Reflexões sobRe a Revolução na fsite.livrariacultura.com.br/imagem/capitulo/42230993.pdf · da primeira questão, por que o tom agressivo e veemente da obra, que levou um filósofo

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  • Reflexes sobRe aRevoluo na

    fRana

  • O livro a porta que se abre para a realizao do homem.

    Jair Lot Vieira

  • Traduo, apresentao e notas

    JOS MIGUEL NANNI SOARESDoutorando em Histria Social

    pela Universidade de So Paulo e bolsista Fapesp; tem se dedicado aos estudos da historiografia da Revoluo Francesa

    e do pensamento do contrarrevolucionrio saboiano Joseph de Maistre, em especial.

    Reflexes sobRe aRevoluo na

    fRana

    Edmund

    Burke

  • Reflexes sobre a Revoluo na FranaEdmund Burke

    Traduo, apresentao e notas: Jos Miguel Nanni Soares

    1 Edio 2014

    desta traduo: Edipro Edies Profissionais Ltda. CNPJ n 47.640.982/0001-40

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poder ser reproduzida ou transmi-tida de qualquer forma ou por quaisquer meios, eletrnicos ou mecnicos, incluindo fotocpia, gravao ou qualquer sistema de armazenamento e recuperao de informaes, sem permisso por escrito do Editor.

    Editores: Jair Lot Vieira e Mara Lot Vieira MicalesCoordenao editorial: Fernanda Godoy TarcinalliEditorao: Alexandre Rudyard BenevidesReviso: Beatriz Rodrigues de LimaDiagramao e Arte: Karine Moreto Massoca

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Burke, Edmund, 1729?-1797Reflexes sobre a Revoluo na Frana / Edmund Burke ; traduo, apresentao e notas de Jos

    Miguel Nanni Soares 1. ed. So Paulo : EDIPRO, 2014.

    Ttulo original: Reflections of the Revolution in France

    BibliografiaISBN 978-85-7283-862-7

    1. Frana Histria Revoluo, 1789-1799 Causas 2. Frana Poltica e governo 1789-1799 3. Gr-Bretanha Poltica e governo 1760-1789 I. Ttulo.

    14-00917 CDD-944.04

    ndices para catlogo sistemtico:1. Frana : Revoluo : 1789-1799 : Histria 944.04

  • Sumrio

    Introduo .......................................................................................... 7

    Referncias ........................................................................... 23

    Reflexes sobre a Revoluo na Frana .................... 25

  • Introduo

    Foram escritas vrias obras antirrevolucionrias sobre a Revoluo.Burke escreveu um livro revolucionrio contra a Revoluo.

    Novalis (1772-1801)

    Definidas pioneiramente pelo poltico, jurista e historiador escocs Ja-mes Mackintosh (1765-1832) como um manifesto da contrarrevoluo,1 e descritas pelo historiador Alfred Cobban (1901-1968) como o maior e o mais influente panfleto poltico jamais escrito, e uma contribuio clssi-ca para a teoria poltica da civilizao ocidental,2 as Reflexes (publicadas em primeiro de novembro de 1790) de Edmund Burke (1730-1797)3 foram logo traduzidas para o francs (em apenas um ms!), alemo, italiano e, em edio clandestina, para o espanhol no mundo lusfono, seria preciso esperar at 1812 pela publicao de excertos da obra nos Extratos das obras polticas e econmicas de Edmund Burke, do Visconde de Cairu. Na Ingla-terra, foram vendidas 5.500 cpias em 17 dias, 19 mil no primeiro ano e 30 mil at o falecimento do autor, em julho de 1797. Na Frana, foram 2 mil exemplares nos dois primeiros dias e, em fevereiro de 1791, a obra j alcana-va sua terceira edio, com mais de 10 mil exemplares vendidos.4

    Desde ento, duas questes tm inquietado os leitores da obra. A primeira procura entender as razes que levaram um poltico e intelectual de hist-

    1. Em Vindiciae Gallicae, de 1791, panfleto favorvel Revoluo Francesa.

    2. COBBAN, 1950, p. 4.

    3. Para uma reviso biogrfica e historiogrfica crtica do autor, leia-se o excelente trabalho de FLORENZANO, 1999, p. 148-80.

    4. GODECHOT, 1961, p. 70-3.

  • 8 | REFLExES SOBRE A REVOLUO NA FRANA

    rico liberal como Burke (defensor da causa dos catlicos irlandeses, dos co- lonos norte-americanos e do povo indiano contra os diversos abusos das autoridades britnicas) a odiar to radicalmente a Revoluo na Frana, e num momento em que, como bem notou o historiador E. Halvy, era uma iluso compartilhada por todos os simpticos Frana na Inglaterra que a Revoluo de 1789 era uma revoluo de tipo ingls, uma imitao da revo-luo de 1688 e inspirada nas ideias inglesas?5 Em segundo lugar e na esteira da primeira questo, por que o tom agressivo e veemente da obra, que levou um filsofo liberal como Isaiah Berlin a caracterizar seu autor como um inimigo da Ilustrao?6

    Com efeito, desde a publicao do clebre panfleto de Thomas Paine em resposta s Reflexes, Burke tem sido acusado de haver abusado da retrica para distorcer a realidade e enganar seus leitores; mais especifica-mente, de recorrer a trgicas ou horrendas pinturas muito bem cal- culadas, segundo Paine, para a representao teatral, onde os fatos so manejados tendo em vista o espetculo e adaptados para produzir, pela fra-queza de sentimento, o efeito do choro , esquecendo-se de que escrevia histria e no peas, e que os leitores esperaro verdade e no linguagem altissonante nem exclamaes em alta voz.7

