Red. Da Jornada de Trabalho

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A REDUO DA JORNADA DE TRABALHO E A DEFESA DO TEMPO LIVRE

Oriana Stella Balestra*

INTRODUO No obstante as transformaes por que passa o mundo do trabalho atualmente, que levam ao debate acerca do fim da centralidade do trabalho, certo que este supera qualquer outro evento da vida, mantendo-se como elemento estruturante da vida. Tal concluso decorre do fato de que o trabalho conduz a construo e a organizao das sociedades, garante a sobrevivncia do indivduo e acumulao de capital, como tambm fornece fator de estruturao para a vida coletiva, as instituies, as relaes sociais e as ideologias.1

1 TEMPO DE TRABALHO Trabalhar essencial ao homem, condio para sua sobrevivncia. Para ter bens, servios ou quaisquer outras coisas, o homem precisa trabalhar. Portanto, uma vez que no se pode dizer que o trabalho no mais ocupe papel estruturante na vida social, ou, em outras palavras, constituindo, ainda, elemento central na organizao social, faz-se necessrio um aprofundamento quanto forma com que se apresenta a prpria noo de tempo. A diviso do tempo para uma determinada sociedade se d como um reflexo da importncia que est confere a determinados valores. Visto como valor que ocupa o topo de uma hierarquia, o trabalho determina o tempo social dominante, sendo em funo do tempo de trabalho, portanto, que as demais atividades humanas se regulam.2 A noo de trabalho heternomo indissocivel da idia de tempo de trabalho. Inicialmente, esta vinculava-se ao tempo religioso, passando posteriormente a*Mestranda em Direito pela UFPR. 1 ROSSO, Sadi Dal. A jornada de trabalho na sociedade: o castigo de Prometeu. p. 60. 2 MAAS, Christian Marcello. Tempo e trabalho: a tutela jurdica do tempo de trabalho e tempo livre. So Paulo, LTr, 2005. p. 51.

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assumir um sentido mundano. Esta transformao remonta ao incio do sistema de assalariamento na Europa Medieval, tendo as primeiras lutas acerca da definio do tempo de trabalho, de sua medida e da extenso jornada ocorrido no final do sculo XIII e incio do sculo XIV.3 At ento, no havia uma separao entre o mbito da vida e o mbito do trabalho, sendo caracterstica deste perodo a porosidade, ou seja, o fato de que o tempo do trabalho no era ocupado plenamente. A separao entre vida e trabalho uma concepo moderna, de forma que o trabalho passa a significar meio de ganhar a vida, porm, com esta no se confundindo. Para Sadi Dal Rosso, tempo de trabalho o tempo empregado na produo da prpria subsistncia, seja quando seu resultado permanea nas mos de seu produtor, seja quando passe para as mos de terceiro, observando que todo o tempo no ocupado pelo trabalho tempo de no trabalho.4 A partir deste conceito possvel extrair a importncia do trabalho na estruturao do tempo social: o trabalho dita o tempo na vida da sociedade exatamente porque trabalhar viver. Na Idade Mdia, o trabalho no aparecia na vida das pessoas com a mesma predominncia de hoje em razo dos inmeros feriados religiosos e das mudanas climticas que ditavam o ritmo daquele.5 Neste contexto, o trabalhador controlava o processo de produo e podia planejar a vida conforme sua vontade. Esta realidade modifica-se com o aparecimento do capitalismo que acabou com a idia de trabalho voltado ao atendimento de necessidades, realizado no mbito da prpria residncia do trabalhador, independente at ento. A partir do sculo XIV, inicia-se um processo de reduo do nmero de feriados religiosos e observa-se a extenso da jornada de trabalho, que cresce no sculo XVI, e atinge o pice no final do sculo XVIII e incio do sculo XIX, no se aumentado ainda mais a jornada de trabalho em razo do risco de leso e morte dos trabalhadores.6 O capitalismo, por conseguinte, mudou o prprio conceito de tempo criando e difundindo nos trabalhadores um controle interno, advindo com a fabricao dos3

ROSSO, Sadi Dal. A jornada de trabalho na sociedade: o castigo de Prometeu. So Paulo: LTr, 1996. p. 98. 4 Ibidem, p. 27. 5 CARMO, Paulo Srgio do. A ideologia do trabalho. So Paulo: Moderna, 1992. p. 25. 6 MAAS, Christian Marcello. Tempo e trabalho: a tutela jurdica do tempo de trabalho e tempo livre. So Paulo, LTr, 2005. p. 66.

