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Kalagatos Kalagatos Kalagatos Kalagatos Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 10 N. 19, INVERNO 2013 69 BRUNO LEONARDO CUNHA * Recebido em abr. 2013 Aprovado em jul. 2013 AS CONSEQUÊNCIAS DE SONHOS DE UM VISIONÁRIO PARA A CONCEPÇÃO KANTIANA DA METAFÍSICA: O PROBLEMA DO ESPÍRITO E SUAS IMPLICAÇÕES NO PERÍODO PRÉ-CRÍTICO * Professor do curso aberto de filosofia do SEMINÁRIO NOSSA SENHORA DAS DORES. Doutorando em Filosofia pela UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. Este artigo é uma extensão de uma parte da pesquisa realizada na dissertação Sobre a questão do espírito: Sonhos de um Visionário e suas contribuições para a ética crítica de Kant. As pesquisas atuais concentram-se em torno do desenvolvimento e da gênese da ética kantiana. RESUMO Este artigo tem como objetivo destacar a importância do texto Sonhos de um Visionário explicados por Sonhos da Metafísica, publicado em 1766, para o desenvolvimento da filosofia teórica de Kant e, particularmente, para sua concepção de metafísica. Através dos insolúveis problemas da psicologia racional, abordados no pequeno tratado, Kant percebeu definitivamente as inconsistências de suas noções iniciais de tempo, substâncias ativas e espíritos e, assim, a inviabilidade do sistema de metafísica que buscou desenvolver em seus trabalhos iniciais, compreendidos entre o período de 1746 e o final de 1750. A partir deste diagnóstico, observa-se a gradativa diminuição do otimismo de 1764, em relação à reconstrução da metafísica como ciência dedutiva. Com efeito, Kant é conduzido aos primeiros insights em direção à consciência da inviabilidade efetiva do conceito tradicional de metafísica e da necessidade de uma reforma em seu significado funcional. Com este movimento, alguns passos importantes serão delineados em direção ao seu pensamento maduro. PALAVRAS-CHAVE Metafísica. Psicologia racional. Kant. Desenvolvimento inicial.

Recebido em abr. 2013 3 Aprovado em jul. 2013 201 S UM ... · led Kant to realize the inconsistency of his early concepts of time, active substances and spirits and the impossibility

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BRUNO LEONARDO CUNHA *

Recebido em abr. 2013Aprovado em jul. 2013

AS CONSEQUÊNCIAS DE SONHOS DE UM VISIONÁRIO PARAA CONCEPÇÃO KANTIANA DA METAFÍSICA: O PROBLEMA DOESPÍRITO E SUAS IMPLICAÇÕES NO PERÍODO PRÉ-CRÍTICO

* Professor do curso aberto de filosofia do SEMINÁRIO NOSSA

SENHORA DAS DORES. Doutorando em Filosofia pela UNIVERSIDADE

FEDERAL DE MINAS GERAIS. Este artigo é uma extensão de umaparte da pesquisa realizada na dissertação Sobre a questão doespírito: Sonhos de um Visionário e suas contribuições para aética crítica de Kant. As pesquisas atuais concentram-se emtorno do desenvolvimento e da gênese da ética kantiana.

RESUMO

Este artigo tem como objetivo destacar a importância dotexto Sonhos de um Visionário explicados por Sonhos daMetafísica, publicado em 1766, para o desenvolvimento dafilosofia teórica de Kant e, particularmente, para suaconcepção de metafísica. Através dos insolúveis problemasda psicologia racional, abordados no pequeno tratado, Kantpercebeu definitivamente as inconsistências de suas noçõesiniciais de tempo, substâncias ativas e espíritos e, assim, ainviabilidade do sistema de metafísica que buscoudesenvolver em seus trabalhos iniciais, compreendidos entreo período de 1746 e o final de 1750. A partir destediagnóstico, observa-se a gradativa diminuição do otimismode 1764, em relação à reconstrução da metafísica comociência dedutiva. Com efeito, Kant é conduzido aosprimeiros insights em direção à consciência da inviabilidadeefetiva do conceito tradicional de metafísica e danecessidade de uma reforma em seu significado funcional.Com este movimento, alguns passos importantes serãodelineados em direção ao seu pensamento maduro.

PALAVRAS-CHAVE

Metafísica. Psicologia racional. Kant. Desenvolvimento inicial.

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ABSTRACT

The aim of this paper is to highlight the importance ofDreams of a Spirit-seer elucidated by Dreams ofMetaphysics from 1766 for the development of Kant’stheoretical philosophy and particularly to hisconception of metaphysics. Insoluble problems relatedto rational psychology, presented in Dreams, definitelyled Kant to realize the inconsistency of his earlyconcepts of time, active substances and spirits and theimpossibility of its early metaphysical system presentedbetween 1746 and the end of 1750. This prospect ledKant to leave the optimism of 1764 in relation to thereconstruction of metaphysics as deductive science andontology. Accordingly, emerge the first insights intothe effective impossibility of the traditional concept ofmetaphysics and consciousness of the need for reformin their functional significance. Some important stepsto be taken toward his mature thought from this.

KEYWORDS

Metaphysics. Rational psychology. Kant. Earlydevelopment.

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1. A INTERPRETAÇÃO DE SONHOS

A literatura secundária tem afirmado que o trabalho publicado por Kant, em 1766, intitulado Sonhos

de um Visionário, é bastante estranho. A forma literáriae a roupagem estilística que lhe foram conferidasdestoam completamente da tradição da literaturafilosófico-científica do século XVIII. Ademais, semdúvida, ele se apresenta como o mais peculiar dentretodos os escritos que constituem o vasto corpus dafilosofia kantiana. O estilo da redação que lhe compõeé complexo, rebuscado e diligente, mas, sobretudo, bemhumorado, satírico, irônico e literário. Ao lançar mãodesses artifícios, Kant obscureceu o significado e ocaráter da obra e suscitou a dúvida em seus leitores,gerando uma grande dificuldade interpretativa queperpassa ainda os nossos dias. O estilo diferenciadode Sonhos tornou difícil determinar qual é o pontoprincipal do livro. Esta foi uma dificuldade apontadalogo nas primeiras resenhas da obra feitas por Herder,Feder e Mendelssohn1.

