Reforma Psiquiatrica a Brasileira Doutorado

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    Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul

    Faculdade de Servio SocialPrograma de Ps Graduao em Servio Social

    Doutorado em Servio Social

    REFORMA PSIQUITRICA BRASILEIRA:anlise sob a perspectiva da

    desinstitucionalizao

    Andra Valente Heidrich

    Porto Alegre2007

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    PONTFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL

    FACULDADE DE SERVIO SOCIAL

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SERVIO SOCIALDOUTORADO EM SERVIO SOCIAL

    REFORMA PSIQUITRICA BRASILEIRA:

    ANLISE SOB A PERSPECTIVA DA DESINSTITUCIONALIZAO

    Doutoranda: Andra Valente Heidrich

    Orientadora: Profa. Dra. Berenice Rojas Couto

    Porto Alegre,2007

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    H465r Heidrich, Andra ValenteReforma psiquitrica brasileira : anlise sob a perspectiva

    da desinstitucionalizao. Porto Alegre : PUC-RS, 2007.

    205 f.Tese (doutorado) Pontifcia Universidade Catlica do Rio

    Grande do Sul , Programa de Ps-Graduao em Servio Social,

    Doutorado em servio Social, Porto Alegre, BR-RS, 2007.Orientadora: Couto, Berenice Rojas.

    1.reforma psiquitrica brasileira 2.paradigma de

    desinstitucionalizao 3.poltica de sade mental. I. Couto,

    Berenice Rojas. II.Ttulo.

    Ficha Catalogrfica elaborada pela bibliotecria Cristiane de Freitas Chim CRB 10/1233

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    PONTFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL

    FACULDADE DE SERVIO SOCIAL

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SERVIO SOCIALDOUTORADO EM SERVIO SOCIAL

    Tese intitulada Reforma Psiquitrica brasileira: anlise sob a perspectiva da

    desinstitucionalizao, de autoria da doutoranda Andra Valente Heidrich, aprovada

    pela banca examinadora constituda pelos seguintes professores:

    _________________________________________________________

    Prof. Dra. Berenice Rojas Couto PPGSS/PUCRS Orientadora

    _________________________________________________________

    Prof. Dr. Paulo Duarte de Carvalho Amarante ENSP/FIOCRUZ

    _________________________________________________________

    Prof. Dra. Jussara Maria Rosa Mendes PPGSS/PUCRS

    _________________________________________________________

    Prof. Dra. Luciane Prado Kantorski FEO/UFPEL

    _________________________________________________________

    Prof. Dra. Vini Rabassa da Silva PPGPS/UCPEL

    Porto Alegre, 26 de maro de 2007

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    In memoriam do Sr. Almiro Pinheiro,usurio da rede de ateno psicossocial de

    Pelotas, exemplo de luta e resistncia contra

    o sistema manicomial.

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    AGRADECIMENTOS

    Um galo sozinho no tece uma manh:ele precisar sempre de outros galos.De um que apanhe esse grito que elee o lance a outro; de um outro galoque apanhe o grito de um galo antese o lance a outro; e de outros galosque com muitos outros galos se cruzemos fios de sol de seus gritos de galo,para que a manh, desde uma teia tnue,

    se v tecendo, entre todos os galos(Joo Cabral de Melo Neto).

    Considero a parte dos agradecimentos a mais agradvel na construo da tese.

    Primeiro, porque significa que estou terminando esta viagem. Segundo, mas no menos

    importante, porque me permite rever todos os pontos, pontes, entraves, medos, escalas

    e experincias pelas quais passei at chegar a este ponto do trabalho. Dessa forma,

    bastante grande a lista das pessoas e instituies que contriburam na viagem.

    Algumas, fornecendo opinies, orientaes, informaes necessrias para a viagem,

    em si. Outras, importantssimas, sendo o meu porto seguro, aquele lugar (algum) para

    onde posso voltar, ligar, chamar nos momentos de aperto, de alegria, de realizao.

    Assim, quero registrar meu agradecimento Universidade Catlica de Pelotas e Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul que me propiciaram, atravs de

    um convnio, a possibilidade de cursar o Doutorado em Servio Social.

    Ao Programa de Ps-Graduao em Servio Social da PUC-RS, pelo empenho,

    dedicao, compreenso nos corridos dias que passvamos na PUC. Um

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    agradecimento especial aos funcionrios da Secretaria do Programa, pela pacincia e

    auxlio nos encaminhamentos burocrticos e contatos com os professores. Aos

    professores com os quais tive contato, pela troca de experincia e conhecimento.Agradeo imensa e especialmente ao meu amigo, mestre, cidado-do-mundo,

    assistente social e professor Alceu Salamoni. Participei da seleo do doutorado pelo

    incentivo e estmulo desse grande homem. Na poca da seleo, eu era professora-

    substituta na UCPEL e a fora e o apoio do Alceu foram de fundamental importncia.

    OBRIGADA, meu mestre querido!

    Agradeo tambm, com muita gratido, aos colegas professores da Escola de

    Servio Social, que precisaram alterar seus horrios para que tivssemos (eu e meus

    colegas) a segunda-feira livre para irmos a Porto Alegre. Obrigada, colegas!

    Aos diretores da Escola de Servio Social pela compreenso e pelo estmulo:.

    Alceu, Vini e Mara.Muito obrigada!

    Aos meus parceiros de jornada... de madrugada, van, nibus, estudos e

    trabalhos... meus colegas da UCPEL e de doutorado, Ana Luisa Bibiba, Cristine,

    Jairo, Manuela e Mara. Obrigada pela convivncia, pela pacincia, pela troca. As

    viagens a Porto Alegre no so as mesmas sem vocs. Seu Caio, nosso motorista

    querido. Obrigada!

    sempre prestativa Lorena. Sem palavras! Muito obrigada por tudo!

    Aos meus (minhas) alunos (as) que no dia-a-dia da vida acadmica ensinam-me

    o quanto importante ir alm das relaes formais acadmicas e construir uma relao

    fraterna. Obrigada, queridos.

    queridssima Ber, minha amiga e orientadora, Professora Doutora Berenice

    Couto, por ouvir, falar, orientar e agentar minhas desorientaes. Ber, quando

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    escolhi minha orientadora, procurei algum com quem eu acreditasse ser possvel

    estabelecer mais que uma relao objetiva de orientadora-orientanda. Eu precisava de

    algum afetuoso, querido, cuidadoso. Portanto, escolhi certo. Muito obrigada por tudo!!!Agradeo, de forma especial aos meus colegas mentaleiros da Prefeitura

    Municipal de Pelotas. queles que trabalham para construir verdadeiramente a reforma

    psiquitrica e uma sociedade livre de muros e preconceitos.

    Neste momento, passo a agradecer s pessoas que so minha essncia. Que

    me fazem viver, acordar a cada dia, desejar a vida com todo o fervor. Agradeo minha

    famlia, em especial minha me e ao meu pai. Pai, obrigada por me confrontar e me

    ensinar, dessa maneira, a defender minhas idias. Me, obrigada por ser esta leoa...

    lutar por ns e limpar o terreno para que pudssemos trilhar os nossos caminhos.

    Amo vocs. Obrigada.

    Agradeo aos meus amigos do peito, meus irmos, meus camaradas,

    compadragem. A pacincia, as festas, pelo colo, o abrao, o tempo, a Emmanuelle.

    Tudo. uma bno ter amigos como vocs. Fernanda, Ricardo e Duda,... eu no

    existo longe de vocs.

    Al, a companhia virtual realssima nos momentos da produo, ensinando-me

    a sentir sua companhia e afastar a solido. Amigas que eu trago no meu corao, que

    nunca me deixam sentir solido.

    Cristine, a quem tive o prazer e a felicidade de me aproximar ainda mais

    durante o doutorado. Cris, sem ti, eu no teria conseguido... Obrigada, querida. Por

    tudo. Especialmente, pelo que s para alm dos muros da academia.

    Agradeo o apoio dos meus cunhados e cunhadas, o companheirismo e por me

    ensinarem a contar com vocs. Obrigada, meus galos Duda, Cado, Vera, Neni e Ktia.

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    Obrigada, Rosaura, por cuidar da minha maluquez...

    Ana, pelo cuidado dirio da nossa vida.

    Finalmente, agradeo imensamente ao meu companheiro, amigo, amor, amante,amado, Rodri, que pacenciosamente acordava comigo todas as madrugadas do

    doutorado, me levava ao porto, torcia por mim, me esperava quando eu chegava.

    Esteve e est comigo em todos os momentos da minha vida. Amore, no tenho

    palavras para agradecer tanto apoio. s muito importante para mim. Desejo tudo ao teu

    lado. Obrigada!!!