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relgios, os primeiros instrumentos de controle e disciplina fabris, exercendo-se uma coero para o indivduo de fora para dentro a fim de possibilitar a autodisciplina individual, da qual impossvel escapar.7 Foi assim que viver passou a ter o significado de trabalhar8 e o tempo do trabalhador transformou-se no tempo do trabalho signficando ora tempo para produzir, ora tempo para recuperar as foras necessrias para voltar a produzir, no se falando mais em tempo livre e lazer. A definio do tempo de trabalho constitui reflexo do enfrentamento entre as classes sociais, estando de um lado os trabalhadores e de outro os empregadores e o Estado. Tal idia foi formulada por Marx, segundo o qual a extenso do tempo de trabalho havida entre meados do sculo XIV e final do sculo XVII decorreu principalmente de regulaes compulsrias institudas pelo Estado, de modo que, sem meios eficazes de resistncia os trabalhadores foram obrigados a realizarem maior volume de trabalho, ou seja, sobretrabalho, necessrio acumulao primitiva do capital.9

2 A JORNADA DE TRABALHO NA HISTRIA A passagem da Idade Mdia para a Idade Moderna representou a extenso da jornada de trabalho, sendo que a revoluo industrial e a consolidao do modo capitalista coincidiram com o auge do trabalho. A partir deste pice do trabalho, a jornada comeou a reduzir. Em Roma, a jornada de trabalho iniciava-se de madrugada e terminava no final do dia, tanto para escravos quanto para camponeses. Os fatores naturais impediam a alterao da jornada de trabalho. Os fatos sociais tambm tinham forte influncia no tempo de trabalho. Tais fatores so vlidos tambm para a Idade Mdia, sendo que neste perodo houve um grande aumento no estabelecimento de dias ou horas livres de trabalho em razo de questes religiosas, rituais e locais.

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ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmao e a negao do trabalho.1 ed. Boitempo editorial, 1999. p.175. 8 ROSSO, Sadi Dal. A jornada de trabalho na sociedade: o castigo de Prometeu. So Paulo: LTr, 1996. p. 24. 9 Ibidem, p. 82.

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Na Idade Mdia a jornada de trabalho variava entre oito horas e meia no inverno e dez e quinze horas no vero, tambm em razo de condicionantes sociais e naturais, dificilmente ultrapassando-se a jornada anual de 2.500 horas.10 Este padro alterado com o mercantilismo, que alongou a jornada em ramos que produziam bens comercializveis, como artesanato e manufatura. Tambm aqui a natureza, a interrupo do trabalho nos domingos, festividades religiosas, viglias e aos sbados eram fatores que limitavam o aumento da jornada de trabalho. Nesta poca, a mdia anual de trabalho normalmente compreendia entre 2.500 e 3.000 horas.11 A jornada de trabalho da Idade Mdia, que j no era pequena, com a Revoluo Industrial, aumentou drasticamente, de forma que o trabalho alongado at o limite da capacidade humana, estimando-se que a elevao da jornada anual de trabalho passou a variar de 3.750 a 4.000 horas.12 Este quadro no se limitou a um determinado pas, sendo uma constante durante a Revoluo Industrial. Atualmente as empresas procuram reorganizar o tempo de forma a diminuir os poucos perodos de no trabalho que restam, reduzindo intervalos para descanso e alimentao, distribuindo trabalho em dias teis e feriados. A forma de gesto do trabalho taylorista e fordista caracterizava-se por eliminar tempos mortos de dentro da jornada. No entanto, como antes apontado, perdem cada vez mais seu sentido, eis que a durao do trabalho e a jornada tornam-se mais dispersas e confusas, no sendo fcil distinguir o incio e o trmino de uma jornada. Os sistemas de gesto que esto ganhando fora atualmente intensificam o trabalho transformando os tempos destinados ao descanso em tempo de trabalho efetivo. importante identificar as tendncias relativas jornada de trabalho na contemporaneidade, uma vez que os pases no apresentam um quadro nico. Fatores como o momento da industrializao em que se encontra cada pas afetam o tempo de trabalho de cada um desses lugares.