1 Em sua resenha, Mendelssohn antecipa as dificuldades queos intérpretes modernos teriam com o pequeno trabalho. “Otom de piada, com o qual este pequeno trabalho é escrito,deixa o leitor algumas vezes na dúvida [...]” (MENDELSSOHN,2002, p. 123). Provavelmente, Mendelssohn sentiu-se confusocom o tom irreverente do texto porque as sátiras e as críticasdirecionavam-se à metafísica tal como era ilustrada em seutrabalho Abhandlung über die Evidenz. Também pelo fato deque Kant, anteriormente, havia defendido a psicologia racionale a construção de uma metodologia para a metafísica. Dessemodo, a atitude cética de Kant parecia injustificada(SCHÖNFELD, 2000, p. 235).

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Toda estranheza que envolve o escrito, todavia,não se refere, particularmente, à forma de seu estilo.Deve-se admitir que, além disso, a atitude cética e opretexto, representado nas histórias fantásticas dovisionário sueco Emanuel Swedenborg, são também aspeças responsáveis pelas diversas dificuldadesinterpretativas que envolvem o texto. De fato, não éde tudo óbvio o que Sonhos de um Visionário significa.Talvez este seja o motivo pelo qual os comentadores,de maneira geral, tenham atribuído pouca importânciapara o texto pré-crítico, fadando-o à obscuridade.

O objetivo desse artigo é argumentar a favor daimportância do pequeno tratado para o desenvolvimentointelectual kantiano, destacando a maneira com a qual,mediante o problema da psicologia racional, Kantpromove o abandono de suas pretensões iniciais deestabelecer uma metafísica como base das ciênciasnaturais. De um lado, buscaremos sublinhar, de acordocom as indicações do texto, a inconsistência das noçõesiniciais kantianas de espaço, substâncias ativas eespíritos. De outro, sublinharemos o abandono daatitude otimista que perpassa o Ensaio Premiado[Preisschrift] de 1764, relacionada à possibilidade deuma reconstrução da metafísica enquanto ciênciadedutiva e ontologia.

2. A RELEVÂNCIA DO PROBLEMA DA PSICOLOGIA RACIONAL

No início dos anos de 1760, Kant encontrava-se imerso em dúvidas profundas consequentes do modocom o qual conduziu suas reflexões na década anterior.Na década de 50, com o objetivo de alcançar umacompreensão completa do mundo, o pensamento

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kantiano empreendeu a tentativa de reconciliar omodelo newtoniano de investigação natural com osprincípios racionalistas da filosofia de Leibniz-Wolff.Desde o início, Kant aceitou o conceito de atraçãogravitacional de Newton como o princípio fundamentalpara a explicação dos fenômenos naturais. Contudo,parecia-lhe necessário considerar que o estabelecimentocompleto de uma filosofia natural exigia suafundamentação na metafísica 2. Assim, a física deveriaser conciliável com algumas noções fundamentais dametafísica, como as de substância e forças ativas, semas quais não seria possível explicar os fenômenos emsua totalidade. Para a visão pré-crítica, os âmbitosmetafísicos e físicos são compatíveis e coincidentesporque são aspectos fundamentais da mesma estrutura.A natureza deve ser interpretada a partir de doisaspectos indissociáveis 3, a saber, o componenteinteligível-qualitativo e o componente sensível-quantitativo. Com efeito, a partir dessa hipótese, devese admitir que substâncias imateriais, forças ativas ealmas encerram uma relação próxima com osfenômenos físicos e os corpos materiais. Deve-seaceitar, ademais, a possibilidade de que substânciasmateriais e imateriais possam interagir sem problemas,

2 Kant deixa claro o papel importante da metafísica em relaçãoà física natural em uma passagem da Física Monadológica.“Portanto, a metafísica, que muitos dizem que deve ser evitadano campo da física, é de fato seu único suporte e aquilo quelhe dá luz” (AA, 1:475).

3 Ver os maiores escritos kantianos dos anos de 1750: HistóriaNatural Universal (1755), Nova Explicação (1755) eMonadologia Física (1756).

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uma vez que são aspectos peculiares de um mundoúnico. Todavia, esta perspectiva4, gradativamente,conduziu Kant a diversas dúvidas e dificuldades.Talvez, a mais relevante delas estivesse ligada aorelacionamento das coisas materiais e imateriais e aolugar da alma nessa relação 5.

De fato, devido a este traço característico, ametafísica inicial de Kant colocou os aspectos materiaise imateriais do mundo em incômoda proximidade 6.Em decorrência disso, apareceram sérias dificuldadesem traçar uma linha divisória clara entre coisasmateriais e imateriais. Uma forte evidência sobre estaafirmação pode ser verificada em uma citação presentena parte final do ensaio de 1764, intitulado Investigação sobrea Evidência dos Princípios da Teologia Natural e da Moral(doravante: Ensaio Premiado [Preisschift]), na qualexplicitamente se nota a dificuldade de Kant emestabelecer, em termos claros, a relação entre anatureza da alma e a da matéria. Se por um lado, Kantreconhece que a alma não é idêntica à matéria, poroutro, não fecha a possibilidade dela, enquantosubstância simples, se vincular, de modo próximo, àcomposição das coisas materiais.

Eu admito que temos uma boa prova paraestabelecer que a alma não é igual à matéria. Mastomemos cuidado para não inferir que a alma não éde natureza material. Esta última afirmação é

4 O monismo ontológico de Kant segundo Schönfeld (2000).5 Ver Schönfeld (2000, p. 242) e Friedman (1992, p. 27).6 Ver Ameriks (1982, p. 29-30), Friedman (1992, p. 28) e

Schönfeld (2000).

