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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa Universidade Federal da Paraíba 15 a 18 de agosto de 2017 ISSN 2236-1855 6492 REFLEXÕES ÀS MINHAS ALUNAS: UM MANUAL DE CONDUTA PARA EDUCAÇÃO FEMININA DA PROVÍNCIA DO RIO GRANDE DO NORTE Franselma Fernandes de Figueirêdo 1 Introdução No decorrer do século XIX, na província do Rio Grande do Norte, as aulas de primeiras letras estavam regulamentadas pela Resolução nº 27, de 5 de novembro de 1836 e seguiam o “plano de estudo” que fazia parte da Lei Imperial de 15 de outubro de 1827, sancionada pelo Imperador Dom Pedro I para organizar, nacionalmente, a escolarização primária no Brasil. Assim sendo, a educação de nível primário compreendia o livro escolar como veículo de socialização da leitura, com vistas à uniformização educativa e à primeira educação − destinada a iniciar a criança em idade escolar no aprendizado gradual e simultâneo da leitura, da escrita caligráfica, de cálculos aritméticos e da doutrina cristã católica, outrossim, para reformar atitudes, mentalidades e inteligências. Nessa época, o livro escolar impresso (re)modelava os costumes da infância e guiava o roteiro do trabalho do professor, contra a monotonia e a inércia. Como parecia ser naqueles anos pós-independência do Brasil, o livro escolar Depositário de um conteúdo educativo [tinha], antes de mais nada, o papel de transmitir às jovens gerações os saberes, as habilidades (mesmo o ‘saber ser’) os quais, em uma dada área e a um dado momento, são julgados indispensáveis à sociedade para perpetuar-se. [...] veiculava, de maneira mais ou menos sutil, mais ou menos implícita, um sistema de valores morais, religiosos, políticos, uma ideologia que conduzia ao grupo social [...]. (CHOPPIN, 2002, p. 14). De certo modo, a uniformização cultural dependia dos conteúdos ensinados nos livros escolares, que tentavam corrigir o atraso da educação escolar. Há, pois, que se reforçar que todos os que compõem aquela rede complexa de inter-relacionamentos “dão-se as mãos” no intento de familiarizar a criança com a leitura do livro escolar, incluindo-se os tratados de 1 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professora Adjunta do Departamento de Ciências Exatas Tecnológicas e Humanas da Universidade Federal Rural do Semi-Árido, Campus Angicos. E- mail: [email protected].

REFLEXÕES ÀS MINHAS ALUNAS: UM MANUAL DE … · manual de conduta destinado à primeira educação da mulher de escolas e classes primárias ... Geografia do Brasil por Constantino

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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 6492

REFLEXÕES ÀS MINHAS ALUNAS: UM MANUAL DE CONDUTA PARA EDUCAÇÃO FEMININA

DA PROVÍNCIA DO RIO GRANDE DO NORTE

Franselma Fernandes de Figueirêdo1

Introdução

No decorrer do século XIX, na província do Rio Grande do Norte, as aulas de

primeiras letras estavam regulamentadas pela Resolução nº 27, de 5 de novembro de 1836 e

seguiam o “plano de estudo” que fazia parte da Lei Imperial de 15 de outubro de 1827,

sancionada pelo Imperador Dom Pedro I para organizar, nacionalmente, a escolarização

primária no Brasil.

Assim sendo, a educação de nível primário compreendia o livro escolar como veículo

de socialização da leitura, com vistas à uniformização educativa e à primeira educação −

destinada a iniciar a criança em idade escolar no aprendizado gradual e simultâneo da

leitura, da escrita caligráfica, de cálculos aritméticos e da doutrina cristã católica, outrossim,

para reformar atitudes, mentalidades e inteligências. Nessa época, o livro escolar impresso

(re)modelava os costumes da infância e guiava o roteiro do trabalho do professor, contra a

monotonia e a inércia. Como parecia ser naqueles anos pós-independência do Brasil, o livro

escolar

Depositário de um conteúdo educativo [tinha], antes de mais nada, o papel de transmitir às jovens gerações os saberes, as habilidades (mesmo o ‘saber ser’) os quais, em uma dada área e a um dado momento, são julgados indispensáveis à sociedade para perpetuar-se. [...] veiculava, de maneira mais ou menos sutil, mais ou menos implícita, um sistema de valores morais, religiosos, políticos, uma ideologia que conduzia ao grupo social [...]. (CHOPPIN, 2002, p. 14).

De certo modo, a uniformização cultural dependia dos conteúdos ensinados nos livros

escolares, que tentavam corrigir o atraso da educação escolar. Há, pois, que se reforçar que

todos os que compõem aquela rede complexa de inter-relacionamentos “dão-se as mãos” no

intento de familiarizar a criança com a leitura do livro escolar, incluindo-se os tratados de

1 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professora Adjunta do Departamento de Ciências Exatas Tecnológicas e Humanas da Universidade Federal Rural do Semi-Árido, Campus Angicos. E-mail: [email protected].

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boas virtudes e de boas maneiras, como o Tesouro dos meninos (Pierre Blanchard), Tesouro

das meninas (Madame Leprince de Beaumont) e Código do bom tom (José Inácio Roquette).