    Para o renomado8 autor de Os Direitos do Homem, a linguagem alegre e florida do panfleto burkeano com seu estilo ou formato indefinido (uma Miscelnea, pois no se tratava nem de carta, nem de panfleto pol-tico, nem de tratado histrico) , traduzia uma estratgia retrica do autor para encobrir as debilidades e insuficincias de um intransigente e irracio-

    5. HALVY, 1928, p. 169.

    6. Em seu excelente estudo, Gertrude Himmelfarb (2004, p. 251) destacou o modo com que Berlin (Against the current: essays in the History of Ideas, 1955) se referiu depreciativamente a Burke, ora identificando-o como um autor de ideias fortemente conservadoras e, com efei-to, de implicaes reacionrias, ora associando-o a uma cadeia nada lisonjeira de autores anti-Ilustrados que, incluindo autores to distintos como Hamann, Fichte, Maistre e Bonald, culminava nos autores fascistas do sculo xx. Na contramo de Berlin e na esteira de Him-melfarb, Pierre Manent (1986, p. 9-10) observou com agudeza que a originalidade de Burke foi a de ter empreendido uma crtica conservadora Revoluo Francesa sem ter abandonado a doutrina liberal. No mesmo sentido, Cecil P. Courtney (1989) sublinhou que a filosofia poltica de Burke no representou uma revolta contra as Luzes, mas contra o racionalismo abstrato dos partidrios dos direitos do homem.

    7. PAINE, 1989, p. 41 e 97.

    8. Paine j havia obtido notoriedade por meio de seu panfleto O Senso Comum, de 1776, que galvanizou a opinio pblica dos colonos norte-americanos a favor da Revoluo e da procla-mao de um novo governo inspirado em ideais republicanos.

  • INTRODUO | 9

    nal ataque a uma revoluo de carter eminentemente liberal-democrtico como a que ocorrera na Frana (e que ele, Paine, a exemplo da maioria dos observadores liberais ingleses, considerava pacfica e estabilizada), assim como uma anacrnica defesa da monarquia e da aristocracia. No s-culo xx, um renomado historiador como Jacques Godechot no fez mais que reproduzir, com outras palavras, o raciocnio condenatrio de Paine. Segundo ele, as Reflexes possuem um duplo carter, na medida em que apresentam simultaneamente uma exposio doutrinal de valores conser-vadores crticos democracia (de onde a obra derivaria todo seu valor) e um requisitrio virulento e frequentemente arbitrrio (resultado de um misto de desinformao com deformao deliberada) da Revoluo Fran-cesa, portanto, sem nenhuma validade como obra histrica.9

    Todavia, para alm do justo ttulo de obra fundadora do moderno con-servadorismo poltico,10 as Reflexes no podem ser ignoradas como um fe-cundo e original ensaio de interpretao histrica de uma revoluo ainda em seus primrdios (fato este que Burke teve o mrito de distinguir).

    Em primeiro lugar, preciso esclarecer que Burke esteve longe de pre-tender capturar as emoes de seus leitores prescindindo completamente dos meios argumentativos e racionais do convencimento. Acima de tudo, Burke era tributrio de uma tradio retrica que, encabeada por Arist-teles, concedia a primazia ao apelo racional e definia o propsito da retrica como sendo um amparo e auxiliar do julgamento (krisis) aristotelicamen-te assumido como um processo racional que mede as evidncias, pesa as alternativas e obedece a procedimentos objetivos. A exemplo do Estagirita, os apelos emocionais e ticos constituam meios subordinados para servir como reforo do julgamento racional: Nenhum dos dois encarou suas au-dincias como to fracas a ponto de serem convencidas por meio de um primrio apelo emocional. Persuaso, em teoria pelo menos, era um pro-cesso de convencimento racional.11

    Apresentadas e justificadas como uma carta endereada a um jovem fi-dalgo francs, as Reflexes foram logo percebidas por seus leitores como um

    9. GODECHOT, 1961, p. 66.

    10. Opinio compartilhada por dois estudos clssicos sobre o pensamento conservador, respecti-vamente: Mannhein (1963, p. 93); Nisbet (1987, p. 15). Num estudo mais recente, o economista alemo Albert O. Hirschman (1992) observou como a retrica burkeana (classificada por ele como retrica da perversidade) mobilizada nas Reflexes continua sendo um manancial inesgotvel para as crticas de tendncia conservadora e/ou liberal, em relao s medidas socioeconmicas intervencionistas ou inclusivas dos governos.

    11. LOCK, 2000, p. 23.

  • 10 | REFLExES SOBRE A REVOLUO NA FRANA

    panfleto, o que no sculo xVIII implicava em um breve texto de prosa ar-gumentativa, que trata de uma questo mais ou menos tpica, endereado a um pblico bastante amplo, buscando exercer algum tipo de persuaso. Escritos com a inteno de persuadir, os panfletos eram inescapavelmente retricos, lanando mo de apelos racionais, emocionais e ticos bem especficos.12 De modo que os apelos burkeanos ao discurso do preceden-te jurdico e o recurso histria paralela (notadamente dos inmeros exemplos tirados da histria romana) autorizam o pleno enquadramento da obra como um panfleto, apesar de ela possuir uma extenso caracters-tica de um tratado poltico.

