, parece adequado verificar se entre as práticas culturais dos indivíduos

investigados encontram-se aquelas que são rentáveis ao sistema escolar.

Nesse sentido, além do conhecimento do mundo universitário, Bourdieu avalia que

o sucesso dos estudantes está ligado a facilidade verbal e a cultura livre adquirida nas

atividades extra-escolares (2008a, p. 44).

Quadro 4: Rotina durante o tempo livre

Grupo 1

Giovana esportes, leitura (N.E.), filmes em casa e conversa com familiares.

Sérgio esportes, leitura (N.E.), filmes em casa e no cinema. Iago Pratica esportes, tv, internet e cinema.

Tais Leitura (N.E), internet, cinema, filmes em casa, conversa com amigos.

Bruno Pratica esportes, leitura (N.E), internet, conversa com amigos. Daniela Ouvir música, leitura (N.E), internet, conversa com familiares.

Grupo 2

Ricardo Ouvir musica, pratica de esportes, jogos eletrônicos e internet.

Márcia Ouvir música, leitura (N.E), peças /espetáculos/ shows13 e conversa com familiares.

Vinicius Ouvir música, jogos eletrônicos, filmes em casa, conversa com familiares.

Os dados obtidos pelo questionário nos dois grupos demonstraram que o uso do

tempo livre apresenta algumas diferenças importantes em relação a cultura livre, ou

seja, exterior à escola.

Nessa questão, onde poderiam escolher mais de uma alternativa, um dado chamou a

atenção e se constitui como indicativo da diferença entre esses grupos: dos seis

indivíduos do grupo 1 - aqueles que apresentam melhor desempenho na disciplina de

História - cinco apontaram entre as principais atividades da rotina extra-escolar a leitura

de livros não escolares, enquanto que apenas um indivíduo do grupo 2, Márcia, apontou

a leitura como atividade rotineira. Nesse grupo, o hábito comum a seus participantes é

13 Essa informação foi refutada pela irmã de Márcia, Camila durante a entrevista. Ela coloca que Márcia

tem pouco tempo livre e assim como a família não frequentam esse tipo de evento.

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ouvir música, enquanto que entre os indivíduos do grupo 1, essa atividade é destacada

por apenas uma investigada, Daniela.

A diferença entre os grupos fica ainda mais clara quando perguntados se fazem

leituras além das obrigatórias, não sugeridas pela escola e na análise da leitura entre os

familiares.

A exceção de Daniela, todos os alunos que apresentam bom desempenho no ensino

de História leem livros além dos obrigatórios, enquanto que, entre os alunos com

desempenho ruim na disciplina, apenas Márcia aponta a leitura não obrigatória como

prática. Outra diferença entre esses grupos em relação à leitura está nos motivos para

escolha dessa leitura.

Os dois grupos foram questionados sobre o último livro que leram e por quê. Entre

os alunos com bom desempenho, apenas Daniela e Iago apontaram como motivação

para leitura a obrigatoriedade escolar, no entanto, em outra questão em que era

perguntado se preferiam algum autor em especial, Iago, junto a Sérgio e Taís, foram os

únicos que apontaram um autor de preferência, o que demonstra certo grau de

apropriação.

Já entre os alunos que apresentaram desempenho insuficiente, Ricardo, alegou não

ler nem mesmo quando é exigência da escola, enquanto Márcia coloca como motivação

a indicação de um amigo e Vinícius alega a obrigatoriedade como motivação.

Quadro 5: Último livro lido e por quê?

Grupo 1

Giovana Pelas portas do coração - identificação com a história

Sérgio Crônicas de Nárnia - interesse por romances épicos e mitológicos

Iago Dom Casmurro - leitura obrigatória

Tais Poliana - interesse pela história

Bruno O hobbitt – interesse

Daniela Morte e Vida Severina - leitura obrigatória

Grupo 2

Ricardo Não respondeu - não lê

Márcia Um amor pra recordar – indicação

Vinicius Navio negreiro - leitura obrigatória

Para Bourdieu (2008a) o manejo da linguagem literária está ligado ao manejo da

língua escolar, que segundo autor não é natural para os alunos de classes populares. A

língua é, portanto o obstáculo mais notório e sua influência está presente durante todo

percurso escolar – sua manipulação será sempre considerada em qualquer carreira

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universitária ou até mesmo científica – além de fornecer os julgamentos primeiros feitos

pela escola.

Enquanto herança cultural, a ação da língua escolar é tão eficiente quanto

dissimulada pois transmitida de maneira ―osmótica‖ pelos membros das classes médias e

elite, sem que haja ação metódica para isso, posto que essas classes têm maior

propriedade da cultura escolarizada, reforça a convicção de que seu domínio é inato,

portanto um dom, algo que independe da aprendizagem.

(...) a língua não é um simples instrumento, mais ou menos eficaz, mais

ou menos adequado do pensamento, mais fornece- além de um

vocabulário mais ou menos rico – uma sintaxe, isto é um sistema de

categorias mais ou menos complexas, de maneira que a aptidão para o

deciframento e a manipulação das estruturas complexas , quer lógicas,

quer estéticas, parece função direta da complexidade da estrutura da

língua inicialmente falada no meio familiar, que lega sempre uma parte

de suas características à língua adquirida na escola.(BOURDIEU, 2008a,

p.46)

Nesse sentido, o que se observa é uma correspondência entre o manejo da língua,

observável pelos hábitos de leitura familiares - mesmo insuficientes se comparados às

classes médias e elites - e o rendimento dos alunos investigados.

Essa ―cultura livre‖ da qual os hábitos de leitura fazem parte, é na verdade

produto da herança, portanto do que é inculcado pelo capital cultural familiar. Observou-

se que entre os indivíduos investigados que obtêm bom desempenho na disciplina de

História, há maior inclinação em alguns membros dessas famílias à leitura.

Essa inclinação foi observada a partir das questões que perguntavam aos alunos

se era comum ver parentes lendo em casa e que tipos de leitura faziam. Nos dois grupos,

a relação do pai com a leitura é muito próxima – a exceção de Bruno14

e Daniela, cujos

pais são vistos lendo documentos do trabalho, os demais não são vistos lendo pelos

filhos. No entanto, entre as mães a situação é oposta – entre os alunos com bom

desempenho apenas a mãe de Iago não é vista lendo, mas perguntada sobre este assunto

durante a entrevista, alega ler, porém pouco, dada a falta de tempo, enquanto que entre

os alunos com desempenho ruim, apenas a mãe de Vinícius lê em casa.

Dessa forma, esse gosto pela leitura parece em grande parte fruto do próprio

contato familiar. Entendido como tributário das condições primeiras de existência, ou

14 No caso Bruno e Taís, as questões relacionados ao pai foram respondidas em relação aos hábitos do

padrasto com quem vive, pois não tem contato com o pai.

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seja, das próprias características materiais das famílias e da classe a qual pertencem, o

que se nota é que o gosto pela leitura se alinha nesses indivíduos, ao que Bourdieu

(2006) chama de gostos de luxo.

Para ele, a renda determina o consumo15

, assim as classes populares atendem

apenas aos ―gostos de necessidades‖, ou seja, o que é condicionado e permitido pelas

suas condições materiais. Não há, portanto liberdade de escolha como se presume em

relação aos gostos, e a diferenciação admissível pela inclinação aos gostos de luxo só é

possível pela posse de um determinado capital, nesse caso a leitura familiar acaba por

encerrar uma predisposição que é entendida na prática cotidiana como um gosto de luxo,

uma distinção no sentido de uma aptidão maior.

c) Estilos de vida: estilos de classe.

Questionar o gosto é para além de comprovar a evidência de que ele é produto

das condições sociais, investigar porque a relação com o capital escolar permanece forte

em campos não abrangidos pela educação formal. Para Bourdieu (2006), os grupos

mantêm relações diferentes com a cultura tributárias das condições em que seu capital

cultural foi adquirido e dos mercados em que este obterá mais lucro. Em outras

palavras, de acordo com as posições em determinado campo, determinam-se os

interesses relativos a cada posição bem como a forma e o conteúdo pelos quais

exprimem seus interesses.

Ao investigar a competência cultural e a disposição culta verifica-se que os

gostos em sua natureza e forma de consumo variam conforme as posições sociais dos

indivíduos e os terrenos aos quais elas se aplicam. Nesse sentido, Bourdieu verifica as

relações que unem as opiniões culturais (práticas) ao capital escolar (diploma) e à

origem social (categoria profissional).

Quanto maior for o reconhecimento das competências avaliadas pelo

sistema escolar, e quanto mais ―escolares‖ forem as técnicas utilizadas

para avaliá-las, tanto mais forte será a relação entre o desempenho e o

diploma que, ao servir de indicador mais ou menos adequado ao

número de anos de inculcação escolar, garante o capital cultural, quase

completamente, conforme ele é herdado da família ou adquiridos na

escola; por conseguinte trata-se de um indicador desigualmente

adequado deste capital (BOURDIEU, 2006, p. 19)

15

Tal proposição é melhor explicitada a propósito das diferenças entre o consumo alimentar das classes populares em ―A distinção‖, p. 167 – 170)

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Nesse sentido, o que se observou a partir dos gostos foi uma variação da

disposição culta de acordo com o capital escolar familiar e a categoria profissional dos

pais e que corresponde, portanto à diferentes posições de classe.

Em seus estudos, Bourdieu (2006) avalia que há uma hierarquia de bens

culturais conforme seu grau de legitimidade, sendo a arte, especialmente em campos

como a música e a pintura o mais legítimo deles. Para ele, esses campos são o que

melhor determinam a classe posto que além de distintivos permitem produzir distinção e

divisão de acordo com a subdivisão em gêneros, épocas, maneiras de executar, autores,

etc.

Essa determinação da classe via bens culturais só é possível porque Bourdieu

(2006) utiliza para além dos dados estatísticos uma análise relacional, e é a própria

relação que constitui seu objeto de estudo. Nesse sentido, averiguar a relação entre a

variável independente, aquelas que exprimem efeitos muito diferentes como a profissão,

sexo, idade e profissão do pai, moradia e a variável dependente, que enuncia as

disposições - que por sua vez são correlatas as variações de classe produzidas pelas

variáveis independentes - significa explicitar os sentidos múltiplos e contraditórias que,

em determinado momento essas obras de arte assumem para o conjunto de indivíduos e

para as categorias que os distinguem e opõem por seu intermédio (BOURDIEU, 2006)

O cálculo puramente estatístico das variações de intensidade da

relação entre tal indicador e esta ou aquela prática não autoriza

dispensar o cálculo propriamente sociológico dos efeitos que se

exprimem na relação estatística e cuja descoberta pode ocorrer com a

contribuição da análise estatística quando ela está orientada para a

busca de sua própria inteligibilidade. Mediante somente um trabalho

que, tomando a própria relação como objeto, questiona sua

significação sociológica e não a significatividade estatística, é que se

pode substituir a relação entre uma variável supostamente constante e

de diferentes práticas por uma série de efeitos diferentes, relações

constantes sociologicamente inteligíveis que se manifestam e se

dissimulam, a um só tempo, nas relações estatísticas entre o mesmo

indicador e diferentes práticas. (BOURDIEU, 2006,p. 26)

Bourdieu busca ultrapassar a relação fenomenal simples, que vincula certas

variáveis a noções comuns do mundo social para compreender o que chama de ―nexo

exato de conceitos bem definidos‖ no sentido de compreender os efeitos registrados.

Dessa forma, o nexo entre os títulos de nobreza (entendidos como propriedade de bens

culturais legítimos e distintos da cultura popular) atribuídos pelo sistema de ensino e

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pelas práticas que eles implicam, serviram como referência para análise feita do capital

cultural dos investigados e seu desempenho escolar.

O sistema de ensino via capital escolar – este produto dos efeitos acumulados da

transmissão cultural garantida tanto pela família quanto da transmissão garantida pela

escola – contribui para constituir a disposição geral e transponível em relação à cultura

legitima ―que adquirida à propósito dos saberes e das práticas escolarmente

reconhecidos, tende a aplicar-se para além dos limites do ―escolar‖, assumindo a forma

de um propensão ―desinteressada‖ para acumular experiências e conhecimentos que

nem sempre são rentáveis diretamente ao mercado escolar‖. (BOURDIEU, 2006, p. 27).

Essa propensão desinteressada ou tendência para a disposição culta é uma das

características da filiação a burguesia e a instituição escolar com a imposição de títulos

acaba por atribuir ao indivíduo um título (diploma) correlato à classe de origem. Assim,

aqueles cujo capital cultural de origem não tem certificação escolar, como membros das

camadas populares sofrem uma espécie de estigmatização por serem identificados

apenas pelo o que fazem, ao passo que aos membros da burguesia, cuja cultura geral é

mais próxima da escolar, são valorizados, ―enobrecidos‖ nas palavras de Bourdieu pois

à eles só precisam ser o que já são, ou seja, ―filhos de suas obras culturais‖.

Definidos pelos títulos que os predispõem e os legitimam a ser o que

são, que transformam o que fazem na manifestação de uma essência

anterior e superior a suas manifestações, segundo sonho platônico da

divisão das funções baseada em uma hierarquia dos seres, eles estão

separados , por uma diferença de natureza, dos simples plebeus da

cultura que por sua vez, estão votados ao estatuto duplamente

desvalorizado, de autodidata e substituto. (BOURDIEU, 2006, p. 28).

Essa visão essencialista é fechada em si, ou seja, impõe classificações próprias -

aquelas que ninguém poderia exigir senão os pertencentes a ela. No entanto, há de se

notar o papel das classificações escolares para valorizar ainda mais os títulos que

carregam.

Para Bourdieu (2006), quanto mais se eleva na hierarquia escolar mais se exige

uma cultura geral, que, no entanto só tem valor se certificada por um diploma.

Aparentemente contraditória, a cultura livre ilegítima, fruto de conhecimentos

autodidatas ou da experiência, portanto fora a instituição escolar, só tem valor prático,

sem nenhum valor social. Por outro lado, junto as competências autorizadas presumidas

pela posse de um determinado diploma está implícita a posse de uma cultura geral, o

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que acarreta um valor simbólico, posto que representam um estatuto a qual na posse do

diploma, passa-se a possuir intrinsicamente.

Essa posse de um estatuto se manifesta durante toda a trajetória escolar,

operacionalizada pelo próprio sistema de ensino ao orientar os alunos para posições

mais prestigiosas ou desvalorizadas de acordo com a imagem da posição considerada e

as possibilidades objetivas para realizá-la, a que Bourdieu, chama de alocação.

Este efeito de alocação – e o efeito de atribuição estatutária implicado

nele – contribui sem dúvida, em grande parte, para fazer com que a

instituição escolar consiga impor práticas culturais que ela não

inculca, nem sequer exige expressamente, mas que estão incluídos nos

atributos estatutariamente associados às posições que ela concede, aos

diplomas que confere e às posições sociais, cujo acesso é obtido por

diplomas (BOURDIEU, 2006,p.29).

Dessa forma, a tendência para reconhecer um conjunto de obras legítimas do

ponto de vista escolar se estende aos domínios menos legítimos, mas que por sua

singularidade de traços estilísticos, desempenham a mesma função distintiva das obras

legitimas.

Portanto, essa tendência para reconhecer a legitimidade de uma obra, que é em si

uma competência, é produto de uma aprendizagem, uma disposição adquirida tanto pela

família quanto pela escola da cultura legítima. Assim, essa competência compreende a

um conjunto de esquemas de percepção e apreciação de aplicação geral, e que por isso

permite tentar outras experiências culturais, percebendo e classificando conforme as

referências e a classificação legítimas já possuídas.

É através do diploma que são impostas certas condições de existência, tanto para

a aquisição do diploma quanto para a disposição estética16

. A disposição estética

constitui a maior fronteira da cultura legítima e associa-se ao diploma, tanto pela origem

burguesa quanto pelo modo de vida quase burguês resultante do prolongamento dos

estudos, ou dos dois – forma mais comum, onde as duas propriedades estão reunidas.

O diploma é, portanto, a forma pela qual se manifesta determinada origem

social. Tidas como variáveis independentes, instrução e profissão determinam a posição

ocupada no espaço social e mais do que isso são correspondentes, posto que não só a

profissão depende do diploma, como também o capital cultural assegurado pelo diploma

16

“A disposição estética como aptidão para perceber e decifrar características propriamente estilísticasas é, portanto, inseparável da competência propriamente artística: adquirido por uma aprendizagem explicita

ou pela simples frequência das obras‖. BOURDIEU, 2006, p.51.

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depende também da profissão ocupada e esta objetiva a manutenção ou crescimento do

capital adquirido na família e/ou na escola.

Ao analisar práticas de lazer familiar, como viagens e frequência a restaurantes,

combinadas as rotinas e aos gostos culturais tanto familiares quanto individuais, como

música e programação da televisão, foi possível compreender a diferença de estilos de

vida dos dois grupos e refutar assim, uma das premissas desse trabalho, de que por

cursarem a mesma escola pública de periferia e residirem próximos, esses alunos seriam

homogêneos quanto a classe ocupada – ao contrário o que se verificou foi uma

correspondência entre disposições culturais e posições sociais diferentes.

Essa correspondência foi evidenciada pela relação entre capital escolar e

profissão dos pais e os hábitos culturais familiares em relação aqueles tidos como

legítimos. Assim, a frequência à museus e os lugares que costumam frequentar

evidenciaram a distinção das famílias quanto à posição social.

Quadro 6: Já visitou museus? Em companhia de quem?

Grupo 1

Giovana Sim. Com familiares.

Sérgio Sim. Com a escola e familiares.

Iago Sim. Com familiares.

Tais Sim. Com escola e familiares.

Bruno Não.

Daniela Não.

Grupo 2

Ricardo Sim. Com a escola.

Márcia Sim. Com a escola.

Vinicius Não.

Quadro 7: Lugares que frequenta

Grupo 1

Giovana Eventos em família e restaurantes

Sérgio Eventos em família, restaurantes e jogos esportivos.

Iago Espetáculos de teatro e eventos em família.

Tais Festividades escolares, shows, eventos família, restaurantes.

Bruno Bares e lanchonetes, shows, festas, eventos em família

Daniela Eventos em família

Grupo 2

Ricardo Festas e baladas

Márcia Restaurantes

Vinicius Festas e baladas

Entre os alunos com melhor desempenho há maior diversidade de atividades

realizadas, chamando atenção a participação familiar. Nesse grupo apenas Bruno e

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Daniela não frequentaram museus e no grupo abaixo da média apenas Vinicius. A

escola é predominante nos dois grupos, no entanto, nota-se entre os alunos acima da

média que além da escola, foram feitas visitas com a família.

Bourdieu (2006, p. 33) coloca que o museu de arte é a disposição estética

constituída em instituição e, portanto mais comum à escola, posto que a justaposição de

obras cujas funções originais são diferentes ou até mesmo incompatíveis exige uma

determinada atenção, em que se observe a forma e não a função, a técnica ao invés da

temática, a estilística, se opõem a estética familiar, de cunho realista, tal qual o sistema

de ensino que a reproduz de forma escolarizada. O museu representa a autonomização

da atividade artística e por seu afastamento da estética cotidiana, de caráter funcional,

encerra um alto grau de legitimidade que serve as classes mais favorecidas - mais

propensas pelo capital herdado a esse tipo de bem cultural – como um fator de distinção.

Os pais dos alunos com melhor rendimento na disciplina de História são também

aqueles que obtiveram um grau de certificação maior (diploma) e sendo o museu a

forma de arte mais legítima do ponto de vista escolar, o que se observa é que a

valorização do museu é correlata aos anos de estudo no sentido de inculcação dessa

aprendizagem. Ao contrário, a não valorização do museu por parte dos alunos com

desempenho abaixo da média coincide com a escolarização precária dos pais.

Bourdieu (2006) avalia que a arte para as classes populares tem um valor

funcional - deve responder à realidade da coisa representada ou às funções que a

representação pode desempenhar. Esse interesse primordialmente informativo que

resume a relação das classes populares com as obras de arte não autonomiza a imagem

do objeto em relação ao objeto da imagem. Assim, para eles, o valor de determinada

obra está ligada a sua legibilidade de intenção ou função.

Isso acontece pela falta de uma competência estética constituída, fazendo com

que os objetos artísticos sejam julgados então pelos esquemas de percepção comum.

Daí resulta uma ―redução‖ sistemática das coisas da arte às coisas da

vida, a exclusão da forma em benefício do conteúdo ―humano‖,

barbarismo por excelência do ponto de vista da estética pura.

(BOURDIEU, 2006, p. 45)

Quanto aos lugares que frequentam, chama atenção os eventos em família

citados por todos os alunos com bom desempenho, além da frequência à restaurantes ou

lanchonetes, como Bruno - um hábito que exige um certo investimento em capital

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econômico. Nesse grupo, apenas Daniela não faz outras atividades além dos eventos

familiares e Iago apesar de não frequentar restaurantes, afirma frequentar espetáculos de

teatro, assim como Tais e Bruno que citam os shows como uma prática.

Ao contrário disso, no grupo abaixo da média, Márcia afirma frequentar

restaurantes, mas pela entrevista da irmã isso se deve mais ao fato de trabalhar fora e

por isso precisar se alimentar, do que um padrão familiar. Da mesma forma, Vinicius e

Ricardo, frequentam festas e baladas e não fazem nenhuma menção à eventos culturais.

O que é possível depreender desses dados é a forte presença familiar nos eventos

ligados ao lazer dos filhos e um padrão de lazer ligados à atividades culturais.

Essa consonância entre lazer e atividades culturais, se confirma também pelas

práticas individuais relativas a escolha de filmes, programação da TV, o gosto musical,

além do tipo de uso feito da internet pelos alunos investigados. A análise de tais

preferências permite compreender a transposição da competência cultural à domínios

não escolarizados e o grau de legitimidade cultural desses domínios.

Quadro 8: Relação com o cinema:

Costuma frequentar cinema?

Número de vezes por semestre.

Critérios para escolha do filme.

Grupo 1

Giovana Sim 10 vezes Comentários/ crítica da imprensa especializada.

Sérgio Sim 4 vezes Comentários/ crítica da imprensa especializada.

Iago Sim 4 vezes Comentários/ crítica da imprensa especializada.

Tais Sim 4 vezes Indicação de amigos, atores do filme.

Bruno Sim 3 vezes Comentários/ crítica da imprensa especializada, Indicação de amigos, propagandas na TV e Internet.