No rastro da produção dos livros escolares, percebe-se que havia, nesse período, uma

multicomposição na produção daqueles que chegavam a nossa Província, e grande parte

deles eram escritos e impressos em outros países. Sensível a esse contexto que se

apresentava, a professora, escritora, historiadora e jornalista norte-rio-grandense Isabel

Urbana de Albuquerque Gondim (1839-1933), quando tinha quase 35 anos de idade, sentiu-

se desafiada escrever um livro escolar para ser distribuído e lido nas escolas primárias do

sexo feminino – ou mesmo domésticas − desta província, especialmente. Na introdução do

seu livro Isabel Gondim dá ciência da necessidade de um livro como esse:

Desde a tenra idade tenho lido algumas obras sobre a educação da mocidade, e entre essas os importantes trabalho do Sr. Padre Roquette, e Visconde d’Almeida Garret, esses dois grandes vultos da literatura moderna, distintos amigos da humanidade; e notando a falta de um livro em língua portuguesa, propriamente destinado à primeira educação da mulher, resolvi aproveitar-me de alguns daqueles preciosos materiais, e elaborar um pequeno livro que vai ler-se sobre o título de Reflexões às minhas alunas. [...] O tesouro de Meninas, única obra que conheço mais adequada à educação feminina, sendo escrita pelo antiquado sistema dos contos fabulosos de involta com a moral, não pode convir hoje à educação primária, a qual, segundo autores de reconhecida importância na matéria, deve somente ser baseada na verdade pura e singela. (GONDIM, 1879, p. 5-6, grifo da autora).

Essa obra foi recomendada pela Lei nº 717, de 4 de setembro de 1874, que determinou

a distribuição de 2.000 exemplares nas escolas públicas, o que possivelmente correspondeu à

primeira (1874) e à segunda (1879) edições, já que a terceira data de 1910. A primeira e a

segunda edições foram publicadas no Rio de Janeiro, pela Tipografia Popular, de C.

Vasconcellos, e a terceira edição, revista e aumentada consideravelmente, foi impressa em

Natal, pela Tipografia A. Leite. No relatório apresentado pelo presidente da província, Dr.

José Bernardo Galvão Alcoforado Junior, tomamos ciência da distribuição de 800

exemplares entre os anos de 1873 e 1875:

A contar de agosto de 1873 até esta data têm sido distribuídos com as escolas da província 9.203 exemplares de livros apropriados ao ensino, dos quais foram em diferentes ocasiões por mim oferecidos 5.113. Também fiz o donativo de 1.000 exemplares de traslados caligráficos e ultimamente o de 23 exemplares do Catecismo de agricultura do Dr. Antonio de Castro Lopes. No número de exemplares fornecidos estão incluídos 800 da preciosa obrinha ‘Conselhos as minhas alunas’ pela distinta professora desta capital, D. Isabel Gondim. (RELATÓRIO COM QUE AO EXMO. DR. JOSÉ BERNARDO GALVÃO ALCOFORADO JUNIOR..., 1875, p. 29, 30-31, grifo nosso).

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Reflexões às minhas alunas, conforme anotações de Morais (2006), trata-se de um

manual de conduta destinado à primeira educação da mulher de escolas e classes primárias

femininas e não tinha apenas o intuito da leitura instrutiva da “menina escolar”, mas também

ensinava noções elementares de educação em sentido amplo. Conforme atesta introdução da

obra, foi o primeiro escrito [...] em língua portuguesa, propriamente destinado à primeira

educação da mulher [...] guiando-lhe os passos pela senda da virtude prática, desde a infância

à maternidade.” (GONDIM, 1879, p. 5-6),

No intuito investigar uma obra tão cara para a História da Educação do Rio Grande do

Norte – neste trabalho utilizamos a edição de 1879, representada por 5.000 exemplares

cartonados − empreendemos uma pesquisa que contemplaria a escrita do Trabalho de

Conclusão de Curso do da licenciatura em Pedagogia na Universidade Potiguar. Partimos

então em busca de trabalhos já realizados sobre essa obra e encontramos os textos de uma

pesquisadora do nosso Estado, a professora Maria Arisnete Câmara de Morais, publicados

em congressos (MORAIS, 2000, 2006) e em revista (MORAIS, 2008). Esses textos

auxiliaram na localização da obra de Isabel Gondim, cujo único exemplar do qual se tem

conhecimento encontra-se abrigado na coleção de obras raras da Biblioteca Central Zila

Mamede, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Estávamos, portanto, diante da oportunidade de investigar, através da análise de um

livro escolar voltado especificamente para a educação de mulheres, como era compreendida a

educação feminina na província do Rio Grande do Norte no século XIX. Indiscutivelmente,

esse seria um desafio instigante, embora laborioso. Mas, por seu caráter histórico, traria uma

importante contribuição para a história da educação norte-rio-grandense, especialmente

para aqueles que se dedicam a compreender qual a educação feminina pretendida no século

XIX, na então Província do nosso Estado.