    A respeito das passagens mais polmicas (e destacadamente retricas) do panfleto, o historiador F. P. Lock destacou o quanto a reabilitao da cavalaria presente nas Reflexes de capital importncia para a compre-enso da obra, uma vez que para Burke o evento definidor da Revoluo Francesa no foi a tomada da Bastilha (um evento recebido com entu-siasmo quase unnime pelos mais distintos observadores ingleses), mas as jornadas de 5-6 de outubro de 1789, responsveis pela transferncia da famlia real a Paris por meio de um ato de fora da multido (que por mui-to pouco no culminou no linchamento de Maria Antonieta, assim como acontecera com os seus guardas).

    Por mais escandaloso que isto possa parecer s nossas suscetibilidades modernas, a verdade que a cavalaria (a aristocracia e as instituies mons-ticas) foi apreendida e por mais de um autor britnico inequivocamente ilustrado como uma fora positiva e progressista da histria moderna da Europa. A ttulo de ilustrao, o economista poltico e historiador escocs Adam Fergunson (1723-1816), em seu Essay on the History of Civil Society (1767), creditou cavalaria um importante papel no desenvolvimento da civilizao moderna (isto , mercantil e socialmente diversificada). Mesmo Edward Gibbon (1737-1794), figura-chave da ilustrao inglesa, sem deixar de reconhecer os abusos da Idade Mdia, era capaz de celebrar o ideal de ca- valaria no volume final de sua History (1788), a ponto de, nas palavras de Lock (autor da mais completa e recente biografia de Burke), nenhum leitor atento de Gibbon poder ficar surpreso com a apologia de Maria Antonieta presente das Reflexes: Eu adoro sua cavalaria.13

    12. LOCK apud LEBRUN, 2010, p. 19-20.

    13. Ademais, como logrou demonstrar o mesmo bigrafo, o interesse e simpatia burkeanos pela cavalaria datam de um perodo muito anterior Revoluo Francesa e ameaa de contami-nao na Inglaterra, remontando ao perodo de seu inacabado History of England (1757) e s edies do Annual Register. Leia-se: LOCK, 2006, p. 300.

  • INTRODUO | 11

    Indignado desde a primeira hora com este episdio, o fato que Burke s se manifestou (e a Revoluo Francesa como um todo) em fevereiro de 1790, aps tomar conhecimento, no ms anterior, dos efusivos comentrios do dissidente religioso Richard Price sobre aquele desfile triunfal dos revolu-cionrios franceses, e os quais, proferidos em um sermo de 4 de novembro de 1789 para o clube da Sociedade da Revoluo de 1688, representaram o estopim para a redao das Reflexes.

    Na viso de Burke, o contraste entre sua prpria reao de horror e, ante o mesmo episdio, o rejbilo blasfemo de Price, passou a simbolizar a oposio entre os sentimentos morais naturais (que ele, Burke, pretendia suscitar em seus leitores) e os fanticos (atribudos por ele aos revolucio-nrios franceses e aos dissidentes radicais ingleses), de modo que a seo dedicada aos dias de outubro e suas ramificaes foram designadas por Burke como um um teste de sensibilidade para seus leitores.14

    Ademais, conforme demonstrou o historiador J. C. D. Clark em um brilhante estudo sobre as Reflexes, Burke era tributrio de uma tradio poltica clssica que, formulada por Giovanni Bocaccio em De Casibus Virorum Illustrium (1355-1374) e integrada concepo trgica do teatro ingls, associava a revoluo aos inesperados giros (revolues) da Roda da Fortuna. Segundo Clark, somente por meio desta concepo clssica da revoluo a qual, consagrada no teatro shakespeariano, realava o espe-tculo dos grandes homens sendo rebaixados pelos golpes (inesperados e repentinos) da Fortuna15 que o leitor moderno logra compreender as intenes e o pathos burkeano expressos nas eloquentes aluses Maria Antonieta e ao fim da era da cavalaria. Neste sentido, a expropriao do clero francs (que ele, amparado em uma visita que fizera Frana em 1773, e nas relaes que estabelecera com alguns membros daquela or-dem, julgava digno e virtuoso), a sistemtica destruio da nobreza (na sociedade civil e no exrcito), e o quase linchamento de uma rainha (o ele-mento mais frgil e simblico da hierarquia social), ofereceram os elemen-tos clssicos para que Burke tingisse sua narrativa da Revoluo Francesa com cores dramticas.16 Amparado em extensa documentao, Clark de-monstrou como os contemporneos de Burke, especialmente os polticos whigs liderados por Charles Fox, subestimaram a extenso de violncia

    14. LOCK, 2006, p. 296.

    15. Leia-se, por exemplo, o penetrante ensaio de Antnio Cndido em: A culpa dos reis: mando e transgresso no Ricardo II (CNDIDO apud NOVAES, 1992).

    16. CLARK, 2001, p. 89-90.

  • 12 | REFLExES SOBRE A REVOLUO NA FRANA

    pessoal, as desordens, as destruies de propriedades e a insubordinao militar flagrantes naqueles idlicos e supostamente pacficos anos de 1789-1790. Burke, portanto, no s no ignorou esses episdios (extensivamente retratados pela imprensa britnica, mormente nas pginas do conservador The Times, mas tambm nas pginas do peridico semioficial francs Le Moniteur), como lhes atribuiu o devido peso.17

    Entretanto, esta concepo clssica de revoluo incapaz de esclarecer o profundo e incrvel prognstico contido nas Reflexes, e o qual, vendo nos acontecimentos de alm-Mancha no o eplogo, mas o prefcio de uma revoluo ainda no seu incio, segue inquietando os estudiosos:

    Dificilmente permanecer em seu estado atual; mas antes de tomar sua for-ma definitiva ele [governo francs] pode ser obrigado a passar, como diz um de nossos poetas, por grandes variedades de formas desconhecidas do ser, sendo purificado pelo fogo e pelo sangue em todas as suas transmigraes.18

    certo que aquela concepo clssica de revoluo combinava-se com outra, nascida da observao atenta e crtica de Burke19 das atividades polti-cas dos dissidentes ingleses. De acordo com este novo insight burkeano (em grande parte, derivado de suas leituras histricas de David Hume), a Revolu-o de 1789 representava o triunfo de um novo fanatismo na arena poltica, a saber, um fanatismo de natureza laica (nem por isto menos dogmtico) expresso pelos defensores dos Direitos do Homem, a nova religio democr-tica e niveladora que ameaaria todos os regimes estabelecidos na Europa a partir de ento, inclusive o livre e prspero sistema constitucional ingls.20

    Conforme o prprio Burke expressou em uma carta enviada a um dis-sidente de Bristol:

    17. CLARK, op. cit., p. 51-3.

    18. Ver nesta edio, p. 254.

    19. Burke recorreu a um vasto nmero de publicaes pr-revolucionrias francesas, as quais in-cluam desde panfletos e reprodues dos cahiers de dolances (cadernos de queixas) das trs ordens aos discursos e relatrios de abertura dos Estados Gerais. Lera no apenas os escritos dos monarquianos e dos primeiros migrs (como Lally-Tollendal e Mounier), como estabe-lecera um contato pessoal com eles. Suas referncias aos discursos dos deputados Gaston Ca-mus (um dos principais articuladores da Constituio Civil do Clero) e Rabaut Saint-Etienne (pastor protestante e um dos principais oradores da Assembleia Constituinte, a qual chegou a presidir), bem como o acompanhamento dirio dos peridicos ingleses e franceses (como o Le Moniteur e o Courier Franais, que reproduziam os debates e discursos parlamentares), no deixam dvidas sobre a amplitude, diversidade e profundidade das informaes de que o autor das Reflexes dispunha quando redigiu seu clebre panfleto. Burke podia ser tudo, menos mal ou insuficientemente informado. Cf. CLARK, 2001, p. 49.

    20. CLARK, 2001, p. 92-3.

  • INTRODUO | 13

    Tomei conhecimento recentemente de duas publicaes, que no me deixa-ram dvidas de que um partido considervel foi formado e est atuando sistema-ticamente para destruir a Constituio nas suas partes essenciais. Fico surpreso em ver assembleias religiosas se transformarem em lugares de exerccio de po-ltica e o crescimento de um partido que parece ter muito mais discrdia e poder do que piedade como seu objetivo.21

    Pouco depois, quando j redigia as Reflexes, Burke fora comunicado por um amigo (cuja identidade permanece desconhecida) sobre o teor po-liticamente radical das propostas formuladas pelos dissidentes religiosos associados a Richard Price e Joseph Priestley, os quais promoveram uma intensa campanha nacional de propaganda a favor da reforma parlamentar e pela supresso do Test e do Corporation Act (que obrigavam todos os postulantes a cargos administrativos ou pblicos a fazer um juramento de f anglicana) a partir de fevereiro de 1790. A esse correspondente annimo, Burke escreveu:

    alguns deles encontram-se to acalorados por suas teorias particulares, que ofe-recem mais do que indcios de que a queda dos poderes civis, com todas as suas terrveis consequncias, contanto que possam ser teis s suas teorias, no seria algo inaceitvel ou muito distante de seus desejos.22

    Foi assim que, em meio aos elogios Revoluo Francesa pelos dissi-dentes ingleses e, no Parlamento, por Fox e pelo primeiro-ministro britnico William Pitt, Burke proferiu o seguinte discurso:

    Desde que a Casa [Cmara dos Comuns] entrara em recesso no ltimo ve-ro, muito trabalho foi feito na Frana. Os franceses mostraram-se ao mundo como os mais hbeis arquitetos da runa que j existiram. Naquele exguo espao de tempo, eles deitaram completamente por terra sua monarquia; sua igreja; sua nobreza; sua lei; sua receita pblica; seu exrcito; sua marinha; seu comrcio; suas artes; e suas manufaturas.

    Ciente da fora de seduo exercida pela Revoluo Francesa junto aos elementos polticos liberais da aristocracia inglesa (mormente os lderes de seu partido whig), Burke advertiu sobre o perigo existente na Inglaterra em caso de uma imitao dos excessos de uma irracional, desregrada, proscri-tora, confiscadora, aambarcadora, feroz, sangrenta e tirnica democracia, a qual, em matria de religio, substitua o perigo da intolerncia pelo do atesmo (segundo ele, h muito encarnado numa faco de homens de le-tras). Denunciando os riscos inerentes Inglaterra de uma possvel imitao

    21. Carta de Burke a Bright de 18.2.1790 (CLARK, op. cit., p. 59).

    22. CLARK, 2001, p. 60.

  • 14 | REFLExES SOBRE A REVOLUO NA FRANA

    do esprito francs de Reforma esprito este caracterizado pela glorifica-o da revoluo como modalidade de ao poltica, como se as revolues fossem coisas boas em si mesmas Burke encerrou seu discurso com a seguinte provocao:

    Todos os horrores e todos os crimes da anarquia que produziram a sua re-voluo, acompanharam o seu progresso, e devem virtualmente servi-la em seu estabelecimento, no significam nada para esses amantes das revolues.23