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Ibidem, p. 76. ROSSO, Sadi Dal. A jornada de trabalho na sociedade: o castigo de Prometeu. So Paulo: LTr, 1996. p. 79. 12 Ibidem, p. 90.

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Sadi Dal Rosso, analisando essa questo, identificou que existem naes ricas com menores jornadas de trabalho, situando-se entre trinta e trinta e nove horas semanais, como o caso dos pases desenvolvidos da Europa e da Amrica do Norte. H ainda, naes ricas em que as pessoas trabalham mais, numa mdia de quarenta e quatro horas semanais, como o caso do Japo. Outra hiptese a das naes pobres em que se trabalha mais, dentre as quais o Brasil. Uma quarta categoria seria a dos pases pobres em que se trabalha menos, como nos pases em que o processo de acumulao no intensivo, no havendo demanda que justifique uma jornada extensa.13 Em que pese ser a tendncia de reduo mais ampla em escala mundial, esse processo no pode ser generalizado. H uma tendncia de aumento de jornada verificada na ltima dcada do sculo XX que pode ser justificada por duas razes: forte crescimento econmico pelo qual vm passando pases pobres e as srias crises econmicas por que passam naes de slido crescimento econmico.14 No primeiro caso esto pases como o Chile e o Paraguai, e no segundo, a Sucia, Israel e Austrlia. H, portanto, uma complexidade em relao ao tempo de trabalho na contemporaneidade. Depreende-se da, que o grau de desenvolvimento econmico no o nico fator determinante da jornada de trabalho, devendo ser observadas tambm, prxis sociais mais complexas que levam em conta no s os nveis de desenvolvimento, mas tambm as formas com que se do os enfretamentos entre as classes sociais.15 Mudanas tambm tm ocorrido em relao estrutura do tempo de trabalho e no contexto do tempo de trabalho. No obstante serem mantidas as jornadas de trabalho, as empresa tm forado o trabalho em finais de semana, feriados, durante a noite, e em sistemas de turnos. Outra forma de reorganizao do tempo a intensificao do processo de trabalho, diminuindo-se a porosidade do trabalho, ou seja, suprimindo intervalos de trabalho durante a jornada.

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ROSSO, Sadi Dal. A jornada de trabalho na sociedade: o castigo de Prometeu. So Paulo: LTr, 1996. p. 107. 14 Ibidem, p. 111. 15 Ibidem, p. 108.

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3 O TEMPO DE NO TRABALHO NA ESFERA CAPITALISTA Como visto, o sistema capitalista introduziu a lgica do viver para trabalhar. Duzentos anos depois, essa proposio vem sendo desconstruda em uma sociedade que aumenta cada vez mais os tempos de no trabalho. Mas no trabalho no significa superao do sofrimento infligido pela pena imposta aos homens pelo capitalismo, quando este lhes tomou os meios de produo. Ao contrrio, o sofrimento apenas se agravou uma vez que o no trabalho pode se manifestar na forma de desemprego e redundncia, sendo esta a situao em que o capitalismo gera tantos excedentes, que o mnimo de fora de trabalho capaz de produzir tudo que o mercado pode absorver. O trabalho autnomo, decorrente da onda de subcontratao que assola o mundo do trabalho, tambm afeta a relao entre tempo de trabalho e tempo de no trabalho. Assim se d, pois, no trabalho autnomo no h ntida diviso entre o que tempo de trabalho e o que tempo de no trabalho, uma vez que o labor ocorre na medida da necessidade e da demanda, invertendo-se o jogo capitalista que, em seu incio, liberava o trabalhador autnomo de sua autonomia e o transformava em assalariado, e passa a transformar o trabalhador assalariado em autnomo.16 Cumpre destacar que tempo de no trabalho no sinnimo de tempo desvinculado do trabalho e do capital visto que o trabalhador est sempre disposio da lgica produtiva. Importa, assim, compreender a ligao entre o tempo de no trabalho e o consumo desenfreado e sem sentido que se realiza como forma de se preencher o perodo no destinado diretamente ao labor. A realidade que se verifica a de que o ser social que trabalha deve somente ter o necessrio para viver, mas deve ser constantemente induzido a querer viver para ter ou sonhar como novos produtos.17 Portanto, o que se observa que o tempo em que no se est em efetivo trabalho destinado ao consumo, ao lazer alienado.