Daniela Não 4 vezes Propagandas na TV e na internet.

Grupo 2

Ricardo Sim 4 vezes Indicação de amigos, atores do filme

Márcia Sim 5 vezes Indicação de amigos.

Vinicius Sim Propaganda na TV.

Comparada às artes plásticas, o cinema pode ser considerado menos legítimo, no

entanto, a relação com o cinema e a televisão permite avaliar as diferenças de

apropriação e de esquemas de percepção adotados. À exceção de Giovana, a frequência

ao cinema entre os alunos é muito próxima, em média 4 a 5 vezes por semestre, o

mesmo se verifica em relação à posse de tv por assinatura, apenas Márcia relata não ter

acesso a esse tipo de programação.

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No entanto, a proximidade entre esses alunos é apenas aparente. Ao serem

observados os conteúdos dessas práticas, fica evidente a transposição de um esquema de

percepção. Entre os alunos com melhor desempenho, a escolha dos filmes se dá

principalmente por comentários e críticas especializadas. Enquanto que entre os alunos

com desempenho abaixo da média o motivo mais comum é a indicação de amigos, além

dos nomes de atores e propagandas.

A crítica é produto de uma classificação e de um discurso mais próximo da

disposição legítima, enquanto que o conhecimento do nome dos atores e/ou a

propaganda é mais comum e ligado ao cotidiano, disponível, por exemplo, via

programas de variedades e celebridades. Por outro lado, a crítica pressupõe veículos

especializados e um trabalho de apropriação ligado à acumulação de experiências

culturais para comparação e classificação.

A mesma relação com o conteúdo é verificável em relação às preferências em

termos de televisão.

Quadro 9: Tem acesso a TV por assinatura? Quais programas costuma assistir?

Grupo 1

Giovana Sim. Programas científicos e históricos, saúde e culinária.

Sérgio Sim. Telejornais, filmes, seriados, programas de variedades.

Iago Sim. Programas esportivos e debates.

Tais Sim. Seriados.

Bruno Sim. Filmes, programas esportivos, telejornais.

Daniela Sim. Novelas, filmes e telejornais.

Grupo 2

Ricardo Sim. Programas humorísticos, filmes e esportes.

Márcia Não. Novelas e desenhos.

Vinicius Sim. Programas científicos e humorísticos.

Entre os alunos com desempenho acima da média, à exceção de Tais e Giovana,

chama a atenção a preferência por telejornais e debates. No entanto, entre os alunos com

desempenho inferior a prática comum são os programas humorísticos - entre Vinicius e

Ricardo - enquanto que Márcia que tem acesso apenas a TV aberta vê novelas e

desenhos. O que se nota nesse grupo mesmo quanto a diferença de acesso a TV por

assinatura é uma opção por programas de grande audiência, enquanto que entre os

alunos do grupo oposto, mesmo no caso Giovana, que opta por programas científicos e

ligados a saúde, há uma distinção, relativa a escolha por programas úteis à seu estilo de

vida.

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Nesse sentido, da mesma forma que o esteta se apropria do gosto popular, os

alunos com melhor desempenho compartilham um bem comum aos alunos de

desempenho oposto: o acesso a televisão por assinatura, no entanto o uso feita desse

mesmo bem difere tal qual o gosto popular é apropriado pelo esteta. Ele introduz assim

como esses alunos, um distanciamento, uma diferença ―em relação à percepção de

―primeiro grau‖, deslocando o interesse do ―conteúdo‖ - personagens, peripécias, etc. -

, em direção à forma, aos efeitos propriamente artísticos que se apreciam apenas

relacionalmente pela comparação com outras obras, completamente exclusiva da

imersão na singularidade da obra imediatamente dada‖. (BOURDIEU, 2006,p.37).

Essa mesma relação pode ser estendida ao domínio musical dos alunos.

Bourdieu propõe em ―A distinção‖ (2006) uma série de testes que objetivam classificar

os gostos segundo a legitimidade do bem e a escolaridade, ou seja, a partir da matéria

(bem cultural) designar o modo de aquisição e grupo a qual se destina.

Para construir essa classificação em música os testes incluíam a preferência por

artistas e gêneros específicos, cujas opções apresentavam diferenças quanto ao conteúdo

que em suma, significavam diferentes níveis de apropriação. Em um dos inquéritos, os

entrevistados poderiam optar por três obras musicais clássicas que, no entanto

distinguiam-se por sua raridade e apropriação ligada à escolaridade e que cujas escolhas

refletiam a classe de origem.

Nessa pesquisa parte das questões foram abertas por não se ter um indicador

fundamentado sobre essas preferências culturais. Dessa forma, ao invés de oferecer

opções analisamos as escolhas livres acreditando poder assim contar com maior

veracidade sobre essas preferências.

A análise que se segue sobre as preferências musicais dos investigados foi

relacionada às preferências musicais familiares, de forma a tentar um nexo entre as

escolhas e um trabalho de apropriação familiar.

Quadro 10: Estilos musicais ouvidos com maior frequência.

Grupo 1

Giovana Pop rock nacional e internacional e MPB.

Sérgio Rock, Heavy Metal.

Iago Sertanejo, pagode e eletrônico.

Tais Rock, sertanejo, pagode.

Bruno Rock, pop rock e rap.

Daniela Sertanejo, black e mpb.

Grupo 2

Ricardo Rock e sertanejo.

Márcia Pagode e sertanejo.

Vinicius Eletrônico, funk e black.

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Quadro 11: Estilos musicais comuns à outros parentes.

Grupo 1

Giovana Músicas dos anos 90 e MPB.

Sérgio Rock.

Iago Sertanejo e samba.

Tais Rock.

Bruno Nenhum.

Daniela Sertanejo e mpb.

Grupo 2

Ricardo Sertanejo.

Márcia Nenhum.

Vinicius Eletrônico e funk

O que se notou foi uma maior pertinência social dos estilos musicais ouvidos

pelo grupo dos alunos com melhor desempenho em relação às escolhas familiares. Entre

esses alunos chama a atenção a escolha pelo rock como gênero preferido, que mesmo se

tratando de um gênero que tem uma vertente nacional, a sua origem internacional,

denota uma maior raridade posto que suscita busca por informações, época e traços

estilísticos. Além disso, o rock não é associado às classes populares, inclusive por sua

inteligibilidade de origem, ligada a origem estrangeira (idioma) quanto nos recursos que

exige, instrumentos mais caros e específicos, que não permitem muita improvisação.

Já entre os indivíduos com desempenho abaixo da média na disciplina de

História, apesar da escolha de Ricardo pelo rock, o que se nota são estilos menos

privilegiados quanto a pertinência social: principalmente a escolha por funk e pagode,

oriundos das classes populares

Nesse sentido, se não foi possível averiguar a legitimidade dos estilos com

clareza, a opção por estilos cuja origem não é popular é o indicador mais pertinente

desse dado. Assim, mesmo optando por samba, Daniela faz uma escolha de maior

legitimidade que o pagode, posto que o samba serve de influência para gêneros tidos

como mais legítimos como a MPB e seu conhecimento, ligado a sua historicidade

denota um maior investimento.

Já a relação com os ambientes virtuais permite inferir além da diferença de

práticas, a diferença de capital econômico.

Quadro 12: Lugar em que utiliza a internet. Ambientes virtuais frequentes.

Grupo 1

Giovana Em casa. E-mail, chats, redes sociais, sites institucionais e busca e pesquisa.

Sérgio Em casa. E-mail, chats, sites institucionais e busca e pesquisa

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Iago Em casa. E-mail, chats, redes sociais. Tais Em casa. E-mail, redes sociais e sites de busca e pesquisa. Bruno Em casa. E-mail, redes sociais e sites de busca e pesquisa. Daniela Em casa. Redes sociais e sites de busca e pesquisa.

Grupo 2 Ricardo Em casa. Redes sociais e chats. Márcia Lan Houses. Sites de busca e pesquisa. Vinicius Casa de Amigos. Sites de busca e pesquisa.

Os indivíduos pertencentes ao grupo com melhor desempenho acessam a internet

em sua própria casa, enquanto que entre os indivíduos com desempenho oposto apenas

Ricardo possui acesso à internet em sua casa. Assim, o acesso define as formas de

utilização, portanto o conteúdo. Além de sites de busca e pesquisa e redes sociais,

chama a atenção o uso do email pelos indivíduos do grupo com melhor desempenho.

Nesse item o que parece relevante é a variedade de ambientes, o que demonstra

um maior domínio dessa ferramenta. Ao contrário de Marcia e Vinicius, a restrição a

sites de busca e pesquisa, evidencia a falta desse domínio, limitado tanto pela falta de

acesso quanto pela limitação cultural, orientando seu acesso apenas ao necessário – no

caso desses alunos o uso da internet é feito apenas para pesquisa escolares. Já no caso

de Ricardo, apesar da possibilidade de acesso, a limitação cultural orienta a utilização

apenas para práticas distantes da escola, contrário do que acontece no grupo com melhor

rendimento que explora mais possibilidades, inclusive visitando sites institucionais

como Giovana e Sergio.

É possível constatar uma diferença entre as práticas dos indivíduos quanto à sua

natureza. Entre os alunos com desempenho acima de média é possível notar uma forte

presença da família nas atividades desenvolvidas e uma maior variedade de atividades,

portanto um maior trabalho de apropriação. Isso foi possível pela combinação das

questões que inqueriam sobre os lugares que mais frequentavam e o tipo de programa

que realizavam – de tal forma que os alunos com maior média apontam a casa como um

dos locais onde ocorrem as práticas de lazer com frequência, indicando também lugares

públicos e privados como uma opção para a maioria, sendo que tais atividades são

realizadas em companhia da família.

Quadro 13: Local onde ocorrem as atividades de Lazer

Grupo 1

Giovana Em casa, lugares privados (clubes, shopping, por ex)

Sérgio Em casa, casa de familiares

Iago Em casa, lugares públicos (parques, quadras, praças)

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Tais Em casa

Bruno Casa de amigos, lugares privados (clubes, shopping, por ex)

Daniela Em casa, casa de familiares

Grupo 2

Ricardo Lugares públicos e privados

Márcia Casa, lugares privados( clubes, shopping, por ex.)

Vinicius Em casa

Quadro 14: Costuma viajar com frequência? Para quais lugares já viajou

Grupo 1

Giovana Sim. Bahia, Rio Grande do Norte, Paraty e Peruíbe.

Sérgio Sim. Maceió, Macapá e Belo Horizonte.

Iago Sim. Bahia, Aracaju.

Tais Sim. Nordeste e interior de São Paulo.

Bruno Não. Curitiba, Brasília, Ceará, Piauí, litoral e interior de São Paulo.

Daniela Não.

Grupo 2

Ricardo Não.

Márcia Não.

Vinicius Sim. Litoral de SP e Minas Gerais.

Quadro 15: Motivação e característica das viagens:

Grupo 1

Giovana

Viagens de longa duração em companhia da família para conhecer

lugares turísticos.

Sérgio Viagens de curta duração em companhia da família para conhecer

lugares turísticos.

Iago Viagens de longa duração em companhia da família para visitar parentes

Tais Viagens de curta duração em companhia da família para visitar parentes

Bruno Viagens de longa duração em companhia da família para visitar

parentes.

Daniela Viagens de curta duração em companhia da família para visitar parentes.

Grupo 2

Ricardo Viagens de curta duração em companhia da família para visitar parentes.

Márcia Viagens de curta duração em companhia da família para visitar

parentes

Vinicius Viagens de curta duração em companhia de amigos para visitar parentes.

Quadro 16: Qual ou quais programas costuma fazer em companhia da família?

Grupo 1

Giovana Viagens e passeios.

Sérgio Assistir à filmes.

Iago Visitar parentes e parques.

Tais Ir ano cinema e viajar.

Bruno Ir à pizzarias, bares e lanchonetes.

Daniela Visitar parentes (avó).

Grupo 2

Ricardo Ir à festas de familiares.

Márcia Quase nenhum.

Vinicius Jogar cartas.

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O direcionamento e variação das atividades de lazer com a família é

característica do grupo de alunos com melhor desempenho. Tal perspectiva fica ainda

mais evidente quando combinada aos dados relativos ao lazer, como viagens e

atividades realizadas na companhia dos familiares.

Em relação às viagens, no grupo dos alunos com rendimento acima da média

apenas Daniela e Iago afirmam que não viajam com frequência. No entanto, Iago aponta

inúmeros lugares nos quais já esteve. Entre os alunos abaixo da média apenas Vinicius

afirmar viajar com frequência. Além disso, a diferença entre os grupos fica ainda mais

evidente quando observados a quantidade de lugares visitados pelos alunos com melhor

desempenho e principalmente a natureza e a duração das viagens.

Entre os alunos com desempenho acima da média, as viagens são sempre de

longa duração e além de visitar parentes em outros estados - como no caso de Iago, Taís

e Bruno - nos casos de Sérgio e Giovana apontam como motivos frequentes para

viagens a visitação a lugares turísticos. Além disso, Giovana e Taís alegam viajar com

frequência para a casa de praia e o sítio da família, respectivamente.

Nesse sentido, fica evidente uma organização maior nesse grupo, tanto material

quanto temporal, pois essas viagens exigem pela duração, um investimento tanto em

tempo quanto material. Assim, é possível inferir a exceção de Daniela que viaja pouco e

Igor, cujo pai é comerciante, que pelos pais dos demais alunos serem funcionários de

empresas privadas tem direito por lei à férias remuneradas, que além do ganho extra,

garantem também esse tempo necessário.

A presença familiar e as atividades realizadas nesse grupo de alunos indica uma

maior percepção do que é consumido em termos culturais. Tal percepção e apropriação

evidencia a relação entre o que é consumido e consumidores e a posição social ocupada,

ou seja, os gostos variam necessariamente segundo as condições econômicas e sociais

de sua produção e por intermédio de seus produtos constroem suas diferentes

identidades sociais.

Assim, a ação pedagógica da família e da escola exerce-se tanto pelas condições

econômicas e sociais que oferece a condição de seu exercício quanto pelos conteúdos

que inculca.

Portanto, explicar o crescimento, com o capital escolar, da aptidão ou ao menos

da pretensão em apreciar uma obra independente de conteúdo, portanto percebendo

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características transponíveis em relação a forma, significa uma naturalização de tal

aptidão de modo que os investimentos nesse campo pareçam desinteressados e gratuitos

como são as obras legítimas.

Tal aptidão depende não apenas de instrumentos linguísticos e referências

oriundos da aprendizagem escolar, mas também da dependência em relação as

condições materiais de existência, passadas e presentes, que são a condição tanto de sua

constituição, quanto de sua implementação, além do acúmulo de um capital cultural que

só pode ser adquirido mediante uma espécie de retirada para fora da necessidade

econômica (BOURDIEU, 2006,54)

Nesse sentido, ao analisar a disposição estética, ou seja a representação, o estilo

percebido e apreciado em comparação com outros, através dos dados recolhidos junto

aos questionários demonstra a própria relação do indivíduo com o mundo social e com

os outros.

A aprendizagem da cultura legítima, seja ela implícita como no caso da

aprendizagem familiar ou explicita como é a aprendizagem escolar, necessita a

supressão da necessidade econômica bem como da urgência em relação a prática e que

em suma são o fundamento do distanciamento objetivo e subjetivo em relação aos

grupos. Dessa forma, o que evidenciou foi uma correspondência entre as tomadas de

posição estéticas e a posição ocupada no espaço social, ou seja, evidenciou-se a

presença de diferentes classes.

d – A classe desconstruída: a ilusão da homogeneidade entre os indivíduos da

periferia

A noção de classe social para Bourdieu (1996) é apenas a uma delimitação de

um conjunto e é exclusivamente lógica e teórica. Para ele, a existência real da classe

teórica só seria possível por um trabalho político de mobilização, portanto o que existe

na verdade é a classe realizada, fruto da luta de classificação para impor uma visão do

mundo social. Isso significa admitir como fundamental a existência de diferenças e

diferenciações.

Essas diferenças e diferenciações constroem o espaço social, esse espaço de

distinção oriundo da relação entre as estruturas objetivas e as construções subjetivas e

que é também espaço de lutas, posto que a representação que se faz dele comanda as

tomadas de posição para conservá-lo ou transformá-lo.

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O espaço social não é visível, trata-se de uma construção que busca compreender

como as práticas e as representações dos indivíduos permitem agrupamentos, no sentido

de estabelecer distâncias entre eles. O que Bourdieu (1996) propõe, portanto, é uma

reflexão sobre o conceito de classe, relativizando a questão da classe teórica, portanto

construída por um determinado recorte teórico com a sua existência real.

(...) as classes sociais são apenas classes lógicas, determinadas, em

teoria e, se se pode dizer assim, no papel, pela delimitação de um

conjunto - relativamente – homogêneo de agentes que ocupam

posição idêntica no espaço social, elas não podem se tornar classes

mobilizadas e atuantes, no sentido da tradição marxista, a não ser

por meio de um trabalho propriamente político de construção, de

fabricação – no sentido que E.P. Thompson fala em The making of

the english class – cujo êxito pode ser favorecido, mas não

determinado, pela pertinência a mesma classe sócio-

lógica.(BOURDIEU, 1996, p 29)

Dessa forma, os indivíduos se alocam no espaço social de acordo com o volume

global de capital (econômico e cultural) e com o peso desses diferentes tipos de capital

no volume global de seu capital, ou seja, de acordo com a estrutura do capital que

possuem. Assim, aqueles com maior volume global, como por exemplo, empresários,

profissionais liberais e professores universitários se opõem globalmente aos operários,

posto que estes detêm tanto menor capital econômico quanto cultural em relação aos

primeiros. No entanto, empresários e professores universitários se opõem quanto à

estrutura, ou seja, o peso de cada capital no volume global de capital que os caracteriza.

Essas oposições são definidas pelas diferenças de disposições, ou dito de outra

forma, diferenças de habitus, que engendram diferentes posições sociais, que se

traduzem em um espaço de tomada de decisões.

(...) a cada classe de posições corresponde uma classe de habitus (ou

gostos) produzidos pelos condicionamentos sociais associados à

condição correspondente e, pela intermediação desses habitus e de

suas capacidades geradoras, um conjunto sistemático de bens e de

propriedades vinculadas entre si por uma afinidade de

estilo.(BOURDIEU, 1996,p.21).

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O habitus é essa unidade de estilo de vincula um indivíduo ou classe, pela

própria estrutura que fornece a posição social na qual ele mesmo é estruturado, portanto

princípio gerador e unificador de uma posição social.

O habitus não apenas fornece práticas distintas como também esquemas

classificatórios na medida em que orienta princípios de visão de mundo - o que é

distinto para um, pode ser pretencioso para outro e ainda vulgar para um último. Ele

também orienta as categorias de percepção que se traduzem em diferenças simbólicas,

que percebidas pela existência da oposição, são incorporadas, tal qual as diferenças

objetivas.

Nesse sentido, se a posse de um diploma, significa a posse de uma cultura geral,

confirmada pela diferença de apropriação dos bens de consumo, é possível colocando os

indivíduos segundo a categoria profissional dos pais no espaço social, alocar o peso

relativo de seu capital cultural e econômico demonstrando assim as diferentes posições

sociais que ocupam.

Quadro 17: Categoria profissional do pai ou responsável

Grupo 1

Giovana Engenheiro mecânico

Sérgio Auxiliar administrativa (mãe)

Iago Comerciante

Tais Mestre de obras (padrasto)

Bruno Fiscal tributário

Daniela Autônomo (comércio de carvão)

Grupo 2

Ricardo Aposentada (comerciante - avó)

Márcia Autônomo (empresa de dedetização)

Vinicius Autônomo (motoboy)

Para isso, Bourdieu (1996, p. 21) sugere um diagrama que representa o espaço

social e suas oposições. O espaço social segundo ele, se retraduz em um espaço de

tomadas de posição pela intermediação do habitus. Isso significa que cada classe de

posições corresponde uma classe de habitus produzidos pelos condicionamentos sociais

associados à sua condição correspondente e pela intermediação desses habitus e de suas

propriedades geradoras - conjunto de bens e práticas conectadas por uma afinidade de

estilo.

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Nesse sentido, o espaço social representado corresponde a essas duas dimensões:

volume global e peso relativo – onde o eixo vertical corresponde ao volume global

(total) e o eixo horizontal ao peso relativo de cada capital (econômico e cultural) para a

estrutura. Dessa forma, Giovana, cujo pai é engenheiro tem um capital global maior do

que os demais se opondo aos integrantes de quadros médios administrativos como

Sérgio o e Bruno, cujos responsáveis, mãe e pai respectivamente trabalham em

escritórios e cuja categoria profissional depende do capital cultural.

Comparados à categoria profissional do pai de Giovana os responsáveis de

Silvio e Bruno tem menos capital econômico do que o de Giovana e também cultural, se

verificada a escolaridade, ou seja, o diploma que chancela a categoria profissional.

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A mesma relação pode ser aplicada à Tais, cujo padrasto é mestre de obras,

portanto um operário qualificado, cuja posição também depende de um capital cultural,

um diploma, mas que é menor do que o de Giovana.

Por outro lado, os responsáveis de Iago e Ricardo, como pequenos comerciantes

se opõem além de Giovana também à Sérgio e Bruno, pois diferente desses dois. Nesse

caso, o capital econômico exerce maior peso em seu capital global e dele depende em

maior parte. O peso menor do capital cultural, no caso de Vinícius e Ricardo, fica

evidente pela escolaridade dos responsáveis: os pais de Vitor completaram o ensino

fundamental e Ricardo, embora resida com os tios que concluíram, é a avó analfabeta

sua responsável direta.

É possível alocar ainda os alunos cujos pais são autônomas17

(Daniela, Márcia e

Vinicius) pelo estilo de vida e ocupação abaixo dos demais, posto que a categoria

profissional denota falta de estabilidade, portanto menor capital econômico e menor

capital cultural evidenciado pelos diplomas dos responsáveis: os pais de Márcia e

Daniela não concluíram o ensino fundamental e os pais de Vinicius não concluíram o

ensino médio.

O que se evidencia é uma correspondência entre capital cultural e rendimento,

posto que os alunos com desempenho abaixo da média na disciplina de História são

aqueles cujo capital cultural é baixo, seja pelo peso relativo desse capital ao volume

global, como no caso de Ricardo ou pelo capital total (econômico e cultural) fraco,

como no caso de Márcia e Vinícius.