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tomada, geralmente, não para dizer somente quea alma não é material, mas também para dizer queela, enquanto substância simples, não é do tipo quepoderia ser um elemento da matéria. Todavia, istorequer uma prova em especial, que consiste emsaber se este ser pensante não existe no espaço emque os elementos corporais existem [...] 7 (AA, 2:243)8.

Esta citação exemplifica, de maneira evidente,as dificuldades oriundas do sistema de filosofianatural assumido anteriormente. Se, por um lado, omodelo newtoniano mostrava-se suficiente paraexplicar as questões referentes aos fenômenos naturaise empíricos, por outro, a reflexão metafísicaencontrava sérias dificuldades em demonstrar oespectro metafísico da natureza e o modo com o qualeste se relacionava com os fenômenos empíricos. Semuma prova mais concreta sobre o mundo imaterial,tornava-se cada vez mais difícil para Kant provarpostulados tais como os da substância, da alma, da

7 Segundo Friedman, “Kant está convencido [...] de quesubstâncias materiais e imateriais realmente interagem e,portanto, estão presentes em um único mundo. [...]substâncias materiais e imateriais estão no espaço [...].Existe, então, um perigo muito real da distinção entresubstâncias materiais e imateriais entrar em colapsocompletamente.” (1992 p. 27-28).

8 Todas as citações de Kant terão como referência a Edição daAcademia (Immanuel Kants gesammelte Schriften) e seuformato tradicional. Ex: (AA, volume: Página). As traduçõesdo original , em sua maioria, foram feitas por mim. Na maioriadas vezes realizadas em comparação com o exemplar em inglêsdas edições de Cambridge ou outra tradução.

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finalidade e da liberdade, os conciliando com umaconcepção da natureza constituída fundamentalmentepor causas mecânicas.

Certamente, Kant tinha esse problema em menteao apresentar a resposta à pergunta fundamental queperpassa a mesma obra: os princípios da metafísica,em especial, os princípios da teologia natural e moral,podem ter uma prova tão clara e precisa quanto à dasverdades da geometria? Diante da questão, Kantdemonstrou que, diferente de sua convicção anterior,havia nascido em seu espírito fortes dúvidas sobre acientificidade dos princípios da metafísica. Nestemomento acontece o rompimento de Kant com oprocedimento fundamental de seu racionalismoinicial 9·, que, em particular, representava-se no métodogeométrico e dedutivo. Mesmo que seja observável quenos anos anteriores, Kant insista em diferenciar ométodo da matemática e o da metafísica10, ele aindaargumentava more geométrico. Kant fundava as basesde sua argumentação em axiomas e deduzia teoremasespecíficos deles. No entanto, ele tomou consciênciade que inúmeros destes axiomas ou conceitos nãoestavam claros.

Tornou-se inviável para a metafísica, dessemodo, proceder como a matemática, partindo deproposições universais para explicar os casosparticulares. É necessário, segundo Kant, estabelecerum novo método, segundo o qual a metafísica trilharáo caminho construído pela física e, por isso, procederá

9 Ver Beiser (1992, p. 40).10 Ver Monadologia Física.

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analiticamente 11. A metafísica deve proceder a partirda análise de um conceito dentro de seus componentesespecíficos e então gradualmente formar conclusõesuniversais 12. Portanto, a primeira e mais importanteregra do método é: “[...] não se deve iniciar comdefinições [Erklärungen] [...], deve-se, ao invés disso,começar cuidadosamente buscando o que é

11 Friedman (1992, p. 21, nota 33) alerta-nos para o fato deque nesse momento, Kant ainda está longe da discussão entreos juízos analíticos e sintéticos do período crítico. Kant estáfazendo tão somente uma distinção acerca dos modos pelosquais se pode chegar à definição de conceitos. Há umadiscussão particular sobre isso em Menzel (1911, p. 172-184).

12 De acordo com a doutrina de Newton, como apresentada porKant na Introdução do Ensaio Premiado, o ponto de partidapara o método deveria ser as proposições seguras daexperiência e as suas consequências. Esta evidência tornaatraente a hipótese de que os dados iniciais do métodoproposto para a metafísica também são juízos empíricos. Fatoque fomentaria a tese de que o Ensaio é a expressão doempirismo newtoniano. (Ver a hipótese de Vleeschauwer[1962, p. 33-37]). Contudo, Friedman (1992, p. 24, nota 38)adverte que “as proposições da experiência” das quais falaKant não são mais do que resultado de experiências internasseguras. Estas experiências internas estariam menos ligadasà faculdade da sensibilidade responsável pelos juízos empíricose mais relacionadas com a tradicional noção de “natural luzda razão” ou de “reta razão”. Desse modo, pode-se presumirque os dados iniciais de que trata Kant consistem emproposições metafísicas universalmente aceitáveis e nãocontroversas que, de preferência, sejam estabelecidasmediante o resultado das ciências exatas (1992, p. 24). Estaconcepção parece correta como será observável, à frente, naaplicação do método em relação ao problema do espírito emSonhos de um Visionário.

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imediatamente certo em um objeto, ainda antes de suadefinição” (AA, 2:285).