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ROSSO, Sadi Dal. A jornada de trabalho na sociedade: o castigo de Prometeu. So Paulo: LTr, 1996. p. 31. 17 ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? : ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 6 e. So Paulo. Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1999. p. 92.

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4 O DIREITO PREGUIA PROCLAMADO POR PAUL LAFARGUE Paul Lafargue em sua obra O Direito Preguia, escrita em 1880, procurou realizar uma anlise da sociedade, tendo como objetivo alcanar o proletariado no nvel da conscincia de classe e por isso a crtica da ideologia do trabalho, isto , a exposio das causas e da forma do trabalho na economia capitalista. Segundo Paul Lafargue, no obstante tenha o prprio Cristo burgus se postado contra o trabalho ao pregar olhem os lrios crescendo nos campos, eles no trabalham nem tecem e, no entanto, digo, Salomo, em toda sua glria, nunca esteve to brilhantemente vestido18, ainda assim o trabalho foi pregado pelo capitalismo como a salvao do homem dos males da preguia. Lafargue prope a reduo da jornada uma vez que, se h superproduo, e se ela volta-se contra os trabalhadores, preciso racionar o trabalho, diminuir as horas dirias para que possam ser divididas entre todos. Verifica que a reduo de horas de trabalho no ocasionou a diminuio da produo, ao contrrio. Assim, se uma miservel reduo de duas horas aumentou, ao longo de dez anos, quase um tero a produo inglesa, que passo vertiginoso no imprimir produo francesa uma reduo legal da jornada de trabalho para trs horas?19 Lafargue reconhece, portanto, a necessidade de se lutar pelo direito preguia bem como convencer os proletrios de que foram enganados, de que o trabalho uma maldio, e de que s ser benfico ao homem quando for limitado a um mximo de trs horas por dia20.

5 A REDUO DA JORNADA DE TRABALHO E A LUTA POR UMA NOVA SOCIABILIDADE A jornada de trabalho da Idade Mdia pouco extensa quando comparada com aquela da revoluo industrial. No final do sculo XVIII e na primeira metade do sculo XIX, na Inglaterra, a jornada atinge o auge da expanso, no podendo avanar mais sob pena de infligir a morte aos trabalhadores.

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Evangelho segundo So Mateus, cap. VI. LAFARGUE, Paul. O direito preguia. 2 ed. So Paulo. Hucitec; Unesp, 1999. p. 102. 20 Ibidem, p. 84.

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As longas horas de trabalho somadas aos altos nveis de insalubridade dos locais de trabalho geraram os movimentos de resistncia. Os trabalhadores exerciam labor no mesmo local, residiam nos mesmos bairros, sob as mesmas condies, originando-se desse convvio uma cooperao poltica. Da a origem das associaes de trabalhadores, embries dos sindicatos, que reivindicavam o controle da jornada de trabalho, das condies do trabalho da mulher, da proibio do trabalho das crianas, que acabou ganhando o apoio de diversos setores sociais, como intelectuais, artistas, advogados, etc.21 A presso social acabou por levar o parlamento Britnico a estabelecer limites para os abusos. A partir deste perodo inicia-se um processo de reduo do nmero de horas de trabalho. Para que ocorra a reduo do tempo de trabalho imprescindvel que esta no implique a queda do padro de vida da populao. Ademais, os capitalistas precisam verificar a possibilidade de ganhos advindos da reduo, pois este o combustvel que os move. Logo, necessrio um aumento de produtividade antes que se reduza a jornada. possvel, portanto, compreender que a reduo do tempo de trabalho est intimamente vinculada s relaes travadas entre as classes sociais, como defende a teoria marxista. Para que se reduza o tempo de forma a beneficiar a classe dos trabalhadores, esta precisa de fora poltica para constranger a classe capitalista.22 O aumento da produtividade faz com que sejam necessrios menos trabalhadores para que se expanda ainda mais a produo. Tendo em vista este fato, foi possvel em pases capitalistas centrais que as lutas dos trabalhadores alcanassem a reduo da jornada de trabalho. Mas essa diminuio acabou virando-se contra os prprios trabalhadores, pois acabou levando ao desemprego e diviso entre assalariados, alm de aumentar o trabalho precrio. Necessria, portanto, uma correta administrao da redistribuio do tempo de trabalho que resta, permitindo-se assim o acesso ao trabalho, pois, caso contrrio, os excludos do mundo do trabalho no tero alternativa para sobreviver alm dos fundos estatais, da criminalidade e da caridade pblica23. O no trabalho significa