Ao contrário, os alunos de melhor desempenho são aqueles cuja família tem

maior capital global, caso de Giovana ou maior peso do capital cultural em relação ao

capital global, como Sérgio, Bruno e Taís, as exceções ficam por conta de Iago, cujo

capital econômico tem predominância em seu capital global e Daniela cujo capital

global é fraco e cujos pais têm pouco escolarização.

Nesse sentido, a relação entre posição social e rendimento escolar evidencia

como as diferenças primeiras são mantidas ao longo da escolarização, ou seja, permite

compreender as estruturas e os mecanismos que atuam na construção do espaço social.

No entanto, os traços distintivos são relacionais, pois só existem em relação a

outras propriedades, por isso além de avaliar a relação entre o capital escolar (diploma)

17 Embora essa categoria não exista no diagrama original, as condições materiais e culturais dessas

famílias são inferiores as demais por isso sua alocação abaixo dos demais tanto em capital econômico

como cultural.

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e a posição social (classe ou fração de classe) é necessário avaliar essa relação, no

sentido da circulação do capital cultural como forma de compreender as exceções, como

Iago e Daniela.

Para isso, foram construídos quatro perfis familiares que além de evidenciar as

diferentes posições sociais, explicam como em alguns casos, apesar da relação estreita

entre posição social e desempenho é possível escapar ao fracasso escolar e obter

desempenho acima da média na disciplina de História.

3. 3 - Perfis familiares: o papel das diferenças culturais no desempenho

A análise de dados descrita acima permite compreender as variáveis que

permeiam o universo social dos alunos investigados no sentido de avaliar como ―família

e escola constituem redes de interdependência estruturadas por relações sociais

específicas‖. (LAHIRE, 1995, p.19).

Por isso, construir ―perfis‖ das famílias dos alunos investigados é para Lahire

(1995) uma continuidade da abordagem de Bourdieu, pois permite a partir da leitura dos

traços originais perceber o que é generalizável, demonstrando assim traços pertinentes

de análises gerais. Dessa forma optou-se por reunir quatro perfis a fim de compreender

a relação entre as estruturas e as formas como estas se manifestam nos indivíduos, ou

seja, a influência do mundo social e seus condicionamentos (classe, campo e espaço)

nesses indivíduos.

Nesse sentido os perfis foram organizados com o objetivo de compreender como

a intervenção positiva da família nas práticas escolares permite domínios escolares, o

que Lahire chama de domínios periféricos – aqueles que preparam consciente ou

inconscientemente para uma boa escolarização.

Para o autor, a organização pela família de um ethos, entendido como uma visão

de mundo e de si, útil a escola, por meio de um universo materialmente e

temporalmente ordenado permite ao aluno, sem perceber, adquirir métodos de

organização, estruturas cognitivas ordenadas e predispostas a funcionar como estruturas

de ordenação do mundo.

Assim, os perfis que se seguem pretendem avaliar essa ordenação e as

determinações sociais que as compõem. Para isso, foram utilizadas cinco entrevistas

com familiares de alunos em situação oposta de rendimento na disciplina de História: as

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mães de Giovana, Iago, Bruno e Taís - alunos que apresentam bom rendimento e a irmã

de Márcia, no lugar da mãe, aluna cujo rendimento em História está abaixo da média.

A) Perfil 1: A limitação para se apropriar de universos culturais

A entrevista com a irmã mais velha de Márcia aconteceu em sua própria casa,

pois no dia reunião de pais do primeiro bimestre quando foram realizadas algumas

entrevistas a mãe não pode comparecer. Sua ausência nessa data foi justificada pelo

trabalho que a deixa fora de casa durante todo o dia e que a impossibilitou de ser

entrevistada. Optou-se então por entrevistar um membro da família, Camila, a filha mais

velha que representa a mãe na maior parte dos eventos e atividades escolares dos

irmãos.

Camila tem 18 anos, não trabalha e não estuda para cuidar de seus dois filhos

pequenos e dos dois irmãos menores que Márcia, mesmo motivo pelo qual ela preferiu

ser entrevistada em casa ao invés de comparecer à escola como a mãe de Giovana.

A exceção de Camila que interrompeu os estudos no primeiro ano do Ensino

Médio por causa da gravidez, todos os seus irmãos estudam – Márcia de 15 anos cursa o

segundo ano do Ensino Médio, a irmã mais nova, de 12 anos cursa a sexta série do

Ensino Fundamental e o irmão mais novo, de 7 anos cursa o segundo ano do Ensino

Fundamental, antiga primeira série.

Quanto à escolaridade dos antepassados ela sabe pouco, o pai segundo ela

estudou até a quinta série do Ensino Fundamental, não sabendo informar a escolaridade

tanto da mãe quanto dos avôs maternos e paternos.

A pouca escolaridade se reflete na categoria profissional dos pais. A mãe é

auxiliar de limpeza, trabalhando anteriormente como empregada doméstica e diarista, já

o pai tem uma pequena empresa de dedetização, resultado da experiência adquirida

nesse ramo e não de alguma profissionalização nessa área. Além deles, Márcia também

trabalha como vendedora em uma loja do bairro, segundo a irmã para pagar suas

despesas pessoais.

O lazer familiar é restrito. Os membros da família não costumam sair de casa

para lazer, apenas Márcia muito esporadicamente visita alguma amiga, por isso não

visitam pontos turísticos ou parentes na própria cidade ou viajam.

Ela relata ainda que não realizam atividades em companhia da mãe, e ela mesma

pelos afazeres domésticos não acompanha os irmãos menores em atividades de lazer.

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Nem mesmo a televisão e o rádio são formas de lazer em comum. Apesar de alegar que

―ouvem de tudo‖ nada é compartilhado, como no caso da programação da televisão,

onde cada um assiste a um tipo de programação (os menores assistem programas

infantis e ela novelas) ou não assistem, como Márcia e sua mãe, pois chegam em casa

tarde da noite.

Quanto às práticas de leitura, Camila e Márcia são muito próximas, pois os

livros que leem são comprados por Márcia. Camila relata gostar de ler, mas não

conseguiu apontar de forma aproximada o número de livros que possui nem mesmo

descrever o tipo de literatura favorita – quando perguntada sobre suas preferências e

frequência de leitura, ela apontou um livro de auto-ajuda, pequeno, próximo de um

folheto e que pelo tamanho reduzido poderia segundo ela ser lido em apenas um dia o

que possibilitava também que lesse cerca de dez desses livros por mês.

Em relação à escrita as práticas também são parecidas. A família não troca

bilhetes ou orientações em geral, apenas Camila costuma anotar os recados para o pai e

Márcia utiliza a internet em lan houses, pois a família não possui computador para

escrever e-mails.

A escolha do estabelecimento de ensino também não é criteriosa. Camila que

estudou na mesma escola, alega que tanto ela quanto Márcia gostam da escola e que a

irmã ao falar dela, a avalia como sendo boa. Os irmãos menores estudam em outras

escolas: o irmão em uma escola estadual, considerada boa por ela, posto que ele apesar

de não ler já escreve e a irmã estuda em uma escola da rede municipal, que apesar de ser

considerada por ela ruim, dada a falta de fluência na leitura da irmã, é mantida nessa

mesma escola por conta da distribuição de leite feita pela prefeitura aos alunos da rede

municipal.

Para Camila, Márcia é estudiosa tanto pelos hábitos de leitura quanto pelos de

estudo. A irmã enfatiza como positiva a independência de Márcia em relação aos

estudos, visto que ela não recebe auxílio em suas tarefas e não é acompanhada em suas

atividades.

Ela coloca ainda que a família só fica sabendo das atividades ou notas porque

Márcia faz questão de deixá-las para que a mãe veja nos finais de semana, quando tem

mais tempo, mas que esse hábito não é uma exigência da mãe. Segundo ela, a mãe

também não ajuda os irmãos mais novos que só recebem auxílio dado por ela quando é

solicitada, portanto de forma não sistemática.

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Sobre as condições e investimento escolar, a família não dispõe de um lugar

adequado para os estudos e apesar de ambas, Camila e Márcia terem iniciado cursos

extra-curriculares estes não foram concluídos, além disso na rotina dos irmãos menores

também não apresenta nenhuma atividade ligada a regularidade do estudo ou

investimento em atividades extras.

Nesse sentido, ela relata que as conversas sobre a escola restringem-se aos

problemas, como o desempenho ruim da irmã mais nova, não sendo comum, inclusive

pela falta de tempo da mãe. Inquerida sobre o que acha da escola e o que Márcia relata,

Camila afirma que a escola depende do aluno, da forma como ele se porta e que pouco

conversam pois a irmã não tem problemas de desempenho e que no geral fala bem da

escola e gosta de todas as matérias.

Ao insistir na questão do desempenho, Camila, atribuiu as notas ruins recebidas

pela irmã aos professores que teriam contabilizado tais notas de forma errada,

interpretando o comportamento, ao ―não dar problema‖ como bom desempenho, no

sentido de que assumir uma postura de submissão a autoridade escolar é uma qualidade

inerente aos estudantes que apresentam bom desempenho e portanto a irmã seria um

deles.

B) Perfil 2: Iago - a supervalorização dos universos culturais.

Laura, mãe de Iago é dona de casa e acompanha a vida escolar dos filhos de

perto, tanto que a entrevista foi realizada após a reunião bimestral, chamando atenção o

fato da mãe ter pedido que a aguardasse para que antes pudesse falar individualmente

com alguns professores. Além de Iago, ela tem mais duas filhas, uma bebê de um ano e

meio e uma adolescente de doze anos.

O pai tem um comércio, um mercadinho no bairro em que residem. O casal

cursou apenas o ensino fundamental. Migrantes, vieram da Bahia ainda pequenos e seus

pais eram analfabetos, sendo que o pai de seu marido teria cursado o primário de forma

incompleta.

Mesmo com a limitação escolar o lazer familiar é variado, sendo comum a visita

a pontos turísticos, parques, inclusive museus. Além disso, a família viaja todos os anos

para visitar os parentes no nordeste. A mãe relata ainda a tv como um programa comum

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aos filhos, especialmente em relação as filhas, pois elas são menores que Iago, e que as

acompanha, enquanto ele, por ser adolescente tem agora outros programas.

Apesar de não usar a internet, mesmo tendo acesso em casa, que se restringe aos

filhos, a mãe tem práticas de escrita constantes, deixando bilhetes com instruções e

escrevendo cartas para parentes distantes.

Há também uma forte relação com a leitura, a mãe alega ler pouco, mas que

gosta muito de revistas e que tanto a filha do meio quanto Iago leem com frequência,

influenciados principalmente por uma tia que lê muito e indica livros para seus filhos e

um tio que escreve poesia – gênero literário preferido por Iago segundo ela. A família

possui ainda livros além dos escolares e frequenta bibliotecas para pesquisa quando

necessário.

Mesmo com capital escolar limitado a mãe acompanha de perto as atividades do

filho, relatando que além de comparecer às reuniões é comum conversar sobre a escola

e acompanhar as atividades dos filhos, auxiliando quando necessário. Para isso, ela

conta também com a ajuda do irmão, tio de Iago.

A atitude da mãe em relação à escola é de orientação quanto à postura ideal do

filho como aluno. Laura relata que Igor tem acesso a internet em seu quarto, que é

também organizado para estudos com mesa, luz e sem barulho. Essa orientação fica

clara ao relatar a rotina do filho fora da escola. Ela lembra que Iago estuda todos os dias

pouco mais de uma hora, mas que poderia estudar ainda mais.

Entrevistadora: O quarto é adequado quanto a luz, barulho?

Laura – Tem, tem, ás vezes eu até reclamo com ele porque tem aquele som baixinho.

Porque tá atrapalhando.

E – mas ele tem uma mesinha? Ele tem computador no quarto?

L – Tem sim.

Outro dado importante na valorização da escolaridade são os critérios em relação

a escolha da escola, Laura coloca a segurança como fator importante, mas também a

qualidade dos professores. Mesmo assim, a mãe reconhece as deficiências do sistema de

ensino, apontando a falta de professores como o maior problema, mas reconhecendo

que isso se deve aos baixos salários e falta de incentivos que leva muitos professores ao

esgotamento e constantes licenças.

Outro dado que corrobora o envolvimento com as atividades escolares é o relato

da mãe de que as conversas sobre a rotina escolar são constantes, apontando inclusive as

preferências em relação as disciplinas e os motivos para essas preferências.

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Chama atenção também a relação funcional com a educação - ao ser perguntada

sobre os conteúdos de ensino, Laura avalia que matérias como português e matemática

merecem mais atenção pois estão em ―tudo que se precisa fazer‖. Sobre o ensino de

História a mãe reconhece não saber sua utilidade específica, pois não estudou muito,

mas diz ser importante, considerando inclusive que a entrevista serviu para lhe ―abrir a

cabeça‖ sobre essa possibilidade e que dali em diante nas conversas recorrentes se

inteiraria mais sobre a relação entre a disciplina de História e a realidade social.

C) Perfil 3: Bruno e Tais – o superinvestimento como forma de ascensão social.

A - Bruno

A entrevista com Claudia, mãe de Bruno ocorreu após a reunião de pais. Casada

pela segunda vez, Claudia tem além de Bruno outro filho desse segundo casamento. Ela

trabalha em uma fábrica, como operadora de máquina e o marido, padrasto de Bruno e

que o cria segundo ela, desde bebê, é fiscal tributário.

Claudia cursou apenas o ensino fundamental, enquanto o marido concluiu o

ensino médio, especializando-se em uma espécie de curso técnico para analista fiscal,

que o habilita a trabalhar como fiscal. Seus pais são originários do nordeste e pela

necessidade de trabalhar para ajudá-los interrompeu os estudos, já os pais de seu marido

tem segundo ela um pouco mais de escolaridade, no entanto não sabe o quanto e

viveram desde crianças em São Paulo.

A influência desse segundo casamento é bastante forte nas projeções escolares

da mãe. Assim, como o padrasto, Bruno cursa um curso técnico (redes de computação),

que apesar de não ser a área pretendida, conforme dados fornecidos por ele na entrevista

é visto com bons olhos tanto por ele quanto pela mãe.

Além disso, a mãe valoriza a escola e reforça constantemente seu valor nas

conversas com o filho, enfatizando a necessidade dos estudos para que tenha uma

profissão mais valorizada, diferente da dela.

Claudia considera que trabalhando tem menos tempo do que gostaria, mas que

participa de todos os eventos da vida escolar do filho, sendo presente em reuniões e

acompanhando as tarefas de casa. Nesse aspecto, ela relata que até o fim do ensino

fundamental auxiliava o filho com frequência, mas após a entrada no ensino médio, essa

função fica a cargo do padrasto.

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então assim, quando ele precisa, às vezes meu marido, como ele trabalha

assim... já lê bastante, eu digo: “ pergunta pro teu pai”. No caso assim, é o pai dele de

criação, mas o trata muito bem, aí vai ajuda bastante. Liga pra ele dizendo “tô com tal

problema”, às vezes, pede pra trazer uma pesquisa, tal tal...geralmente quando eu não

posso o pai ajuda.

Além disso, a mãe relata uma organização familiar propícia ao estudo. Bruno

tem acesso a internet, um espaço com mesa em seu quarto, além da posse de muitos

livros segundo a mãe. Claudia não sabe precisar quantos, mas afirma que muitos são

relacionados ao trabalho do pai e agora ao curso de Bruno, que além desses livros lê

outros que empresta na biblioteca da escola. Nesse sentido as práticas de leitura do pai

são constantes, enquanto ela lê apenas revistas e jornais quando tem segundo ela mais

tempo. Quanto às práticas de escrita a mãe afirma que não escreve muito, pois seu

trabalho – embalar remédios – não exige e que a escrita fica por conta do filho e do

marido e são relacionadas a escola e ao trabalho, respectivamente.

Chama a atenção também nesse sentido, o envolvimento da família com a

religião e as práticas de leitura e escrita relacionadas à esse envolvimento, posto que as

funções ocupadas por Bruno e o padrasto exigem ambas constantemente. A família

participa fortemente das atividades da igreja, o pai é diácono, Bruno é coroinha e a mãe

participa na organização das missas – grande parte das práticas de lazer seguem esse

mesmo padrão, são feitas em família.

Claudia se define como muito exigente em relação à escola, mesma descrição

dada por Bruno. As conversas são constantes, a mãe aponta as disciplinas que Bruno

mais gosta e porquê, além de características dele como aluno em sala de aula. E apesar

de alegar não valorizar nenhuma matéria em especial, admite que português,

matemática e até mesmo inglês são importantes para a vida profissional.

Não, no meu ponto de vista todas as matérias são importantes...mas é como eu

falo, nós seres humanos se identifica mais com uma do que com outra, mas o essencial

hoje em dia é como sempre português, a pessoa deixa muito pra trás o inglês,

especialmente no dia de hoje, a matemática que tá em tudo... as pessoas não prestam

muita atenção, mas assim o principal mesmo é a pessoa saber falar, por escrito...o

português mesmo...

Essa mesma visão se manifesta em relação a disciplina de História, o valor da

disciplina está para mãe mais na cultura geral que fornece do que na capacidade

reflexiva.

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Até porque através de uma curiosidade você aprende outras, passa pra outras

pessoas: “nossa eu não sabia, corri tanto atrás disso”. Então é legal você saber, que

desenvolve mais a mente das pessoas. Como eu falo pro Bruno: quando eu falo pra

você conversar mais com as pessoas, ouvir mais, não é pra você é saber mais ou menos,

simplesmente saber lidar com as pessoas, por que que a pessoa é assim, se você for

arrumar um emprego você vai ter que lidar com diferentes pessoas.

Por fim, a preocupação com a escolarização se manifesta na escolha do

estabelecimento de ensino. Claudia relata que Bruno passou a estudar na escola em que

está, pois estavam retornando de um período no nordeste e esta foi a única vaga que

conseguiu, e que imaginava transferi-lo ao fim daquele ano, mas o filho permaneceu

tanto pelas boas relações que estabeleceu, como pelo ensino de qualidade.

B: Taís

Ivone mãe de Taís é auxiliar de enfermagem e no dia da entrevista trabalhou no

turno da noite e havia ido direto para a reunião de pais do bimestre. Além de Taís, ela

tem mais dois filhos, um mais velho que Tais e que cursa a faculdade de ciências da

computação e um mais novo, de três anos do segundo casamento.

O padrasto de Tais concluiu o ensino médio e trabalha como mestre de obras, a

mãe, faz faculdade de enfermagem e apesar do pouco tempo, visto que trabalha e

estuda, prioriza o acompanhamento das atividades escolares da filha.

Além de conversar com professores quando necessário e comparecer às reuniões

é ela quem auxilia nas tarefas de casa quando necessário. Destacando o uso da internet

para pesquisas quando não sabe o conteúdo necessário.

Quando ela me pergunta, me mostra, eu sempre tento, sento junto com ela, pra

maneira mais fácil dela pesquisar.

O lazer é uma prática familiar, além de passeios em shoppings e cinemas, a

família viaja com frequência para um sítio de parentes. A leitura é uma atividade

frequente para Taís e para a mãe, que alega ter pouco tempo, mas que está sempre

lendo, desde livros espíritas, romances, livros científicos, indicados pela faculdade até

livros de história infantil que conta para o filho menor.

Ela é também quem escreve com mais frequência, deixando bilhetes, além de

seus próprios trabalhos da faculdade, assim como o filho mais velho, cuja escrita

restringe-se as atividades universitárias.

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Além da escola, Taís faz dois cursos, um de informática, duas vezes por semana

e todas as noites faz um curso de técnica de enfermagem, o mesmo de sua mãe. Nesse

sentido, as escolhas da mãe tem grande peso sobre sua rotina.

A escola foi escolhida pois a mãe cursou o ensino supletivo nessa mesma escola

para que pudesse cursar o curso técnico.

Escolhi essa escola, porque assim, eu escolhi essa escola porque eu fui aluna

aqui a noite, falavam muito mal daqui. Então assim, eu oriento minha filha todo dia

quando ela vem pra escola.

Essa perspectiva utilitária, fica ainda mais explícita quando perguntada sobre o

conteúdo das conversas que tem sobre a escola e as preferências de Taís em relação à

elas.

Assim, ela gosta bastante de português, geografia, inglês, antes ela reclamava

um pouco de sociologia, mas agora se adaptou, a única matéria que não é que ela não

goste, é que a professora não explicava direito pra ela, é a matemática, que é

fundamental...Português e matemática é pra sempre. Independente da profissão que ela

vá buscar é essencial pra profissão dela.

Hoje em dia se você vai arrumar um emprego, se você não souber falar direito

você tá fora, se você for fazer uma prova com certeza vai ter uns cálculos lá. É

concurso, ENEM, vestibular. História também tem que entender um pouco...

Nesse sentido, o utilitarismo das disciplinas e a valorização da escola para o

futuro pela mãe reflete-se no discurso da filha:

Acho que assim...porque a gente é assim uma classe média baixa, aí você vê

tantas pessoas, porque assim :os de classe média alta mandam na gente, porque eles

são os nossos chefe: “aí, um dia vou ser aquilo, vou mandar nas pessoas, vou fazer o

possível pra mudar de vida...”

D) Perfil 4: a interiorização das regras do jogo.

A entrevista com a mãe de Giovana foi realizada na própria escola, após um

primeiro contato na reunião de pais.

A mãe, Marta, é dona-de-casa, mas assim como o marido possui nível

universitário, tendo cursado Pedagogia, mas nunca trabalhou na área. O marido

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engenheiro, tem também duas especializações ligadas a gestão, área essa ligada ao cargo

que ocupa na empresa de engenharia de grande porte em que trabalha.

Além de Giovana, o casal tem mais duas filhas, uma mais velha que cursa

engenharia em uma conceituada faculdade particular e uma mais nova, que estuda na

mesma escola que Giovana.

Tanto o casal quanto os filhos nasceram em São Paulo, mas seus pais são

originários do interior de São Paulo. Além disso, a escolarização dos avós foi precária –

os pais de Marta são analfabetos e no caso dos pais de seu marido, o pai frequentou a

escola até a quarta série, enquanto a mãe também não foi alfabetizada.

Na rotina do tempo livre, Marta destaca o planejamento - quando não viajam ao

litoral, a família se programa pra visitar parques, exposições e pontos turísticos.