Kant está consciente de que a “metafísica aindatem um caminho longo a percorrer antes de procedersinteticamente. Ela somente conseguirá quando asanálises nos ajudarem com os conceitos que sãoentendidos de forma distinta e com detalhes quepossibilitarão à síntese subsumir [unterordnen] ascognições compostas sobre as mais simples, como namatemática” (AA, 2:290). Ora, a percepção de que ametafísica tradicional traz consigo um problema éevidente nesse momento, mas Kant parece otimista emrelação ao fato de que a reconstrução do método serásuficiente para garantir a cientificidade dessa disciplinano futuro13 e sua emergência como uma verdadeiraontologia, ou seja, como uma ciência, que em sentidopropriamente wolffiano, descreve e percebe essencialmenteaquilo que existe. No entanto, surpreendentemente, Kantnão levou adiante seu projeto nesse sentido específico. Ora,pois, percebendo a incapacidade de superar todos osobstáculos metodológicos, Kant sentiu-se paralisadoem seu trabalho, abandonando, em 1766, o resquíciode otimismo que se direcionava à elaboração de umnovo método capaz de estabelecer, na trilha dasciências naturais, a metafísica como uma verdadeiraciência das coisas em si e dos aspectos gerais do mundointeligível. O mundo inteligível é, propriamente, o tema

13 Menzer (1911, p. 172) e Tonelli (1959, p. 65) concordamque Kant no Ensaio Premiado vislumbra um estado ideal paraa reflexão metafísica no qual todos os seus conceitos serãoelucidados afim de que ela proceda sinteticamente.

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de investigação do tratado de 1766, Sonhos de umVisionário. Ao invés de um diagnóstico positivo sobrea questão, todavia, Kant apresentará, de um modopouco convencional, uma crítica profunda aoconglomerado de conceitos e raciocínios que, quandovoltados à dimensão espiritual, apenas conduz aodisparate. Como a nossa tese deseja destacar, adiscussão sobre a natureza do espírito dentro dasmanifestações naturais e mundanas, evidenciará ainconsistência dos pressupostos iniciais da metafísicade Kant como base das ciências naturais, descritos emsuas concepções de espaço, de substâncias ativas e deespírito Diante disso, será notável a atitude de Kant deabandonar a esperança de se construir uma ontologiaatravés de um método sintético viável , como o sugeridono Ensaio Premiado, e, ademais, a própria concepçãotradicional da metafísica.

3. O PROBLEMA ESPÍRITO- ESPAÇO: A AMEAÇA DO MATERIALISMO

O primeiro capítulo de Sonhos de um Visionário,nomeado Um complicado nó metafísico que se podedesatar ou cortar quando quiser, é interessante porretomar a importante questão sobre o espíritoenunciada, mas não esclarecida, no Ensaio Premiado(AA, 2: 243). É importante observar que Kant começaráa investigação a partir daquilo que havia sidoestabelecido no ensaio de 1764. A nova propostametodológica exige que toda reflexão metafísicaproceda a partir da análise de um conceito e de seuscomponentes específicos e nunca comece comdefinições.

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A investigação kantiana, desse modo, éinaugurada com a questão sobre “qual conceito devofazer de um ser espiritual” (AA, 2:319). Ao perguntar-se sobre o sentido do conceito de espírito, Kant observa,por conseguinte, que o sentido do termo é consideradoevidente tanto para a filosofia quanto para o sensocomum. Uma análise mais profunda, contudo, permiteconcluir que o conceito carece de significado e não éclaro o bastante para se constituir na forma de saberefetivo.

Reunindo-se tudo sobre espíritos que os alunosrecitam, a grande massa fala e o filósofo demonstra,então, isso parece constituir uma grande parte donosso conhecimento. Mesmo assim, ouso afirmarque, se ocorresse a alguém ater-se um pouco àquestão, que tipo de coisa é isto de que se acreditaconhecer sob o nome de espíritos, ele deixaria essessabem-tudo [Vielwisser] no mais difícil dosembaraços (AA, 2:319).

Os acadêmicos, de um modo geral, utilizaram-se de um palavrório metódico e articulado para trataro problema que, segundo Kant, é de difícil solução.A definição proposta pelos novos sábios 14 daacademia era demasiadamente cômoda. Elesdesviavam-se das dificuldades ao conceituarem oespírito como uma entidade imaterial dotada derazão. Porém, para Kant, tal definição é muito poucoesclarecedora.

14 Aqui a crítica dirige-se diretamente à psicologia racional doswolffianos, mas não deixa de fora os contestadores do sistemade Wolff tais como Crusius.

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Em busca de um maior esclarecimento, Kantsugere o procedimento de comparação do “conceitomal entendido com todo tipo de casos da aplicação”(AA, 2: 319). Talvez, tal procedimento pudesse tornarpossível o desdobrar de seu sentido oculto. Assim, aproblemática do espírito, sugerida no Ensaio Premiado,é retomada por Kant através da comparação entreespírito e matéria mediante a possibilidade de suaocupação espacial.

No período pré-crítico, Kant entendia o espaçode uma forma diferente de Newton e de Leibniz 15,embora mais próxima do último. Diferente da concepçãonewtoniana, o espaço não é concebido como umarealidade absoluta. De outro modo, ele é tomado como

15 Kant aproxima-se de Leibniz ao admitir o caráter relacionaldo espaço. Isto é, o espaço não pode ser entendido como “algo”ou “coisa”, mas, de outro modo, é inferido tendo comoreferência as substâncias. A partir do caráter relacional, Leibnizadmite a idealidade do espaço como efeito da coexistênciaharmônica das mônadas. Desse modo, espaço e tempo nãopertencem ao domínio fenomênico. Nas palavras de Leibniz,“[...] o espaço, como o tempo, não é algo substancial, masalgo ideal, que consiste de possibilidade, isto é, a partir daordem dos possíveis coexistentes em um dado tempo” (Cartaa de Voder, 11 de outubro de 1705, GPII, p. 278-279).Por outro lado, Kant, mesmo admitindo que só existe espaçotomando como referência a substância, distancia-se de Leibnizao admitir sua fenomenalidade. Ou seja, o espaço, naperspectiva inicial de Kant, é fundamentado nas leis dinâmicasde interação que governam as relações externas dassubstâncias. Desse modo, o caráter relacional do espaçodescansa na idéia de que este é um fenômeno totalmentederivado das leis da dinâmica responsáveis pela causalidadeentre as substâncias.