O primeiro impasse quando nos deparamos com o nosso objeto de investigação foi

compreender sobre sua denominação. A princípio, precisaríamos compreender se o livro

Reflexões às minhas alunas tratava de um livro didático ou um livro/manual escolar. A

leitura da tese de doutorado de Fernandes (2009), os textos de Morais (2000, 2006, 2008) e

o texto de Magalhães (2006) nos auxiliaram nessa definição e passamos a denominá-lo como

um livro/manual escolar.

Compreender que os livros ou manuais escolares são apenas espelhos da sociedade é

uma concepção ingênua, pois eles representam uma fonte privilegiada com relação a aspectos

diversos relacionados à educação e à cultura, como podemos constatar no livro/manual que

pretendemos investigar na nossa pesquisa. Reflexões às minhas alunas preza, acima de tudo,

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a dimensão do conhecimento cultural, ou do conhecimento das letras, posto seu espectro

formativo. Ajusta-se, pois, ao modelo de livro instrutivo de transmissão de valores e condutas

social e moralmente aceitáveis, segundo a definição de Batista e Galvão (2009).

Essa pesquisa, que se insere na História da Educação do Rio Grande do Norte,

pretende, a partir da análise do Livro escolar Reflexões às minhas alunas − da escritora

norte-rio-grandense Isabel Gondim − investigar a concepção de educação feminina

apresentada neste manual de conduta, no intuito de compreender o contexto da educação

feminina na província do Rio Grande do Norte, no século XIX.

Livros escolares para educação primária da província

Conforme discorremos, a educação primária da Província do Rio Grande do Norte −

regulamentada pela Resolução nº 27, de 5 de novembro de 1836, seguia o plano de estudos

indicado na Lei Imperial de 15 de outubro de 1827, no qual constavam leitura, escrita,

aritmética, gramática da língua nacional, princípios de moral cristã e de doutrina da religião

católica, dentre outras matérias.

A escolarização primária dessa Província era propagada por meio das aulas públicas

(destinadas meninos e meninas) e pelas escolas domésticas (geralmente mistas), que se

organizavam no interior das casas de morar. Ficava ao encargo da educação escolar em nível

primário a primeira tarefa educativa de reformar homogeneamente atitudes, mentalidades,

inteligências, outrossim, de ensinar as habilidades de ler de maneiras diversas, de escrever

extensivamente segundo a norma culta da língua portuguesa e de falar corretamente.

Com a criação, instalação e ampliação das escolas de primeiras letras abriu-se uma

discussão acerca da uniformidade pedagógica da escolarização primária e a escola passou a

ser vista como instância declaradamente capacitada para a veiculação do livro escolar

impresso de utilidade comum, nacionalmente em circulação. Orientados por essa concepção,

os presidentes e diretores de instrução pública da província passaram a designar, nos

orçamentos de relatórios, quantias específicas para compra de livros escolares e utensílios

estritamente necessários às aulas em nível primário.

Assim fez o presidente da Província do Rio Grande do Norte, dr. Benvenuto Augusto

Magalhães Taques (em fala dirigida à Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte, no dia

3 de maio de 1849); o Diretor da Instrução Pública José Moreira Brandão Castelo Branco (em

relatório apresentado em 1858); o presidente João José de Oliveira Junqueira (em relatório

que abriu a sessão da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte, em 1860); o diretor

interino da Instrução Pública, dr. Aleixo Barboza da Fonseca Tinoco (em relatório

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apresentado à Assembleia Legislativa Provincial, em sessão ordinária de 1867); o diretor-

geral da Instrução Pública, dr. Francisco Gomes da Silva (em relatório apresentado em 1874),

entre outros.

A distribuição ampliada e equitativa do livro escolar impresso constituiu-se em

prioridade nos governos do Dr. Delfino Augusto Cavalcanti de Albuquerque (1871-1872) e do

Dr. João Capistrano Bandeira de Mello Filho (1873-1875). O Relatório da Instrução Pública

elaborado, no ano de 1874, pelo Dr. Francisco Gomes da Silva declarava que, durante esses

governos, tinham sido fornecidos, para as escolas públicas de toda a província, 4.881 livros

escolares, de 15 títulos diferentes dos já até então adotados. Os livros escolares eram os

seguintes:

Resumo da Gramática Portuguesa para uso nas escolas de primeiras letras por José

Alexandre (100 exemplares); Geografia do Brasil por Constantino do Amaral (100

exemplares); Lições de Corographia do Brasil pelo Dr. Joaquim Manuel de Macêdo (18

exemplares); Compêndio de Aritmética por Philogonio Avelino Jucundiano de Araújo (100

exemplares); Opúsculo de Moral Religiosa por Ambrozio Rendu (700 exemplares); Resumo

de História Bíblica pelo Ex. Bispo do Pará, D. Antonio de Macedo Costa (50 exemplares);

Catecismo da Doutrina Cristã (1.000 exemplares); Primeiro, Segundo e Terceiro livros de

leituras pelo Dr. Abílio Cezar Borges (400 exemplares); Gramática da língua portuguesa (300

exemplares); Gramática da língua francesa (100 exemplares); Tesouro das Meninas de

Leprince de Beaumont (13 exemplares); Tabuadas e Abecedários (2.000 exemplares).