Outro aspecto planejado, é a atitude da mãe em relação a programação de TV.

Marta coloca que a TV não é um hábito, mas que acompanha telejornais e

principalmente documentários e que incentiva as filhas a assistí-los quando acha

interessante e embora não proíba nenhum tipo de programa, ela acompanha o que as

filhas assistem no sentido de orientá-las quanto a adequação ou não.

Quanto aos hábitos de leitura, Marta afirma ler jornais quase todos os dias, sendo

assinante de dois grandes jornais, além disso assina uma revista mensal e lê cerca de um

livro por mês. Ela alega que lê devagar, mas que está sempre lendo algo, assim como o

marido, chegando inclusive a citar os dois últimos livros lidos por ele.

A escrita também faz parte do cotidiano da família, Marta diz que não é muito

de escrever, mas que trocam bilhetes, e que as filhas e o marido escrevem com

frequência: a escrita das filhas está ligada às atividades escolares enquanto que o marido

escreve e-mails e redige documentos profissionais.

Sobre o que a filha fala sobre a escola, Marta diz que ela não reclama, dizendo

―é chata‖, mas que avalia depender do empenho pessoal. Ela também acompanha de

perto as tarefas e notas das filhas, ajudando quando necessário.

A família possui muitos livros destinados à pesquisa escolar, além disso, Marta

coloca que já fizeram uso de bibliotecas, inclusive para lazer, mas que devido a

quantidade e atualização buscam também informações na internet.

A mãe comenta ainda a constituição da biblioteca familiar, avaliando que

compram muitos livros, mas destaca a propriedade individual dos livros ao revelar que

cada membro tem seus próprios livros, o que demonstra não apenas as preferências, mas

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também a valorização, como quando fala da filha mais velha que está iniciando um

curso universitário e tem agora ―seus próprios livros‖.

Quanto à rotina para os estudos, Marta destaca a presença do pai no auxílio das

atividades das filhas e o espaço para os estudos. Na casa há duas áreas, sem barulho,

preparadas com mesa, computador e outros as quais as filhas podem utilizar para os

estudos.

A rotina das filhas após a escola é orientada para os estudos. A mãe destaca que

todas as filhas tem por hábito estudar após a escola, que Giovana estuda em média

quatro horas por dia e que essa atitude é um hábito familiar:

“Quando não estamos trabalhando, estamos lendo, conhecendo alguma coisa. Jornal,

eu adoro jornal – folha, leio todinho, leio todos os cadernos, mesmo esporte, adoro

esporte no jornal – gosto muito de economia, leio de tudo”

“ (...)pra nós estudar...não diria nem estudar, diria buscar um conhecimento – que nem

outro dia: vi um negócio na televisão e falei “ vou pesquisar melhor, esse negócio me

intriga, vou procurar saber”. Eu não sei vou procurar me informar, de qualquer

maneira.”

Perguntada sobre o que acha da escola em geral, Marta demonstra conhecer o

sistema de ensino avaliando não apenas os problemas da escola das filhas. Nesse

sentido, a mãe coloca que a escolha da escola se deu por dois motivos: a qualidade dos

professores, apesar dos problemas sociais que escola enfrentou, como a violência

recente e o fato de não acreditar nas escolas privadas, que segundo ela ― são meramente

capitalistas. Lá é dinheirinho, mais nada. Muito preocupado com a aparência, deixa

muito a desejar‖.

Para a mãe as diferenças vivenciadas pelas filhas na escola pública formam

caráter, o que não é possível na escola privada onde há um grande acervo de

conhecimento sem valores. Além disso, o diálogo sobre a escola é constante, a mãe

relata as preferências e o conhecimento das atividades realizadas pelas filhas, o que

denota uma preocupação com a carreira escolar.

3.3. 1 – A análise dos perfis:

A construção dos perfis permitiu compreender como a circulação ou não do

capital (econômico e cultural) acaba por definir trajetórias diferentes. Assim, a análise

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que se segue não pretende isentar a escola, pelo contrário indaga sobre sua incapacidade

de romper com a insuficiência das condições primeiras que os alunos de diferentes

classes ou frações de classe na periferia trazem, acabando por impor à esses alunos o

fracasso, no sentido não apenas real, mas também interiorizado.

A escola ignora que as classes sociais têm concepções diferentes de cultura e que

a cultura exigida e aceita pela escola não é partilhada por todos. Assim, ao dissimular a

diferença cultural no momento de partida, ou seja, na entrada no sistema de ensino, a

escola encerra o destino do indivíduo, pois ao longo de sua trajetória não compensa essa

diferenciação inicial. Dessa forma, com o passar dos anos, a cultura exigida pela escola

se mostrará tão distante da cultura que é conhecida e partilhada por herança, que o

fracasso será incutido ao indivíduo, à sua aparente inabilidade e falta de ―dom‖ para os

estudos.

A análise desses perfis demonstra como a escola perpetua as diferenças iniciais,

num ciclo reprodutor interminável que ela mesma alimenta ao ignorar essas diferenças e

referendar os julgamentos familiares que são em suma produto da posição social que

estas famílias ocupam.

A atitude diante da escola está de acordo com os valores da classe ou fração de

classe a qual o indivíduo pertence, ou seja, os indivíduos fixam seus objetivos diante

das condições que herdam.

Assim, a análise dos perfis corrobora as diferenças de classe ao demonstrar quais

são as diferenças que engendram destinos sociais tão díspares.

Ao avaliar a transmissão do capital cultural, Bourdieu (2008a) coloca a

necessidade de avaliá-lo além do núcleo familiar próximo (pai e mãe), estendendo-o aos

avós também. Nos perfis construídos os avós dos alunos investigados apresentavam

semelhanças: pouca ou nenhuma escolaridade e a exceção dos pais do padrasto de

Bruno, não são oriundos de São Paulo.

A região de origem, no sentido da residência é determinante para o acesso a

determinados bens culturais. O que se nota entre os pais dos alunos investigados, à

exceção de Giovana - cujos pais nasceram já na capital paulista e cujos avós são

oriundos do interior do estado – é que vieram quando crianças para São Paulo e são

originários do nordeste. Assim, o que se pode concluir é que a vinda anterior para um

local com maiores recursos culturais proporciona maior incorporação desses recursos.

Isso se reflete também na valorização da escolarização por parte dessas famílias

– oriundos de meios rurais, a incorporação dos padrões urbanos faz com que invistam

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na escolarização como forma de ascensão, caso dos pais de Giovana que foram

incentivados a estudar, ao contrário dos pais dos demais alunos que mesmo migrando

ainda crianças não concluíram os estudos, pois iniciaram muito precocemente no

mercado de trabalho, o que provocou diferenças quanto ao destino econômico da

própria família.

A possibilidade de continuar nos estudos permitiu aos pais de Giovana uma

estabilidade econômica que lhes fornece hoje, condições para investir materialmente em

sua escolarização, seja pela habitação mais confortável, ou ainda pela possibilidade de

comprar livros.

Além disso, o capital econômico permite outra forma de investimento, o tempo

necessário à escolarização, posto que não precisando trabalhar para ajudar nas despesas

da casa como Márcia, Giovana pode experimentar um comportamento mais diletante em

relação ao tempo e aos bens que possuí.

Nesse sentido, é possível inferir uma diferença de condições objetivas (culturais

e materiais) anterior a própria geração dos indivíduos investigados. Essas diferenças de

condições acabam por determinar as referências que essas famílias fazem de si e do

mundo, pois o êxito de seus objetivos depende dessas condições.

Portanto, os desejos em relação ao futuro não são segundo Bourdieu (2008a)

isentos, eles representam na verdade a ―necessidade interiorizada‖ no sentido do que é

possível de ser realizado, ou não, pela incorporação do sucesso ou fracasso das gerações

anteriores - isso explica porque as classes populares fixam objetivos em relação à escola

mais baixos que a classe média, por exemplo, por acharem não ser possível a eles,

quando na verdade, essa atitude é resultado do ciclo da própria estratificação social que

a escola reproduz.

Assim, as condições objetivas, principalmente aquelas ligadas às oportunidades

de sucesso em relação escola, como o capital cultural, permitem aderir mais facilmente

aos valores e as normas escolares e obter êxito, portanto realizando os objetivos fixados

pelo projeto parental e que podem ser progressivamente ampliados.

Essas condições objetivas e a visão de si no mundo social que compreendem o

que Bourdieu (2008c) chama de ethos de classe, pode se manifestar de forma ascética

em algumas classes ou frações de classe a ponto de fixar objetivos acima dos de sua

classe de origem. Essa é a explicação para que as classes menos favorecidas em capital

seja, econômico ou cultural acabem por aderir aos valores escolares para ascender

socialmente.

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Esse ethos ascético parece acompanhar a família de Giovana desde os avós,

tanto por parte de pai como mãe, que vislumbraram na maior escolarização dos filhos

uma possibilidade de ascensão e assim a reconversão do capital cultural (tanto adquirido

junto a família pelo incentivo, quanto o adquirido pela maior escolarização) em capital

econômico possibilitando à família um investimento continuo na escolarização dos

descendentes.

O contrário também fica claro ao observarmos a família de Márcia, onde a falta

de capital cultural dos avós e pais, acaba por engendrar atitudes em relação à escola

pouco rentáveis, e que na verdade são produto do próprio julgamento e expectativas que

o ethos produz.

O ethos ascético (BOURDIEU, 2008c), é ainda o que explica os perfis de Bruno,

Tais e Iago, que limitados seja do ponto de vista do capital cultural ou econômico,

aderem a práticas ou disposições que não condizem com esse capital.

Essas famílias fazem investimentos educativos desproporcionais à seus recursos

tal qual os pequenos burgueses ascendentes são definidos pelo fato de se determinarem

em função de chances objetivas que não teriam se não tivessem a pretensão de obtê-las

e se não acrescentassem aos seus recursos em capital econômico e cultural, recursos

morais.

Isso explica a exigência das mães em relação ao desempenho dos filhos.

Nenhum deles é classificado como ―exemplar‖ ou ―brilhante‖, as mães os classificam

como bons alunos, mas que ainda assim podem se dedicar mais, posto que o rendimento

depende do aluno - como no caso de Tais e Bruno que além da escola cursam

concomitantemente cursos técnicos, havendo portanto um superinvestimento.

Essa postura é característica das frações em ascensão, que adotam o que

Bourdieu (2008c) chama de rigorismo ascético, cujas práticas são avaliadas quanto a

contribuição que podem trazer a ascensão social.

Como exemplo as três mães (Iago, Taís e Bruno) acompanham as atividades

escolares dos filhos como forma de maximizar seu rendimento e avaliam como mais

úteis ao mercado de trabalho as disciplinas de português e matemática, o que mostra

uma pretensão sobre o futuro e uma projeção de seus próprios desejos nos filhos. Como

coloca Bourdieu:

Por estar condenado às estratégias de várias gerações, que se impõem

toda vez que o prazo de acesso ao bem cobiçado excede os limites de

uma vida humana, ele é o homem do prazer e do presente adiados que

serão vividos mais tarde ―quando houver tempo‖, ―quando tudo

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estiver pago‖, ―quando terminar os estudos‖, ―quando as crianças

estiverem crescidas‖ ou ―quando estiver aposentado. (2008 c, p. 103).

Por outro lado, esse rigorismo das três famílias se opõe a naturalidade das

práticas familiares de Giovana, cuja explicação repousa sobre a as diferenças de classes

entre eles. Enquanto as famílias de Bruno, Iago e Tais estão em ascensão e se

comportam como pequeno-burgueses, a família de Giovana cujo ascetismo é anterior

aos pais, encontra-se já estabelecida econômica e culturalmente, comportando-se tal

qual a naturalidade burguesa, sem exigir lucros imediatos das práticas.

Essa naturalidade é observável pela rotina escolar e as práticas de leitura e

escrita. Enquanto Tais e Bruno tem uma rotina extra escolar e Iago é incentivado pela

mãe a estudar mais, Giovana estuda sem nenhuma imposição familiar – o conhecimento

ao invés dos estudos é objetivo da família, segunda a mãe.

A posse de livros também é diferenciada, enquanto nas famílias de Tais, Bruno e

Iago eles são considerados investimentos – seja para aperfeiçoamento do trabalho, como

Bruno e Tais ou para aumento da cultura geral, como no caso de Iago, para a família de

Giovana é um hábito corrente, teoricamente desinteressado, mas que na verdade faz

parte de seu princípio de visão e divisão de classe, ou seja, de uma visão burguesa.

Já a família de Márcia é tipicamente popular, suas práticas domésticas em

relação a escola são fracas. Não há acompanhamento das tarefas, a família não costuma

investir em práticas culturais e de lazer utilizáveis pela escola, além de um

desconhecimento da própria escolarização, denunciada não apenas pelo não

acompanhamento das atividades como também pela falta de diálogo sobre a escola.

Portanto, a falta dessas condições objetivas tanto em capital econômico quanto

cultural estabelece uma distância grande demais em relação à cultura escolar. Porém

muitas vezes essa distância não é percebida, o que parece ser o caso de Márcia.

Aluna da rede municipal, Marcia nunca foi reprovada, pois a prefeitura adota a

progressão continuada e como apresenta um ―bom comportamento‖, para a família ela é

uma excelente aluna. No entanto, seu rendimento na disciplina de História, apesar de

seu esforço é ruim.

Essa caracterização é ao mesmo tempo uma forma de se reconhecer. No caso de

Márcia, dizer-se como boa aluna evidencia sua limitação em relação ao mundo cultural

e sua posição de origem, tendo chegado longe demais, já no caso de Bruno, Tais e Iago,

traduzir-se como esforçado, dedicado é incorporar uma caraterística moral tipicamente

pequeno burguesa, de que a necessidade nesse caso se transformou numa virtude, como

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enuncia a fala de Tais ao avaliar-se como pertencente a classe média baixa, cuja escola é

a única forma de acesso à posição dos patrões, a classe média alta.

É que eles não tem somente a moral de seu interesse, como todo o

mundo, mas interesse pela moral: para esses denunciadores dos

privilégios, a moralidade é o único diploma que dá direito a todos os

privilégios.(BOURDIEU, 2008c, p. 103).

Dessa forma, diante do mesmo estabelecimento de ensino o que determina a

diferença de dessempenho é, pelas informações obtidas, a diferença de capital cultural

que permite a Giovana, Tais, Bruno e Iago, pela incorporação de um ethos ascético um

melhor desempenho, ao passo que Márcia pela limitação desse capital, tem também um

rendimento escolar limitado.

Isso permite afirmar que, o papel determinante do capital cultural só se efetiva

pela escola reprodutora, que não compensa as diferenças culturais dos indivíduos e as

utiliza como mecanismo de eliminação, ao considerá-las pouco legítimas a escola,

transferindo assim a inaptidão para os indivíduos, que incapazes de acompanhar não

tem o ―dom‖ daqueles que conseguem – portanto à esses só resta o rótulo do fracasso e

a eliminação futura.

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Capítulo IV: Para que serve a História?

Aparentemente infantil essa pergunta tão comum dá título a este capítulo por se

tratar da questão central na relação que os alunos estabelecem com o ensino de História.

Além disso, a opção por tal título deve-se também aos objetivos específicos desse

capítulo, que pretende analisar o currículo da disciplina de História quanto a seus fins

propostos.

Foram confrontados para tal, os principais documentos que orientam a disciplina

de História: os Parâmetros Curriculares Nacionais de História para o Ensino

Fundamental II18

e a Proposta Curricular do Estado de São Paulo para a disciplina de

História.

Tais documentos serão descritos quanto a sua consonância ou não e seus

principais pressupostos e objetivos. Dessa forma, a análise que se segue buscou

caracterizar tais documentos do ponto de vista organizacional, confrontando a

consonância ou dissonância dessa organização de forma a compreender se as

orientações curriculares mantêm os mesmos objetivos e organizam-se a partir dos

mesmos pressupostos.

A Proposta Curricular de São Paulo recebeu maior atenção durante a análise em

alguns itens, por se tratar não apenas do currículo efetivo do estado, como também por

fornecer como parte de suas orientações uma proposta de material didático, o Caderno

do Professor19

, que contêm o que deve ser ensinado a todos os alunos, além de ser o

documento elaborado posteriormente ao PCN, o que mostraria a consonância ou não de

princípios.

Além disso, este capítulo busca também a relação dos objetivos propostos20

por

tais documentos e o aprendido pelos alunos. Averiguando se tais objetivos são

compreendidos pelos alunos investigados nessa pesquisa e se há correspondência entre

o rendimento desses alunos e seu capital cultural, ou seja, busca compreender se o

18

Optou-se por analisar o PCN do Ensino Fundamental ao invés do PCN da disciplina para o Ensino Médio, pois os alunos investigados ainda não concluíram o Ensino Médio e portanto não teriam

interiorizado completamente os objetivos dessa etapa 19

Foram consultados além da Proposta Curricular, o Caderno do Gestor e os 4 volumes do Caderno do Professor da 8ª série do Ensino Fundamental I. 20

Sacristán (1998) chama de currículo prescrito os documentos oficiais produzidos para orientar professores e alunos. Nesse sentido as propostas curriculares correspondem a essa forma de currículo.

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capital cultural funciona como uma disposição para a aprendizagem dos saberes

históricos escolares.

Essa perspectiva de análise se baseia nas abordagens de Apple (2006) e

Sacristán (1998) que sugerem que o currículo significa uma imposição de significado,

portanto uma forma de controle e segregação social.

Como coloca Sacristán21

, analisar o currículo é compreender o projeto educativo

e a parcela de cada disciplina específica nesse projeto. Esse entendimento da educação

como um projeto se deve ao fato de que ela tem certas consequências nos alunos e,

portanto é preciso compreender os conteúdos como parte de um projeto de socialização

maior que pretende efeitos e cuja concepção liga-se a agentes e elementos externos e

internos à escola.

Além disso, é preciso entender o currículo e o projeto que dele se depreende à

luz do que ele representa enquanto conteúdo selecionado quanto ao capital comum

disponível numa sociedade. Posto que a partir dele, é possível avaliar como se reparte

socialmente a cultura selecionada às distintas coletividades sociais que frequentam o

sistema educativo em seus diferentes níveis e especialidades.

Isso é possível, tanto para Apple como Sacristán, porque as decisões sobre o

currículo implicam um problema de distribuição cultural, ou seja, as escolhas

curriculares referendam como e qual parte da chamada ―cultura legítima‖ será

distribuída.

Por isso, a análise do que se aprende ou não em História demonstra a dimensão

política e social que o currículo guarda, mesmo que de forma oculta, no sentido do que

se propõe a inculcar.

4.1 Organização geral das propostas: estrutura e pressupostos dos documentos.

O objetivo desse item é apresentar as características organizacionais dos

documentos possibilitando nos itens seguintes a avaliação de concepções específicas.

Para isso, segue uma breve descrição da estrutura das propostas, os principais

pressupostos dos documentos sobre o ensino de História.

21 Ver ―O currículo: os conteúdos de ensino ou uma análise da prática?‖. In: SACRISTÁN, J. Gimeno e

GÓMEZ, A. I. Pérez.(1998) Compreender e transformar o ensino. Porto Alegre: Artmed.

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Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)22

foram promulgados em 1998

como parte das mudanças educacionais promovidas a partir da Lei de Diretrizes e Bases

aprovada em 1996, seu o objetivo era atender as novas demandas de ensino,

especialmente em relação a democratização e expansão do ensino, que incorporou à

escola brasileira, públicos e diferenças até então inexistentes.

O PCN foi criado com o intuito de permitir aos estados a organização de

propostas que atendessem e respeitassem a diversidade e as necessidades locais,

fornecendo em suas orientações, discussões sobre a disciplina, reflexões sobre a prática

pedagógica e procedimentos metodológicos que serviriam para a análise e seleção dos

conteúdos de acordo com as particularidades locais.

O referido documento se organiza em duas partes interdependentes: na primeira

apresenta uma caracterização da área de História e na segunda uma proposta de

currículo, ao propor os conteúdos por ciclo e os eixos temáticos e subtemas que podem

ser desenvolvidos.

A partir da caracterização da área como ciência, o PCN remonta a História como

disciplina escolar, recontando sua trajetória de disciplina, em termos de mudanças de

objetivos e de algumas normativas, confrontando o histórico da disciplina às tendências

historiográficas e ao contexto de mudanças politicas no país de forma a estabelecer os

objetivos para a disciplina, definindo como fundamental o papel da disciplina na

formação e a difusão da identidade.

Além dessa caracterização da área, o documento explicita seus objetivos para o

ensino fundamental e os conteúdos e objetivos específicos para cada ciclo.

Acompanham esses objetivos os conteúdos divididos segundo os eixos temáticos e os

subtemas em que se desdobram.

Para o terceiro ciclo é estabelecido o eixo-temático, História das relações sociais,

da cultura e do trabalho e para o quarto ciclo, História das representações e das relações

de poder. Tais eixos são divididos em subtemas que devem ser escolhidos pelo

professor a partir do diagnóstico dos conhecimentos prévios dos alunos, daquilo que

avalia como sendo importante para ser ensinado e que repercutirá na formação histórica,

social e intelectual, além das problemáticas contemporâneas que julga pertinente para a

localidade em que leciona. Com esses critérios o professor poderá escolher os conteúdos

que cada subtema desdobra, cada ciclo tem também critérios específicos de avaliação.

22

Para essa pesquisa foram consultadas as versões em PDF disponibilizados pelos governos (estadual e federal). Assim, as páginas utilizadas nas referências correspondem a essas versões.

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O PCN apresenta ainda um conjunto de orientações metodológicas e didáticas

no sentido de métodos e recursos importantes à prática de ensino como: materiais

didáticos e pesquisas escolares, trabalhos com documentos, visita a exposições, museus

e sítios arqueológicos, estudo do meio e uma reflexão sobre o estudo do tempo (tempo

cronológico, tempo da duração, ritmos de tempo), cujo objetivo é sugerir a reflexão

sobre o conhecimento histórico e suas relações com a realidade social.

Ao contrário do PCN que estabelece um documento específico para cada nível

(Fundamental I e II e Ensino Médio) e área de conhecimento, a Proposta Estadual de

São Paulo apresenta uma base comum a todas as disciplinas. Além disso, a proposta

estadual é mediada por dois documentos complementares: o Caderno dos Gestores e o

Caderno do Professor – material didático desenvolvido a partir da proposta e destinado

aos professores.