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um fenômeno consequente da esfera ativa dassubstâncias, que exercem influência umas em relação àsoutras, através daquilo que era chamado em sua filosofianatural de força de repulsão. As determinações externasprovenientes desta relação mostram o modo através doqual as substâncias preenchem o espaço. Corpos sãocompostos de partes simples. Estas partes singularesirradiam força partindo de um ponto central gerando umefeito que nos permite identificar certas característicasexternas da ocupação espacial, a saber, a extensão e aimpenetrabilidade. Portanto, Kant não tem dificuldadesem constatar como os corpos materiais são identificadosespacialmente. Eis esta passagem de Sonhos

Pegue, por exemplo, um espaço de um pé cúbico[Kubikfuss] e suponha a existência de algo quepreencha o espaço, isto é, que se oponha àpenetração de qualquer outra coisa: ninguémchamará o ser que se encontra neste espaço deespiritual. Seria chamado obviamente material,porque é extenso, impenetrável e, como todo sercorpóreo, submetido à divisibilidade e às leis dochoque [Stosses] (AA, 2:320).

Em relação ao espaço, as partículas elementaresda matéria proporcionam o sinal de sua ocupaçãomediante aqueles fenômenos observáveis quecaracterizam a sua natureza. No entanto, é precisoinvestigar melhor a possibilidade da manifestaçãoespiritual em relação ao espaço. De fato, Kant não tema mesma certeza, apresentada em relação às partículaselementares da matéria, sobre a possibilidade dassubstâncias espirituais serem capazes de se localizar

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espacialmente. Se substâncias espirituais existem,devem ser concebidas, do mesmo modo que aspartículas da matéria, como princípios de força e, comefeito, capazes de apresentar localização espacial. Porisso, Kant tenta responder a pergunta sobre como alocalização de uma partícula imaterial simples podeser verificada. Com este objetivo, ele apresenta duassuposições segundo as quais tal possibilidade pode serpensada. Na primeira hipótese, Kant sugere que ummeio de se imaginar a ocupação espacial dassubstâncias espirituais seria a possibilidade de haversua substituição pelas partículas simples da matériadentro de um todo extenso. Em outras palavras, umasubstância espiritual simples deveria ser capaz deocupar o espaço cúbico sólido na medida em que umelemento simples da matéria se desocupasse de seuespaço para que este pudesse ser preenchido.

Suponha que eu deseje colocar esta substânciasimples naquele espaço do pé cúbico preenchidocom a matéria, um elemento simples terá dedesocupar espaço, [...]. [...] para admitir umsegundo espírito, terá de perder uma segundapartícula elementar [Elementartheilchen] e, assim,finalmente, se assim prosseguir, um pé cúbico deespaço será preenchido por espíritos, cujo amontoadoresistirá por impenetrabilidade [...] (AA, 2: 321).

Porém, há um problema a se considerar. Nessecaso, pois, as substâncias espirituais, mesmo contendoqualquer força racional, seriam exteriormente idênticasàs partículas materiais. O risco do materialismo leva àconsideração de uma segunda suposição. Kant sugere,

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então, a possibilidade do espírito apresentar suamanifestação dentro da matéria sem estar submetido àsleis materiais ou estar em combinação com o todo sólido.Nesta definição, espíritos seriam “[...] seres que poderiamestar presentes em um espaço preenchido pela matéria,portanto seres que não possuem em si a propriedade daimpenetrabilidade” (AA, 2: 321). Segundo Kant, esta seriauma definição mais plausível para o conceito de espírito.No entanto, ela não pode ser aceita do ponto de vista doprojeto pré-crítico, pois gera um sério paradoxo. Comoestas substâncias não exercem força externa e, tampouco,possuem extensão e impenetrabilidade, nunca podem serconcebidas em relação ao espaço. Sua possibilidade só éplausível imaginando que podem ser geradoras de espaçospróprios, o que se traduz em uma conclusão absurda doponto de vista matemático16.

Kant encontra-se diante de um problemainsolúvel. Para que as substâncias imateriais possaminteragir com outras substâncias precisam ocupar lugarno espaço, mas, de acordo com os princípios deste,somente substâncias materiais são capazes de

16 Esta conclusão é inaceitável do ponto de vista da MonadologiaFísica. Kant, nesta obra, argumenta que em sua hipótese anecessidade geométrica da infinita divisibilidade do espaço éplenamente compatível com a noção da substância simples eindivisível necessária à metafísica. Isso é possível porque oespaço não é uma propriedade inerente à substância, mas, deoutro modo, é um fenômeno decorrente do modo como arelação entre as substâncias acontece. Assim, se Kant admitisseque as substâncias comportam em si o espaço, como parecesugerir o problema em Sonhos, teria que admitir apossibilidade da infinita divisão das substâncias.

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ocupação. Segundo os pressupostos pré-críticos, as leisdinâmicas da interação deveriam ser capazes deexplicar não somente a natureza do espaço e suarelação com os corpos materiais, mas também tornarpossível a explicação da co-presença e a interação dassubstâncias no mundo. No entanto, os pressupostosteóricos das leis da dinâmica não foram capazes deexplicar a existência das substâncias imateriais noespaço. Isso porque as propriedades do espaço, paraKant, são derivadas completamente das leisfundamentais de interação que governam assubstâncias simples, mas estas leis de interação sãoidentificadas com as leis da gravitação, que sãoentendidas a partir da dedução de um fenômeno, e,portanto, partem de nosso conhecimento empírico.Disso se segue que as propriedades do espaço sãoinferidas e derivadas de nosso conhecimento empíricodas leis da dinâmica17. Com efeito, pode-se dizer queas substâncias materiais são as únicas que podem semanifestar em relação ao espaço. Assim, admite Kant:“Toda matéria exerce resistência no espaço que ocupa epor isso se chama impenetrável. Que isto acontece, aexperiência nos ensina, e a abstração dessa experiênciaorigina em nós também o conceito geral de matéria”(AA, 2: 322). Se retirarmos da matéria esta propriedadenão podemos pensá-la de acordo com nossasrepresentações sensíveis e, com efeito, produzirconceitos efetivos a seu respeito.