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ROSSO, Sadi Dal. A jornada de trabalho na sociedade: o castigo de Prometeu. So Paulo: LTr, 1996. p. 85. 22 Ibidem, p. 91. 23 Ibidem, p. 411-412 passim.

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para a maioria das pessoas a destituio de direitos, o desemprego, a marginalizao. O carter revolucionrio da reduo de trabalho vem do fato de que esta condio para o desenvolvimento da personalidade individual e da coletividade, para o livre agir, para o florescimento da liberdade, da criatividade, da solidariedade e para as atividades humanas edificantes, sem o que a vida um constante trabalhar24. Deve ser buscada, assim, pelos prprios trabalhadores, originando-se centralmente no mundo do trabalho, ou seja, de um processo de emancipao do trabalho e pelo trabalho25, abrangendo todos aqueles inseridos neste quadro, inclusive os desempregados e os subproletarizados. Mas a reduo da jornada no o fim da batalha tendo em vista que, assim que conquistada, seguida pela intensificao do trabalho. O que antes se fazia em treze, quatorze horas, passa a ter que ser feito em oito, dez horas. A evoluo tecnolgica no implica por si s a reduo de jornada, pelo contrrio, o aumento nos ganhos desejado a todo custo pelo empresariado, cujo fundamento o de que sendo dele o capital investido, deve ser dele o lucro adicional. Desta forma, a mais-valia no diminui proporcionalmente com o tempo de trabalho mais breve. Ao contrrio, o aumento da produtividade do trabalho, permite uma nova forma de mais-valia. Possibilita a extrao da mais-valia relativa.26 Logo, o que se verifica que o aumento da produtividade aliado ao esgotamento dos empregados possibilita as vitrias dos trabalhadores por menos horas de trabalho27, do que se conclui que as redues da jornada de trabalho no decorrer da histria no advieram apenas das presses dos trabalhadores, mas tambm da situao relativamente confortvel em que se encontram os empregadores em relao produo. No basta, por conseguinte, que os trabalhadores lutem apenas pela reduo da jornada do trabalho, pois ainda que o consigam, permanecero inseridos nesta24

ROSSO, Sadi Dal. A jornada de trabalho na sociedade: o castigo de Prometeu. So Paulo: LTr, 1996. p . 393. 25 ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? : ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 6 e. So Paulo. Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1999. p. 86. 26 ROSSO, op. cit., p. 391. 27 Ibidem, p. 391.

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sociedade que define a produo de mercadorias como elemento estruturante, e que acaba sempre impondo as suas regras. necessrio um novo projeto de organizao societria, que supere a viso dos trabalhadores como mercadorias e que seja proveniente da ao dos prprios trabalhadores, deixando de se constiturem como objetos e colocando-se como sujeitos de transformao. A luta no se restringe reduo de trabalho, mas a uma mudana na prpria sociedade, a qual deve ter como um de seus fundamentos o tempo livre. O aumento do tempo de no trabalho que tem se verificado significa que h um tempo na vida das pessoas em que elas no esto trabalhando. No entanto, no significa que elas usufruam tempo livre. Isso porque, tem-se por tempo livre:aquela parte da vida das pessoas durante a qual se d a construo da liberdade individual e coletiva. Tempo livre o tempo que constri a liberdade, o tempo que emancipa o indivduo, que cria possibilidades para a coletividade crescer, 28 desenvolver-se humanamente.