    Agradeo e dedico este trabalho a todos e todas que lutaram e lutam por uma

    sociedade sem muros, sem excluso, sem opresso. queles que acreditam que

    possvel conviver, todos juntos, lado a lado. Aos usurios do CAPS Zona Norte e seus

    familiares, obrigada por compartilharem suas vidas, seus sonhos, suas loucuras.

    Obrigada, sobretudo, por contriburem para que eu me conhecesse e reconhecesse a

    minha prpria loucura...

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    com uma alegria to profunda. uma tal aleluia. Aleluia, grito

    eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor

    de separao mas grito de felicidade diablica. Porque ningum

    me prende mais. Continuo com capacidade de raciocnio j

    estudei matemtica que a loucura do raciocnio mas agora

    quero o plasma - quero me alimentar diretamente da placenta.

    Tenho um pouco de medo: medo ainda de me entregar pois o

    prximo instante o desconhecido. O prximo instante feito por

    mim? Ou se faz sozinho? Fazemo-lo juntos com a respirao. E

    com uma desenvoltura de toureiro na arena.

    (Clarice Lispector, gua Viva)

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    RESUMO

    A tese aborda o processo de reforma psiquitrica brasileira, buscando conheceras caractersticas genunas do mesmo e verificar se, encontram-se presentes ascaractersticas da perspectiva da desinstitucionalizao italiana. Desse modo,apresenta um estudo sobre a trajetria do cuidado e da viso sobre a loucura nasociedade, desde o sculo XVII, demonstrando que houve transformaes nosignificado e importncia dessa problemtica ao longo do tempo, at que fosseatribudo a ela o significado de doena mental. Explora, tambm, o percurso da

    preocupao para com a loucura no Brasil, o surgimento dos primeiros hospitaispsiquitricos e das primeiras aes pblicas de sade mental no Pas. Percorre ahistria da poltica de sade mental brasileira de sua origem at os dias atuais.Caracteriza o paradigma da desinstitucionalizao, evidenciando quatro questes,quais sejam, a conceitual, a tcnica, a cultural e a poltica. Defende que uma efetivareforma psiquitrica necessita provocar transformaes nessas quatro questes, deforma a alterar o lugar e o entendimento da loucura na sociedade. Afirma, assim, que adesinstitucionalizao mais do que desospitalizar. Analisando a experincia brasileira,conclui que caractersticas da perspectiva da desinstitucionalizao esto presentes emsua construo mas, que a transformao efetiva, principalmente no que se refere questo cultural, ainda constitui um desafio. Prope o envolvimento dos movimentossociais, dos usurios e das Universidades na construo dessa transformao.

    Palavras-chave: reforma psiquitrica brasileira; paradigma da desinstitucionalizao epoltica de sade mental.

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    ABSTRACT

    This thesis is on the Brazilian psychiatric reform process, researching for its owncharacteristics and if Italian de-institutionalization influences it.Since the XVII century, itshows the evolution of the society care and culture about insanity. It demonstrates manychanges in the meaning and importance of the madness along this period until themeaning of mental sickness was established. It also exploits the way of dealing withinsanity in Brazil, the first psychiatric hospitals and government mental health care in thecountry. It goes throw Brazilian mental health policies from its origin up today. It

    characterizes the paradigm of de-institutionalization, making in evidence four points:conceptual, technical, cultural and political. Its argued that these four points need to betransformed to provide an effective psychiatric reform in which the societys place andunderstanding of insanity change. Its affirmed that de-institutionalization is much morethan de-hospitalization. Based on the Brazilian experience, its concluded that somecharacteristics of the de-institutionalization perspective is present in its construction, buteffective changes specially in concern to cultural aspects are still a challenge. Itsproposed the engagement of social movements, service care users and universities toconstruct this transformation.

    Keywords: Brazilian psychiatric reform, de-institutionalization paradigm and mentalhealth policies.

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    LISTA DE SIGLAS

    ABI Associao Brasileira de Imprensa

    ABP Associao Brasileira de Psiquiatria

    AIS Aes Integradas de Sade

    APAC Autorizao de procedimento de alta complexidade/custo

    CAPES - Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior

    CAPs Caixas de Aposentadorias e Penses

    CAPS Centro de Ateno Psicossocial

    CAPS ad Centro de Ateno Psicossocial lcool e outras drogas

    CAPS i Centro de Ateno Psicossocial Infantil

    CCJR Comisso de Constituio, Justia e de Redao

    CEBES Centro Brasileiro de Estudos de Sade

    CNSM Conferncia Nacional de Sade Mental

    CONASP Conselho Consultivo de Administrao da Sade Previdenciria

    CSSF Comisso de Seguridade Social e Famlia

    DINSAM Diviso Nacional de Sade Mental

    EUA Estados Unidos da Amrica

    FAS Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social

    FBH Federao Brasileira de Hospitais

    GM Gabinete do Ministro

    IAPs Institutos de Aposentadorias e Penses

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    IBASE Instituto Brasileiro de Anlises Sociais e Econmicas

    INPS Instituto Nacional de Previdncia Social

    LBHM Liga Brasileira de Higiene MentalMNLA Movimento Nacional de Luta ANtimanicomial

    MPAS Ministrio da Previdncia e Assistncia Social

    MS Ministrio da Sade

    MTSM - Movimento dos Trabalhadores de Sade Mental

    NAPS Ncleo de Ateno Psicossocial

    OMS Organizao Mundial da Sade

    OAB Ordem dos Advogados do Brasil

    PNASH Programa Nacional de Avaliao de Servios Hospitalares

    PREV-SADE Programa Nacional de Servios Bsicos de Sade

    PRH Programa de Reestruturao da Assistncia Psiquitrica

    PSF Programa Sade da Famlia

    PVC Programa de Volta Pra Casa

    REME Movimento de Renovao da rea Mdica

    SINPAS Sistema Nacional de Previdncia e Assistncia Social

    SRT Servio Residencial Teraputico

    SUDS Sistemas Unificados e Descentralizados de Sade

    SUS Sistema nico de Sade

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    LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 Trajetria da loucura na sociedade........................................... 51

    Quadro 2 Distribuio dos CAPS por regies brasileiras........................... 122

    Quadro 3 Reduo do nmero de leitos em hospitais psiquitricos......... 125

    Quadro 4- Artigos selecionados para anlise............................................. 149

    Quadro 4 - Anlise dos Relatrios Finais das Conferncias Nacionais

    de Sade Mental no que se refere desinstitucionalizao........................ 168

    Quadro 5 Ano de publicao dos artigos selecionados para a pesquisa. 175

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    LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Proporo dos recursos do SUS destinados aos hospitais

    psiquitricos e aos servios extra-hospitalares nos anos de 1997,

    2001, 2004 e 2005....................................................................................... 126

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    SUMRIO

    INTRODUO.......................................................................................

    1. PRIMEIRA ESCALA VIAGEM DA LOUCURA: EMBARCANDO NANAU RUMO CIDADANIA DO LOUCO..........................................................1.1. O trato com a loucura a partir do sculo XVII a Grande Internao....1.2. Nasce a psiquiatria: saber e lugar especfico para a loucura e olouco..................................................................................................................1.3. Sculo XX reformas psiquitricas........................................................1.3.1. O cenrio das reformas..........................................................................

    1.3.2. Comunidade Teraputica.......................................................................1.3.3. Psiquiatria de Setor.................................................................................1.3.4. Psiquiatria Preventiva (ou comunitria)..................................................1.3.5. Antipsiquiatria.........................................................................................1.3.6. Experincia italiana de desinstitucionalizao........................................1.4. Buscando sintetizar a viagem da loucura...............................................1.5. Desinstitucionalizao trilhando o conceito.........................................1.5.1. Desinstitucionalizaes a psiquiatria reformada..................................1.5.2. Desinstitucionalizar a desinstitucionalizao o paradigmaitaliano...............................................................................................................1.5.2.1 Gorizia negando a instituio.............................................................1.5.2.2.A desinstitucionalizao buscando a instituio inventada................1.5.3. Reforma psiquitrica e desinstitucionalizao......................................