Desse modo, pode-se dizer que a perspectivaparticular de Kant sobre a co-presença e o espaço

17 Ver a amplitude do problema em Friedman (p. 26-27, 1992).

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mediante as leis da dinâmica torna impossível concebercomo o espírito ou a alma poderia estar presente namatéria sem realmente ser de natureza material(FRIEDMAN, 1992, p. 28). Em alguma parte de Sonhos,Kant admite o problema ao afirmar que “[...] de acordocom os pressupostos recomendados, minha alma nãoseria diferente, em relação à sua presença no espaço,de qualquer elemento da matéria” (AA, 2: 326). Admitetambém que não existem justificativas plausíveis quepermitam demonstrar “porque minha alma não é umadas substâncias constitutivas da matéria” (AA, 2: 326).Desse modo, pode ser afirmar que, inevitavelmente, osprincípios fundamentais de metafísica pré-crítica bemcomo sua orientação monista levam, de formaconsequente, ao materialismo 18 (AA, 2: 327).

4. A INSUFICIÊNCIA DE UMA SOLUÇÃO DUALISTA: A CRÍTICA ADESCARTES

A alternativa, para escapar do materialismo,seria admitir uma solução dualista. No entanto, elacontradiz as noções kantianas referentes ao espaço e,sobretudo, torna inviável imaginar o modo através doqual “uma conexão recíproca” com a matéria pode ser

18 Segundo os pressupostos do monismo não seria estranhoaceitar a estranha afirmação de Leibniz “segundo a qualengolimos talvez no café, átomos destinados a tornarem-sealmas humanas Esta é uma conseqüência que deve “assustaro pensador que se encontra em caminho errado” (AA, 2: 327).A consequência que Kant deixa implícita é que não é de tudoproblemático, em termos filosóficos, conceber a alma humanacomo material. “No entanto, é prejudicial em termos práticos”(ZAMMITO, 2002, p. 202).

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possível, uma vez que suprime “a única formaconhecida de ligação que se dá entre seres materiais”(AA, 2: 322). De fato, o dualismo torna inexplicávelcomo uma entidade imaterial pode causar efeitos namatéria e, de forma contrária, como pode a matéria“causar efeitos em um ser estranho que não lhes opõeimpenetrabilidade ou que os impede, de qualquer jeito,de se situarem no mesmo espaço em que está presente”(AA, 2: 328).

Kant vai mais fundo na questão e destaca umconjunto de problemas referentes ao dualismo,atacando diretamente a hipótese cartesiana. Mesmoque o espírito fosse admitido como uma entidade noespaço, seria necessário demonstrar seu lugar nointerior do corpo. Kant indaga-se: “onde é o lugar destaalma humana no mundo dos corpos?” (AA, 2: 324).Claramente referindo-se aos pressupostos cartesianosapresentados na Sexta Meditação e em Paixões da Alma,Kant menciona o postulado segundo o qual nosso eupensante residiria em um lugar distinto das outraspartes do corpo. O problema desta hipótese, comodestaca Kant, é que o que observamos na experiênciaé exatamente o contrário dela. A consciência que temosdas coisas que nos circunscrevem não se manifesta emum lugar particular do corpo. A consciência é resultadoda atividade dos sentidos. Assim, de acordo com nossaexperiência comum: “[...] onde eu sinto, aí eu sou. Eusou tão imediatamente na ponta dos dedos quanto nacabeça” (AA, 2: 324). Não sentimos nossas impressõesem um nervo cerebral específico. Por isso, não épossível concluir que o eu indivisível encontra-se “em

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uma região microscopicamente pequena do cérebro”(AA, 2: 325), que movimenta toda a engrenagem docorpo. A experiência a que temos acesso, apoiada naobservação de que “minha alma está toda em todocorpo e toda em cada uma das partes” indica-nos aalma somente como “uma esfera da efetividade[Wirksamkeit] externa” 19 (AA, 2: 325).

Como se pode constatar, a concepção cartesianada morada da alma 20 é dogmática e incompatível coma experiência que temos de nosso próprio corpo. Ela étotalmente carente de uma fundamentação científica.Kant argumenta que se a alma do homem situa-se nocérebro, torna-se inexplicável os diversos casos nos

19 Kant reconhece esta esfera de atividade externa como asmanifestações da vida na natureza.

20 A distinção cartesiana entre mente e corpo apresentada, em1629, nas Meditationes, gerou um sério problema em relaçãoà interação. Se mente e corpo são de naturezas distintas, comopodem se relacionar? Como é possível a interação entre ResExtensa e Res cogita? A tentativa de superar o dualismo levouDescartes a uma inevitável tentativa de construir uma hipótesesobre a localização da alma no corpo. No Tratado do Homem,de 1637, Descartes supôs que a morada da alma encontra-sena glândula pineal. Ele entendeu que esta glândula estásuspensa no meio dos ventrículos, tendo como seu conteúdoespíritos animais, que são fluídos ou, nas palavras cartesianas,ventos muito finos que fazem o intercâmbio entre as sensações eas representações da alma. Existem fibras que conectam os órgãosdos sentidos com pequenas válvulas nos arredores dos ventrículoscerebrais, que se movimentam quando os órgãos dos sentidossão estimulados. Com este movimento, as fibras dos nervos sãopressionadas, abrindo algumas válvulas que liberam alguns destesfluídos espirituais que, com efeito, geram imagens de baixapressão do estímulo sensorial na superfície da glândula pineal.