Do tempo de no trabalho no se depreende qualquer idia moral, tica, apenas o tempo em que no se est exercendo labor compulsoriamente. O que se costuma fazer nesses perodos est longe de constituir atividades libertrias: o mbito do desemprego, da redundncia, mas tambm do consumo compulsivo, alm de outras atividades cotidianas que so exercidas de forma acrtica, como assistir televiso e navegar na internet, entre outras. A Constituio da Repblica, em seu artigo 6, ao prever o direito ao lazer no rol dos direitos e garantias fundamentais, reconheceu que a vida no deve estar to fortemente vinculada ao trabalho, admitindo:que o homem no apenas um trabalhador, mas possui uma dimenso social e condio humana que no se resume ao trabalho, o que permite o desenvolvimento pessoal e possibilita o relacionamento equilibrado com a famlia e 29 sociedade.

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ROSSO, Sadi Dal. A jornada de trabalho na sociedade: o castigo de Prometeu. So Paulo: LTr, 1996. p. 414. 29 MAAS, Christian Marcello. Tempo e trabalho: a tutela jurdica do tempo de trabalho e tempo livre. So Paulo, LTr, 2005. p. 112.

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Para Christian Marcello Maas, o lazer tem por fim compensar o ritmo imposto pelo trabalho, implicando uma medida de tempo e espao voltada possibilidade de exercer conhecimento e criatividade por parte dos trabalhadores, ainda que os interesses econmicos, polticos e sociais determinem o ritmo do tempo de no trabalho na sociedade.30 Como mencionado, o que se verifica hoje que o lazer tido to somente como um perodo em que o trabalhador descansa para estar em condies de voltar ao trabalho. Mas no s nessa situao encontra-se o trabalhador aprisionado pela lgica do capitalismo, eis que esta tambm se apresenta na forma de atividades alienantes e no consumo desenfreado de mercadorias, fator que contribui para a existncia de uma sociedade do consumo. E para consumir mais, necessrio que se trabalhe mais, verificando-se, portanto, a formao de um crculo vicioso que acaba por tomar para si todas as esferas da vida. Por essa razo, correto afirmar que o lazer tem sido visto como sinnimo de atividade de consumo, situao que deve ser afastada o quanto antes, pois impede que o homem realize o exerccio da criatividade e da contemplao, imprescindveis edificao do homem e sua participao ativa na sociedade. Interessante apontar que cresce a cada dia o nmero de empresas que procuram cria espaos de lazer institucional, proporcionando atividades como yoga, ginstica e at mesmo salas para repouso, as quais so reservadas para os intervalos durante a jornada, e mesmo antes de seu incio e aps seu trmino. No entanto, tais iniciativas, no obstante se apresentem como manifestao da preocupao do empregador com a sade e o bem-estar de seus empregados, na realidade, devem ser traduzidas como o poder que aquele tem sobre o mbito temporal no destinado diretamente ao trabalho31, alm de visarem, sempre, o aumento de produo. Outro aspecto que diferencia o tempo de no trabalho do tempo livre est em que o tempo de no trabalho estreitamente ligado ao tempo de trabalho, pois o salrio que permite o gozo desse tipo de lazer. Tempo de no trabalho o contrrio do tempo de trabalho.

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Ibidem, p. 112. MAAS, Christian Marcello. Tempo e trabalho: a tutela jurdica do tempo de trabalho e tempo livre. So Paulo, LTr, 2005. p. 116.

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O conceito de tempo livre no possui est mesma vinculao, ele desprendido do tempo de trabalho, envolve atividades desenvolvidas pelo sentido de lazer, pelo puro sentido esttico, pelo prazer de ser, estar, de fazer, pela construo humana, pela solidariedade humana, pela salvao da ecologia, pelo prazer ldico, e assim por diante.32 Para os gregos o lazer consistia no desenvolvimento interior. Contudo, esta no a idia que vigora atualmente. A realidade com a qual se depara a do trabalho como criador do homem, ou seja, o trabalho que proporciona o salrio, que na sociedade capitalista o nico meio com o qual uma pessoa pode participar das atividades que desenvolvem a criatividade e a liberdade, pois tudo tem seu preo. necessrio que tempo livre e tempo de trabalho possam interagir de forma que o homem possa resgatar o sentido da vida, que de maneira alguma pode se confundir com o trabalho. Alis, essa importncia que a sociedade d ao trabalho no veio de forma natural, mas sim imposta pelas foras econmicas. Conforme aponta Sadi dal Rosso:o verdadeiro lazer precisa ser buscado a qualquer custo na paz de esprito, na reflexo. Sentar debaixo de uma rvore, sem qualquer preocupao com o mundo nem com o futuro, meditar e cultivar o esprito o ideal de lazer, concebido como plena liberdade pessoal e realizao interior. O problema que a sociedade 33 no oferecer esta oportunidade a muitos.