    2. SEGUNDA ESCALA A VIAGEM DA LOUCURA NO BRASIL.........2.1. O embarque: a loucura passa a ser um problema social no Brasil........2.1.1. A passagem: o nascimento do hospcio.................................................2.2. Poltica de Assistncia Psiquitrica no Brasil: outros caminhos namesma viagem..................................................................................................2.2.1. Visitando as colnias de alienados.........................................................2.2.2. Poltica de sade e poltica de sade mental como problema de

    Estado.....................................................................................................2.2.2.1.Origens da reforma psiquitrica. Reforma sanitria e Sistema nicode Sade...........................................................................................................2.3. O destino: reforma psiquitrica brasileira............................................2.3.1. Anos 1970 e a origem do MTSM o incio da trajetria da reforma

    psiquitrica brasileira..............................................................................2.3.2. Mudanas na poltica de sade..............................................................2.3.3. Anos 80 gestando o processo de desinstitucionalizao....................2.3.3.1. O projeto Paulo Delgado......................................................................2.3.4. Dcada de 1990......................................................................................

    17

    2427

    303638

    3940414445505354

    56586268

    717174

    7680

    82

    9497

    98100103109111

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    2.3.5. Ano de 2001 transformaes e avano na reforma psiquitricabrasileira............................................................................................................2.3.6. Fotografia da reforma na atualidade.......................................................2.3.6.1. O CAPS como principal dispositivo da reforma....................................

    2.3.6.2. A regresso dos leitos em hospitais psiquitricos e a inverso doinvestimento......................................................................................................2.3.6.3. Outras iniciativas do MS para compor a reforma psiquitrica..............

    3. REFORMA PSIQUITRICA BRASILEIRA E ADESINSTITUCIONALIZAO.........................................................................3.1. Planejamento da Viagem o embarque na proposta da pesquisa........3.1.1. O porqu da viagem (ou justificativa).....................................................3.1.2. Trilhando os caminhos (o mtodo).........................................................3.1.3. Tipo de pesquisa.....................................................................................

    3.1.4. Tcnicas de pesquisa.............................................................................3.1.4.1. Levantamento da bibliografia: fontes....................................................3.1.4.2. Levantamento das solues.................................................................3.2. Relato e anlise da viagem.....................................................................3.2.1. As Conferncias e o processo de desinstitucionalizao noBrasil..................................................................................................................3.2.2. A legislao de sade mental.................................................................3.2.3. A produo cientfica e a desinstitucionalizao....................................

    CONCLUSO.........................................................................................

    REFERNCIAS .....................................................................................

    ANEXOS.................................................................................................

    115117118

    124126

    135135137139144

    145146152154

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    Lancetti (1990) afirma que a principal fonte inspiradora da experincia

    brasileira de reforma psiquitrica foi a desinstitucionalizao italiana1. A experincia

    italiana de reforma propunha que no bastava trocar o local do tratamento ao

    portador de transtorno mental, mas transformar a forma de conceber a problemtica

    da loucura, cuidar, pensar e lidar com ela. Para os italianos, tratava-se de colocar a

    doena entre parnteses e cuidar da pessoa. A experincia dos italianos, liderada

    por Franco Basaglia, diferenciou-se de todas as outras experincias de reforma

    psiquitrica exatamente por esse fato. Partindo da crtica ao modelo manicomial, os

    italianos acabaram por construir um outro modelo de entendimento da loucura e a

    propor uma outra psiquiatria. Ao abordar o saber psiquitrico de forma crtica e

    dialtica, lutaram para constituir um movimento de desconstruo desse saber e

    buscaram, ao reconstru-lo, demonstrar toda a opresso e dominao que carrega o

    conceito de doena mental e o de loucura. Construram, assim, um paradigma de

    desinstitucionalizao.

    Pode-se caracterizar resumidamente esse paradigma pelo fato de, partindo

    da noo de desmonte da instituio psiquitrica, propor uma transformao de toda

    a estrutura social. Tal questo se torna mais clara quando retomamos uma

    afirmao de Basaglia: Quando dizemos no ao manicmio, estamos dizendo no

    misria do mundo e nos unimos a todas as pessoas que no mundo lutam por umasituao de emancipao (BASAGLIA, 1982, p. 29). Esse o grande marco do

    paradigma italiano, segundo nosso entendimento. A idia de que a reforma

    psiquitrica extrapola a discusso da psiquiatria e da medicina, ou seja,

    desterritorializa a loucura do campo da psiquiatria e alcana um patamar diferente: a

    1A experincia italiana ser analisada nesta tese, mas cabe aqui ressaltar que se trata da experinciaoriginada, na cidade de Gorizia, por Franco Basaglia e sua equipe, e seguida na cidade de Trieste, oque culminou na aprovao da Lei 180, no ano de 1978.

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    discusso sobre (contra) a explorao da sociedade capitalista e a busca pela

    construo de outras relaes em seu lugar.

    Partindo das noes de institucionalizao e de poder institucionalizante o

    processo italiano de desinstitucionalizao voltou-se para dois aspectos: (a) a luta

    contra a institucionalizao do ambiente externo aspirava-se a uma transformao

    no mbito da sociedade, na forma como esta lidava com a loucura e (b) a luta contra

    a institucionalizao completa do corpo hospitalar (institucionalizao do mdico,

    dos enfermeiros e do doente) (AMARANTE, 1996).

    Desse modo, esta tese analisa o processo de reforma psiquitrica brasileira

    luz desse paradigma. Procuramos desvendar a experincia brasileira, evidenciando

    o quanto de desinstitucionalizao o Pas tem promovido, assim como demonstrar

    as caractersticas genuinamente brasileiras desse processo.

    O interesse pela temtica surgiu do nosso envolvimento com a construo da

    rede de servios substitutivos de assistncia sade mental na cidade de Pelotas,

    no sul do Rio Grande do Sul. A experincia no prprio servio em que atuvamos

    como assistente social, no caso, um Centro de Ateno Psicossocial do tipo CAPS

    II2, trazia, para ns e alguns membros da equipe mais identificados com a questo

    antimanicomial, uma inquietao com relao ao quanto de novo o trabalho extra-

    hospitalar constri com relao liberdade dos sujeitos, busca de autonomia,descentrao do poder mdico (da equipe, no caso)? O que produzamos de

    diferente do hospital? O nosso servio no estaria (re)produzindo

    institucionalizados em um outro espao institucional? Tais inquietaes nos

    motivaram a participar de alguns encontros, a escrever alguns trabalhos sobre a

    nossa experincia cotidiana no CAPS, a lutar, em muitas reunies, pela ampliao

    2A Portaria GM 336/2001 (BRASIL, MS, 2001) categoriza os Centros de Ateno Psicossocial emtrs tipos: CAPS I, CAPS II e CAPS III. O que os diferencia a forma de organizao,responsabilidade e abrangncia no que se refere ao atendimento.

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    da reforma, a envolver-nos com a criao e funcionamento da Associao dos

    Usurios dos Servios de Sade Mental de Pelotas, entre outras aes que

    entendamos nos manter acordados para a necessidade de ir alm de construir

    servios de sade mental extra-muros do hospital. Assim, passamos a discutir

    diversas questes com as estagirias que estavam sob nossa superviso e com

    alunos da Escola de Servio Social os quais se interessavam pela problemtica e

    com ela se envolviam, at decidirmos que nossa tese de doutoramento versaria

    sobre o tema.

    A princpio, pensamos em efetivar uma anlise sobre os servios, sua

    eficincia na vida dos usurios, as mudanas que haviam produzido (ou no), uma

    discusso sobre a to cara reabilitao psicossocial. No entanto, entraves polticos

    (troca de administrao e um profundo retrocesso na poltica de sade mental da

    cidade), funcionais (o tempo... esse eterno inimigo da criao!) e tambm algumas

    questes pessoais nos fizeram redefinir o projeto e buscar estudar uma questo

    anterior anlise da experincia especfica de uma cidade.

    O que a priori pareceu reduzir a pesquisa, mostrou-se como uma

    necessidade importante para a histria da reforma psiquitrica brasileira, a nosso

    ver. Tratava-se de conhecer as balizas entre as quais temos construdo esse

    processo e, desse modo, conhecer mais a fundo a prpria experincia.O que pretendemos, de fato, analisar a reforma psiquitrica enquanto

    processo social, ultrapassando os limites da discusso da poltica social da reforma

    psiquitrica. Entendemos que a construo da poltica social parte importante da

    reforma psiquitrica, mas que a real desconstruo do aparato manicomial para

    tratar a questo da loucura implica, necessariamente, uma transformao em outras

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    dimenses no que se refere essa temtica, tais como a dimenso conceitual, a

    tcnica, a cultural, e a poltica.

    Nesse sentido, pensamos que o referido paradigma italiano de

    desinstitucionalizao constitua referencial fundamental para analisarmos o

    processo brasileiro e definimos como problema de pesquisa: Como o processo de

    reforma psiquitrica brasileiro incorporou a perspectiva de

    desinstitucionalizao italiana?