As escolas primárias – templos da infância –, mediante a necessidade das localidades

maiores, deveriam adquirir feições e feitios renovados, pari passu com as teorias

preconizadas pelos mestres da pedagogia e os professores do ensino primário, a partir das

lições dos livros escolares, tinha sobre eles a tarefa pedagógica de fazer a travessia da infância

social para a vida adulta. Nesse contexto, o professor precisava ser bem mais afeiçoado à

leitura dos livros de pedagogia, para reconhecer que a criança tinha uma individualidade, um

ritmo de aprendizagem, uma condição social, prontidão para aprender mais uma matéria do

que outra e, ainda, para ler e escrever simultaneamente. De muitas maneiras, a leitura e a

escrita demandavam concomitantemente uma diversificação de utensílios pedagógicos −

livros impressos, lápis, cadernos, lousas, penas, papel almaço, tinta −, que também

ordenavam a vida escolar, individual e coletivamente.

Mas poucos eram os livros impressos destinados à educação feminina nesse período

de expansão tímida da escolarização primária. Pela listagem acima apresentada, extraída do

relatório do diretor geral da instrução pública Dr. Francisco Gomes da Silva, em 1874, consta-

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se, entre os 4.881 livros escolares (de 15 títulos diferentes) distribuídos na Província do Rio

Grande do Norte, somente um era destinado à educação feminina: Tesouro das Meninas, de

Leprince de Beaumont.

No exercício como professora primária, Isabel Gondim, atenta para a necessidade de

um livro destinado à educação feminina, sobressaiu-se com a escrita de Reflexões às minhas

alunas. Como bem destaca a autora, era tempo de escrever uma obra adequada à educação

feminina, que fugisse do antiquado sistema de contos fabulosos envoltos com a moral e que

conviesse à educação primária de então. (GONDIM, 1879).

Não demorou para que Reflexões às minhas alunas fosse recomendado por lei (nº 717,

de 4 de setembro de 1874) e distribuído nas escolas públicas de educação primária (Relatório

de província do dr. José Bernardo Galvão, em 1875). Esse manual também foi distribuído nas

províncias do Ceará, Piauaí, Bahia e Pernambuco.

Isabel Gondim nasceu em 5 de julho de 1839, na Vila Imperial de Papari − hoje

município de Nísia Floresta, no Rio Grande do Norte –, e faleceu em 10 de junho de 1933, em

Natal. Celibatária, dedicou-se inteiramente à literatura e à tarefa de educar gerações,

assumindo o magistério e tornando-se uma referência de educadora, no seu vasto convívio

intelectual.

No seu métier como escritora deixou um legado considerável de obras como

Reflexões às minhas alunas (1874-1879-1910), A Lira singela (1933), O Brasil: poema

histórico do país (1913), O sacrifício do amor (1909), Sedição de 1817 na Capitania ora Estado

do Rio Grande do Norte (1908) e Elementos de educação escolar (1885).

Era tempo de educar a mulher

As mulheres do século XIX viviam em um contexto próprio que exigia uma educação

do ser mulher. Para isso, a educação das meninas, especialmente aquela dada nos espaços

privados das casas de morar − pelos mestres-escolas ou preceptores−, buscava, prepará-las

para o casamento, tornando-as aptas a serem esposas ideias e a criar e educar seus filhos.

Vasconcelos (2005) destaca que o nível cultural e a formação para ser uma boa gestora da

casa influenciavam deveras no momento da escolha da esposa pelos homens.

A maioria das mulheres desse século viviam em condição de submissão e com poucas

possibilidades de instrução formal. Aquelas nascidas no seio famílias mais abastadas,

geralmente recebiam ensinamentos de leitura, prendas domésticas, boas maneiras e,

sobretudo, eram contempladas com a formação moral que era entendida em íntima relação

com a religiosa. Mas, mesmo que se preparassem adequadamente em escolas domésticas,

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não tinham possibilidade de acesso aos cursos superiores, o que reforçava a necessidade de

educá-las visando prepara-las para o matrimônio.

O acesso parco das meninas em idade escolar às escolas públicas de ensino primário

se tornaria cada vez mais notório a partir do discurso pronunciado pelo exmo. dr. Casimiro

José de Moraes Sarmento, na abertura da primeira sessão ordinária da Assembleia

Legislativa Provincial, no ano de 1846. Nesse discurso, o então presidente da província

relatou que, naquele ano, havia 24 escolas públicas de primeiras letras, três das quais eram

destinadas às meninas. Do total de 664 alunos que frequentavam as escolas públicas de

primeiras letras naquele ano, 621 eram meninos e somente 43 eram meninas. (DISCURSO

PRONUNCIADO PELO EXMO. DR. CASIMIRO JOSÉ DE MORAES SARMENTO..., 1846).

No ano seguinte, 1847, esse mesmo presidente de Província relataria:

As escolas públicas de primeiras letras são frequentadas este ano por 562 meninos e 48 meninas [...]. Combinando-se o nome das meninas com o dos meninos que frequentam as escolas, assim como o número destas, vê-se uma diferença assombrosa [...] porque a proporção entre os infantes de um e outro sexo, que aprendem as primeiras letras, é em toda parte medida da verdadeira força da instrução, a qual não pode ter sólidas raízes, e nem futuro certo, quando um dos dois sexos, que tão poderosamente, e por todos os modos influi sobre o outro, não é instruído. (DISCURSO APRESENTADO PELO EXMO. DR. CASIMIRO JOSÉ DE MORAES SARMENTO..., 1847, p. 10, grifo nosso).