    Conforme essas passagens indicam, a crtica radical de Burke Revoluo Francesa ser feita em nome da constituio inglesa, de modo que a incom-patibilidade entre a mensagem poltica da Revoluo Francesa e a herana da common law constituir, como bem definiu Franois Furet, o tema quase obsessivo das Reflexes.24 Longe de ser um berrio de novas revolues, a Declarao de Direitos de 1688 foi um pacto que confirmou os direitos e as liberdades dos ingleses, ao mesmo tempo em que regulou a sucesso da Coroa. Ao invs de postular direitos apriorsticos, a Revoluo de 1688 foi um amargo remdio constitucional usado para revalidar, estender e consa-grar um patrimnio legal j existente e herdado:

    O senhor poder observar que, da Magna Carta Declarao de Direitos, a poltica constante de nossa Constituio sempre foi a de reivindicar e afirmar nossas liberdades como uma herana inalienvel, deixada para ns por nossos antepassados e a ser transmitida nossa posteridade...25

    Mesmo admitindo que a Frana no possua aquela feliz herana de liber-dades, Burke (sem avanar uma anlise detalhada do Antigo Regime francs to criticado por ele nas dcadas de 1770-1780) sustentava que os franceses poderiam, se assim o quisessem, ter aproveitado o exemplo ingls de 1688 cujo legado fora criticado por Price e os demais dissidentes ingleses e re-construdo a Constituio francesa (que ele admitia estar corrompida e di- lapidada pela ao do despotismo monrquico e da corrupo da Corte) a partir das muralhas e dos cimentos de um castelo nobre e venervel.

    23. Edmund Burke. Discurso Parlamentar de 9.2.1790 (BURKE apud CLARK, 2001, p. 66-7).

    24. FURET, 2001, p. 95.

    25. Mais adiante, l-se o seguinte: Um esprito de inovao , em geral, o resultado de um carter egosta e de perspectivas restritas... Mediante uma poltica constitucional que opera segundo o padro da natureza, recebemos, conservamos e transmitimos nosso governo e nossos privi- lgios da mesma maneira como possumos e transmitimos nossas propriedades e nossas vidas./ Essa ideia de uma tradio liberal inspira-nos com um senso de dignidade congnita que nos preserva daquela insolncia de parvenus, to aviltante e comum entre aqueles que pela primeira vez adquirem algum grau de distino. Ver nesta edio, p. 55-6.

  • INTRODUO | 15

    Todavia, ao invs de preservarem a variedade de rgos existentes nos an-tigos Estados os quais traduziam uma srie de combinao e oposio de interesses26 , os franceses optaram por fazer tbua rasa do passado e, com base num artificialismo metafsico que considerava as heranas do passado como uma enorme mcula, decidiram comear o mundo de novo.27

    Contra o voluntarismo constitucional francs (sempre suscetvel a abrir novos ciclos revolucionrios, posto que sem ponto de fuga definido) por sinal, algo implcito no pensamento poltico do principal idelogo da Revo-luo Gloriosa, John Locke Burke viu-se obrigado a elaborar uma memor-vel e original reviso da tese contratualista liberal do Estado:

    A sociedade , certamente, um contrato. Contratos de natureza inferior que recaem sobre objetos de mero interesse ocasional podem ser desfeitos von-tade; mas o Estado no deveria ser considerado em p de igualdade com um acordo de parceria em um comrcio da pimenta, do caf, do algodo, do tabaco ou em qualquer outro negcio inferior dessa espcie, uma sociedade instituda para a satisfao de um interesse temporrio e dissolvida de acordo com o de-sejo das partes? Certamente que no. Deve ser encarado com outra reverncia, porque no se trata de uma parceria em coisas inferiores apenas para satisfao da grosseira existncia animal de uma natureza efmera e perecvel. O Estado uma associao que participa de todas as cincias, todas as artes, todas as virtudes e todas as perfeies. Como os fins dessa associao no podem ser obtidos em muitas geraes, torna-se uma parceria no s entre os vivos, mas tambm entre os mortos e os que ho de nascer.28

    Se para os revolucionrios franceses (e seus admiradores ingleses) o na-tural era identificado ao racional (isto , como aquilo que fosse inerente natureza humana em todos os tempos e lugares, e passvel de ser apreendido e aplicado racional e universalmente), Burke, amparado numa concepo de direito natural diametralmente oposta ao esprito hegemnico do ra-cionalismo da Ilustrao (e, como bem demonstrou Leo Strauss, tambm ao dos clssicos),29 associava, como Montesquieu, o natural ao particular.30

    26. A ao e a reao que, nos mundos natural e poltico, do confronto recproco e dos poderes discordantes, obtm a harmonia no universo; tornam a deliberao uma questo de neces-sidade, no de escolha; fazem de toda mudana um objeto de compromisso, o que conduz na-turalmente moderao; criam temperamentos, evitando o doloroso mal de reformas brutais, precipitadas e extremas, e tornam impraticveis para sempre todo uso inconsiderado do poder arbitrrio, seja este exercido em nome de poucos ou de muitos. Ver nesta edio, p. 57.