    Esse questionamento serviu de norte para a viagem que temos realizado

    atravs do processo da reforma psiquitrica no Brasil e que demonstraremos nesta

    tese. Como movimento essencial para percorrer esse caminho que ajuda a descobrir

    de que forma a reforma psiquitrica brasileira tem se materializado, utiliza-se a

    metfora da viagem. Viagem, que, ao definir seu percurso, tenta enfrentar os

    desafios e reconhecer as potencialidades do movimento social que se criou em torno

    do tema.

    Assim, com o intuito de demonstrar esta viagem pelo processo de reforma

    psiquitrica brasileira, a tese est estruturada em trs captulos. No primeiro,

    realizamos uma viagem sobre o cuidado na loucura no mundo, desde o sculo XVII.

    Buscamos demonstrar como a problemtica da loucura tornou-se um problema

    para a sociedade europia e, posteriormente, foi capturada pela psiquiatria,tornando-se verdade mdica. O captulo apresenta, tambm, a origem da

    psiquiatria, suas transformaes e crticas, bem como as experincias de reforma

    psiquitrica, ocorridas no ps-Segunda Guerra Mundial. Ainda nesse captulo,

    buscamos identificar o paradigma da desinstitucionalizao italiana, suas

    caractersticas, seus pressupostos e sua relao com a reforma psiquitrica.

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    O segundo captulo discorre sobre a escala realizada na histria brasileira de

    cuidado com o louco e a loucura. Procuramos evidenciar as circunstncias do

    surgimento do manicmio no Brasil, o desenvolvimento das aes pblicas de

    cuidado com a loucura e o desenvolvimento da poltica de sade mental no Pas.

    Alm disso, apresentamos a trajetria da reforma psiquitrica no Brasil, o surgimento

    do Movimento Nacional de Trabalhadores em Sade Mental, o contexto em que os

    ideais do movimento pela reforma psiquitrica so adotados oficialmente pela

    Coordenao de Sade Mental do Ministrio da Sade e as principais estratgias

    deste para efetiv-la. Nesse captulo, problematizamos alguns dispositivos

    estratgicos da reforma, salientando os riscos de institucionalizar, ao invs de

    desinstitucionalizar.

    Finalmente, no terceiro captulo, apresentamos o caminho percorrido para dar

    concretude viagem. Aqui, as indagaes tomam o rumo do desvelamento da

    questo central da pesquisa. Assim, nesse captulo, alm de estar explicitado o

    caminho metodolgico percorrido, encontramos, tambm, os achados da pesquisa

    realizada, buscando identificar se as fontes analisadas apontam caractersticas de

    desinstitucionalizao na experincia brasileira de reforma psiquitrica.

    Por fim, apresentamos nossas concluses. preciso reiterar que no fim de

    uma caminhada, os achados nos conduzem a outros questionamentos, abrindonovos caminhos, outras estradas, que se apresentam abertas para serem

    percorridas, mas, agora, com o salto de qualidade que o mtodo nos oferece. Os

    conhecimentos produzidos, apresentam-se para ser rebatidos, criticados,

    melhorados. Como assistente social, o caminho trilhado nos reafirma a certeza da

    permanente busca pelo conhecimento como um mecanismo fundamental para que

    se possa fortalecer a constante luta por uma sociedade justa e livre dos manicmios.

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    Assim, preciso reafirmar que utilizamos a metfora da viagem por duas

    razes que se relacionam. Primeiramente como uma tentativa de tornar mais leve a

    tarefa acadmica de produzir em um prazo determinado, cumprindo paralelamente

    obrigaes determinadas. Este cotidiano que nos aprisiona e porque no dizer,

    enlouquece, nem sempre permite que a produo seja desejante e criativa. Por

    horas, parecia-nos que o tempo e as inmeras atividades nos faziam funcionar

    como um relgio batendo no descompasso das horas. A idia de viajar pela

    temtica proposta teve o significado de uma fuga, um permitir-se navegar, pairar,

    conhecer a realidade a ser analisada como quem passeia por um lugar

    desconhecido. A, liga-se ao segundo motivo pelo qual escolhemos viajar pela

    reforma psiquitrica. A escrita e, conseqentemente, a leitura, tornam-se mais leves

    e mais agradveis.

    Desejamos a todos uma boa e instigante viagem, na certeza de que esta

    muito mais um ponto de partida para reflexes, questionamentos e superaes do

    que um ponto de chegada, como um final.

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    1. PRIMEIRA ESCALA - VIAGEM DA LOUCURA: EMBARCANDO NA NAU

    RUMO CIDADANIA DO LOUCO

    Nossa viagem para compreender o processo brasileiro de reforma psiquitrica

    inicia fazendo uma escala, buscando conhecer a trajetria do cuidado com a loucura

    desde a Grande Internao no sculo XVI (FOUCAULT, 2004) at os movimentos

    denominados reformas psiquitricas no sculo XX. Nesse percurso, alguns autores

    nos serviram como guias para que pudssemos percorrer os caminhos e

    desvendar as caractersticas e fatos importantes no trajeto. Destacamos, entre eles,

    Foucault, Pessotti, Frayse-Pereira, Desviat, Castel, Birman e Costa, e Amarante.

    Nosso intento, nessa escala foi recuperar a histria do trato com a loucura

    atravs do sculo, buscando caracterizar as diferentes experincias de reformas

    psiquitricas. A partida se deu atravs do embarque na Nau dos Loucos.

    A psiquiatria nasceu de uma reforma e, desde ento, vem se transformando

    e metamorfoseando1 ao longo de sua histria. Para que se possa entender o

    surgimento, desenvolvimento e consolidao da psiquiatria como o campo do

    saber com competncia para cuidar, tratar e explicar a loucura, faz-se necessrioentender o movimento da histria que transformou a loucura em doena mental.

    A loucura nem sempre foi considerada uma doena passvel de diagnstico,

    tratamento e cura ou, ainda, desvio, erro passvel de correo e/ou punio. Nem

    sempre se pensou na necessidade de uma interveno profissional/tcnica para

    1O sentido de metamorfose ser o mesmo utilizado por Castel (2003), na medida em No sentido que

    se transforma mas no altera a essncia.

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    trat-la, ou em transform-la em objeto de estudo de um determinado campo do

    saber.

    Muitos autores (FOUCAULT(2004), PESSOTTI(1994, 1996 E 1999),

    FRAYZE-PEREIRA(2002), entre outros) analisaram o processo de transformao do

    entendimento da loucura e, conseqentemente, do louco na sociedade. Entretanto, a

    obra que mais freqentemente tem sido utilizada como referncia nesse assunto a

    tese de doutoramento de Michel Foucault, publicada, no Brasil, com o nome Histria

    da Loucura na Idade Clssica (Foucault, 2004). Nela, o autor percorre as

    mudanas de significados pelos quais a loucura passou at adquirir o status de

    doena mental e, assim, passar a necessitar de uma especialidade dentro da

    Medicina e de um conjunto de normas, definies, conceitos e significados que iro

    compor a instituio psiquitrica e a psiquiatria. Destaca trs grandes momentos que

    marcaram as transformaes na loucura: Idade Mdia, a Grande Internao e os

    tempos contemporneos.

    At a Idade Mdia, a loucura entendida como uma experincia trgica. No

    era atribuda a ela uma questo moral, de conduta, de certo ou errado. Como a

    maioria das questes que envolviam a humanidade, a loucura recebia uma

    explicao mstica (Foucault ir chamar de viso csmica). Porm, no final da Idade

    Mdia, a loucura passar a inserir-se em um universo moral, ocupando, segundoFoucault, o primeiro lugar na hierarquia dos vcios do homem.

    Na Idade Moderna, mais especificamente no sculo XVI, a loucura ir ser

    confiscada por uma razo dominadora. Baseada na mxima Penso, logo existo, de

    Descartes, a humanidade passa a entender e ver a loucura em relao sanidade

    e, ao louco, como algum desprovido de razo e, portanto, distante da verdade2. O

    2Na filosofia de Descartes, a loucura v-se privada do direito a alguma relao com a verdade.

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    racionalismo moderno ir separar a sabedoria da loucura. Se for sbio , no pode

    ser louco. Se for louco, no pode ser sbio.

    A experincia trgica e csmica viu-se mascarada pelosprivilgios exclusivos de uma conscincia crtica. por issoque a experincia clssica e, atravs dela, a experinciamoderna de loucura no pode ser considerada como figuratotal, que finalmente chegaria por esse caminho, a umaverdade positiva; uma figura fragmentria, que de modoabusivo se apresenta como exaustiva (FOUCAULT, 2004, p.29).