Lançada em 2008, a Proposta Curricular de São Paulo faz parte de um conjunto

de mudanças em relação à educação no estado visando a melhoria na qualidade de

ensino por meio da uniformização do currículo, do material didático e da avaliação em

larga escala, o Sistema de Avaliação de Rendimento do Estado de São Paulo

(SARESP).

A maior parte desse documento é comum as demais disciplinas23

, apresentando a

concepção de currículo que as propostas seguem e das áreas de conhecimento que

compõem essas propostas, descrevendo brevemente essas outras áreas (ciências da

natureza e humanas, linguagens e matemática24

). A Proposta justifica essas orientações

comuns a todas as áreas pela necessidade de se relacionar os currículos das disciplinas

com a contemporaneidade e em relação à cidadania.

Para isso, adota como princípio que ―todos os conteúdos disciplinares, nas

diversas áreas, são meios para a formação dos alunos como cidadãos e como pessoas.

As disciplinas são imprescindíveis e fundamentais, mas o foco permanente da ação

educacional deve situar-se no desenvolvimento das competências pessoais dos alunos.‖

(SÃO PAULO, 2008,p.34).

23

Tanto a proposta de curricular de História quanto de Matemática possuem 56 páginas e apenas na página 41 iniciam-se as orientações específicas sobre as disciplinas. 24 A nomenclatura adotada para as áreas na proposta é a seguinte: área de Linguagens, Códigos e suas

Tecnologias, área de Ciências Humanas e suas Tecnologias, área de Ciências da Natureza e suas

Tecnologias e Matemática. A proposta destaca a Matemática como uma área específica, em parte pela

tradição pedagógica do ensino e por possibilitar, se entendida como uma linguagem própria, a

incorporação crítica dos recursos tecnológicos.

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O documento também lista em suas últimas páginas, a proposta curricular para a

disciplina de História, explicitando os conceitos fundamentais para o ensino

fundamental II: Tempo e Sociedade; História e Memória; História e Trabalho e Cultura

e Sociedade; para o Ensino Médio: História e Diversidade; História e Trabalho e

Cultura e Sociedade e os conteúdos de cada série por bimestre.

A responsabilidade pela implantação da proposta é dada aos gestores e a eles é

destinado um caderno de orientações, o Caderno dos Gestores. Um documento

complementar a Proposta, que entre outras coisas estabelece os critérios de avaliação,

que permitirão formular as diretrizes das quais os professores partirão, além de sua

responsabilidade para com a formação dos docentes, é recomendado a estes que

implementem entre os professores uma ―comunidade aprendente‖, onde devem aplicar

aos docentes o que recomendam aos alunos.

A Proposta é ainda mediada pelos Cadernos do Professor. Entendido pela

Secretaria de Educação como principal instrumento pedagógico do professor, esses

cadernos comporiam a base estrutural das aprendizagens fundamentais a serem

desenvolvidas pelos alunos. (Caderno do Professor, 8ª série, v. 4, p.30).

Organizado por bimestres, conforme os conteúdos sugeridos pela Proposta

Curricular, o ―Caderno do Professor‖ é composto por orientações e situações de

aprendizagem, que são comuns aos cadernos do aluno. Nessas orientações, além de uma

pequena explanação sobre os temas trabalhados, são listadas as habilidades e

competências gerais, comuns a todos os volumes e que seguem a matriz do Exame

Nacional do Ensino Médio (ENEM)25

.

Cada conteúdo bimestral tem uma situação de aprendizagem com orientações

próprias sobre o tema para o professor, além de um conjunto de questões para avaliação

e uma proposta de recuperação.

As situações de aprendizagem são compostas em sua maior parte por pesquisas e

cabe ao professor, segundo o caderno orientar tais pesquisas. As situações segundo o

documento baseiam-se nas orientações estabelecidas pela LDB e pelo PCN e tem como

foco: a inserção dos alunos na sua realidade social, valorizando o direito de cidadania

dos indivíduos; o reconhecimento de que o conhecimento histórico é um conhecimento

25

As competências são: domínio da norma culta e de diferentes linguagens; construção e aplicação de conceitos em diferentes áreas; selecionar, organizar, representar e interpretar dados e informações para

tomar decisões e enfrentar situações problema; relacionar informações representadas de diferentes formas

para construir argumentações consistentes; recorrer aos conhecimentos escolares para elaboração de

propostas de solidariedade e de intervenção na realidade social, respeitando a diversidade sociocultural e

considerando os valores humanos.

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interdisciplinar e o estabelecimento de relações entre conteúdo e atitudes para o

reconhecimento dos alunos como agentes na construção do processo histórico.

A proposta coloca que as situações compreendem a um ―saber fazer‖ em que os

alunos recorrem a esquemas de pensamento para resolução de situações problema.

Cada situação recebe orientações próprias, mas estruturadas da mesma forma.

Em todas é destacado o papel dos conhecimentos prévios e que as situações de

aprendizagem são parte da abordagem do tema e da metodologia, sendo sugerido

inclusive uso de livros didáticos e aulas expositivas26

.

As situações iniciam como uma proposta de ―sondagem e sensibilização‖, cujo

objetivo é detectar os conhecimentos prévios dos alunos, em seguida há uma atividade

ligada à leitura e análise de texto ou algum tipo de produção e um roteiro para avaliação

dessa atividade.

A avaliação corresponde a um roteiro de observação de como a atividade foi

executada e se os objetivos foram atingidos, nos moldes do processo de avaliação

proposto pelo PCN. Há ainda ―propostas de questões para avaliação‖ que assim como a

sondagem e a atividade proposta pela situação de aprendizagem são comuns ao caderno

do aluno, mas com outra denominação: como exercícios de uma seção chamada de

―Você aprendeu?‖. Apenas a proposta de recuperação, sempre em duas opções, não é

comum ao caderno do aluno.

4.1.1 - Pressupostos dos documentos:

Esse item pretende discutir quais pressupostos orientam os documentos de forma

a compreender o que é priorizado em termos de ensino. A descrição acima evidencia

que a organização dos documentos é diferente, mas os fins para a disciplina de História

são os mesmos. Dessa forma, ao apontar os pressupostos dos documentos é possível

avaliar como tais podem ser atingidos e a consonância ou não entre eles.

Enquanto o PCN foca suas orientações na problematização dos temas e

conteúdos sugeridos, a Proposta Estadual sugere orientações para o currículo, focando

essas orientações em como o currículo deve fomentar a construção de competências e

habilidades.

26

No volume 2 é sugerido o uso do livro didático para o conceito de ―New Deal‖ e no volume 1 a situação 1 (imperialismo e neocolonialismo) é sugerido o uso de aulas expositivas sobre o tema.

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91

Para Perrenoud (1999), construir uma competência significa aprender a

identificar e a encontrar os conhecimentos pertinentes, no sentido de mobilizá-los para

diferentes situações e não apenas de forma operatória para um contexto específico,

permitindo segundo o autor enfrentar um conjunto de situações.

Dessa maneira, ao alcançar determinadas competências o aluno saberia em que

circunstâncias e momento mobilizaria seus conhecimentos. Para o autor é nessa

possibilidade de relacionar os conhecimentos prévios e os problemas que se reconhece

uma competência. Nesse sentido, as competências seriam ―metas da formação, que

permitiriam responder as demandas sociais impostas pelo mercado e suas mudanças,

além de fornecer meios para compreender a realidade e não ficar indefeso nas relações

sociais‖ (PERRENOUD, 1999, p. 32).

Não há no PCN nenhuma menção a importância da construção de competências

ou habilidades. No entanto, o documento também oferece a possibilidade de construção

de estruturas mentais, a partir da formação de noções.

Essa perspectiva cognitiva da aprendizagem está presente, ao oferecer como uma

das possibilidades pedagógicas para autonomia e consequentemente a cidadania a

construção de noções.

O documento propõe que a construção de noções interfere nas estruturas

cognitivas do indivíduo, alterando a forma como ele compreende os elementos do

mundo e as relações de interdependência entre eles e o sujeito. O ensino de História

teria parte importante nesse processo ao focar essa construção a partir do confronto de

diferentes temporalidades (diferença, semelhança, permanência e transformação).

Essas (temporalidades) são noções que auxiliam na identificação e na

distinção do ―eu‖, do ―outro‖ e do ―nós‖ no tempo; das práticas e

valores particulares de indivíduos ou grupos e dos valores que são

coletivos em uma época; dos consensos e/ou conflitos entre indivíduos

e entre grupos em sua cultura e em outras culturas; dos elementos

próprios deste tempo e dos específicos de outros tempos históricos;

das continuidades e descontinuidades das práticas. (BRASIL, 1998,

p.34).

Conforme descrito no item anterior, o PCN lista uma série de conteúdos

oriundos de escolhas por eixo-temático, apresentando como pressuposto para a seleção

de conteúdos a problematização das diferentes temporalidades históricas.

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92

Tal pressuposto como critério para escolha dos conteúdos permitiria segundo o

PCN propiciar aos alunos o dimensionamento de si mesmos e de outros indivíduos e

grupos em temporalidades históricas.

O PCN também oferece uma proposta para efetivação desse critério ao

estabelecer as intenções em relação ao aluno e professor27

sugerindo que seja feita a

diagnose das realidades e a problematização pelo professor do mundo do aluno para

confronto com diferentes realidades históricas.

Tal perspectiva demonstra outro pressuposto: a interface com o saber acadêmico.

Para o PCN, o diálogo com o saber histórico acadêmico, amplia a perspectiva da

disciplina, ao valorizar o papel dos sujeitos, de forma que os alunos como sujeitos

históricos tomem sentido em sua aprendizagem de forma a se tornarem sujeitos da

mesma.

Já para a Proposta Estadual há a necessidade de um currículo que não apenas

melhore o desempenho dos alunos, mas também ofereça uma educação de acordo com

as demandas sociais, culturais e profissionais, da sociedade contemporânea. Para isso, a

Proposta adota como objetivo promover competências que possam ser transpostas a

vida extra-escolar.

Tal perspectiva se baseia não apenas nas orientações do PCN para o Ensino

Fundamental, mas também nos PCN’s para o Ensino Médio, que incorporam a

tecnologia e o mundo do trabalho à suas orientações, sugerindo que a formação cidadã e

a identidade se relacionam ao futuro e a demanda social.

Dessa forma, a Proposta sugere que aprender na escola é a forma de exercitar as

competências sociais e cognitivas necessárias à integração produtiva. Por isso, a

reformulação do currículo estadual para fornecer uma educação mais significativa e os

pressupostos que orientam a concepção de currículo.

Esse currículo que atenda as demandas sociais exige segundo a Proposta que

sejam incorporados os seguintes princípios: ―a escola que aprende, o currículo como

27 As intenções do PCN para os alunos são: contribuir para a formação intelectual e cultural dos

estudantes; favorecer o conhecimento de diversas sociedades historicamente constituídas, por meio de

estudos que considerem múltiplas temporalidades; propiciar a compreensão de que as histórias

individuais e coletivas se integram e fazem parte da História e quanto ao professor que ele promova a importância da construção de relações de transformação, permanência, semelhança e diferença entre o

presente, o passado e os espaços local, regional, nacional e mundial; a construção de articulações

históricas como decorrência das problemáticas selecionadas; o estudo de contextos específicos e de

processos, sejam eles contínuos ou descontínuos.

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espaço de cultura, as competências como eixo de aprendizagem, a prioridade da

competência de leitura e de escrita, a articulação das competências para aprender e a

contextualização no mundo do trabalho‖ (SÃO PAULO, 2008, p.11).

A ―escola que aprende‖ aponta a necessidade de transformação da escola diante

da tecnologia e a escola como instituição deve aprender a ensinar. Focando sua função

no aproveitamento do que é ensinado – não basta apenas ensinar é preciso que

determinados resultados sejam alcançados.

O ―currículo como espaço de cultura‖ é a concepção que pretende acabar com a

noção de que cultura é algo pitoresco e folclórico e que conhecimento é saber. Ao invés

disso, a proposta entende como cultura tudo o que foi produzido a nível artístico,

científico e humanístico, transposto para uma situação de aprendizagem.

Já adoção das competências como referência segue segundo o documento os

pressupostos da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) que prioriza o direito a aprender,

retirando o que chama de foco tradicional de ―cultura do ensino‖ para ―cultura da

aprendizagem‖. As competências - assim como as noções valorizadas pelo PCN – se

baseiam na perspectiva cognitiva e referem-se tanto ao modo de ser, agir e pensar,

quanto a tomada de decisões em contextos de problemas, tarefas ou atividades, portanto

pressupõem não só as habilidades dos alunos, mas o processo de construção dessas

habilidades, ou seja, a sua relação com o conhecimento, o conteúdo propriamente dito.

A definição de habilidade aparece apenas na Matriz de Referência do SARESP,

que define tal noção como situações de aprendizagem que reúnem os conteúdos e as

competências. Assim competências junto aos conteúdos formariam as habilidades que

são ao contrário das competências, mensuráveis (SÃO PAULO, 2008b, p.15).

Essa idéia de que as competências são mais gerais e constantes e os conteúdos

são mais específicos e variáveis orienta ainda outro pressuposto: articulação das

competências para aprender, focando em competências para a vida, ou seja, focalizando

a idéia de que a competência de aprender ao longo da vida é a competência mais

importante que a escola pode ensinar, priorizando a competência da leitura e da escrita

como fundamental para que se desenvolvam as demais competências.

A relação com o mundo do trabalho também acompanha as orientações contidas

na Lei de Diretrizes e Bases e nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino

Médio. Tendo por objetivo segundo a Proposta, aproximar a teoria da prática por meio

de uma educação tecnológica, ou seja, da inserção da tecnologia em todas as áreas e não

como disciplina específica que serviria mais ainda a separação entre teoria e prática.

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94

Tal tema perpassa os conteúdos curriculares, como forma de atribuir sentido aos

conhecimentos específicos das disciplinas. Tal pressuposto sugere que uma educação

tecnológica permite compreender a tecnologia como inerente a história humana, como

elemento tanto da cultura, como das práticas sociais, culturais e produtivas (SÃO

PAULO, 2008, p. 24), permitindo também a compreensão científica dos processos

produtivos e, portanto uma melhor incorporação a eles.

Já a prioridade à competência leitora e escritora, entendida como ponto central

da proposta, se baseia nas competências para aprender do Exame Nacional do Ensino

Médio (ENEM). A Proposta justifica a centralidade dessas competências não apenas do

ponto de vista normativo, mas também ideológico, ao propor que sem estas

competências não é possível desenvolver as demais.

Assim, contemplar diferentes sistemas simbólicos forma competências e

habilidades na medida em que atua na formação dos sentidos, inclusive o histórico.

Portanto, o que se evidencia em relação aos dois documentos é uma certa

consonância de objetivos e até mesmo de procedimentos. Fruto de seu momento de

produção, posto que o documento foi elaborado dez anos antes da Proposta Estadual, o

PCN fornece à Proposta Estadual a base para a reformulação de seu currículo.

Mesmo o PCN não tratando de competências ou habilidades, a perspectiva

cognitiva é forte influência para a valorização do aluno que o documento pressupõe e é

incorporada pela Proposta Estadual a partir da centralidade das competências e

habilidades, que por sua vez, além do PCN e sofreu influência de outros documentos

produzidos ou modificados posteriormente.

Dessa forma, mesmo que uma das justificativas para a elaboração da Proposta

Estadual de São Paulo seja a ruptura com o conhecimento propedêutico, e por isso a

opção por formar estruturas mais gerais como competências e habilidades para a vida, a

opção por fundamentar-se em conteúdos conforme a estrutura do PCN não impede que

a dimensão de uso para vida se realize, ao contrário, o PCN fornece orientações

metodológicas para que se faça a conexão entre o conhecimento histórico e sua utilidade

para a vida, o que evidencia sua consonância com a Proposta.

Ao sugerir como pressuposto ―a escola que aprende‖ e ―o currículo como espaço

de cultura‖ essa aproximação fica mais evidente. O currículo como espaço de cultura,

que retira o caráter pitoresco valoriza o papel do saber acadêmico, que junto à escola

que aprende, ou seja, que compreende as necessidades dos alunos que atende, os

valoriza como sujeitos de sua própria aprendizagem, o que explica a adoção pelas

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competências que assim como as noções podem são estendidas a vida extra escolar.

Portanto, ambos sugerem as mesmas metas para formação.

No entanto, Apple28

alerta que metas de formação compreendem um processo de

socialização maior, que tem por objetivo a formação da consciência dos indivíduos e

nesse sentido o currículo não agiria de forma neutra, pelo contrário, colaboraria para um

aparente consenso, pois despolitizaria a reflexão ao ignorar o conflito como uma

característica essencial da sociedade.

Segundo as análises de Apple (2006), o ensino de habilidades compreende uma

sequência de vários ―como fazer‖, que estudadas como uma construção social deixam de

lado a análise do ―porque determinada existência‖, ou ―como ela se mantêm ou quem se

beneficia‖ (p. 37 – 46), portanto despolitizados e desprovidos de sentido.

Dessa forma, o item a seguir pretende analisar qual o conteúdo de ensino, aquele

que pode ser efetivamente ensinado a partir desses pressupostos.

4.2 – Como os documentos tomam a noção de conteúdo disciplinar

O objetivo desse item é compreender o que é possível de ser ensinado em termos

de conteúdo oferecido aos alunos. No entanto não será possível apontar com segurança

o que efetivamente é ensinado, ou seja, o currículo real, aquele que se realiza a partir de

muitas interações em sala de aula, principalmente sob a influência do trabalho do

professor. Em suma, o que se pretende ao longo desse item é apontar as possibilidades

que o currículo prescrito oferece e que podem ser recusadas ou não no dia-a-dia da

escola.

Dessa forma, para avaliar o que os documentos recomendam é necessário

primeiro retomar sua organização. O PCN apresenta um rol de conteúdos, baseados em

um eixo temático e subtemas, cuja escolha e manuseio tanto pelos sistemas estaduais

quanto por seus professores deve levar em conta a relevância desses conteúdos para a

realidade do aluno. Dessa forma, o PCN recomenda que se parta dessa realidade e a

problematize em relação a outras realidades históricas, o que possibilitaria ao aluno a

crítica e orientação para tomada de decisões.

É essa perspectiva de variar os conteúdos de acordo com a realidade dos alunos

que fundamenta as escolhas da Proposta Curricular de SP e permite que oriente o ensino

28 APPLE, Michael W (2006). Sobre a análise da Ideologia. Ideologia e Currículo. Porto Alegre:

Artmed.p. 35 – 60.

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de acordo com aquilo que considera mais pertinente as necessidades dos alunos. Assim,

a Proposta coloca como central o baixo rendimento dos alunos e por isso orienta as

mudanças curriculares para esse fim.

Ao propor conteúdos, o PCN não prevê um mínimo, mas sim rol de

possibilidades, por isso recorre a problematização da seleção, justificando suas escolhas

no diálogo com o conhecimento histórico acadêmico.

Segundo o documento, a História como campo de pesquisa enfrenta um

permanente debate que suscita novas abordagens e modelos analíticos. A principal

caraterística desse debate é a crítica à construção do conhecimento histórico, entendido

como uma representação socialmente construída, de acordo com a época e as relações

estabelecidas entre os grupos.

O que propõe como perspectiva central, a idéia de que não é possível esgotar

completamente as análises históricas, e no caso dos saberes históricos escolares

fundamenta o pressuposto de que não é possível privilegiar um sujeito em detrimento de

outro, servindo, portanto de base à perspectiva de construção da identidade como

objetivo dos saberes históricos escolares.

Dessa forma, ao tratar das diferentes perspectivas de análise do conhecimento

Histórico29

o documento avalia que a principal influência do saber histórico acadêmico

é fornecer ao saber escolar novos recursos didáticos e metodológicos – oriundos das

mudanças nos métodos de pesquisa que passaram a considerar para reconstrução do

passado muito mais do que os documentos oficiais e o valorizar o aluno como sujeito

ativo de sua aprendizagem, perspectiva que pode ser atribuída em parte ao papel dos

sujeitos na História.

As abordagens teóricas que problematizam a realidade social e

identificam a participação ativa de ―pessoas comuns‖ na construção da

História — nas suas resistências, divergência de valores e práticas,

reelaboração da cultura — instigam, por exemplo, propostas e

métodos de ensino que valorizam os alunos como protagonistas da

realidade social e da História e sujeitos ativos no processo de

aprendizagem. (BRASIL, 1998, p. 33).

Além disso, o PCN avalia que os conteúdos também são reelaborados de acordo

com o contato do saber histórico acadêmico com outras ciências humanas, incorporando

29

Ver Parâmetros Curriculares Nacionais, p. 30 a 33.

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a esses conteúdos novas problemáticas contemporâneas e permitindo assim, estudos

sobre as transformações ligadas a elas, colaborando para a ampliação da perspectiva de

que os alunos devem ser sujeitos de suas aprendizagens, ao permitir confrontos com

essas diferentes problemáticas culturais e sociais (BRASIL, 1998, p.33).

As situações de aprendizagem também recebem a influência das tendências

historiográficas ao levar em conta que o conhecimento histórico é fruto de seu tempo.

Portanto, apresentar a diversidade de documentos de que se utilizam as pesquisas

históricas, possibilita explorar diferentes fontes de informação como material didático e

desenvolver aprendizagem de procedimentos de pesquisa e análise.

Essas são experiências e vivências importantes para os estudantes

distinguirem o que é realidade e o que é representação, refletirem

sobre a especificidade das formas de representação e comunicação

utilizadas hoje e em outros tempos e aprenderem a extrair informações

de documentos (das suas formas e conteúdos) para o estudo, a reflexão

e a compreensão de realidades sociais e culturais. (BRASIL, 1998,

p.33).

A incorporação dessas perspectivas permite reelaborar o papel social da

disciplina, redimensionando seu sentido em relação à sua função e sua responsabilidade

para a construção da identidade30

.

Os diálogos entre o ensino de História e o conhecimento científico

redimensionam, assim, a importância social da área na formação dos

estudantes. Sinalizam e fundamentam possibilidades de estudos e

atividades que valorizam as atitudes intelectuais dos alunos, o seu

envolvimento nos trabalhos e o desenvolvimento de sua autonomia

para aprender.