Como pode um desempregado, ou mesmo um assalariado ter a tranqilidade para gozar um momento de reflexo como este? Enquanto ao primeiro falta tranqilidade em vista do medo de no conseguir sobreviver por falta de renda, ao segundo, essa falta se d em razo do esgotamento sobrevindo do trabalho. Conforme Ricardo Antunes, no h como se compatibilizar uma vida cheia de sentido fora do trabalho, verificado no gozo do tempo livre, se, no trabalho, persiste o assalariamento, a fetichizao e o estranhamento. Deste modo, uma vez que os efeitos do capitalismo se vem presentes tanto dentro, quanto fora do trabalho, imprescindvel que a ao pelo tempo livre coincida com a ao pela superao da32

ROSSO, Sadi Dal. A jornada de trabalho na sociedade: o castigo de Prometeu. So Paulo: LTr, 1996. p. 417. 33 ROSSO, Sadi Dal. A jornada de trabalho na sociedade: o castigo de Prometeu. So Paulo: LTr, 1996. p. 401.

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lgica do capital e do trabalho abstrato. Isso porque, no se buscando a superao deste sistema fundamentado na explorao, a satisfao da reivindicao pelo tempo livre ser buscada por consenso, sem ferir os interesses do capital, subordinada, e, por conseguinte, numa prxis social marcada pela resignao.34 O objetivo que deve conduzir as lutas na esfera do trabalho deve ser, pois, a busca por uma nova sociabilidade para alm do capitalismo, que retire os limites que se pem entre o tempo de trabalho e o tempo de no trabalho, onde liberdade e necessidade se realizem mutuamente, de:um novo modo de produo fundado na atividade autodeterminada, baseado no tempo disponvel (para produzir valores de uso socialmente necessrio), na realizao do trabalho socialmente necessrio e contra a produo heterodeterminada (baseada no tempo excedente para a produo exclusiva de valores de troca 35 para o mercado e para a reproduo do capital).

Nessa nova sociedade no dever, portanto, haver uma separao entre tempo de trabalho necessrio para a reproduo social e tempo de trabalho excedente para a reproduo do capital36, de forma que o tempo disponvel, sob a tica do trabalho cheio de sentido, volte-se ao trabalho como forma de satisfazer as necessidades efetivamente sociais, ultrapassando a noo de tempo disponvel do ponto de vista capitalista que faz deste, dispndio de trabalho humano. Apenas em um modelo como o proposto possvel a predominncia do tempo livre entendido como aquele onde impera a preguia no sentido dado por Lafargue, o otium, ou seja:um deixar que a conscincia humana se expanda atravs de certos comportamentos artsticos, filosficos, religiosos, desinteressadamente culturais, simpticos no convvio com os outros (...) de per si no exclusivamente redutveis a termos de trabalho e em relao aos quais o trabalho 37 poder ser apenas um meio.

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ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmao e a negao do trabalho.1 ed. Boitempo editorial, 1999. p. 176. 35 ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmao e a negao do trabalho.1 ed. Boitempo editorial, 1999. p. 179. 36 Idem. Adeus ao trabalho? : ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 6 e. So Paulo. Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1999. p. 181. 37 BAGOLINI, Luigi. Filosofia do trabalho. So Paulo, LTr, 1997. p. 55.