    Sobre essa passagem na percepo social da loucura de uma viso trgica

    para uma viso crtica, Amarante (1995) afirma que, enquanto a primeira viso

    reservava um lugar social reconhecido no universo da verdade, a viso crtica

    organiza um lugar de encarceramento, morte e excluso para o louco. Esse lugar de

    excluso ser o hospital, que ir tambm passar por uma transformao, conforme

    demonstraremos a seguir.

    1.1. O trato com a loucura a partir do sculo XVII a Grande Internao

    A era moderna compreende o perodo entre os sculos XV e XVIII e, segundo

    Amarante (2003a), caracteriza-se por trs fenmenos: a estruturao do Estado, a

    urbanizao e a industrializao. Tais caractersticas provocaram uma srie de

    transformaes na sociedade europia, as quais podem ser demonstradas nas

    artes, na cultura, na economia, na poltica, entre outras reas. Se, na Idade Mdia,

    os homens eram considerados criaturas de Deus, na era Moderna passavam a ter o

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    registro de cidado, no sentido de pertencimento a uma cidade, a um Estado. Alm

    disso, a necessidade de se fortalecer estas cidades e o Estado passavam a se

    constituir como um novo ideal.

    O aumento da pobreza e da mendicncia tornava-se um problema a ser

    enfrentado pelas cidades, e esse enfrentamento se deu com a criao e

    disseminao, por toda a Europa, de instituies que teriam, como funo, o abrigo

    e recolhimento das pessoas que no conseguiam, ou no queriam trabalhar.

    A criao do Hospital Geral de Paris, em 1656, foi o marco do fenmeno

    vivenciado, nesse sculo, denominado por Foucault como Grande Internao. Esse

    marco no se refere somente ao enclausuramento ou internao da loucura, mas

    excluso dos pobres em geral, como afirma Desviat (1999):

    O enclausuramento em asilos de mendigos, desempregados epessoas sem teto foi uma das respostas do sculo XVII desorganizao social e crise econmica ento provocadasna Europa pelas mudanas estabelecidas no modo deproduo (DESVIAT, 1999. p. 15).

    O pensamento de Foucault sobre a Grande Internao combina com o de

    Desviat. Para Foucault, a Grande Internao servia ocultao da misria diante

    das transformaes da sociedade, que se moldava ao modo capitalista de produo.

    Assim, at o final do sculo XVIII, a assistncia3 aos loucos no ir ser

    diferente daquela dispensada s outras pessoas que no se encontram em

    condies de garantir o prprio sustento.

    3Segundo Robert Castel, assistir corresponde ao conjunto de prticas que se inserem numa estrutura

    comum determinada pela existncia de certas categorias de populao carentes e pela necessidade

    de atend-las. O autor afirma, em sua obra As metamorfoses da questo social: uma crnica dosalrio, que h, em todos os momentos histricos, um aparato social-assistencial destinado a assistirqueles que no tm condies de se sustentar. (CASTEL, 2003).

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    O Hospital Geral4tinha, como objetivo principal, recolher os pobres e era uma

    terceira esfera de represso, junto com a polcia e a justia. Nesse perodo, a

    preguia e a ociosidade ocupavam o primeiro posto na hierarquia dos vcios

    (FRAYZE-PEREIRA, 2002), e o trabalho era considerado como moralmente

    obrigatrio. Havia duas formas de internao: por ordem do Rei (atravs das Lettres

    de Cachet5) ou de forma voluntria, a pedido da famlia.

    O novato Hospital Geral hospedava todo tipo de gente. Servia de hospedaria

    aos indigentes, miserveis, pobres de todo gnero. Hospedava a todos que, por

    alguma razo, no se ocupavam do trabalho. A caracterstica comum aos internos

    era a incapacidade ou inaptido para o trabalho. Nas palavras de Foucault, com

    relao ao hospital geral: o que o tornou necessrio foi um imperativo de trabalho

    (FOUCAULT, 2004, p. 64).6 Ao contrrio de uma hospedaria comum, o Hospital

    Geral hospedava, na maioria das vezes, compulsoriamente. Servia, portanto, como

    um mecanismo de controle do Estado sobre a populao.

    A internao no tinha nenhuma vocao mdica. Tratava-se de uma medida

    assistencial. O hospital deveria cuidar daqueles que a sociedade no queria ou no

    podia faz-lo. Coincide com as primeiras medidas de proteo social desenvolvidas

    na Europa que tinham, segundo Vianna (2002), o fim de proteger a sociedade do

    risco do no trabalho, da negao ao assalariamento.

    4 importante destacar que, antes do Hospital Geral, os hospitais existentes haviam sido criados, emsua maioria, pela Igreja Catlica, para que se cumprisse a caridade crist. O Hospital era, portanto,uma instituio religiosa, filantrpica, de caridade e de assistncia aos pobres e desamparados.Serviam ao objetivo de hospedar os devassos, prostitutas, delinqentes, pobres, desabrigados, osdoentes e os loucos. A transformao do hospital de caridade em hospital como uma estruturasemijurdica (FOUCAULT, 2004) correspondeu necessidade de assistir e controlar a pobreza quecrescia de forma surpreendente nesse perodo.5 Lettres de Crachet eram uma espcie de mandado expedido pelo Rei, que determinava ainternao daqueles que por alguma razo eram considerados fora da ordem6Cabe destacar que, durante a Idade Mdia, j havia medidas de represso contra a pobreza, como

    afirmam Castel (1978) e Foucault (2004).

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    Nesse sentido, Castel (1978) afirma que a Grande Internao deve ser lida

    como uma continuidade, e no com uma ruptura no que diz respeito s polticas do

    sculo XVI, diante do grande aumento do nmero de mendigos, que poderiam vir a

    se tornar uma espcie de povo independente. A recluso seria, conforme esse autor,

    um meio para restaurar o pertencimento comunitrio. Eram reclusos os mendigos

    domiciliados (de cada cidade ou que tivessem alguma espcie de vnculo com a

    cidade). Dessa forma, Castel considera que as tcnicas do hospital so tcnicas de

    incluso, e no de excluso, j que buscam tornar o indivduo apto a ser membro til

    ao Estado.

    A esse respeito, Foucault (2004) j afirmara que, considerando as medidas

    anteriores do trato com a pobreza, o hospital demarcava a primeira vez em que se

    substituem as medidas de excluso puramente negativas por uma medida de

    deteno em que os desocupados no eram mais sujeitos excluso por si s,

    mas pretendia-se oferecer a eles algum tipo de cuidado. De fato, os dados sobre a

    pobreza e a mendicncia, no perodo em questo, no possibilitavam simplesmente

    expulsar os pobres, visto que o grande nmero de mendigos nas cidades europias

    era suficiente para demonstrar que, de alguma forma, eles faziam parte das

    mesmas.

    A prtica da internao espalhou-se pela Europa, e vrios pases passaram acriar suas casas de internao. Se, na Frana criou-se o Hospital Geral, na

    Alemanha, criaram-se as Casas de Deteno (a partir de 1620), a Inglaterra tinha

    suas Casas de Correo (desde 1575), e a Esccia, suas Casas de Trabalho (1670)

    (AMARANTE, 2003a). Tal prtica designou uma nova relao com a misria e

    despojou-a de sua positividade mstica atravs de um duplo movimento do

    pensamento: a) protestantismo a misria castigo; e b) catolicismo a misria

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    refere-se moral. Seja como for, a misria precisa ser banida, de alguma forma.

    Precisa ser enfrentada, e o internamento o caminho. Cabe ressaltar que a questo

    da pobreza passou a ser um problema a ser tratado pelo Estado, ou seja, tornou-se

    uma questo pblica.

    Dessa forma, o caminho adotado para o cuidado com a pobreza e a loucura

    foi a internao. Os loucos, como os outros internos, foram enclausurados por no

    se adaptarem nova forma de produzir que se instaurava na sociedade europia e,

    alm disso, representavam uma aberrao irracional diante do novo mundo, no

    qual a razo ocupava o lugar central. Durante todo o sculo XVII e boa parte do

    sculo XVIII, os hospitais7foram a forma de se cuidar dos loucos. Reiteramos que,

    nesse perodo, no havia nenhuma preocupao mdica para com a loucura, e o

    hospital (ainda que, em alguns, houvesse doentes e mdicos) no tinha funo

    mdica tambm. Somente no final do sculo XVIII essa situao ser modificada e a

    loucura passar a ter status de doena mental. Surgir uma rea do saber prpria

    para trat-la como tal: a psiquiatria, bem como um lugar especfico: o manicmio.