O discurso do presidente da Província do Rio Grande do Norte denota a preocupação

com a escolarização das mulheres que, em parte, poderia ser responsável pelo avanço da

instrução pública, caso fosse oferecida de maneira igualitária. Esse quadro de escassez da

educação pública para as mulheres persistiria, como pudemos constatar em outros relatórios

dos presidentes da província.

No ano de 1855, dr. Antonio Bernardo de Passos declarou, em fala proferida na

primeira sessão ordinária da Assembleia Legislativa Provincial, existirem 30 escolas públicas

de primeiras letras para o sexo masculino (1002 alunos) e 7 escolas públicas de primeiras

letras para o sexo feminino (173 alunas). Não obstante ao contexto daquela década, quatro

anos depois, em 1859, conforme relatório apresentado pelo dr. Antonio M. N. Gonçalves à

Assembleia Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte, teríamos apenas um acréscimo de

três escolas públicas femininas, totalizando a soma de 10 escolas públicas de primeiras letras

para o sexo feminino e 42 escolas públicas de primeiras letras para o sexo masculino.

A década de 1860 inicia registrando a continuidade da parca oferta de escolas públicas

de primeiras letras para o sexo feminino. No Relatório de Província de 1862, o dr. José Bento

da Cunha Figueiredo Junior, declarou haver 37 escolas públicas de primeiras letras. Destas,

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29 eram para o sexo masculino (1.167 alunos) e apenas 8 para o sexo feminino (192 alunas).

Cinco anos depois, em 1867, o presidente da província, dr. Luiz Barbosa da Silva, relatou

existir 50 escolas públicas de primeiras letras, sendo 35 para para o sexo masculino (1.041

alunos) e 15 para o sexo feminino (290 alunas).

Em 1874, ano da publicação do livro Reflexões às minhas alunas, da professora,

escritora, historiadora e jornalista norte-rio-grandense Isabel Gondim, a Província do Rio

Grande do Norte tinha mais ou menos 233.979 habitantes: livres 220.959, e escravos 13.020.

Pelo Relatório de 1874, do Diretor Geral da Instrução Pública, Dr. Francisco Gomes da Silva,

a população escolar entre 6 e 15 anos totalizava 43.265 pessoas (21.350 homens e 21.915

mulheres), estando matriculados nas 82 escolas públicas 5.041 alunos, de idades diferentes.

Dessas, 55 eram frequentadas por meninos e 27 por meninas. Havia, ainda, 26 instituições

particulares de turnos diurno e noturno, com 1.041 alunos (23 destinadas para meninos e 3

para meninas), e uma parte considerável estudava em escolas domésticas; porém a maioria

da população em idade escolar, infelizmente, era analfabeta.

Nesse período, a educação da menina pela escola haveria que se repartir pelos

conhecimentos/aprendizados das matérias de estudo (leitura, escrita, gramática, aritmética,

educação moral e cívica, geografia, história do Brasil), da crença religiosa (ensinadora da

resignação, que acalma o sofrimento, e do temor a Deus), do respeito e obediência às

autoridades eclesiásticas, civis e políticas, de condutas morais e sentimentos nobres que

ilustram a reputação feminina (designam abnegação, por maneiras urbanas e magnânimas

virtudes cristãs) e de hábitos de higiene e elegância decente (que se relacionam,

respectivamente, à saúde e à educação estética). A leitura escolar do livro-manual Reflexões

às minhas Alunas persuadia a menina estudante para os lastros e laços formativos dos

ensinamentos, que permitiriam, ao mesmo tempo, uma interpretação mais ampla da escola

como instituição social eminentemente educativa.

Na interface da obra

O ordenamento pedagógico do Brasil oitocentista despontava, ainda timidamente,

para as mudanças na educação feminina, que até então permanecia à sombra da educação

masculina. Para as mulheres, era oferecido nos primeiros anos de estudo escolar,

praticamente o que também era ensinado aos meninos. Posteriormente essa educação

passava a ser oferecida de maneira diferenciada, tendo em vista as funções que cada um –

homens e mulheres – desempenhariam na sociedade. Dessa feita,

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[...] a educação feminina preparava a menina para a execução das tarefas relacionadas aos afazeres domésticos, às boas maneiras e à retidão [...]. Até então, apenas o ensino primário era destinado às mulheres. Enquanto os homens intensificavam os seus estudos no ensino secundário, às mulheres destinavam-se a aprendizagem acerca da economia doméstica, do bordado e dos bons costumes necessários [...]. (SANTANA, 2014, p. 145).

Reflexões às minhas alunas, podemos dizer, foi uma obra escrita em um momento

oportuno, em que as autoridades, família e alunas das escolas públicas – ou mesmo

domésticas − ansiavam por uma educação escolar que contemplasse mais e mais educação

feminina. Apoiada em ensinamentos apreendidos das leituras de obras como Da educação

(Visconde d’Almeida Garret), Código do bom tom (José Inácio Roquette) eTesouro das

meninas (Madame Leprince de Beaumont), essa obra se dedicaria a ensinar noções

elementares da educação que convinha a mulher daquele século. Para isso, divide seus

conselhos e reflexões baseados em cinco fases importantes na vida de uma mulher: a menina

escolar, a moça em sua puberdade, a moça em sua juventude ou nubilidade, a mulher casada

e a mulher mãe.