Instigam, também, a reflexão crítica na escola e na sala de aula sobre

suas práticas, seus valores e seus conhecimentos, aprofundando as

relações do seu cotidiano com contextos sociais específicos e com

processos históricos contínuos e/ou descontínuos. (BRASIL, 1998,

p.34).

Dessa forma, a importância da aproximação entre os saberes históricos

acadêmicos e escolares permitiria que os alunos confrontassem e analisassem suas

30

Como lembra o documento a construção da identidade já foi entendida como a formação do ―cidadão patriótico‖, do ―homem civilizado‖ ou da ―pessoa ajustada ao seu meio, ou ainda ligada a pátria, ao

mundo civilizado ou do trabalho para o desenvolvimento do país. p. 34

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realidades em relação a outras, orientando suas ações, servindo, portanto à construção

da identidade e da cidadania.

Além disso, o documento sugere que o papel do ensino de História - favorecer a

partir da identificação das permanências ou transformações da realidade histórica a qual

está inserido, a participação crítica diante da realidade social e política - não é

autorrealizável, depende das escolhas pedagógicas feitas pelas escolas e pelos

professores, bem como da análise do que é a cidadania hoje e sua dimensão histórica.

No entanto, Galzerani (2005) em artigo que procura contextualizar os

documentos (PCN e DCN) para discutir as políticas educacionais e as relações sociais e

politicas que carregam, discute além do papel do Estado e suas relações com o

capitalismo contemporâneo, como suas exigências influenciam as politicas públicas e a

predominância nesses documentos de contradições.

O PCN apesar de representar um avanço31

, ao incorporar a idéia de que o

conhecimento histórico é plural, o que ampliou a noção de objeto (documentos) e de

tempo histórico (dimensões, ritmos e temporalidades como curta, média e longa

duração), além de incorporar contribuições da psicologia, especialmente do

construtivismo e a noção de cultura escolar e saberes históricos escolares, não deixa de

ser contraditório.

Ao mesmo tempo em que propõe uma maior problematização da disciplina,

contra o esvaziamento que a caracterizou, Galzeroni avalia que há um esmaecimento

das contradições, no sentido que Apple dá para o ―conflito‖ nas problemáticas sociais

abordadas. A autora avalia que as sugestões temáticas para os ciclos são genéricas,

modelizadas e modelizadoras. Fruto da incorporação da História Nova como tendência

historiográfica principal. Essa tendência recebe críticas por desconsiderar a História

Política e considerar ―tudo como história‖ – e que favorece no PCN o esmaecimento

dos embates como proposto por Galzeroni.

A História Nova tem sua origem nos embates travados pela ―Escola dos

Annales‖, que acompanhando o quadro de mudanças pelas quais as ciências humanas

passavam em relação ao século XIX propunha renovação integral, estabelecendo como

fundamental sua mudança em relação à tradições antigas e sólidas (LE GOFF, 1988, p.

26).

31

Uma das principais influências para o PCN foram as discussões incorporadas na proposta curricular do estado de São Paulo de 1986, durante o governo Franco Motoro, e que foi fruto de discussões entre

sindicatos, entidades de classe e professores de diferentes níveis.

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Os Annales propunham o fim das barreiras entre disciplinas (história política,

social, militar, etc), alegando que isso acabou por confinar o conhecimento histórico,

propondo em contrapartida uma interface com outras ciências, como forma de suprimir

as barreiras e ao mesmo tempo oferecendo uma perspectiva de história ―total‖ ou

―global‖.

Essa história total segundo Le Goff (1988) trata de compreender histórias plurais

dentro de um domínio histórico globalizante como norteador. Trata, portanto de não

considerar a pluralidade de forma sintética, mas de enxergá-la tanto numa perspectiva

de objeto globalizante, como interdisciplinar.

Nesse sentido, a História Nova é uma tentativa de história total, pois além de

interagir com outras ciências, ao introduzir a noção de ―longa duração‖, refuta

compartimentações como a História Política. Le Goff (1988, p. 45) avalia que a longa

duração é a mais fecunda das contribuições da História Nova, pois apesar das rápidas

mudanças, as forças da história só atuam e se deixam apreender no tempo longo, ou

seja, no tempo da estrutura.

Essa perspectiva está presente no PCN ao privilegiar as diferentes

temporalidades, focalizando as permanências e mudanças. Para a História Nova, isso

não é possível pela história do curto prazo, por exemplo, como a História Política que se

pauta pelas mudanças de governo (Le Goff, 1988, p.45).

Outro paradigma da História Nova presente no PCN é a noção de documento

histórico, ao compreender que os documentos históricos eram variados e iam além dos

escritos. Le Goff (1988, p. 28) coloca que ―a História Nova ampliou o campo do

documento histórico; ela substituiu a história de Langlois e Seignobos, fundada

essencialmente nos textos, no documento escrito por uma história baseada numa

multiplicidade de documentos: escritos de todos os tipos, documentos figurados,

produtos de escavações arqueológicas, documentos orais, etc‖.

Tal proposição é incorporada ao PCN tanto no papel do aluno como pesquisador,

no manuseio desses documentos, quanto em relação ao professor que deve incorporar

essa perspectiva a sua prática.

A revolução documental orienta ainda outro pressuposto da História Nova, a que

Le Goff chama de ―desejo de se interessar por todos os homens‖, posto que um número

maior de fontes retira o foco do fato para o dado, permitindo assim um maior número de

sujeitos históricos.

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Apesar de significar um avanço em termos de proposição para o ensino, a

incorporação de conceitos da História Nova demonstra ainda outra contradição que diz

respeito à produção do conhecimento pelo aluno. Ao conceituar identidade e impor-se

como um parâmetro, o PCN desconsidera as particularidades dos sujeitos envolvidos

como sujeitos históricos, o que predomina com as orientações em relação ao professor é

a valorização dos procedimentos acadêmicos, desvalorizando os conhecimentos dos

alunos, oriundos do ―senso comum‖ e que devem, portanto ser resignificados diante dos

conhecimentos acadêmicos.

Assim, Galzerani avalia um ―prevalecimento da racionalidade instrumental,

técnica, esta que hierarquiza os saberes, rotula os conhecimentos experienciais como

―senso comum‖, determinando à escola o papel de transmutá-los em saberes escolares,

científicos, verdadeiros‖ – isso é possível pelos paradigmas da História Nova como

orientação principal do PCN.

Nesse sentido, ao adotar as perspectivas do PCN a Proposta Estadual também

apresenta contradições em relação a seus fins.

Embora sugira poucos conteúdos, focando um mínimo a ser aprendido como

resposta ao baixo rendimento, a proposta não lista o que será ensinado, mas sim o que

deve ser aprendido. Essa perspectiva de ―direito a aprender‖ apoia-se na própria Lei de

Diretrizes e Bases (LDB) e nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN).

Apoiada pela LDB e DCN a prioridade sobre o que será aprendido é dada a

aprendizagem de competências e habilidades mínimas que permitiriam em situações

gerais mobilizar conhecimentos.

Incorporadas pelos alunos, essas competências e habilidades não se limitariam à

escola, mas poderiam ser mobilizadas e aproveitadas em diversas situações,

especialmente no mundo do trabalho.

Dessa forma, a proposta organiza-se em um ―currículo referido a competência‖,

que possibilitaria a articulação entre conhecimentos próprios de cada disciplina

articulados às competências e habilidades dos alunos. No entanto, não há no documento

uma descrição clara dessa articulação. Como exposto anteriormente, os conteúdos são

listados no final da Proposta, e as competências descritas referem-se às que são comuns

a todas as outras propostas, quanto às habilidades não há nenhuma descrição do que se

tratam.

Essa listagem de conteúdos é justificada pela abertura que possibilitariam em

termos de diferentes aprendizagens e para garantia de um mínimo a ser aprendido. Esse

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mínimo compõe as situações de aprendizagem presentes no Caderno do Aluno e do

Professor, que poderia além desse mínimo, sugerido pelo caderno propor outros

conteúdos. No entanto, a organização das situações de aprendizagem do material

permite pouca inserção de outras problemáticas e as competências visadas não dialogam

com os objetivos específicos da disciplina de História.

Para Ciampi (2009), em artigo desenvolvido pelo grupo de trabalho de ensino de

História da Associação Nacional de História (ANPUH), as atividades não são

contextualizadas historicamente e a análise das proposições é acrítica. Isso ocorre

porque as situações de aprendizagem centram-se em competências que não são

específicas à disciplina de História. As competências visadas são essencialmente ligadas

à leitura e a escrita e as situações de aprendizagem se reduzem na maioria das vezes a

leitura de texto ou pesquisas.

A autora avalia que isso já é suficiente para questionar esse material, posto que

se a competência leitora e escritora deve ser desenvolvida por todas as disciplinas, como

a área de História poderia colaborar para melhorar leitura e compreensão de textos em

outras áreas se na disciplina não há trabalho especifico em relação a isso.

A centralidade na competência leitora e escritora está segundo Ciampi alinhada

com as orientações transversais do PCN, que propõe a interdisciplinaridade. No entanto

o que se nota é uma subordinação à linguagem, ou como propõe Ciampi, a disciplina de

Língua Portuguesa orienta o trabalho com textos e consequentemente sua leitura.

Isso fica ainda mais evidente se analisado os conteúdos propostos. Embora

busque uma perspectiva de História Integrada (História do Brasil e Geral juntas)

demonstrando relações de continuidade, casualidade e simultaneidade, a ordenação dos

conteúdos é linear, privilegiando a história ocidental.

Dos quinze temas sugeridos para a 8ª série/ 9º ano apenas 4 referem-se a História

do Brasil. As escolhas pelos temas também não são problematizadas, como no caso do

tema (conteúdo) ―Revolução Russa e Stalinismo‖. Nas orientações da situação de

aprendizagem correspondente não há nenhuma referência historiográfica que justifique

a junção desses dois temas, a justificativa é apenas ―melhor aproveitamento da aula‖

(Caderno do Professor 8ª série, v. 1,p.8).

Portanto, o que se nota é que a seleção não tem critérios claros – pelo menos não

para os professores, principais agentes desse material. Os cadernos estabelecem por

meio das situações de aprendizagem um conteúdo fechado, uma espécie de ―pacote

fechado‖ que cabe ao professor aplicar.

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O ―pacote fechado‖ de conteúdos e a problemática particular dessas situações

limitam a autonomia do docente e desconsidera a cultura trazida pelos alunos.

Cada passo da atuação do professor é orientado - desde a forma como deve

conduzir a sondagem e a sensibilização, cujas questões propostas a ele nas orientações,

correspondem na maioria das vezes as questões propostas aos alunos - os temas e

conteúdos selecionados, competências e habilidades a serem desenvolvidas, tempo de

realização das situações até os recursos matérias, formas de avaliação e recuperação32

.

Além disso, como avalia Ciampi, os cadernos do professor não permitem os

critérios do PCN em relação à organização dos conteúdos como também em relação ao

papel do docente se realize.

Nesse sentido, ao focar as orientações em questões ligadas à execução o que se

nota é apesar do discurso de autonomia, das recomendações para que faça adaptações de

acordo com sua realidade escolar, há pouca flexibilidade, posto que há uma agenda de

procedimentos a serem cumpridos, inclusive em tempo determinado e mais, há pouco

espaço para reflexão nessas propostas sobre porque determinada seleção de um

conteúdo em relação a outro.

Dessa forma, o papel do docente como produtor de conhecimento sobre sua

disciplina e sua prática é negligenciado, tal qual a própria disciplina que sem refletir

sobre o conhecimento que elabora acaba por não refletir sobre seu papel, nem tampouco

por demonstrar objetivos claros.

Assim, se tomadas como referência as análises de Apple33

sobre a hegemonia

que os currículos possibilitam e que propositalmente desconexo da população a qual se

destina, serve a uma perspectiva hegemônica, é possível avaliar o caráter tecnocrático

da Proposta Estadual.

Ciampi corrobora essa idéia, ao avaliar que diante de um discurso de abertura e

autonomia, o que se percebe na reforma proposta pelo estado de São Paulo é um caráter

centralizador, portanto tecnocrático, no sentido das mudanças terem sido propostas fora

da prática. Para Apple, manter um caráter tecnocrático, supõe uma neutralidade que é

32

O caderno prevê 2 a 3 aulas para cada situação de aprendizagem, em média são necessárias 17 aulas para execução das atividades previstas nos cadernos por bimestre, de um total de 32 previstas, posto que

na 8ª série são previstas 4 aulas semanais. Aparentemente razoável, essa previsão de tempo recebe críticas

dos professores, pois as situações demandam mais tempo que o previsto e ainda é necessário aulas

complementares às situações propostas. 33

Ver ―Sobre a análise da hegemonia‖. In: Apple, Michael W. (2008). Ideologia e currículo. Porto Alegre: Artmed. p. 35 a 61.

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em suma inexistente, posto que impõe um modelo de comportamento seja para o

professor ou para o aluno.

A ―responsabilidade final‖ (accountibility) atribuída por meio de

análise comportamental, o modelo sistêmico de gestão e outras coisas

tornam-se representações hegemônicas e ideológicas. Ao mesmo

tempo, as considerações sobre a justiça da vida social são

progressivamente despolitizadas e transformadas em problemas

supostamente neutros que podem ser resolvidos pela acumulação de

fatos empíricos neutros, os quais, quando reinseridos em instituições

neutras como as escolas, poderão ser orientados pela instrumentação

neutra dos educadores. (APPLE, 2006, p. 42).

Isso permite inferir que o currículo que se realiza tem seus objetivos pouco

claros para professores, posto que as orientações se encontram dispersas em diferentes

documentos e principalmente porque seu papel aparece apenas diante da aplicação dos

conteúdos curriculares, via ―Caderno do Professor‖. Portanto, enquanto principal

agente, o professor tem autonomia quanto ás escolhas pedagógicas, mas diante do

material que deve ser aplicado suas escolhas ficam restritas.

Essa restrição, no entanto, não é exclusiva da Proposta. A orientação de que

professores e alunos são sujeitos de seu conhecimento e que é o principal pressuposto

do PCN também não se cumpre nesse documento. Em ambos o que se nota é apesar do

discurso, há uma atuação diminuída dos professores, posto que as normativas impõem

procedimentos que impedem a autonomia, fazendo tanto dos professores quanto dos

alunos elementos e não atores desses documentos.

Apesar da incorporação das novas problemáticas e perspectivas, esses

documentos subordinam seus agentes ao invés de valorizá-los como propõem em seu

texto. Há assim, uma enorme contradição entre o que é proposto e o que deve ser

realizado, que fica evidente quando relacionadas à visão dos alunos sobre a disciplina de

História.

4.3 – A visão dos alunos

A possibilidade de verificar se o ensino de História é útil aos alunos no sentido

de orientar e redimensionar suas opções envolveria situações específicas, pouco claras e

principalmente para muito além da escola. O que parece possível avaliar é a visão que

alunos em situação oposta de rendimento na disciplina têm sobre o conhecimento

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histórico, tentando promover uma aproximação entre essa visão, capital cultural e

currículo, como forma de compreender como o currículo atua entre esses alunos,

portanto se cumpre seus objetivos, ou seja, como realiza o que é proposto.

Para isso, foram utilizadas as opiniões retiradas de entrevistas com os dois

grupos de alunos em situação oposta de rendimento (acima e abaixo da média na

disciplina de História). Ambos alunos da mesma série, foram entrevistados assim como

seus pais a partir de um roteiro semi-estruturado, que objetivava caracterizar a relação

desses alunos com os saberes históricos e as possibilidades de uso social vislumbradas

por eles, no sentido da perspectiva do PCN, ou seja, da possibilidade de comparar suas

realidades com outras.

Conforme descrito anteriormente, os alunos investigados têm perfis familiares

muito distintos quanto aos capitais possuídos. Nesse sentido, o que se tentou averiguar

partiu da idéia de que os objetivos do PCN eram possíveis de serem alcançados pelo

currículo, e que os alunos conseguiriam mobilizar seu capital individual em função do

currículo da disciplina, para assim obter algum uso social, ou seja, conseguiriam

comparar sua realidade com outras a fim de orientar suas ações.

Nesse sentido, nas entrevistas com os alunos não foi destacado o papel do ensino

de História para compreensão e comparação de diferentes realidades sociais, o que

permite indagar que a atuação da disciplina não é sentida34

.

Os alunos apresentam relações muito diferentes com a escola. Os indivíduos

pertencentes ao grupo com desempenho acima da média na disciplina de História são

aqueles cujos pais tem maior escolaridade e, portanto, maior capital cultural, exceção

apenas de Daniela e Iago, cujos pais tem pouca escolaridade, comparável aos pais dos

alunos com desempenho abaixo da média.

Essa relação do capital cultural com o conhecimento do sistema de ensino é

verificável também pela entrevista com os alunos. Os alunos com desempenho abaixo

da média são aqueles que apresentam maior dificuldade em objetivar alguma crítica em

relação ao ensino de História, sua utilidade e até organização, no sentido do que é

ensinado.

34

O roteiro de perguntas aplicado a esses alunos visava compreender não apenas o papel do ensino de História, mas também as relações estabelecidas com a escola, no sentido de investimento. Assim, optou-

se por perguntas abertas sobre a disciplina para que os alunos pudessem expor livremente suas opiniões.

No entanto, muitas das respostas foram insatisfatórias para análise.

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Márcia tem dificuldade em compreender porque determinados conteúdos e

tarefas são ensinados e depende muito mais dos professores do que os alunos com bom

desempenho.

Perguntada sobre o que está aprendendo, Márcia fez uma descrição da última

aula, apontando sem nenhuma crítica o conteúdo que foi estudado. Apesar disso, a aluna

consegue apontar que o estudo do passado relaciona-se ao presente, mas em momento

algum deixa possibilidade de inferir que consegue perceber-se como sujeito, no sentido

de identidade, como prevê o PCN.

A compreensão que a aluna tem do ensino de História se restringe a um caráter

pitoresco. Por exemplo, ao apontar a preferência pelas curiosidades ou contagem dos

séculos – portanto numa perspectiva acrítica do saberes históricos. O que a aluna

aponta como preferência pode ser adquirido fora da escola, mas em contato com os

saberes históricos escolares pode ser reorganizado e resignificado como parte inclusive

da perspectiva que prima pelo aproveitamento da realidade do aluno e seus

conhecimentos prévios, mas que parece também não acontecer.

Vinicius e Ricardo não conseguiram articular uma resposta sobre a utilidade do

ensino de História. Quando perguntados se poderiam confrontar suas realidades com

outras classes sociais, por exemplo, alegaram não ter esse tipo de contato e que isso era

indiferente, sem, portanto demonstrar alguma noção de identidade social.

Para esses dois alunos a disciplina de História junto à de Filosofia são as que

menos gostam, identificando como motivo a necessidade de interpretação dos textos. É

possível inferir que a limitação de capital cultural desses alunos é um entrave à

apropriação desses saberes, posto que as dificuldades que expressam correspondem a

competências básicas do ensino.

Nesse sentido, o próprio objetivo da Proposta Estadual, relacionado as

competências parece não se efetivar nesses alunos. Enquanto Márcia destaca a

necessidade de fatos para o ensino de História, Giovana, aluna com desempenho acima

da média, rechaça sua importância, o que talvez indique que o currículo que se realiza

em sala de aulas está mais alinhado com uma concepção de História Tradicional,

centrada em fatos e datas. No entanto, a fala de Giovana possibilita inferir a dificuldade

dos alunos em atingir as competências esperadas ao apontar a fragilidade da leitura dos

colegas, o que obriga a professora a interpretar e produzir conclusões sem que os alunos

o façam espontaneamente.

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Entre os alunos com melhor desempenho apenas Sérgio aponta História como a

disciplina favorita e embora reconheça a utilidade da disciplina, considera outras

disciplinas como Geografia e Sociologia como mais reflexivas. Embora Bruno avalie

que a comparação com outras realidades é importante e isso é possível a partir da

disciplina de História, citando inclusive a compreensão da Revolução Industrial para os

atuais processos sociais, avalia que é necessário interessar-se por todo o tipo de

conhecimento para objetivar uma crítica:

“Cara, acho que tudo que é conhecimento é bom, tudo que vier de conhecimento

pra ele, ele tem que se interessar: por política, por história. Ver como a sociedade

envolve...por economia, tem que estar sempre antenado no que tá acontecendo...”

A fala de Bruno parece indicar, que apesar do exercício da crítica, ao separar a

política e a economia dos objetos do ensino de História, não há compreensão das

diferentes estruturas a quais a disciplina se propõe a avaliar. Ainda reconhecendo a

utilidade do ensino de História, Daniela apresenta um argumento ainda mais genérico,

de que a escolarização é um fator distintivo entre os indivíduos e por isso merece ser

valorizada em todas as formas, inclusive a disciplina de História.

Bruno ainda coloca que as disciplinas que exigem reflexão como História e

Sociologia, são desvalorizadas frente à escola. Outro dado mencionado é a possibilidade

de compreender o presente a partir do passado, tanto Sérgio quanto Bruno apontam essa

possibilidade sem, no entanto, particularizar essa crítica, relacionando-a a sua

identidade, no sentido de orientar ações.

Taís e Iago enfatizam o papel da sociologia para compreensão das diferentes

realidades, especialmente no que concerne às desigualdades sociais. Ambos avaliam que

as atividades de História são fechadas, limitando-se a temática trabalhada.

O mesmo é apontado por Giovana que também considera Sociologia uma

disciplina mais crítica e avalia que na disciplina de História muitas atividades tem fim

em si mesmo, como a biografia de imperador por exemplo35

. Para ela o mais

interessante é o processo a qual um acontecimento se relaciona:

“História tem muito a ver com sociologia e geografia, então eu acabo até

gostando. Eu não consigo lidar muito com esse negócio de data assim, acontecimentos

35 A atividade central da situação de aprendizagem Revolução Russa e Stalinismo é confecção de

biografias dos líderes da revolução.

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e nomes de imperadores, mas sim a essência de uma guerra, o que aconteceu, qual é o

reflexo hoje, isso é básico...”

Mesmo não sendo possível apontar o currículo real, aquele que se efetiva em

sala de aula, é possível inferir que a falta crítica da Proposta Estadual quanto aos

conteúdos e o papel genérico da disciplina pode ser uma das causas para que na visão

dos alunos, o objetivo do PCN assim como as competências não sejam percebidas. Isso

porque a questão da tomada de posições, fundada na comparação com outras realidades

não é apontada por esses alunos.