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quais ferimentos nesta região não provocam a perdade pensamentos ou da consciência. De acordo com aperspectiva mencionada, “teria bastado remover umátomo dele ou ser deslocado da posição, para que ohomem perdesse instantaneamente a alma” (AA, 2:326). Não existe, desse modo, uma explicação científicana qual a teoria cartesiana possa se apoiar. Acompreensão de que o cérebro é a morada do eupensante, na avaliação de Kant, parece advir de umengano que tem origem nas experiências reflexivas ena meditação. Estas atividades geralmente sãocomandadas por sinais gerados pela audição ou pelavisão. Os órgãos que geram estes sentidos se encontrammais próximos do cérebro e são responsáveis porcriarem a ilusão de que o eu-pensante ou a alma sesitua neste lugar. Em contraste a isso, pode-se observarque outras atividades geram sensações que parecemter origem em pontos diferentes do corpo. “No medoou na alegria a sensação parece ter sua sede no coração.Muitas emoções ou mesmo a maioria delas expressamsua maior força no diafragma. A compaixão comoveas entranhas e outros instintos expressam sua origeme sensibilidade em outros órgãos (AA, 2: 326).

Além disso, Descartes não supôs as consequênciasinconvenientes, em termos fisiológicos, de seu modo decompreender a relação entre a alma e o sistema nervoso.Ele compreendeu que a alma situa-se em algum lugardo cérebro. Ela, dessa forma, é concebida como uma“aranha no centro de sua teia. Os nervos do cérebro aempurram ou a sacodem. Com isso fazem com queseja representada não a impressão imediata, mas

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aquela que ocorre em partes afastadas do corpo” (AA,2: 326). Kant acredita que se a representação dasimpressões sensíveis na alma, chamadas de ideaemateriales, fosse possível, provocaria a saturação ou afadiga das atividades cerebrais. Uma vez que asimpressões geram sinais que são representados na almaatravés das atividades nervosas do cérebro, o sistemanervoso se encontraria em dificuldades ao assimilaros diversos sinais simultâneos de experiências distintasdo corpo, tal como os pensamentos e as emoções.

5. AS CONSEQUÊNCIAS DO PROBLEMA PARA A CONCEPÇÃO

DE METAFÍSICA DE KANT

Do ponto de vista teórico, as conclusõesinaceitáveis, às quais os problemas da psicologia racionalenredavam, levaram Kant à percepção da incoerênciae da inconsistência dos fundamentos de sua reflexãoinicial. As leis dinâmicas mostraram-se incapazes delegitimar a ligação entre os dois aspectos da naturezacom os quais os postulados da investigação pré-críticaestavam preocupados. De fato, Kant falhou natentativa de provar a ideia fundamental de suareflexão, a saber, como os âmbitos físicos e metafísicosrepresentados nas noções de substâncias materiais eimateriais poderiam coexistir dentro da natureza.Devido às enormes dificuldades teóricas, o projetoteve que ser abortado. A partir das evidênciasapresentadas, torna-se possível supor que Sonhos deum Visionário é a representação do momento em quetal problema se tornou incontornável, legitimando,por parte de Kant, o abandono dos fundamentos desua metafísica inicial.

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Mas, se esta hipótese está correta, o quesignifica a Dissertação de 1770, intitulada Sobre aForma e Princípios do Mundo Sensível e Inteligível? Estetrabalho mostra-nos Kant novamente assumindo ametafísica do suprassensível e, particularmente, aconcepção de um reino subjacente de mônadas comocerto tipo de realidade mediante a qual o mundosensível se reflete. (FRIEDMAN, 1992, p. 34). Por maisque esta seja a tendência, não devemos interpretareste momento como um período de “uma parcialreconciliação” 21, no qual Kant “volta para a metafísicana crença de que poderia proporcionar-lhe umafundação firme” (BEISER, 1992, p. 26). Talacontecimento assemelha-se mais com o insistenteretorno de uma velha reminiscência do que com umareconciliação real. De fato, na Dissertação, Kant vaiabrir a possibilidade de um uso real do entendimentoresponsável por alcançar o conhecimento das coisascomo elas são em si. No entanto, com o abandono daconcepção de que o espaço, tempo e o mundo dosfenômenos são instâncias derivadas das relaçõesexternas das mônadas, ou seja, das leis dinâmicas,torna-se totalmente obscuro o modo como pode umaconexão com o mundo inteligível ser possível. Maisespecificamente, uma vez que o conhecimento deobjetos acontece através de uma faculdade sensível quetraz como condição as intuições do espaço e do tempo(FRIEDMAN, p. 35), não há um meio de mostrar comoa faculdade do entendimento pode representar omundo inteligível. A carta para Marcus Herz de 1772

21 Como Beiser (1992) considera.

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apresenta-se como uma prova da clara consciência deKant do equívoco de tentar reabilitar o conhecimentode objetos que não são dados na sensibilidade. (AA,10:130.33-131.5). Assim, torna-se plausível aceitar queo deslize kantiano na Dissertação não representa avivacidade das antigas concepções kantianas acercada metafísica.

Sonhos de um Visionário não marcou apenas oabandono de Kant em relação ao seu projeto anterior,mas também representou o fim das esperanças de quea clareza e a distinção dos axiomas gerais da metafísicafossem alcançadas no futuro, por meio do métodoanalítico, e que os axiomas fossem estabelecidos comoreferência de uma ciência rigorosa como a matemáticae uma ontologia. O método analítico não é eficienteem relação às questões mais gerais da metafísica porqueos pretensos conteúdos dela são de natureza muitodiferente daqueles utilizados pela física e, assim, demodo algum, poderão alcançar um conhecimentouniversal que possa ser representado em concreto, comona matemática 22. Contudo, essa posição não invalidaa relevância do método analítico no desenvolvimentodo pensamento teórico de Kant. De fato, o métodoanalítico, na medida em que substituiu o ponto de

22 A matemática e principalmente a geometria mantém umasimilaridade entre seus sinais e coisas designadas in concreto(FRIEDMAN, 1992, p.29-30), porém, os conceitos dametafísica não são claros e sua existência está envolta emdúvidas. Como representar conceitos que não se relacionamcom algo empírico? Kant mostrou que não é possívelrepresentar os conceitos da metafísica a menos que sejam denatureza empírica.