    27. Idem.

    28. Ver nesta edio, p. 115.

    29. STRAUSS, 1953, p. 313-4.

    30. Cf. Montesquieu (2003), Livro I, cap. 3.

  • 16 | REFLExES SOBRE A REVOLUO NA FRANA

    Pois o natural (e isto vale tanto para consideraes de ordem poltico-cons-titucional quanto de ordem econmica)31 deve crescer contnua, imper-ceptvel e irrefletidamente ao longo dos tempos e sofrer uma variedade de provaes/testes e adaptaes atravs de geraes. Produto da histria e no das somas das vontades abstratas e planificadoras dos indivduos, a Constituio Britnica contemplava e harmonizava uma variedade de fins e de interesses, logrando ser plenamente natural e racional. Pelo fato de ne-garem as aquisies, os preconceitos e os precedentes histricos em nome de um voluntarismo abstrato, Burke considerou os revolucionrios france-ses como os homens menos qualificados para a legislao que a histria j havia registrado, e sua obra, a Revoluo de 1789, no como a consagrao de uma ordem racional e de acordo com as leis naturais, mas como uma terrvel negao das mesmas.32

    Neste sentido, nada exprimia melhor a loucura dos revolucionrios franceses do que as palavras proferidas pelo deputado francs Rabaut Saint--Etienne, presidente da Assembleia Nacional, e que Burke reproduziu em uma nota de p de pgina das Reflexes:

    Todos os estabelecimentos franceses coroam a infelicidade do povo: para torn-lo feliz, preciso renov-los, mudar suas ideias, suas leis, seus costumes; ...mudar os homens, as coisas; alterar as palavras; ...destruir tudo, pois preciso refazer tudo.

    A nosso ver, o impressionante prognstico burkeano sobre o Terror vin-cula-se sua original percepo de que o engendramento terico da polti-ca pelo direito dos indivduos (direito este consagrado na Declarao de 26 de agosto de 1789) criou, no abstrato, um poder ilimitado do corpo coletivo sobre si mesmo, sem prover os meios de determin-lo ou de controlar o seu emprego.33 Como bem sublinhou Furet a este respeito:

    31. No por acaso, o pensamento de Burke exerceu forte apelo nos pensadores liberais da escola austraca, como o exemplo de Friedrich-August von Hayek (1899-1992) o demonstra. Cf. HAYEK, 1960.

    32. STRAUSS, op. cit., p. 316.

    33. A anlise burkeana permite prever o curso obrigatrio desta deriva, como se ela anunciasse as leis da desordem. O indivduo abstrato no poderia formar a coletividade. A nao, por-tanto, no encontra outro elo federativo seno no Estado abstrato, potencialmente desptico. O novo regime democrtico coloca o cidado na dependncia direta de um poder que nada mais o tempera. A continuao da Revoluo no pode se cumprir a no ser no sentido da ti- rania. O Terror e o recurso ao exrcito esto, pois, inscritos nas premissas revolucionrias de 1789. Cf. GEGEMBRE, 2007. Ver tambm Gauchet, 2007, p. 124-5.

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    [Burke percebeu como] a emancipao dos indivduos em relao s sujeies tradicionais que os unem a suas comunidades, superiores e anteriores a eles, no implica numa diminuio da autoridade que se exerce sobre os mesmos, mas num deslocamento e alargamento dela, sob a forma de Estado soberano.34

    Mais do que qualquer outro fator, foi esta lgica absolutista e indefinida da soberania que ensejou a usurpao poltica e, por meio dela, o Terror. Esta identidade transcendente mas vazia e muda abriu a caixa de Pan-dora iniciativa daqueles que pretendiam falar em nome do prprio pro-cesso revolucionrio, em nome do movimento pelo qual o poder do povo se estabeleceu, isto , em obedincia s leis naturais que estavam acima de todas as leis, at daquelas definidas pela vontade geral e consagradas pelos artigos mais garantidores das liberdades individuais da Declarao (como os artigos 2o, 7o, 8o, 9o, 10o e 11o). Aqueles que manifestam uma dissidn-cia individual ou no se solidarizam com a presumida voz da razo/direito natural/peuple malheureux so designados por seus porta-vozes nos clubes ou na Conveno como traidores da nao ou inimigos do gnero humano, cuja sentena deveria ser a morte.

    Diferentemente, portanto, das revolues Gloriosa (Burke praticamente silencia sobre a Revoluo Puritana) e norte-americana de 1776 que tive-ram um carter poltico-constitucional delimitado, pois obedeceram s cir-cunstncias e, na medida em que conservaram a jurisprudncia da common law, foram ditadas pelas consideraes de prudncia que interpuseram pesos e contrapesos (checks and balances) ao poder central sem prejuzo da sobe-rania , a Revoluo de 1789 foi uma revoluo total, na medida em que no apenas demoliu as runas da antiga Constituio francesa, como, sobretudo, solapou os antigos valores e sentimentos cristos e aristocrticos, substituin-do-os por uma nova filosofia niveladora, mecanicista e democrtica: ou seja, uma revoluo dos sentimentos, dos costumes e das opinies morais.35

    E no que diz respeito ao valor das Reflexes como obra histrica, Burke esboou uma anlise que, tratando de esclarecer objetivamente as causas do fenmeno abordado (fossem elas primrias ou secundrias) e buscando identificar os atores ou agentes sociais envolvidos na Revoluo de 1789, articulava a superestrutura (o iderio poltico da Revoluo Francesa) com a estrutura socioeconmica que lhe servia de base (os agentes sociais por-tadores daquelas ideias, suas origens, as circunstncias de sua coalizo). Como bem ilustrou o historiador irlands Conor Cruise OBrien em seu

    34. FURET, 2001, p. 108.

    35. Ver nesta edio, p. 99.

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    primeiro e original estudo sobre o panfleto burkeano, as Reflexes buscaram olhar por entre a fachada poltica da Revoluo, em busca de sua substncia econmica e social.36

    Nesta linha, o historiador J. G. A. Pocock37 observou, em seu brilhante ensaio sobre as Reflexes,38 como os alvos da crtica burkeana eram, res-pectivamente, o monied interest (interesse monetrio/financeiro) e os gens de lettres (filsofos e escritores polticos em geral).