A menina escolar é tratada nesse manual como uma criatura cândida e inocente, a

quem os pais devem ensinar a amar e a temer o grande Deus, Santo e Sábio. Para sua

formação, são indissociáveis os ensinamentos da família, da escola e da Santa Religião da

Igreja Católica, em cuja crença deposita-se a felicidade e a salvação. Doutrinar-se na Santa

Religião seria vislumbrar uma menina − e futura mulher − resignada e paciente, aos moldes

do bom cristão. Almejando tais intentos, a Isabel Gondim ensina:

Antevejo os conhecimentos que ireis adquirindo dos mistérios da Santa Religião, que é a luz da alma e o caminho seguro da salvação, para o que muito devemos trabalhar. São-nos imperfeitos todos os conhecimentos que não têm como base um elevado culto de adoração ao Eterno Criador dos Céus e da terra. Vemo-lo representado nos Templos, onde Ele é particularmente adorado por quase todos os povos, e onde também reverenciamos as imagens dos que a Igreja Católica venera como santificados. Este tributo de adoração e respeito, sob o nome de Religião, é o precioso laço que prende a terra ao Céu e o homem a Deus. A crença religiosa, portanto, nos é indispensável à vida, e só a sua influência nos pode tornar verdadeiramente felizes. Nas grandes contrariedades a Religião ensina-nos a resignação que calma o sofrimento pela consoladora virtude da paciência, único conforto das maiores aflições. O temor de Deus, de que sempre estará possuída a pessoa religiosa, modera as nossas paixões, e assim somos desviados dos perigos a que elas nos arrastam. No infinito da natureza que vemos criada a Religião modifica nossa incerteza pela ideia de um Ente Supremo, autor de todas as coisas. Mas só compreendereis o grande valor da Religião quando nos seus mistérios fordes instruídas, o que não podereis conseguir, sem o conhecimento das letras, em que vou iniciando-vos. (GONDIM, 1879, p. 11-13).

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Esses mesmos ensinamentos também estavam propagados naquelas obras que

serviram de base para a escrita de Reflexões às minhas alunas. Nesse período, a educação

escolar pública, embora já assumisse um caráter laico, era uma das responsáveis por difundir

ensinamentos da doutrina cristã professada pela Igreja Apostólica Romana.

Segundo Choppin (2004), no século XIX, os Estados nacionais recentemente

constituídos reivindicavam um papel de destaque na formação das novas gerações e aos

poucos passaram a substituir as famílias – total ou parcialmente − e as autoridades

religiosas. Mas nos conselhos dados a menina escolar, Isabel Gondim não distancia a família

do dever de acompanhar e ensinar suas filhas nas atividades e lições escolares a serem

tomadas na escola.

Aprender a ler de maneiras diversas, a escrever extensivamente segundo a norma

culta da língua portuguesa e a falar corretamente, eram algumas das exigências primeiras na

formação da menina escolar, que é orientada a não entregar-se ao ócio, empenhando-se

inteiramente em frequentar a escola dedicando-se assiduamente aos trabalhos escolares.

Afinal, somente pela instrução a menina escolar poderia “[...] sem embaraços, observar os

preceitos do Altíssimo, e ser úteis a vos e à sociedade. Por esta [a instrução] se designa um

conjunto de pessoas que se combinam para mutuamente se respeitarem e auxiliarem nas

necessidades da vida.” (GONDIM, 1879, p. 18).

Mas a menina escolar também deveria aprender sobre outros assuntos úteis para a

vida em sociedade e para a vida privada. Portanto, se fazia necessário aprender sobre as

formas e sistemas de governo, as relações civis, as transações comerciais, a moeda legal, as

leis, a não perder tempo com histórias ou conversas que envolvam a reputação de outrem, a

não caluniar afim de tornarem-se virtuosas e a cuidar da higiene do corpo e da aparência.

A moça em sua puberdade − que já concluíra os estudos da educação escolar primária

e se recolheria ao lar doméstico – além de receber conselhos úteis à sua formação artística e

musical, também recebe conselhos úteis sobre o cultivo das línguas estrangeiras e a leitura de

bons livros. Para bom trato da vida doméstica é aconselhada a dedicar-se ao estudo da

gramática, da geografia, da história e da aritmética.

Nesse século XIX, a leitura era entendida como símbolo de instrução e como forma de

socialização. Fosse ela silenciosa ou em voz alta, individual ou coletiva, era entendida como o

meio mais eficaz de se ter acesso aos vários domínios do conhecimento cultural de então e de

se educar no “santo” temor de Deus, atuando como mecanismo de aprendizagens e como

auxílio à memória. Portanto, a moça em sua puberdade deveria dedicar-se à leitura de obras

conhecidas e evitar as obras perniciosas, que traziam efeitos danosos à formação.