    Esta ser nossa prxima parada nesta escala da viagem.

    1.2. Nasce a psiquiatria: saber e lugar especfico para a loucura e olouco

    O sculo XVIII vivenciou uma srie de transformaes sociais, econmicas e

    polticas. Alm das transformaes no modo de produzir, com a implantao e

    7Estamos referindo-nos a todas as casas destinadas a recolher os pobres. Conforme j foi citado

    nesta tese, os pases as nomearam de maneiras diferentes.

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    desenvolvimento do modo capitalista de produo, ocorreram mudanas na

    organizao poltica, e tambm, nas relaes sociais da sociedade europia.

    Segundo Hobsbawn (1996), tais mudanas so concretizadas atravs da dupla

    revoluo ou das revolues gmeas (francesa e industrial), que revolucionaram no

    s a Europa, mas tambm o mundo, inventando palavras (fbrica, classe mdia,

    proletariado, capitalismo, entre outras) e formas de organizao as quais

    demonstravam que o mundo jamais seria o mesmo. Para o autor, a revoluo que

    eclodiu entre 1789 e 1848, constitui a maior transformao da histria humana

    desde os tempos remotos quando o homem inventou a agricultura e a metalurgia, a

    escrita, a cidade e o Estado (1996, p.17). O grande triunfo dessa revoluo foi a

    implantao da sociedade capitalista, atravs da instaurao da hegemonia

    burguesa do modo de organizar e pensar a vida social.

    Com relao temtica desenvolvida nesta tese, a grande transformao se

    deu com relao ao fato de a cincia adquirir o status de fonte da verdade. A

    Revoluo Francesa, com seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade,

    sepultou definitivamente a verdade como uma explicao mstica e dotou os homens

    do poder de agir e transformar a realidade, e a cincia, de explic-la. Assim, passa a

    ser verdadeiro o que cientificamente comprovado.

    Ora, se a lei no era mais privilgio do rei ou do clero, se aocidado competia escolher, decidir, construir a nova sociedade,ento, qual seria a ordem, a racionalidade que deveria gui-losno caminho certo? A cincia. A cincia assumia neste contexto apalavra da verdade, da objetividade, da ordem e da moral.Construda pela Razo humana, seria a nica possibilidade dese chegar verdade das coisas e dos fatos (AMARANTE,2003a, p. 46).

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    Dentre os muitos resultados dessas mudanas, enfatizamos a transformao

    do hospital numa instituio mdica. Ainda que de forma muito breve, abordaremos

    a questo da captura do hospital pela medicina e, conseqentemente, da loucura,

    pela psiquiatria.

    De acordo com Foucault (2004), o que possibilitou a medicalizao do

    hospital foi a introduo dos mecanismos disciplinares em seu interior. Embora

    considerando que a disciplina j fazia parte da histria da humanidade h bastante

    tempo, o autor afirma que os princpios fundamentais da disciplina, enquanto

    tecnologia poltica, foram elaborados durante o sculo XVIII, como uma nova tcnica

    de gesto e controle dos homens. Esse ordenamento disciplinar teria resultado de

    uma srie de visitas realizadas aos hospitais da Europa no sculo XVIII, as quais

    teriam demonstrado que esses estabelecimentos, enquanto lugares de excluso e

    concentrao de doenas e mortes, eram lugares insalubres e de desordem,

    devendo ser objeto de higienizao da medicina social.

    Essas visitas-inqurito tinham, por finalidade, definir um programa de reforma

    e reconstruo dos hospitais, desenvolver uma espcie de catalogao dos doentes,

    nmero de leitos, mapeamento das salas, taxas de mortalidade e de cura; enfim,

    obter-se um retrato da situao dos estabelecimentos com vistas a evitar que as

    doenas se propagassem e ameaassem a sociedade europia da poca. Taisvisitas e seus respectivos diagnsticos eram realizados no por arquitetos, mas por

    mdicos ou profissionais prximos rea mdica.

    Alm da introduo dos mecanismos disciplinares no espao confuso do

    hospital, a transformao no saber mdico tambm demarcou o nascimento do

    hospital como espao mdico de tratamento e busca da cura. A medicina do sculo

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    XVIII fundamentava-se no sistema epistemolgico das cincias naturais,

    especialmente, da botnica.

    Isso significa a exigncia da doena ser compreendida comoum fenmeno natural. Ela ter espcies, caractersticasobservveis, curso e desenvolvimento como toda planta. Adoena a natureza, mas uma natureza devida a uma aoparticular do meio sobre o indivduo (FOUCAULT, 2004, p.107).

    Dessa forma, o deslocamento da interveno mdica e a disciplinarizao do

    espao hospitalar iro originar o nascimento do hospital como espao mdico. Os

    dois fenmenos iro se ajustar com o aparecimento de uma disciplina hospitalar que

    ter, por funo, assegurar o esquadrinhamento, a vigilncia, a disciplinarizao do

    mundo confuso do doente e da doena, como tambm transformar as condies do

    meio em que os doentes esto colocados (FOUCAULT, 2004, p. 108). Transforma-

    se, assim, o hospital, que passar a ter trs caractersticas fundamentais: a) grande

    preocupao com a organizao interna. A arquitetura do hospital deve ser fator e

    instrumento de cura (p. 108-9); b) transformao no sistema de poder no interior do

    hospital. O mdico passa a ser o principal responsvel pela organizao do mesmo,

    e c) organizao de um sistema de registro permanente e, se possvel, exaustivo do

    que acontece no hospital. O hospital passa, ento, a ser espao de formaomdica.

    Paralelamente a esse fenmeno de transformao do hospital em espao

    mdico, Amarante(2003a) assinala o nascimento da psiquiatria, que tem, como

    cone, Philippe Pinel. Em 1793, Pinel foi designado mdico-chefe do hospital de

    Bictre, que era uma instituio de assistncia filantrpica e social, com uma grande

    variedade de pessoas internadas. L, opera os primeiros momentos da

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    transformao do hospital. Manda desacorrentar os alienados e inscreve sua

    alienao na nosografia mdica. Esquadrinha o Hospital Geral e reserva um espao

    rigorosamente mdico para os alienados. Para Pessotti(1996), Pinel realizou uma

    verdadeira revoluo na teoria da loucura, em sua poca, por duas questes: a)

    atribuir uma origem passional ou moral para a alienao mental; e b) redefinir

    totalmente as funes do manicmio, que passa a ser considerado um instrumento

    de cura, como veremos. Tambm Birman (1978) considera que Pinel empreendeu a

    primeira revoluo psiquitrica. Para Amarante (2003a), a grande contribuio de

    Pinel foi trazer a problemtica da loucura para a medicina. Em outras palavras,

    atribuir loucura o sentido de doena.

    Com ele, a loucura passa a receber definitivamente o estatutoterico de alienao mental, o que imprimir profundasalteraes no modo como a sociedade passar a pensar e alidar com a loucura da por diante. Se, por um lado, a iniciativade Pinel define um estatuto patolgico para a loucura, o quepermite com que esta seja apropriada pelo discurso e pelasinstituies mdicas, por outro, abre um campo depossibilidades teraputicas, pois, at ento, a loucura eraconsiderada uma natureza externa ao humano, estranha razo. Pinel levanta a possibilidade de cura da loucura, pormeio tratamento moral, ao entender que a alienao produtode um distrbio da paixo, no interior da prpria razo, e no asua alteridade (AMARANTE, 2003a , p.42).

    Assim, para Pinel, a loucura a alienao mental , fundamentalmente, um

    distrbio das paixes, e o seu tratamento deve reeducar a mente alienada. A

    tecnologia pineliana (Castel, 1978), compreendia as seguintes estratgias: a)

    isolamento do mundo exterior; b) a constituio da ordem asilar; e c) a constituio

    de uma relao teraputica baseada na autoridade. Pinel acreditava que, para

    conhecer um objeto, seria necessrio isol-lo das interferncias externas. Refere-se

    condio in vitro. Uma vez isolado, o objeto poderia ser mais bem observado como

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    pr-condio para o sucesso das outras etapas do mtodo cientfico experimental,

    ou seja, observar, descrever, comparar e classificar. O isolamento seria a maneira

    de separar e ordenar as categorias que se apresentam misturadas no Grande

    Enclausuramento (AMARANTE, 2003a). Passou, ento, a organizar uma nosografia

    das doenas, das alienaes mentais.

    Na medida em que as doenas iam sendo identificadas oudiagnosticadas, eram agrupadas tanto no sentidoinstitucional, isto , fisicamente, em salas especficas, como,

    por exemplo, salas apenas com febris, outras comtraumatizados, outras ainda com portadores de doenas depele, e assim por diante-, quanto no sentido terico, emnosografias, ou seja, em classificaes (AMARANTE, 2003a,p. 16).