    No caso do primeiro grupo, tratava-se de uma classe de plebeus ricos, ou recm-nobilitados que, favorecidos pelo exorbitante crescimento da dvida pblica durante o reinado de Lus xVI, aproveitaram-se da crise financeira do Estado para se vingar da nobreza por meio da Coroa e da Igreja.39

    Produto de uma poltica secular do Antigo Regime francs que man-tivera mais separados e menos miscveis os interesses da propriedade da terra e os interesses monetrios na Frana, e os detentores desses dois tipos de propriedade pouco dispostos a se unir, contrariamente ao que se d nes-te pas [a Inglaterra] , Burke no via nenhum indcio de que os homens ricos por trs daquele interesse monetrio estivessem dispostos a investir seu capital ou maximizar seus lucros no comrcio ou na agricultura. Pelo fato desse interesse monetrio ser estruturalmente mais aberto inovao e dinmico (possuir um carter associativo devido ao seu carter citadino e mercantil), o mesmo tendia a prevalecer sobre os grupos que compunham o interesse fundirio (a aristocracia e, no caso francs, a grande massa de populao camponesa, de natureza mais passiva; ambas social e politi- camente inclinadas ao isolamento), impondo-se como uma nova oligarquia (desprovida das maneiras ou virtudes liberais que nasciam da patronagem aristocrtica) no Estado.40

    36. Para este autor, as Reflexes e as outras obras de Burke oferecem alguns dos melhores exem-plos da crtica aristocrtica em relao burguesia, da qual o Manifesto Comunista faz uma apreciao sarcstica. Burke e Marx procuraram compreender os princpios revolucionrios presentes na Frana Burke com vista a impedir sua propagao e a destruir o ncleo da in-feco; Marx para elogiar a vitria de uma nova revoluo, trazendo consigo o triunfo de tudo aquilo que Burke via de mais desprezvel e no daqueles aspectos mais benficos da velha ordem (OBRIEN, 1982, p. 4).

    37. Autor de dois importantes trabalhos anteriores sobre Burke, respectivamente o esclarecedor artigo Burke and the Ancient Constitution: A Problem in the History of Ideas (1960); e a Introduo (1987), para uma nova edio das Reflections.

    38. POCOCK, 2003.

    39. Ver nesta edio, p. 128.

    40. O total do poder obtido por essa revoluo se estabelecer nas cidades, nas mos dos bur-gueses e dos banqueiros que as dirigem... A prpria natureza da vida e da propriedade rural...

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    Desenvolvido paralelamente ao interesse monetrio e, como este, um produto do absolutismo dos Bourbons (homens de grande talento e energia que, sem ttulos de nobreza, posses, ou posio fixa na sociedade, constitu- ram-se numa organizao prpria e independente do poder em razo da progressiva falta de patrocnio da Corte), os homens de letras representa-vam uma faco dotada de um interesse distinto, mas intrinsecamente aliado ao grupo anterior, uma vez que seus ataques religio forneciam a justifi-cativa ideolgica para os especuladores do crdito pblico levarem a cabo o arbitrrio confisco das terras da Igreja em nome do interesse pblico.41

    Em linhas que antecipam as abordagens de Tocqueville42 e, como des-tacou o prprio Pocock, de Augustin Cochin43 sobre o decisivo papel desempenhado pelos escritores polticos e seus princpios abstratos no de-senvolvimento da Revoluo Francesa (e, poder-se-ia dizer, das revolues

    tornam os homens do campo de certa maneira incapazes de se agruparem e organizarem, que so o nico meio de se obter e exercer influncia... Os hbitos dos burgueses, suas ocupa-es..., os mantm continuamente reunidos. Todas essas consideraes no deixam nenhuma dvida em meu esprito sobre o que acontecer se essa monstruosa constituio perdurar: toda a Frana ser governada por agitadores reunidos em corporaes, pelas associaes ur-banas formadas pelos diretores dos assignats e pelos fiducirios da venda dos bens eclesi-sticos, procuradores, agiotas, especuladores financeiros e aventureiros que compem uma oligarquia ignbil, fundada na destruio da Coroa, da Igreja, da nobreza e do povo. Aqui terminam todos os sonhos e vises enganosas da igualdade e dos Direitos do Homem; no lo-daal serboniano dessa vil oligarquia eles so inteiramente absorvidos, submersos e perdidos para sempre. Ver nesta edio, p. 206-7.

    41. Junto ao interesse monetrio, desenvolveu-se uma nova categoria de homens, com a qual esse interesse logo formou uma estreita e clara aliana. Refiro-me aos Homens de Letras polticos... Esses escritores, como os apstolos de todas as novidades, aparentavam ter um grande zelo pelos pobres e pelas ordens inferiores, enquanto em suas stiras tornavam odiosos, por meio de toda sorte de exagero, os erros dos tribunais, da nobreza e do clero. Eles se transformaram em uma espcie de demagogos e serviram como um elo para unir, em nome de um objetivo, uma riqueza detestvel a uma misria inquieta e desesperada. Ver nesta edio, p. 130-1.

    42. Cf. Tocqueville (1856), Livro III, cap. I. No captulo seguinte, Tocqueville dir: ...todo esp-rito de oposio poltico a quedavam lugar os vcios do governo, no podendo ocorrer nas vrias questes, se refugiara na literatura, e... os escritores se haviam tornado verdadeiros chefes do grande partido que tendia a derrubar todas as constituies sociais e polticas do pas.../A Igreja constitua um obstculo, pelos prprios princpios do seu governo, queles que eles queriam fazer prevalecer no governo civil. Ela apoiava-se principalmente na tradio: eles desprezavam totalmente todas as instituies que se fundam no respeito ao passado; ela re-conhecia uma autoridade superior da razo individual: eles apelavam apenas a essa mesma razo; ela baseava-se numa hierarquia: eles tendiam a misturar as condies (TOCQUEVILLE, op. cit., Livro III, cap. II).