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Ademais, em seus conselhos destinados à moça em puberdade, Isabel Gondim ensina

a importância do combate ao ócio e à preguiça pelo trabalho, a importância do temor e

gratidão a Deus, a estima à família, a discrição com assuntos de outrem, a necessidade de se

fazer caridade, de amor ao próximo, de assear-se adequadamente.

A moça em sua puberdade deveria ser preparada para as ocasiões de convívio social

como bailes, reuniões, festejos, passeios públicos e missas. Não obstante, deveriam estar

sempre acompanhadas da mãe ou de alguém que pudesse representá-la e portar-se com

descrição, delicadeza e urbidade. E mais, era nessa fase que a mulher começava a ser

orientada como portar-se perante os cavalheiros e nas visitas de cortesia.

A moça em sua juventude ou nubilidade, que agora já adquiriu novas formas

corporais, deverá manter a graça e a elegância nos gestos e nas vestes. Pouco a pouco começa

a ser orientada como se comportar mediante os galanteios masculinos, inclusive sabendo

diferenciar as verdadeiras intenções desses galanteadores. Sobre isso, são alertadas:

Muitos homens, cuja educação não atingiu o necessário aperfeiçoamento, simuladamente propalam [...] louvores para captarem a estima das incautas, e merecerem suas atenções. Quando algum mais ousado tomar a liberdade de manifestar-vos sua adesão, e apreço aos vossos dotes, que não se cansará de avantajar, sabei repeli-lo com delicada energia. Tirando-lhe inteiramente a esperança de atrair-vos, fazei-o de forma que não fique ferido o seu amor próprio, por quanto, em todas as pessoas este deve-se respeitar. O moço que vos pretender para esposa não se ocupará em vão elogios, e ainda menos em distrações pueris e ridículas: fará saber à vossa família seus desejos, e, depois de obtido vosso assentimento, procurará pelo comum acordo de todos receber-se convosco. (GONDIM, 1879, p. 61-62).

Nesse momento, a moça em sua juventude ou nubilidade começa a ser aconselhada

sobre a escolha do marido, as razões que levam ao casamento e sua almejada

indissolubilidade. Mas a escolha do marido não pode ser feita, senão com o consentimento da

família.

Como futura mulher casada, a jovem nubente deverá preparar-se para a maternidade,

pois os filhos são seres “[...] sagrados, pelos quais vos cumpre a todo o transe velar, mesmo

antes de os conhecer, e aliás quando vossos cuidados tanto lhes aproveitarão. (GONDIM,

1879, p. 81).

A mulher casada − sob as bênçãos da Igreja Católica − desponta com uma nova série

de obrigações tidas como sagradas, para as quais ela deve convergir forças para o fiel

desempenho. Em meio às obrigações e confiada inteiramente ao seu marido, ela deve

manter-se vigilante para respeitar, amar e obedecê-lo e desenvolver as qualidades

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indispensáveis à mulher casada – ser trabalhadora, econômica, amorosa com os filhos e

administrar os afazeres da casa.

O trabalho e a economia bem regulada são qualidades ressaltadas para a mulher

casada, que é orientada nos seguintes termos:

Sem economia a fortuna mais colossal logo se dissipa; e então terríveis consequências não se fazem esperar. Quanto maior tiver sido o luxo e os cômodos da vida, mais sensíveis se virão tornar as privações que tiverdes de experimentar pela falta de recursos. O amor aos filhos, de que logo sereis mãe, vos imporá igualmente a necessidade do trabalho e da economia, que são as condições indispensáveis para adquirir-se riquezas. (GONDIM, 1879, p. 78).

Em certa medida aconselha-se a mulher casada ser resiliente para enfrentar as

possíveis desventuras do matrimônio, caso ela tenha a infelicidade de encontrar um péssimo

marido. Mesmo não sendo agraciada com a felicidade e harmonia matrimonial, deve

procurar resignadamente suportar todos os infortúnios, não despertando o ciúme

imprudente, não agindo com represálias e não desrespeitando o marido, a quem ela deve

obediência, fidelidade, amor e dedicação desde o dia do sacramento do matrimônio. A vida

da mulher casada, desde o dia do matrimônio, passa a ser de pertencimento do marido.

Dessa maneira,

Deverá ela [a mulher], portanto, dedicar-se àquele que tem superioridade sobre os seus destinos, que os partilha, e quem lhe cumpre ajudar, consolar e acompanhar em qualquer ocasião. Ao marido está confiada sua direção e os cuidados de tudo quanto a interessa. (GONDIM, 1879, p. 87).

Esses conselhos, quando bem observados, garantiriam um casamento harmonioso e

assegurariam a mulher um bom conceito na sociedade. Ademais, proporcionaria um

ambiente favorável à educação dos filhos, obrigação primeira de uma mãe zelosa.

A mulher mãe, já cercada pelos filhos, deverá dedicar-se à criação e educação deles.

Para tanto, o primeiro conselho que recebe é de amamentá-los até o período da dentição, pelo

menos. Paralelo a esse ensinamento, a mulher mãe também é orientada sobre outras formas

de alimentação para seu filho.