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Mas, enquanto no se superar o mecanismo destrutivo do capitalismo necessrio que, juntamente da ao pela reduo do trabalho, estratgia capaz de evitar o apartheid social emergente no pas38, se reivindique o direito ao trabalho, pois nesse contexto impossvel sobreviver sem trabalho. Necessrio esclarecer que a reduo de jornada deve estar acompanhada da manuteno dos salrios, pois sua reduo em nada beneficiaria o trabalhador, tendo-se nesse caso, mera flexibilizao da jornada. Alm disso, a reduo da jornada no deve ser seguida pela intensificao do trabalho. A realizao de tais medidas possibilita ganhos de produtividade das empresas e a elevao do poder de compra dos trabalhadores por um lado, e de outro, a melhora das condies de vida e do prprio trabalho.39

CONCLUSO No obstante tantas transformaes no mundo do trabalho, preciso compreender que este ainda constitui elemento estruturante, eis que trabalhar , e sempre ser, condio para a sobrevivncia humana, sendo que tal situao refletese na diviso do tempo uma vez que este gira em torno do tempo de trabalho. O tempo , portanto, o tempo do trabalho, ou seja, ora tempo de realizao de labor, ora tempo para recuperao de foras necessrias para que se continue a trabalhar. preciso que essa concepo de vida seja profundamente alterada, pois o trabalho no se trata do sentido nico da vida, mas apenas um deles. Nesse sentido, uma das reivindicaes necessrias a reduo da jornada, com vistas a, de imediato, minimizar o desemprego estrutural decorrente da lgica capitalista, e o aumento da precarizao, devendo-se perseguir, tambm, o direito ao trabalho, j que este constitui o nico meio de sobrevivncia no contexto capitalista. Para alm do tempo de trabalho, imprescindvel que se procurem novas formas de sociabilidade, desvinculadas do modo de produo capitalista, pois, caso

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MAAS, Christian Marcello. Tempo e trabalho: a tutela jurdica do tempo de trabalho e tempo livre. So Paulo, LTr, 2005. p. 168. 39 Ibidem, p. 171.

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contrrio, nenhuma mudana que se opere poder por si s resolver o problema da explorao do trabalhador. A liberdade, a emancipao, a criatividade, so idias que merecem centralidade, mas que no prevalecem na sociedade capitalista. Nesta impera o consumo, a aquisio de bens, de modo que, sendo o trabalho abstrato que determina o que se pode fazer com o tempo de no trabalho, pois confere o poder aquisitivo, imprescindvel a conquista de mudanas revolucionrias nesse quadro, que possibilitem a emancipao humana atravs do tempo livre. Mas enquanto esta revoluo no ocorrer, preciso que as pessoas possam usufruir de espaos que, mesmo em uma sociedade capitalista, permitam o desenvolvimento da criatividade e da criticidade. Esto abrangidas nessa categoria, atividades como o cinema, a msica, o trabalho intelectual, e outras que no visarem to-somente a satisfao de interesses mercadolgicos. A emancipao humana depende de que o homem supere a idia de que a vida deve girar em torno do trabalho. A humanidade no veio ao mundo para atender as necessidades do sistema capitalista. No possvel aceitar qualquer justificativa, seja de ordem religiosa, ou econmica, que possibilite o entendimento de que o homem nasceu para sofrer. E, portanto, preciso desprender-se da dominao capitalista e passar a reivindicar o direito proclamado por Paul Lafargue, o direito preguia, ao tempo livre, ao exerccio de atividades edificantes, ou seja, a uma vida com sentido para no trabalho, mas tambm fora deste.

REFERNCIAS ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho?: ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 6 e. So Paulo. Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1999. ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmao e a negao do trabalho.1 ed. Boitempo editorial, 1999. BAGOLINI, Luigi. Filosofia do trabalho. So Paulo, LTr, 1997. CARMO, Paulo Srgio do. A ideologia do trabalho. So Paulo: Moderna, 1992. LAFARGUE, Paul. O direito preguia. 2 ed. So Paulo. Hucitec; Unesp, 1999.

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MAAS, Christian Marcello. Tempo e trabalho: a tutela jurdica do tempo de trabalho e tempo livre. So Paulo, LTr, 2005. ROSSO, Sadi dal. A jornada de trabalho na sociedade: o castigo de Prometeu. So Paulo: LTr, 1996.