Por fim, cabe destacar o papel do capital cultural. Enquanto Márcia, Vinícius e

Ricardo enfatizam a empatia pela professora, no caso de Márcia ela ressalta ainda que a

professora faz reflexões permitindo que ela compreenda o contexto que permeia os

fatos, os alunos do grupo com melhor desempenho na disciplina de História destacam a

crítica como uma atividade corrente, incorporada e habitual, isso pode ser tanto fruto de

uma competência quanto do capital cultural. No entanto, pela diferença de rendimento,

posto que ambos os grupos estão sujeitos às mesmas situações de aprendizagem escolar

- mas as compreendem de forma diferente - parece possível afirmar que o capital

cultural tem papel central nessa apropriação das críticas possíveis.

Dessa forma, se evidencia que a disciplina de História parece pouco útil a esses

alunos e que seus objetivos ligados à crítica não se realizam, tanto pela diferença de

capital cultural entre os investigados, quanto pelo currículo que não oferece

possibilidades para compensação dessas diferenças, apesar de sugerir em seu texto tais

diferenças como mediadoras e motivadoras das aprendizagens.

4.4 – A contradição dos saberes históricos escolares

Esse item pretende problematizar a contradição que os documentos apresentam

ao se basearem em referências que postulam a existência de uma cultura escolar, que

valoriza papel dos sujeitos (professor e aluno) inclusive recomendando essa valorização,

ao mesmo tempo que prescrevem suas ações e hierarquizam os conhecimentos desses

sujeitos como secundários em relação aos saberes acadêmicos.

Para isso serão confrontados os conceitos propostos por Chervel (1990) sobre a

―cultura e o saber escolar‖ e que servem de referenciais teóricos para ambos os

documentos, com as pesquisas de Zamboni (2003) e Monteiro (2001), sobre o saber que

se ensina, bem como as análises propostas nesse capítulo.

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Chervel (1990) avalia que existe uma visão corrente de que os conteúdos de

ensino são impostos à escola pela sociedade e que ela ensina as ciências cujas

descobertas estão em um campo distante do escolar. Assim, a noção de ensino escolar é

associada à imagem da pedagogia, que operaria através de seus métodos uma

vulgarização ou uma lubrificação das ciências para que fossem assimiladas em sua

maior porção possível pelos alunos. Por essa concepção largamente difundida as

disciplinas escolares seriam apenas combinações de saberes e métodos pedagógicos.

O que Chervel demonstra é uma especificidade dos saberes escolares, correlata à

própria escola, historicamente criada por ela, na e para a escola, portanto tributária de

uma cultura própria. Assim, os estudos históricos das disciplinas escolares, da

especificidade do que é ensinado, demonstrou que por vezes há um afastamento das

ciências de referência e que isso ocorre porque a escola carrega finalidades específicas

ligadas à sociedade.

A concepção de escola como puro e simples agente de transmissão de

saberes elaborados fora dela está na origem da ideia, muito

amplamente partilhada no mundo das ciências humanas e entre o

grande público, segundo a qual ela é, por excelência, o lugar do

conservadorismo, da inércia, da rotina. Por mais que ela se esforce,

raramente pode-se vê-la seguir, etapa por etapa, nos seus ensinos, o

progresso das ciências que se supõe que deva difundir. (CHERVEL,

1990, p. 182).

Essa história dos conteúdos de ensino é grande influência das novas propostas

surgidas a partir dos anos de 1980 e principalmente do PCN que adota como

nomenclatura ―saber escolar‖ para designar o conhecimento próprio da escola, adotando

assim uma perspectiva de valorização da cultura escolar, onde a idéia de saber

específico, criado na e pela escola demonstra a criatividade e o papel ativo dos sujeitos

(professores e alunos) no processo de escolarização.

Porque são criações espontâneas e originais do sistema escolar é que

as disciplinas merecem um interesse todo particular. E porque o

sistema escolar é detentor de um poder criativo insuficientemente

valorizado até aqui é que ele desempenha na sociedade um papel a

qual não se percebeu que era duplo: de fato ele forma não somente

indivíduos, mas também uma cultura que vem por sua vez penetrar,

moldar, modificar a cultura da sociedade global. (CHERVEL, 1990,

p.184).

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Tal proposição fica clara no PCN na apresentação que faz da disciplina ao longo

do tempo. Ao apresentar as mudanças que a disciplina passou, o PCN coloca esse papel

dos estudos em educação, cujas percepções sobre o processo de aprendizagem, do papel

material didático, dos instrumentos e significados da avaliação, das funções sociais e

culturais atribuídas à escola e ao professor têm estreitado as relações entre currículo

formal e o currículo real. (BRASIL, 1998, p.28).

O PCN lembra a ainda a interface que ocorre entre o saber escolar e o saber

acadêmico, ao avaliar que as mudanças do ensino buscam diminuir a distância entre o

que é ensinado na escola e a produção acadêmica, de tal forma que a escola acaba por se

envolver no debate historiográfico, como também incorpora parte de suas tensões.

Dessa forma, além da incorporação da diminuição da distância entre o saber

escolar e o acadêmico - preocupação compreensível se pensada em relação ao período

anterior, especialmente a ditadura militar, em que a disciplina sofreu um esvaziamento -

o documento expõe a influência da produção acadêmica, especialmente ligada a história

das disciplinas escolares, os estudos da nova sociologia da educação e da própria

psicologia.

Essas concepções, oriundas da produção científica, explicitam, portanto os

objetivos propostos e a centralidade no sujeito ativo. No entanto, se problematizadas

diante de sua própria referencia teórica, a história das disciplinas escolares é possível

reconhecer a contradição desse documento.

Tal referência avalia que as disciplinas escolares misturam conteúdo cultural e

formação do espírito, daí seu caráter disciplinador, de modos de transmissão cultural

que se dirigem aos alunos (CHERVEL, 1990, p.186). Dessa forma, na história do

ensino avaliar a história dos conteúdos permite compreender as finalidades, as

mudanças pedagógicas e a aculturação que a escolarização opera diante das mudanças

dos interesses sociais:

A historia dos conteúdos é evidentemente seu componente central (da

história do ensino), o pivô ao redor do qual ela se constitui. Mas seu

papel é mais amplo. Ela se impõe colocar esses ensinos em relação

com as finalidades às quais eles estão designados e com os resultados

concretos que eles produzem. Trata-se então para ela de fazer aparecer

a estrutura interna da disciplina, a configuração original, a qual as

finalidades deram origem, cada disciplina dispondo, sobre esse plano

de uma autonomia completa, mesmo se analogias possam se

manifestar de uma para a outra. (CHERVEL, 1990, p.187).

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Chervel avalia que a história das disciplinas escolares oferece a história do

ensino uma investigação não apenas sobre o plano das finalidades do ensino, mas

também o processo de instauração e funcionamento de uma disciplina e o plano da

aculturação que promove.

Nesse sentido, a história das disciplinas escolares propõe entre outros objetivos a

identificação, classificação e a organização desses objetivos ou dessas finalidades que

deram origem a cada disciplina. Isso porque ao longo da história, as finalidades variam

(religiosas e sociais no Antigo Regime, psicológicas, ou seja, em relação à socialização

no século XIX, por exemplo), mas sempre carregam os grandes objetivos da sociedade e

mais do que qualquer outra influência o que se observa é que tais finalidades

determinam os conteúdos do ensino e suas grandes orientações estruturais.

Observar essas finalidades, ou seus estágios como coloca Chervel (1990, p.188),

permite compreender a instituição escolar em sua totalidade de educar e instruir e a

oposição que essas características carregam. Para o autor, a escola carrega em si uma

função educativa e apenas uma parte dessa função é dedicada à instrução. Em suma, o

que defende é o papel das disciplinas escolares para esse fim, ou seja, cabe as

disciplinas colocarem um conteúdo de instrução a serviço da educação36

.

É a partir desses aspectos valorizados pelo PCN oriundos principalmente da

história das disciplinas escolares que se pode avaliar a contradição que o documento

carrega. Se a incorporação do termo ―saber escolar‖ pressupõe no documento e na

Proposta Estadual, a criatividade e a ação dos envolvidos no processo de escolarização,

ou seja, do papel de professores e alunos como sujeitos ativos de seu conhecimento, as

orientações descritas ao longo dos documentos contradizem essa intenção.

Isso porque o PCN valoriza na maior parte do tempo a interação com o

conhecimento acadêmico e o papel do professor fica restrito à um mediador desse saber.

Monteiro (2001, p. 122), coloca que tanto no modelo tradicional, que privilegia a

relação professor-saber, quanto no modelo não-diretivo, que privilegia a relação aluno-

saber, o saber não é questionado, é na verdade dado como uma categoria à parte, que

está posto. Assim, as discussões que se fazem sobre o que é ensinado limitam-se a

36 Cabe lembrar que muitas das funções educacionais se manifestam de forma implícita e que nem todas

as finalidades explícitas em documentos se realizam, no entanto o papel das disciplinas escolares segundo

o autor é reconduzir as disciplinas a finalidade à qual está associada. Distinguir finalidades reais (por que

a escola ensina o que ensina) de objetivo ( relação entre os objetivos e as realidades pedagógicas) pouco

claro nos documentos.

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questões organizacionais e didáticas, portanto a idéia de ação dos sujeitos é

escamoteada – se o saber já está posto, não há interação com os saberes acumulados a

priori.

O mesmo pode ser dito em relação à Proposta Curricular do Estado de São

Paulo, Chervel aparece como uma das referências da proposta, no entanto, o professor

acaba pela centralidade dada as competências e as situações de aprendizagem restritivas

do Caderno do Professor, traduzido em um mero executor – com uma diferença no

entanto, apesar da orientação para que produza conhecimento sobre sua disciplina, sua

principal função não é de saber o que deve ensinar, mas sim o que o aluno deve

aprender – uma flagrante contradição em relação a produção do conhecimento (SÃO

PAULO, 2008, p.15).

No mesmo sentido, ainda que o PCN e a Proposta Estadual proponham a ideia

de se partir dos saberes dos alunos para os saberes escolares, essa proposição esconde

na verdade, uma hierarquização que evidencia os problemas relativos à legitimidade

cultural.

Enquanto o PCN propaga seu caráter mais ativo e plural, o que fica evidente

com as orientações curriculares especialmente em relação ao uso de procedimentos

científicos, é a idéia de uma hierarquia que se sobrepõe, pois o conhecimento dos

estudantes é tratado como algo vulgar e incipiente que deveria, via escolarização, ser

transformado pelo contato com o saber acadêmico em uma forma legítima de

conhecimento. Da mesma forma, a direção das atividades de pesquisa e a sondagem dos

conhecimentos prévios, relativos ao conteúdo na Proposta Estadual, demonstra essa

mesma hierarquia de saberes.

Além disso, a hierarquização dos saberes, ao privilegiar o cientifico, instala

outra contradição, relativa a finalidade do ensino de História, ou seja, a formação da

identidade, seja pessoal ou nacional.

Zamboni (2003) em um artigo sobre a construção do conhecimento escolar

avalia a questão da identidade nacional e da formação da consciência histórica nos

Parâmetros Curriculares Nacionais. Para isso, relembra que a idéia de identidade e

nação sempre estiveram presentes nas diretrizes governamentais para o ensino de

História e estavam ligadas a uma pedagogia da nação voltada à formação de uma

consciência histórica de caráter unitário e hegemônico.

A autora avalia que o documento atual deixa muito mais evidente que os

anteriores os temas ―identidade‖ e ―cidadania‖, no entanto para Zamboni (2003, p.374)

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essa questão aparece nos currículos de forma muito simplista ligada a caracterização dos

aspectos culturais e sociais, nos seus traços mais aparentes do grupo a que pertencem.

No caso da Proposta Estadual, a identidade e cidadania são apenas citadas como

objetivos, sem haver qualquer tipo de explanação sobre que identidade e cidadania são

essas. Isso porque a proposta alega a consonância de objetivos com PCN,

demonstrando, portanto, a mesma perspectiva simplista do documento federal.

Zamboni avalia ainda que identidade social e formação da consciência histórica

carregam uma relação temporal, ―um processo contínuo de mudanças e cada individuo

faz parte desse processo de transformação, pois o passado nos constitui, forma o nosso

social; nós nos encontramos imersos nesta dimensão temporal‖ (2003, p.375).

Dessa forma, o que é possível evidenciar a partir das observações da autora e da

análise dos atuais PCN e consequentemente sua influência sobre a Proposta Estadual, é

que apesar da orientação voltada para procedimentos científicos, inclusive com a

orientação para valorização de diferentes temporalidades, o papel dos sujeitos é

escamoteado.

A formação da sua identidade é colocada em relação apenas a grupos, portanto

de forma consensual, hegemônica, o que pode servir de impedimento para a

identificação dos alunos com os saberes históricos, posto que se encontram

generalizados em suas características culturais e sociais e os conhecimentos que trazem

são colocados de lado diante da hierarquia que os documentos acabam por efetivar ao

valorizar o conhecimento acadêmico.

Nesse sentido, parece possível afirmar que o conceito de ―saber escolar‖

proposto por Chervel e pela história das disciplinas escolares exerce influência na

concepção de conhecimento histórico visada. Porém, a metodologia proposta em ambos

os documentos - tanto na ênfase a História Nova proposta pelo PCN, quanto na

centralidade das competências da Proposta Estadual - não permite a realização dessa

concepção, pois sugere uma hierarquização dos saberes e uma transposição do

conhecimento científico ao ambiente escolar.

Isso fica evidente pelo papel dado ao professor, que deve manusear o que é

proposto, ou seja, ele aplica a transposição, mas não a realiza, posto que a seleção – ao

menos em relação ao currículo prescrito - é feita pelas diretrizes que orientam o ensino

de História.

Segundo Forquin (1992 e 1996), a ―transposição didática‖, é na verdade um

substituto – não se ensina um saber diretamente, mas sim um substituto didático, o que

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distancia necessariamente o saber acadêmico do saber escolar. Para o autor, há um

trabalho de reorganização e reestruturação didática do saber acadêmico, cujos

imperativos didáticos denotam traços e morfológicos e estilísticos característicos dos

saberes escolares (1992, p. 34).

Dessa forma, o que Forquin (1996) sugere é que avaliar os saberes escolares

apenas como produto de uma seleção e de uma transposição efetuada a partir de um

corpo cultural ignora a escola como produtora e criadora de configurações cognitivas e

de habitus originais – no sentido adotado por Bourdieu – que compõem o elemento

nuclear de uma cultura original.

O que o autor defende é que a escola apesar de ser um local e a matriz de saberes

típicos e formas típicas das atividades intelectuais, não permanecem fechados, antes

produzem por seu poder de modelagem do habitus a capacidade de influenciar as

práticas culturais e os modos de pensamento que predominam num país, num dado

momento (FORQUIN, 1996, p.196) . A escola não é, portanto um ―império dentro de

um império‖ ou a matriz onde a cultura das sociedades modernas encontraria uma

espécie de começo absoluto, mas é preciso levar em conta a autonomia relativa da

escola e a eficácia própria da dinâmica cultural escolar com relação á outras dinâmicas.

É possível concluir que apesar de pretendida e enunciada, a participação dos

sujeitos, professor e aluno, de forma ativa na construção do saber histórico escolar não é

possível tanto pela valorização do saber acadêmico, quanto pela noção de identidade e

cidadania genérica, que acabam por dificultar a identificação dos alunos como

participantes de um processo histórico, impedindo, portanto a formação da consciência

histórica, criando uma identidade enfraquecida quanto aos objetivos propostos - no

sentido de uma educação política37

- que permitiria a tomada de consciência e a

orientação das ações.

Tal conclusão denota que a proposta dos saberes escolares como autônomos é

pelas prescrições e medidas centralizadoras deixada de lado. Portanto, o que é

pretendido não condiz com as orientações que mesmo propagando autonomia não

permitem sua realização pelos procedimentos centrados em saberes acadêmicos, no caso

o PCN, ao valorizar a História Nova ou no caso da Proposta Estadual centrada em

competências. Ambos acabam por se tornar impedimentos à identificação dos alunos

37 Zamboni identifica como ―educação política‖ essa formação da identidade, da consciência pela noção

de pertencimento que é possível pela História.

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com a disciplina, verificável pela visão que os alunos estabelecem do ensino de

História.

Independente do que é oferecido em termos de aprendizagem, no sentido do

currículo real ou prescrito, apenas os possuidores de algum capital cultural conseguem

relacionar-se com essa outra forma de capital, que é o currículo, de forma a obter

sucesso, mais ainda – independentemente do desempenho (acima ou abaixo da média) -

entre os alunos investigados o papel da disciplina para compreensão de sua realidade

não é sentido, evidenciando que a formação da identidade não sofre influência, pelo

menos, não de forma percebida pelos alunos e que o currículo tem parte nessa não

identificação.

A perspectiva de Apple, que avalia o currículo como uma forma de capital

cultural, que presta um serviço de socialização parece explicar a situação dos dois

grupos diante dos desempenhos obtidos. O currículo parece hegemônico conforme

sugerido pelo autor, no sentido de desconsiderar os conflitos como inerentes as

diferentes realidades por meio de problemáticas genéricas como o PCN ou situações

fechados como a Proposta Estadual.

Dessa forma, o que se propôs ao analisar o currículo prescrito era compreender

suas possibilidades para a formação de uma identidade calcada no reconhecimento de si

e de outras realidades, evidenciando que os documentos que orientam o currículo por

desconsiderar a cultura própria da escola e privilegiar referenciais acadêmicos não

oferece, no sentido prescrito, essas possibilidades. Essa possibilidade fica restrita ao

currículo real, que se realiza em sala, por meio dos professores, no entanto, os

documentos demonstram primordialmente a tentativa de controlar e centralizar as ações

reais, felizmente como aponta Chervel e Forquin, há uma autonomia relativa – resta a

esperar que essa autonomia para ação da escola seja suficiente, o que infelizmente não

se evidencia pela relação entre o rendimento escolar e sua correspondência com o

capital cultural herdado dos alunos investigados.

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Considerações finais:

O presente trabalho pretendeu averiguar a relação que alunos de uma escola

pública de periferia mantêm com a disciplina de História. Nesse sentido, a pergunta que

orientou tal pesquisa partiu do aparente consenso de que por ser pouco problematizador

da realidade o saber histórico escolar não despertaria o interesse dos alunos da periferia,

no entanto como seria possível explicar então aqueles que apresentavam sucesso na

disciplina?

Nesse sentido, a hipótese que se abriu foi a de que os alunos que apresentavam

desempenho acima da média se apropriavam dos objetivos para o ensino de História

conforma a descrição do PCN. No entanto, se os objetivos do PCN eram possíveis,

deveriam ser apropriados por todos, o que não acontecia – nesse sentido a hipótese que

orientou a pesquisa foi a de que o desempenho dos alunos mantinha uma relação estreita

com o capital cultural de origem, tendo como consequência uma diferença de

apropriação.

Para averiguar tal hipótese era necessário verificar além desse capital de origem,

se o currículo da disciplina permitia essa apropriação de objetivos. Assim, o currículo

foi analisado no sentido de compreender se suscitava ou não essa possibilidade e se elas

eram percebidas pelos alunos, e mais – se havia entre os indivíduos investigados uma

disposição, no sentido de um capital cultural, que explicasse porque nem todos

obtinham o mesmo desempenho na disciplina.

A primeira constatação foi a correspondência entre práticas culturais e

patrimônio possuído e as diferenças de rendimento. O que se observou foi que os alunos

com melhor desempenho na disciplina de História tem práticas culturais semelhantes

e/ou diferenciadas em relação aos alunos cujo desempenho é insatisfatório. Tal

diferenciação permitiu a segunda constatação, de que o rendimento dos indivíduos era

correlato a classe ou fração de classe a que se pertencia, demonstrando portanto que não

é possível homogeneizar os indivíduos da periferia.

Entre os dados averiguados notou-se que os alunos com melhor desempenho

optam por carreiras universitárias mais prestigiosas ou que permitem alguma distinção.

Isso porque a perspectiva de futuro, ou seja, a fixação de objetivos depende da classe a

qual se pertence, ou seja, o habitus de classe estrutura as tomadas de posições de tal

forma que os indivíduos decidem-se por aquilo que corresponde a seu habitus.

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Essas diferenças de habitus, são em si diferenças de classe, ficaram evidentes

pela relação entre a categoria profissional dos pais e sua escolarização. Os pais dos

alunos que apresentavam desempenho acima da média tinham maior escolaridade em

relação aos pais dos alunos na faixa oposta.

Tal diferença de escolaridade proporcionou a esses pais categorias profissionais

mais rentáveis e consequentemente um capital econômico e cultural maior do que o das

famílias cujos alunos apresentavam desempenho abaixo da média na disciplina de

História.

Portanto, a escolaridade dos familiares tem papel importante no conhecimento

do sistema de ensino e distingue decisivamente os membros das classes e frações de

classe quanto às escolhas futuras.

Além desse conhecimento do sistema de ensino, as diferenças de classe ou

fração de classe também se verificaram em relação as práticas culturais. Os indivíduos

com melhores desempenhos apresentaram práticas culturais mais rentáveis ao sistema

de ensino, como por exemplo, o manejo da linguagem literária. Vista como marca de

distinção mais visível e primeira da escola, a facilidade verbal desses alunos era

originária não apenas da escolarização como também da cultura livre familiar.

A análise das práticas culturais no sentido dos gostos comprovou a evidência de

que ele é produto das condições sociais e de sua relação com o capital escolar, mesmo

em campos não abrangidos pela educação formal.

O que se observou em relação aos indivíduos com melhor desempenho foi uma

maior disposição culta, no sentido de uma competência cultural.

Essa competência corresponde a esquemas de pensamento que permitem

reconhecer a legitimidade de uma obra e é produto de uma aprendizagem, uma

disposição adquirida tanto pela família quanto pela escola da cultura legítima. Isso

explica porque nesse grupo além da frequência a objetos culturais mais legítimos, como

os museus, as práticas culturais menos escolarizadas, como gosto musical, preferências

em relação ao cinema e TV também se distinguem das práticas dos indivíduos cujo

rendimento é insatisfatório na disciplina de História, ou seja, os alunos com melhor

desempenho tem uma competência estética construída e fazem a transposição de seus

esquemas de julgamento a outros objetos, escapando à esquemas de pensamento

funcionais – característicos das classes populares.