    Desse modo, a partir do princpio do afastamento, ia separando e agrupando

    os diferentes tipos de alienaes e delrios, comparando-os entre si, a partir de uma

    rigorosa e permanente observao dos enfermos. Para Pinel:

    impossvel distribuir os loucos cuja loucura se pretendetratar como se distribui doentes comuns ou mulheres grvidas.Um hospital , de certa forma, um instrumento que facilita acura; porm existe uma grande diferena entre um hospital defebris feridos e um hospital de loucos curveis; o primeirooferece somente um meio de tratar com maiores ou menores

    vantagens, em funo de ser mais ou menos bem distribudo,ao passo que o segundo, tem ele prprio, funo de remdio(Pinel, apud AMARANTE, 2003a, p. 16).

    O conjunto de estratgias voltadas para a reeducao da mente alienada

    proposto por Pinel conhecido como Tratamento Moral. Funcionaria como uma

    polcia interior. Dava-se, inicialmente, com o prprio regime disciplinar do asilo, mas

    tambm com a instituio do trabalho teraputico. Dessa maneira, a tecnologia

    pineliana inaugurava um novo estatuto para a loucura: o de doena mental e

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    conseqentemente, para o louco: o de doente mental, necessitando, portanto, de

    cuidado e tratamento, s disponvel na estrutura asilar do tratamento moral, como

    sintetiza Birman:

    A loucura torna-se verdade mdica. Cria-se uma clnica dasenfermidades mentais e uma concepo teraputica: o louco,como qualquer doente, necessita de cuidados, de apoio e deremdios. Cria-se um corpo de conceitos, a teoria psiquitrica,que instrumentalizariam esta prtica clnica. O asilo criado,aparecendo como figura histrica, tornando-se o lugaradequado para a realizao desta cura (BIRMAN, 1978, p. 02).

    Internada em hospital especfico, a loucura, agora batizada de doena

    mental, permaneceu at meados do sculo XX e a psiquiatria manteve seu ttulo de

    a cincia que pode e deve trat-la e cur-la.

    1.3. Sculo XX reformas psiquitricas

    Embora a estrutura asilar de Pinel e dos alienistas j houvesse sofrido criticas

    e enfrentamentos no interior da medicina com relao cientificidade do tratamento

    moral8,somente no sculo XX, no perodo ps-Segunda Guerra, que as crticas,

    diante das denncias de maus tratos e desumanidade nos manicmios, vo crescer

    e impor mudanas ou reformas no asilo e na estrutura do tratamento psiquitrico.

    Segundo Birman e Costa (1994), a crise da psiquiatria no ps-guerra se

    evidenciou porque fundiu preocupaes de duas ordens: por um lado, a

    preocupao dos prprios psiquiatras com relao sua impotncia teraputica; por

    8A esse respeito ver, entre outros, Amarante (1996).

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    outro, as preocupaes governamentais geradas pelos altos ndices de cronicidade

    das doenas mentais, com sua conseqente incapacidade social. Dessa forma, a

    psiquiatria social aparece, transferindo o campo da atuao da psiquiatria da doena

    mental para a sade mental.

    Vrias experincias de transformao do hospital psiquitrico passaram a ser

    desenvolvidas, sobretudo, a partir da dcada de 1940. A literatura divide as

    experincias em trs grandes grupos: um primeiro, que tinha como proposta abordar

    a psiquiatria a partir do prprio modelo do hospital psiquitrico (Comunidade

    Teraputica e Psicoterapia Institucional); um segundo grupo, que assumia a

    comunidade como ponto central para o desenvolvimento do tratamento (Psicoterapia

    de Setor e Psiquiatria Comunitria ou Preventiva); e um terceiro grupo, que dirigia

    os questionamentos psiquiatria em si, aos seus saberes e prticas (Antipsiquiatria

    e Psiquiatria Democrtica Italiana).

    Todos esses modelos de reforma tm, em comum, o fato de questionar o

    carter teraputico do hospital psiquitrico. Todos eles partem do pressuposto de

    que o hospital no recupera nem auxilia na recuperao dos internos. Entretanto,

    com exceo da antipsiquiatria e das experincias italianas, as reformas se limitaram

    crtica ao hospital psiquitrico, em si. Ou seja, limitaram-se a buscar um outro lugar

    para tratar os ditos loucos sem, contudo, questionar ou criticar a prpria concepode doena mental, o saber psiquitrico a psiquiatria (AMARANTE, 2003a).

    O alcance e sentido dessas experincias reformadoras sero marcados pela

    peculiaridade dos pases em que ocorreram e pelo seu contexto scio-histrico e

    econmico. Alm disso, podemos afirmar que as experincias pioneiras

    influenciaram as que as seguiam, havendo uma espcie de aprimoramento do

    processo de reforma psiquitrica, conforme veremos a seguir.

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    1.3.1. O cenrio das reformas

    A Segunda Guerra Mundial subverteu a estabilidade econmica e a poltica

    mundial, sobretudo na Europa. De acordo com Birman e Costa(1994), boa parte da

    mo-de-obra europia fora lanada s frentes de batalha, gerando profundas

    fissuras na fragilizada economia. Os autores destacam que, s na Frana, quarenta

    mil doentes mentais morreram nos asilos devido s ms condies e falta de

    alimentao. Diante dessa crise, refora-se o papel do Estado, enquanto gerente de

    trocas, e este assume a sade como sua obrigao e encargo. Se, antes, o Estado

    assegurava o direito vida, agora deveria assegurar o direito sade (BIRMAN E

    COSTA, 1994). O Estado passa a legislar sobre a questo do cuidado dos doentes

    mentais.

    Nesta nova conjuntura, no era mais possvel assistir-sepassivamente ao deteriorante espetculo asilar: no era maispossvel aceitar uma situao em que um conjunto de homens,passveis de atividades, pudessem estar espantosamente

    estragados nos hospcios. Passou-se a enxergar como umgrande absurdo este montante de desperdcio da fora detrabalho. As Comunidades Teraputicas surgiam do impactocausado pelas novas condies de vida (BIRMAN E COSTA,1994, p. 46-7).

    O responsvel pela deteriorao dos pacientes, pela produo e manuteno

    da doena passa a ser o hospital psiquitrico. Assim, uma srie de experincias

    visando a transformar o espao asilar e o tratamento dado loucura passou a ser

    desenvolvida, como demonstraremos a seguir.

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    1.3.2 Comunidade Teraputica

    A denominao Comunidade Teraputica foi criada por T. H. Main, em 1946,

    na Inglaterra. A consagrao desse modelo de reforma psiquitrica se deu em 1959,

    com Maxwell Jones. Amarante (2003a) define o modelo da Comunidade Teraputica

    como sendo um processo de reformas institucionais predominantemente restritas ao

    espao do hospital psiquitrico, marcado por medidas administrativas e tcnicas que

    enfatizavam aspectos democrticos, participativos e coletivos.

    O quadro crtico dos hospitais psiquitricos e as crticas desenvolvidas aos

    mesmos possibilitaram que propostas de reformulao do espao asilar que, em

    outros momentos, haviam sido desacreditadas ou no consideradas ganhassem

    espao. Esse o caso da terapia ocupacional, de Hermann Simon, do tratamento

    grupal de Sullivan e Menninger e do envolvimento de pacientes e familiares no

    tratamento, de Maxwell Jones (AMARANTE, 1995).

    Jones, alis, foi o principal autor e operador da Comunidade Teraputica.

    Organizou grupos de discusso, grupos operativos e grupos de atividades,

    objetivando envolver o sujeito com sua prpria terapia e com a dos demais. Atravs

    da concepo de comunidade, buscava desarticular a estrutura hospitalar tida como

    segregadora e cronificadora. Considerava conceito chave o de aprendizagem ao

    vivo, que significa utilizar as experincias vivenciadas no cotidiano do hospital como

    uma forma de exercitar as experincias de vida fora do hospital, ou seja, tratava-se

    de vivenciar ensaios do agir.

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    So princpios das comunidades teraputicas, segundo Desviat (1999):

    liberdade de comunicao em nveis distintos e em todas as direes; anlise de

    tudo que acontece na instituio por meio de reunies dirias dos pacientes e do

    pessoal tcnico; tendncias a destruir as relaes de autoridade tradicionais, num

    ambiente de extrema tolerncia, atividades coletivas (festas, bailes, passeios) e a

    presena de toda a comunidade nas decises administrativas do servio.