    43. Respectivamente, Les socits de pense et la dmocratie moderne: tudes dhistoire rvolu-tionnaire (1921); e LEsprit du jacobinisme: une interprtation sociologique de la Rvolution franaise (1979).

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    futuras), Burke observou que foi graas a esse grupo que os ideais revolu-cionrios lograram atingir todos os grupos sociais da Frana e, por meio de sua organizao (em clubes e sociedades de pensamento), formar uma faco no Estado (cada vez mais centralizado e expandido):

    Como esses dois tipos de homens parecem ter liderado os ltimos aconteci-mentos, sua unio e sua poltica serviro para explicar, no segundo quaisquer princpios legais ou polticos, mas enquanto causa, a fria generalizada pela qual as propriedades das corporaes eclesisticas foram atacadas, bem como o grande cuidado com que, na contramo de seus pretensos princpios, protege-ram o interesse monetrio proveniente da autoridade da Coroa.44

    Ao procederem com o confisco das propriedades da Igreja para, em nome da salvao das finanas pblicas, sustentarem um sistema de crdito nacional e lastrearem seu novo papel-moeda (assignats), os revolucionrios franceses estavam na verdade atacando o sistema francs das maneiras (vin-culado s instituies e valores religiosos e aristocrticos) e, em ltima an-lise, destruindo a economia (mais especificamente, o comrcio) da nao mais civilizada da Europa. Pois na leitura histrica de Burke, era o comr-cio que dependia das maneiras, no o contrrio. Uma sociedade civilizada o pr-requisito para as relaes de troca, e estas, por si s, no podem produzir uma sociedade civilizada. Na contramo dos historiadores ou economistas polticos da escola escocesa os quais, de Hume a Robertson, Smith, Millar e Gibbon tinham destacado a diviso do trabalho e o in-cremento das trocas como as foras motrizes para o desenvolvimento das maneiras, da cultura e do esclarecimento , Burke advertia que os mesmos tomavam o efeito (diviso do trabalho e comrcio) pela causa (maneiras). Insistindo em que o comrcio s logra florescer sob a sombra das manei- ras as quais requerem a preeminncia da religio e da nobreza, os pro-tetores naturais da sociedade , o liberal-conservador irlands sustentava que a derrocada da religio e da nobreza implicaria na destruio da pr-pria possibilidade do comrcio:

    Esse sistema misto de opinio e sentimento teve sua origem na antiga cava-laria... Se algum dia ele se extinguir, receio que a perda ser demasiado grande. Foi ele que conferiu Europa moderna o seu carter... Nesse nosso mundo eu-ropeu, nada mais certo de que nossa civilizao, nossos costumes, e todas as boas coisas que dele decorrem, dependeram durante sculos de dois princpios; e resultaram, sem dvida, da combinao de ambos: aludo ao esprito do cava-lheirismo e ao esprito da religio.45

    44. Ver nesta edio, p. 131.

    45. Ver nesta edio, p. 97-8.

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    Razo pela qual Burke julgou a Revoluo Francesa no como uma re-voluo de carter burgus,46 isto , responsvel pelo desenvolvimento das foras produtivas e pela expanso do comrcio, mas como uma regresso econmica, social e, em ltima anlise, civilizatria, na medida em que re-presentou um atentado contra a prpria histria da Frana (para no dizer da Europa).47

    De modo que muito mais poderia ser dito a ttulo de introduo das Reflexes, que no apenas representam a obra fundadora do moderno con-servadorismo poltico, como, no que h de mais fundamental, avanam alguns dos principais conceitos seja da crtica filosfica ao totalitarismo,48 seja da crtica historiogrfica revisionista Revoluo Francesa da segunda metade do sculo xx...

    Sobre a traduo: Amparada na edio de L. G. Mitchell das Reflections on the Revolution in France (Oxford: Oxford University Press, 1993), esta traduo foi cuidadosamente cotejada com as verses francesa (Rflexions sur la Rvolution de France, Paris: Hachette, 1989; traduo de Alfred Fierro) e espanholas respecti-vamente de Vicente Herrero (Reflexiones sobre la Revolucin francesa, in: Textos Polticos, Mxico, D.F.: Fondo de Cultura Econmica, 1942) e de Enrique Tierno Galvn (Reflexiones sobre la Revolucin francesa, Madrid: Instituto de Estudios Po-liticos, 1954).

    Jos Miguel Nanni Soares

    46. Como destacou o prprio Pocock, Burke preferiu o termo holands anglicizado burgher ao equivalente francs bourgeois para se referir aos revolucionrios envolvidos no monied interest (interesse monetrio), uma vez que os mesmos eram tudo (desde especuladores fi-nanceiros a funcionrios pblicos, advogados, mdicos), menos uma classe de indivduos in-teressados em investir seu capital em atividades mercantis ou industriais. Leia-se: POCOCK, 1987, p. xxx.

    47. Cf. POCOCK, 1987, p. xxxIII.

    48. Em sua Introduo, Pocock observou que as Reflexes (segundo ele, o equivalente do livro 1984, de Orwell, em pleno sculo xVIII) podem ser lidas como um antdoto no s contra o Terror decorrente da terrvel energia liberada por uma nova intelligentsia revolucionria, como tambm de certas monstruosidades como o Nazismo, a Guarda Vermelha e o Khmer Ver-melho. Ver Pocock (1987, p. xxxVII). Ver tambm Arendt (2006, notadamente, p. 116 e 118).