Muito influi na saúde, e mesmo no caráter do homem a sua alimentação em criança. Os alimentos irritantes, apimentados; as bebidas alcoólicas estragam mais ou menos o organismo, o gosto; tornam o caráter dasabrido, a índole intolerante; predispôem os hábitos, os sentimentos, a baixeza e adulteram o temperamento, a que alimentação somente de carne torna cruel. As crianças dessa substância assim alimentadas comumente vêm a ser pessoas de trato pouco delicado, se não selvagem. As distrações violentas, os exercícios em que predomina a força lhes são preferíveis, por isso que têm os membros musculosos e robustos. Os alimentos fracos como peixe, os crustáceos, moluscos e os outros animais sem fibra, acanham o organismo,

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tornam a índole fleumática, o caráter pouco energético e o impulso tardio. Procurai, minhas filhas, combinar esses diferentes gêneros de alimento de maneira que não perturbem o organismo de vosso filho, e sirvam para desenvolver-lhe convenientemente a natureza. (GONDIM, 1879, p. 101-102, grifo nosso).

São muitos os cuidados que a mulher mãe deve ter com seus filhos. Além de alimentá-

los adequadamente e cuidar, com desvelo, de todas as suas necessidades – vestimentas,

aquisição da linguagem e brincadeiras infantis −, compete também a mãe a educação

primeira dos filhos, responsável pela formação moral do homem. E para oferecer aos filhos

uma educação exemplar, a mulher mãe deve estudar e consultar frequentemente as obras

sobre a educação.

A leitura de obras sobre a educação muito vos pode auxiliar no importante trabalho da criação, que tendes a desempenhar. Mme. Campan, Almeida Garret, J. J. Rousseau, D. D, Mello Franco, Mme. Genlis, o Sr. Padre Roquette e tantos outros autores que se têm ocupado dessa importante matéria, apresentam considerações dignas de séria atenção, principalmente para a mulher mãe. (GONDIM, 1879, p. 103).

Nessa primeira educação dos filhos – da qual dependerá o futuro deles − a mãe já

deve ensiná-los os princípios morais e cristãos, o amor a Deus e ao próximo, a justiça, ao

trabalho, a economia, a pátria e a virtude. Sobretudo, deverá ensiná-los os mistérios da Santa

Religião, tida como a base da boa moral e das virtudes.

O amor, o respeito e a reverência aos mestres, responsáveis pela aquisição dos

conhecimentos escolares, é mais um ensinamento que deve ser dado nessa primeira educação

dada pela mulher mãe. Assim como também é seu dever ensinar os filhos a respeitarem as

pessoas mais velhas e as idosas, a cultivar amizades puras e sinceras e a afastar-se das más

companhias e do vício.

Tendo a mulher mãe dirigido a educação dos seus filhos de acordo com esses bons

conselhos, será ela recompensada com uma amizade segura, com o arrimo na velhice e,

sobretudo, terá contribuído para a formação de pessoas úteis e proveitosas à sociedade.

Destarte, terá cumprido a sublime função de mãe.

Conclusão

Os conselhos dados por Izabel Gondim em seu livro/manual escolar Reflexões às

minhas alunas denotam que a educação feminina pretendida nessa obra estava em

consonância com a educação feminina almejada nos oitocentos. A mulher, que ainda vivia em

um tempo em que a educação feminina era escassa e que os homens – primeiro os pais e

depois os maridos − determinavam o percurso de sua vida, deveria ser preparada, desde a

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tenra infância, para o casamento e, consequentemente, para exercer sua função como esposa,

administradora do lar, mãe e educadora dos filhos.

Nesse século XIX, a educação feminina não poderia ser concebida sem uma sólida

formação cristã, chave de qualquer projeto educativo da época. E essa concepção perpassa

toda obra de Izabel Gondim, modelando uma educação feminina em consonância com os

princípios cristãos apregoados nos ensinamentos da doutrina da Igreja Católica Apostólica

Romana.

Mas, preparar-se para ser esposa e mãe exigia das meninas, moças e mulheres, uma

formação rígida que contemplava aprendizagens e habilidades diferenciadas, entre elas a

formação musical, a aprendizagem das línguas estrangeiras (especialmente o francês), a

leitura de bons livros e noções de economia doméstica. Sobretudo, competia a mulher, desde

a infância, aprender sobre a importância do trabalho e da caridade.

Ao ensinar noções elementares de educação para distintas fases da mulher – da

infância à maternidade –, Reflexões às minhas alunas vai pouco a pouco delineando um

perfil desejável dessa mulher, que temente a Deus e seguidora dos bons costumes, se tornaria

uma esposa e mãe ideal. Em certa medida, a educação da feminina nos oitocentos estava

associada à maternidade, conforme estava exposto na primeira Lei de Instrução Pública do

Brasil, de 1827.

Considerando o número de edições que teve a obra Reflexões às minhas alunas, sua

recomendação pela Lei nº 717, de 4 de setembro de 1874, a distribuição de um número

considerado de exemplares nas escolas públicas da província e até mesmo anúncios de venda

em jornais de circulação, podemos dizer que este manual de conduta teve uma boa aceitação

do público e, assim como outros livros escolares da época, tornou-se um instrumento

importante para a construção da identidade feminina, quiçá um vetor essencial da cultura e

da educação escolar e doméstica.

Referências

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