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referência da investigação filosófica pela psicologiaempírica (experiência interna) e a cosmologia(experiência externa) – em detrimento dos antigosparadigmas da ontologia, psicologia e teologia racional– foi importante para a vindoura reformulaçãoepistemológica do conceito de metafísica, quecaracterizaria a reflexão crítica 23. Todavia, foi aaplicação do método, em relação ao conceito de espírito– na investigação do primeiro capítulo de Sonhos, queauxiliou Kant a perceber a existência de um problemamaior no campo da metafísica, que não concernia,propriamente, ao método. Alcançar a realidade de seusaxiomas é um empreendimento impossível, porque oproblema não está no método, mas na própria estruturado conceito de metafísica ensinado pelas universidadesalemãs e, antes disso, por toda tradição filosófica. Em1766, Kant ainda não tinha plena consciência de quese tratava de um problema estrutural e nãometodológico, mas o fracasso de seu projeto inicial foiuma forte indicação de que existia a necessidade deuma revisão profunda da disciplina em questão.

Ainda sem uma resposta, Kant assumiu umaperspectiva cética e empirista passageira, proclamandoa inviabilidade da metafísica entendida como umainvestigação que “espia com a razão as propriedadesocultas das coisas” (AA, 2:367). Ao mesmo tempo,ele indicou o único uso viável para ela, que consisteem demarcar seus próprios limites. A função de “umaciência dos limites da razão humana consiste em ver

23 Ver a tese intitulada Conceito e Crítica: estudo sobre a gênesedo conceitualismo kantiano de Joãozinho Beckenkamp.

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se a tarefa oriunda daquilo que se quer saber é defato determinada e que relação a questão tem com osconceitos empíricos, nos quais sempre têm de sebasear todos os nossos juízos” (AA, 2:367). Dessamaneira, a metafísica sustenta somente uma funçãonegativa que se constitui na tarefa de demarcar oslimites do entendimento. Por sua vez, o entendimentodeve concentrar-se nos objetos cabíveis a ele, a saber,os objetos da natureza. O diagnóstico sobre ametafísica também é o da psicologia racional. Então,nas palavras do próprio Kant em relação à doutrinado espírito:

Ela pode ser completa, em sentido negativo, namedida em que ela fixa com segurança os limitesde nossa compreensão [...], a natureza espiritual,que não se conhece, mas apenas se supõe, nuncapoderá ser pensada de forma positiva, porque nãose encontra, para tanto, nenhum dado no todo denossas sensações. Sobre elas, devemos nos contentarcom negações [...]. Eu espero poder aplicar minhapequena capacidade de entendimento de forma maisvantajosa aos demais objetos. É em grande parteinútil querer estender a pequena medida de suaforça a todo tipo de projetos levianos. Por isso, [...]a prudência manda adequar o tamanho dos projetosàs forças disponíveis, e, caso não se possa atingirplenamente o grandioso, limitar-se ao mediano (AA,2:352).

Mas, se a redefinição do conceito de metafísicaem Sonhos pode ser considerada um instante peculiar,é importante admitir que a formulação do problemacrítico, em toda sua extensão, ainda se encontra

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distante nesse momento. Sonhos não traz nenhumasugestão de uma recolocação do problema da razãopura teórica além do aspecto negativo da limitação darazão à experiência24. Mas, se não há qualquer definiçãopositiva em relação ao problema da metafísica teórica,

24 No entanto, deve-se admitir que importantes insights surgiramprogressivamente. Em 1768, no ensaio intitulado Sobre osPrimeiros Fundamentos da Distinção das Regiões no Espaço,Kant é obrigado a reconhecer a autonomia do espaço, de modoabsoluto, não no sentido newtoniano - como um objetoexterior – mas como “um conceito fundamental, que faz tudoisso possível” (AA, 2:383). Esta mudança foi necessária devidoaos complexos problemas anteriores. Segundo a teoriarelacional do espaço de Kant, as propriedades do espaço sãoderivadas das leis dinâmicas de interação. Esta hipótese trazoutro grande problema (além do já exposto em relação aoespírito), pois dela se segue que o conhecimento daspropriedades fundamentais do espaço tem o mesmo statusdo conhecimento das leis fundamentais de interação. Esta,porém, só é conhecida através da lei da gravitação universalque é deduzida empiricamente do fenômeno. Com efeito,deve-se assumir que as propriedades do espaço comocontinuidade e tridimensionalidade devem ser igualmenteempíricas. Isso torna inexplicável como essas propriedadespoderiam ser determinadas a priori pela geometria pura, poiso conhecimento dessas propriedades deve derivar doconhecimento empírico das leis da interação. A hipótese deKant submete as leis da geometria às leis da experiência(FRIEDMAN, p. 26-27, 1992). Assim, Segundo Friedman, háa necessidade de uma reformulação da perspectiva sobre oespaço para que este esteja de acordo com as regras dageometria. Por isso, Kant, no ensaio mencionado, rejeita acaracterística relacional do espaço e promove a abertura parauma nova compreensão, a saber, a doutrina do espaçoenquanto forma “autônoma” da intuição sensível, comoapresentada na Dissertação de 1770.

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devemos entender que a importância de Sonhos parao pensamento de Kant não se esgota nessa questão,pois, além disso, o tratado torna possível vislumbrar aemergência de novos insights em direção a umafundamentação de uma metafísica de outro tipo, emsentido positivo, baseada nos problemas morais 25.

25 Este será o assunto de um segundo artigo sobre a relevânciade Sonhos para o pensamento de Kant.

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