Verificou-se, portanto um nexo entre as escolhas e um trabalho de apropriação

da cultura legítima entre os alunos com melhor desempenho, no sentido de uma

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correspondência entre as tomadas de posição estéticas e a posição ocupada no espaço

social, ou seja, evidenciou-se a presença de diferentes classes.

Tal evidência refutou portanto umas das premissas dessa pesquisa – a de que

indivíduos da periferia são homogêneos quanto a classe social, ao contrário o que se

notou pela distribuição do capital (tanto econômico quanto cultural) foi inclusive a

existência de classes globalmente opostas.

As diferenças de posições sociais que tais indivíduos ocupam foram confirmadas

pela construção dos perfis familiares. Enquanto os indivíduos (Bruno, Taís e Iago) que

apresentam desempenho acima da média na disciplina de História demonstram um

universo materialmente ordenado e um conhecimento do mundo social, inculcando uma

atitude ascética em relação à classe social de origem, o indivíduo com desempenho

abaixo da média (Márcia) não consegue superar as condições primeiras de existência,

visíveis pelas fracas práticas domésticas rentáveis a escola.

Limitados seja do ponto de vista do capital cultural ou econômico, as famílias

desses indivíduos que apresentam desempenho acima da média aderem a práticas ou

disposições que não condizem com esse capital, fazendo investimentos educativos

desproporcionais a seus recursos tal qual os pequenos burgueses ascendentes.

Essa postura é característica das frações em ascensão, que adotam o que

Bourdieu (2008c) chama de rigorismo ascético, cujas práticas são avaliadas quanto a

contribuição que podem trazer a ascensão social. Por outro lado a naturalidade das

práticas familiares e o volume global de seu capital, Giovana demonstra que ao

contrário dos outros indivíduos que apresentam bom rendimento, sua família já

ascendeu socialmente, comportando-se tal qual a naturalidade burguesa.

Portanto, além de indivíduos tipicamente populares como são os alunos cujo

desempenho na disciplina de História é abaixo da média, há na periferia indivíduos em

ascensão e estabelecidos, próximos à burguesia.

Nesse sentido, buscou-se averiguar as relações desses alunos com o currículo de

História como forma de compreender se as diferenças de desempenho correspondiam às

diferenças de capital cultural.

Dessa forma, procedeu-se a uma análise que buscou caracterizar o currículo

prescrito da disciplina, quanto as suas possibilidades para compreensão de seus fins (o

que é possível de ser ensinado) e do que é incorporado pelos alunos.

Para isso foram confrontados os principais documentos que orientam a disciplina

a nível federal e estadual: o PCN e a Proposta Curricular do Estado de São Paulo.

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A caracterização de tais documentos do ponto de vista organizacional,

demonstrou em primeiro lugar que a organização dos documentos é dispare. Enquanto o

PCN estabelece um documento específico para cada nível e disciplina a Proposta

Estadual, influenciada pela idéia de educação de qualidade e que para isso deveria

oferecer um mínimo comum, coloca suas orientações de forma unificada.

A maior parte da proposta curricular de História é comum às demais disciplinas.

Não há orientações metodológicas nem mesmo discussões específicas. A disciplina é

colocada em relação às demais e há ênfase nas habilidades e competências que a escola

deve desenvolver, por outro lado o PCN enfatiza a problematização da disciplina,

estabelecendo orientações metodológicas, que vão desde procedimentos até critérios

para seleção de conteúdos.

Apesar das diferenças de orientação, é possível inferir que há entre PCN e a

Proposta Estadual mais consonâncias do que dissonâncias: ambos focam questões como

a cidadania e a identidade – orientações estas presentes na LDB e na DCN - com a

diferença de que a Proposta estadual não define o que entende por ambos, alegando se

basear nas orientações do PCN.

Além disso, a perspectiva de manuseio dos conteúdos pelo professor conforme a

realidade dos alunos acompanha os dois documentos. Essa liberdade quanto a atuação é

uma pretensão comum também, no entanto, seja pelas orientações específicas do

Caderno do Professor ou pelos critérios de seleção impostos pelo PCN o que se pode

inferir sobre os documentos é que apesar da valorização do professor como produtor de

conhecimento suas atividades são prescritas pelos documentos, portanto havendo uma

contradição em ambos.

Essa ênfase no trabalho do professor evidencia ainda outra perspectiva, a do

fracasso ou sucesso dos alunos – ao enfatizar o papel do professor ambos os

documentos deslocam a culpa pelo fracasso dos sistemas de ensino para o professor ou

ainda para os gestores, no caso de São Paulo, cuja função é fazer com a que a Proposta

seja cumprida pelos professores.

Além disso, o manuseio do currículo pelo professor encerra uma das maiores

contradições dos documentos. Baseado no PCN, a Proposta curricular estabelece que os

conteúdos devem ser manuseados de acordo com a realidade dos alunos, no entanto, as

situações de aprendizagem propostas tanto no caderno do aluno quanto no caderno do

professor são acríticas e descontextualizadas historicamente.

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No entanto, se não há possibilidade de escolha dos conteúdos por conta das

orientações do material didático, a pretensa problematização e autonomia do PCN em

relação ao professor escamoteia o mesmo problema. Embora considere que o professor

deve partir da realidade do aluno, em suas orientações o PCN valoriza na verdade o

papel do conhecimento acadêmico, de forma que o conhecimento dos alunos é colocado

como uma vulgarização que via escolarização seria transformado.

A importância da aproximação entre os saberes históricos acadêmicos e

escolares permitiria que os alunos confrontassem e analisassem suas realidades em

relação a outras, orientando suas ações, servindo, portanto, à construção da identidade e

da cidadania, no entanto as sugestões temáticas para os ciclos são genéricas.

Essa noção do aluno como sujeito de sua aprendizagem em consonância com a

própria noção de sujeito histórico se alinha com os pressupostos da História Nova como

tendência historiográfica principal. No entanto, apesar de incorporar avanços quanto a

noção de documento e pluralidade histórica, essa tendência ao defender a

compartimentação, desconsidera, por exemplo, a História Política, o que no PCN

favorece o esmaecimento dos embates e portanto do conflito como propõe Apple (2006)

como conteúdo de ensino, apresentando portanto uma visão de conhecimento histórico

consensual.

Ao conceituar identidade e impor-se como um parâmetro, o PCN desconsidera

as particularidades dos sujeitos envolvidos como sujeitos históricos, o que predomina

com as orientações em relação ao professor é a valorização dos procedimentos

acadêmicos.

Ambos os documentos adotam como influência a idéia de cultura e saber

escolar, mas orientam em seus procedimentos para uma espécie de transposição dos

saberes acadêmicos. Enquanto para o PCN o professor é um mediador do saber

acadêmico, na proposta estadual, pela centralidade dada à linguagem com a ênfase nas

competências, o professor também é desvalorizado, figurando como um mero executor

das situações de aprendizagem.

Portanto, o papel dos sujeitos, professor e aluno, de forma ativa na construção do

saber histórico escolar não é possível tanto pela valorização do saber acadêmico, quanto

pela noção de identidade e cidadania genérica, que acabam por dificultar a identificação

dos alunos como participantes de um processo histórico, impedindo, portanto a

formação da consciência histórica e favorecendo uma identidade enfraquecida.

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A hipótese de que os alunos fazem uso social dos saberes históricos, no sentido

de compreensão e comparação de diferentes realidades sociais, permite indagar que a

atuação da disciplina não é sentida, posto que nas entrevistas com os alunos não foi

destacado o papel do ensino de História.

O que se evidenciou da relação dos alunos com o conhecimento histórico passa

por além de uma não identificação, em termos de reconhecimento, conforme os

objetivos do PCN, a um rendimento correlato à seu capital cultural.

Os alunos com desempenho abaixo da média são aqueles que apresentam maior

dificuldade em objetivar alguma crítica em relação ao ensino de História, sua utilidade e

até organização, no sentido do que é ensinado.

Ao contrário, os alunos do grupo com bom desempenho são capazes objetivar

uma crítica ao ensino de História. No entanto, ambos os grupos não apontam a

disciplina de História como reflexiva ou problematizadora de suas realidades, a visão

corrente é que a disciplina é fechada, limitada as temáticas – mesmo os alunos com

melhor desempenho que reconhecem a disciplina como útil, apontam outras disciplinas

como Geografia, Sociologia e Filosofia como mais reflexivas.

Além dos objetivos do PCN serem pouco percebidos é possível questionar ainda

a centralidade da linguagem na proposta curricular de SP – dois dos alunos pertencentes

ao grupo com desempenho abaixo da média apontam o excesso de leitura como

principal entrave à compreensão da disciplina de História. Embora não seja possível

averiguar a metodologia utilizada pela professora da escola, a fala de outra aluna,

pertencente ao grupo contrário, coloca como essa dificuldade em relação a linguagem

está presente.

Nesse sentido, o que foi possível averiguar demonstra que a relação entre os

indivíduos e a aprendizagem dos saberes históricos, no sentido de sujeitos históricos não

é clara – nenhum dos alunos aponta a disciplina como fundamental a reflexão ou a sua

identidade, o que evidencia que o rendimento na disciplina alinha-se muito mais a uma

disposição geral para escola – essa, dada pelo capital cultural familiar – do que aos

conteúdos ensinados pela escola.

O que se pode concluir é o papel determinante do capital cultural para o bom

desempenho na disciplina de História, provavelmente generalizável as demais

disciplinas, o que demonstra que tanto a escola mantêm as diferenças iniciais como

também o currículo prescrito, apesar de suas alegações, mantêm a diferença entre a

cultura legítima e a cultura dos alunos. Dessa forma, o capital cultural continua a ser

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determinante para o desempenho escolar, fazendo com que alunos com diferentes

capitas mantenham relações diferentes com a escola e obtenham diferentes resultados.

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Anexos:

1 - Questionário sobre práticas culturais

Público alvo: alunos do 2º ano do Ensino Médio que tenham cursado o 9º ano na escola

em 2009.

Bloco I: Dados pessoais e familiares

1. Nome:

2. Idade:

3. Há quanto tempo estuda na escola?

4. Bairro em que reside atualmente:

5. Há quanto tempo reside nesse bairro?

6. Exerce alguma atividade remunerada?Qual?

7. Quantas pessoas vivem em sua casa? (Indique o grau de parentesco)

8. Quantos irmãos (as) você têm? (indique sua posição em relação à eles).

9. Qual a escolaridade de seus irmãos (as)?

10. Algum deles interrompeu os estudos? Em que série?

11. Qual a escolaridade de seu pai?

12. Qual atividade seu pai exerce atualmente? (se aposentado ou desempregado

indique a última atividade que desenvolveu ou se aposentou).

13. Especifique em que tipo de lugar seu pai trabalha (empresa pública ou privada,

comércio, escritório, indústria, etc.)

14. Qual a escolaridade de sua mãe?

15. Qual atividade seu mãe exerce atualmente?(se aposentado ou desempregado

indique a última atividade que desenvolveu ou se aposentou, em caso de dona de

casa, especifique se ela trabalhou anteriormente e há quanto tempo não trabalha

mais).

16. De acordo com a resposta anterior, especifique em que tipo de lugar sua mãe

trabalha (empresa pública ou privada, comércio, escritório, industria, etc.)

Bloco 2: Da relação com a escola

1. Desde que ano e série você estuda na escola?

2. Você estudou em alguma escola particular? Em caso de resposta afirmativa,

especifique por quanto tempo e o motivo da saída.

3. Você pretende fazer um curso superior (faculdade)?

4. Qual o curso pretendido?

5. Caso tenha respondido sim às questões 3 e 4, explicite os motivos que o (a)

levaram a escolher esse curso?

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Bloco 3: Práticas culturais e de lazer

6. Assinale as duas alternativas mais frequentes em relação ao local onde ocorrem

suas atividades de lazer.

o Em sua própria casa

o Casa de familiares

o Casa de amigos

o Lugares públicos (praças, parques, quadras poliesportivas)

o Lugares privados (clubes, shopping, por exemplo)

7. Você costuma fazer refeições fora de casa aos finais de semana?

o Sempre

o Algumas vezes

o Poucas vezes

o Nunca

8. Você já visitou museus

o Sim

o Não

o Em caso de afirmativa, qual ou quais museus já visitou?

9. A maioria das visitas aconteceram com:

o Escola

o Familiares

o Amigos

o Outros. Especifique:

10. Você freqüenta ou freqüentou algum tipo de curso fora da escola (curso de

línguas, informática, dança, pintura, música, atividade física, etc)? Qual ou quais?

Onde?

11. Você viaja com freqüência?

o Não

o Sim

Em caso de afirmativa, especifique os lugares para o qual já viajou:

12. As viagens acontecem geralmente:

o Em companhia da família

o Em companhia de amigos

o Sozinho (a)

13. Das alternativas abaixo especifique as que correspondem aos motivos mais

freqüentes de suas viagens:

o Visitar parentes

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o Conhecer lugares turísticos

o Trabalho

14. As viagens geralmente são:

o Curta duração (fins de semana, por exemplo)

o Longa duração.

15. Quando viaja onde costuma se hospedar?

16. O que você costuma fazer nas férias escolares?

17. O que você costuma fazer em seu tempo livre (marque as 4 alternativas que

acontecem com maior freqüência).

o Ouvir música

o Pratica esportes

o Jogos eletrônicos (vídeo game, computador, celular)

o Jogos (tabuleiro, cartas)

o Leitura (não indicada pela escola)

o Assiste televisão

o Internet

o Cinema

o Peças de teatro, espetáculos, shows

o Assiste filmes em casa (dvd)

o Conversa com amigos

o Conversa com familiares

Bloco 4: Gostos e práticas culturais

18. Quais os estilos musicais você ouve com mais freqüência. Cite ao menos três.

19. Cite ao menos três cantores, bandas e/ou grupos que você mais gosta.

20. Você prefere:

o Artistas nacionais

o Artistas estrangeiros

21. Você se identifica com o estilo musical de algum parente? Especifique com qual

parente e o estilo musical em comum.

22. Quais os estilos musicais escutados em sua casa?

23. Você costuma ler livros além dos obrigatórios?

o Sim

o Não

24. Sobre seus hábitos de leitura, selecione os gêneros que mais gosta.

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o Romance (policial, aventura, ficção cientifica, etc)

o Poesia

o Espirituais/ religiosos

o Revistas

o Jornais

o História em quadrinhos

o Outros:________________________________________

25. Você prefere autores:

o Nacionais

o Estrangeiros

26. Você tem algum autor preferido?

o Sim

o Não

Em caso de afirmativa, especifique quem é seu autor favorito.

27. Qual o último livro que você leu e por quê?

28. Você vê seu pai lendo em casa?

o Sim

o Não

29. Assinale que tipo de leitura você vê seu pai fazendo em casa:

o Documentos do trabalho

o Manuais em geral

o Bilhetes escritos por familiares

o Contas

o Livros

o Jornais

o Revistas

30. Você vê sua mãe lendo em casa?

o Sim

o Não

31. Assinale que tipo de leitura você vê sua mãe fazendo em casa:

o Documentos do trabalho

o Manuais em geral

o Bilhetes escritos por familiares

o Contas

o Livros

o Jornais

o Revistas

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32. Você vê seus irmãos lendo em casa?

o Sim

o Não

33. Assinale que tipo de leitura você vê seus irmãos fazendo em casa:

o Documentos do trabalho

o Manuais em geral

o Bilhetes escritos por familiares

o Contas

o Livros escolares

o Livros não escolares

o Jornais

o Revistas

34. Qual ou quais programas costuma assistir na TV?

35. Tem acesso a TV à Cabo? Que tipo de programas assiste com mais freqüência?

36. Indique o lugar em que você utiliza a internet com maior freqüência:

o Em casa

o Apenas na escola

o Lan houses

o Casa de amigos

o Casa de parentes

o Outros:___________

37. Quando faz uso da internet quais dos ambientes abaixo visita mais

frequentemente:

o Email

o Sites de relacionamento (orkut, facebook, twitter)

o Chats e bate papos (MSN, Skype)

o Sites institucionais (museus, teatros, universidades, lojas, etc)

o Sites de busca e pesquisa (Google, por exemplo)

38. Você costuma frequentar cinemas?

o Não

o Sim

Em caso de afirmativa, quantas vezes por semestre?

39. Quanto ao tipo de filmes assinale os 4 gêneros que mais lhe agradam

o Drama

o Comédia romântica

o Aventura

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o Policial

o Terror, suspense

o Musical

o Guerra

o Históricos

o Documentários

o Biográficos

40. Quais os últimos 2 filmes que você assistiu no cinema?

41. Você costuma a assistir filmes em casa? Em caso de afirmativa, especifique com

que frequência e como costuma conseguí-los.

42. Ao escolher um filme você leva em consideração:

o Indicação de amigos

o Propagandas na TV

o Propagandas no cinema

o Propagandas em jornais e revistas

o Propagandas na internet

o Comentários/criticas da imprensa especializada

o Titulo do filme

o Atores do filme

o Diretor do filme

o Premiações que recebeu

43. Sobre os lugares que freqüenta

o Festividades promovidas pela escola

o Bares e lanchonetes

o Shows de música

o Espetáculos de dança

o Espetáculos de teatro

o Festas e baladas

o Jogos esportivos

o Eventos em família

o Restaurantes

44. Qual ou quais programas você costuma fazer com sua família?

45. Você realiza alguma atividade na companhia de seu pai? Especifique.

46. Você realiza alguma atividade na companhia de sua mãe? Especifique.

47. Você recebe mesada

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o Todos os meses

o Sim, mas não todos os meses

o Só recebo quando peço

o Nunca recebo

48. Como você gasta esse dinheiro?

o Para sair com amigos, festas e baladas

o Freqüentar shows, cinema, teatro

o Comprar presentes

o Comprar objetos pessoais (roupas, sapatos)

o Livros e revistas

o CDs e DVDs

o Jogos ou artigos esportivos

o Artigos eletrônicos

o Gastos com celular

o Outros:_____________________________________________

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2 – Roteiro de entrevista semi-estrutura para alunos

Relação entre a aprendizagem dos saberes históricos e seu uso social na visão dos

alunos

1. O que você acha da escola? E por que a escolheu?

2. Em sua casa é comum conversar sobre a escola? O que seus pais falam sobre ela?

3. Como você se definiria como estudante?

4. Você valoriza alguma matéria em especial, ou seja, considera que algumas matérias

merecem mais dedicação do que outros? Quais e por quê?

5. O que você acha do ensino de História? Considera útil? Por quê?

6. Você considera que os saberes históricos ajudam a compreender e comparar a sua

realidade com outras? Justifique.

7. Você considera importante compreender diferentes realidades sociais? O que isso

pode acrescentar em sua vida?

8. Quais são as características de uma boa aula de História?

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3 – Roteiro de entrevista com pais de alunos

Bloco 1: Descrição familiar

1. Quantas pessoas entre adultos e crianças moram em sua casa? Qual a idade de

cada um?

2. Qual a origem de vocês (pai e mãe)? E de seus pais?

3. Onde nasceram seus filhos?

4. Qual a escolaridade de cada um de vocês?

5. Qual a escolaridade de seus pais e dos pais de seu marido ou esposa?

6. Qual a sua profissão e do seu marido/esposa?

7. Como aprendeu essa profissão? Já trabalhou em outra profissão? Qual ou quais?

8. Quantas e quais pessoas trabalham na casa? O que fazem?

Bloco 2: Práticas de lazer e escrita familiares

9. Vocês participam de alguma associação, sindicato, comunidade, igreja ou outro

grupo?

10. O que vocês fazem no tempo livre, finais de semana, por exemplo?

11. Vocês costumam visitar parentes ou pontos turísticos da cidade?

12. Costuma viajar? Para que lugares? E com que frequência?

13. Qual a programação da TV e rádio vocês assistem e ouvem mais?

14. Existe algum programa de TV que o sr(a) proíbam seus filhos de assistirem e

por quê?

15. A sra (o) costuma assistir algum programa com seus filhos? Quais e por quê?

16. Além da TV e do rádio a sra (o) faz alguma outra atividade com seus filhos?

Qual?

17. A sra (o) costuma ler livros, revistas ou jornais? O que prefere? Exemplifique

alguns de seus favoritos.

18. Algum membro da família lê com freqüência? Qual tipo de leitura esse familiar

faz?

19. Algum membro da família escreve com freqüência? Qual tipo de escrita esse

membro da família faz?

20. Costumam trocar bilhetes com recados ou orientações?

21. Sua família tem acesso à internet? Em qual lugar costumam acessar a internet?

22. Escrevem cartas ou emails para familiares ou amigos?

23. Além de seus filhos, vocês (pai e mãe) utilizam a internet? Para que?

Grupo 3: Práticas escolares familiares

24. Seu filho fala da escola? O que?

25. Costuma acompanhar as notas de seu filho e o andamento das atividades que ele

relata?

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26. Como faz para ajudar seu filho nas tarefas de casa? Costuma ajudá-lo nas tarefas

da disciplina de História? De que forma?

27. Seu filho costuma pesquisar em livros, Internet, bibliotecas?

28. Além dos livros escolares, há outro tipo de livros em sua casa? Quantos

aproximadamente?

29. Quem da família costuma auxiliar seu filho nas lições de casa? Ele tem um local

próprio para estudar? Onde ele estuda e em que condições (barulho, luz,

mobiliário)?

30. Como é a rotina de seu filho em casa?

31. Além de ir a escola seu filho faz alguma outra atividade fora de casa, por

exemplo, esportes ou cursos? Onde?

32. Como a sra (o) definiria seu filho como estudante?

Grupo 3: Impressões acerca da escola

33. O que a sra (o) acha da escola?

34. Por que escolheu essa escola?

35. A sra (o) costuma conversar com seu filho sobre a escola? Isso é freqüente?

Sobre o que falam?

36. Seu filho costuma conversar sobre os professores e suas preferências em relação

aos conteúdos ensinados?

37. A sra (o) sabe quais são as matérias em que seu filho se sai melhor e as que mais

gosta?

38. Ele identifica algum motivo para a preferência de algumas matérias ou

conteúdos?

39. A sra valoriza alguma matéria em especial, ou seja, considera que algumas

disciplinas merecem mais dedicação do que outras? Quais e por quê?

40. O que seu filho relata sobre o ensino de História?

41. O que sra acha do ensino de História? Considera útil? Por quê?