    A crtica s comunidades teraputicas refere-se ao fato de que esse modelo e

    seus operadores no questionavam o lugar onde se desenvolvia a prtica

    psiquitrica, o prprio conceito de doena mental e a relao entre a doena mental

    e a sociedade.

    A experincia das comunidades teraputicas representou uma real

    humanizao dos hospitais psiquitricos e constituiu a base sob a qual a proposta

    de desinstitucionalizao italiana ir ser construda, conforme veremos

    posteriormente.

    1.3.3 Psiquiatria de Setor

    A chamada Psiquiatria de Setor desenvolveu-se na Frana, a partir de 1945.

    Apresentou-se como um movimento de contestao psiquiatria asilar, anterior s

    experincias de psicoterapia institucional. O movimento da psiquiatria de setor

    inspirou-se nas idias de Bonnaf e de um grupo de psiquiatras progressistas que

    reivindicavam transformaes no manicmio.

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    Amarante (1995 e 2000) afirma que os franceses consideravam a estrutura do

    hospital psiquitrico alienante. Por isso, era necessrio encontrar outros lugares

    para que a psiquiatria pudesse atuar buscando seus ideais de tratamento e cura. O

    hospital seguiria sendo uma outra opo. O atendimento no hospital corresponde a

    uma etapa do tratamento, mas a principal parte se daria nos setores.

    As cidades francesas foram divididas em reas geogrficas, e cada uma

    delas passou a ter uma equipe tcnica responsvel pelo atendimento psiquitrico de

    sua populao. O hospital era, tambm, dividido de acordo com os setores onde

    viviam os pacientes, e as equipes eram as mesmas.

    Uma questo importante a ser destacada que os servios no setor deveriam

    proporcionar no apenas o tratamento das doenas mentais, mas igualmente sua

    preveno e o ps-cura, atravs de atividades de reabilitao e reinsero social.

    Na dcada de 60, a psiquiatria de setor foi incorporada como poltica oficial

    francesa de assistncia psiquitrica.

    A psiquiatria de setor, assim como o modelo anteriormente apresentado, no

    extinguia o hospital psiquitrico. O hospital, como j foi dito, fazia parte do circuito de

    atendimento sade mental e, tambm, no operava nenhum tipo de transformao

    na forma de a sociedade entender e tratar a psiquiatria e a loucura.

    1.3.4. Psiquiatria Preventiva (ou comunitria)

    Nasce nos Estados Unidos, na dcada de 1960, com Geral Caplan e

    pretende-se que seja a terceira revoluo psiquitrica (depois de Pinel e Freud) pelo

    fato de visar tanto o tratamento da doena mental, quanto promoo da sade

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    mental. Com a psiquiatria preventiva, houve uma substituio do objeto da

    psiquiatria da doena mental para a sade mental.

    Em 1955, foi realizado um censo que demonstrou as pssimas condies de

    assistncia psiquitrica nos EUA, apontando necessidades de medidas saneadoras

    urgentes. Havia, segundo Amarante(2000), cinqenta mil pessoas internadas em

    hospitais psiquitricos nos EUA, nesse perodo. Como resposta ao censo, o

    presidente Kennedy lana um documento em 1963 determinando a criao de um

    Centro de Sade Mental Comunitria para cada cinqenta mil habitantes: tratava-se

    do Plano Nacional de Sade Mental. Tal plano tinha, como um de seus principais

    objetivos, a reduo de gastos atravs de dispositivos para prevenir e tratar a

    doena.

    Entre as inovaes trazidas pelo modelo da psiquiatria comunitria, podemos

    destacar as seguintes: o carter preventivo, o trabalho em equipe multidisciplinar e a

    intersetorialidade (integrao e articulao com outros setores da sociedade). A

    fonte terica dessa experincia era o preventismo de Caplan, que afirmava ser

    necessrio prevenir e/ou detectar a doena precocemente a fim de evitar seu

    agravamento e, assim, evitar os males sociais.

    O preventismo americano vem produzir um imaginrio desalvao, no apenas para os problemas e precariedades daassistncia psiquitrica americana, mas para os prpriosproblemas americanos. (...) se doena mental significadistrbio, desvio, marginalidade, pode-se prevenir e erradicaros males da sociedade (AMARANTE, 1995, p. 37).

    Para poder prevenir, necessrio encontrar os suspeitos

    (AMARANTE,1995). A busca aos suspeitos se deu atravs de um questionrio

    distribudo populao com uma srie de perguntas em que as alternativas eram

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    sim ou no, cujo resultado indicaria os possveis candidatos ao das equipes de

    sade mental.

    Ainda segundo Amarante (2000), os pressupostos tericos de Caplan eram

    os do Modelo da Histria Natural da Doena, ou seja, entende-se que, para o

    surgimento das doenas, deve haver um agente patognico associado a um

    hospedeiro (o homem) em um meio ambiente com determinadas caractersticas. A

    preveno, nesse caso, refere-se interveno em algum dos aspectos envolvidos

    nesta equao: ou se elimina o agente causador, ou se modifica o hospedeiro, ou se

    manipula o meio ambiente. Na sade mental, o modelo foi adaptado em trs nveis

    de preveno: (a) preveno primria visava promoo e preveno da sade

    mental, e constitua a maior inovao da psiquiatria preventiva; (b) preveno

    secundria pretendia diagnosticar precocemente as enfermidades e proporcionar

    tratamento adequado de forma rpida e eficiente para evitar o seu agravamento; e

    (c) preveno terciria buscava propiciar estratgias de reabilitao psicossocial.

    O conceito chave que possibilita uma interveno preventiva o de crise, o

    qual Caplan construiu a partir de teorias sociolgicas da adaptao e desadaptao.

    Amarante (2000) sustenta que o preventismo foi um novo projeto de

    medicalizao da ordem social, ou seja, de expanso dos preceitos mdico-

    psiquitricos para o conjunto de normas e princpios sociais. Alm disso, aponta que

    o que havia de chocante no asilo assume uma aparncia humanitria no centro de

    sade mental.

    O preventismo serviu de inspirao para vrias experincias de

    desinstitucionalizao, tornando-se a diretriz da maioria das iniciativas oficiais que

    serviram de modelo para diversos pases, inclusive, o Brasil.

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    esquizofrenia) era entendida como um fato social, e a famlia tornou-se uma

    categoria central para a compreenso da loucura.

    Conforme Amarante (2003a), para a antipsiquiatria, o hospital psiquitrico

    reproduzia a estrutura social e, por conseguinte, as caractersticas patognicas da

    prpria famlia. Por tal razo, propunha-se um outro lugar para a loucura. A loucura e

    o louco no constituam objetos tratveis, curveis. Considerava-se, ento, a

    psiquiatria como um instrumento de violncia.

    Esse movimento trouxe contribuies importantes no sentido de atribuir a

    questo da desconstruo ao conceito de desinstitucionalizao.

    1.3.6. Experincia italiana de desinstitucionalizao

    A experincia italiana de reforma psiquitrica tem sido apontada como o

    modelo ou a inspirao para o processo brasileiro. As primeiras aes da Itlia no

    sentido de transformar a assistncia psiquitrica limitaram-se a operar na prpria

    estrutura hospitalar e seguiram o modelo da comunidade teraputica.

    Franco Basaglia assumiu o Hospital Provincial de Gorizia, no extremo norte

    da Itlia, em 1961. Passou, junto com outros colegas, a operar uma srie de

    transformaes no Hospital, com a preocupao inicial de transform-lo em um

    espao de cura. No livro A Instituio Negada, Basaglia e seus companheiros

    relatam e registram a experincia desenvolvida em Gorizia, o incio do que chamou

    de aventura em psiquiatria. Suas referncias iniciais eram as experincias de

    Tosqueles (psicoterapia institucional) e de Jones (comunidades teraputicas).

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    Tomou contato, tambm, com a obra de Foucault e Goffman. Em conferncias

    realizadas no Brasil, no ano de 1979, Basaglia(1982) relatou que, quando assumira

    o Hospital de Gorizia, havia quinhentos leitos, um extremo uso de insulina e

    eletrochoque, bem como um domnio da misria. Afirmou que a inveno daquela

    experincia foi dar um no psiquiatria e misria e considerar que o doente no

    s um doente, mas um homem com todas as suas necessidades (BASAGLIA,

    1982).

    De acordo com Barros (1994), a base da proposta da experincia italiana foi o

    pressuposto de que as condies de existncia determinam configuraes sociais

    de vida e de que o problema da relao mdico-paciente tem o significado da

    natureza das relaes inter-humanas presentes na sociedade. Ou seja, a

    experincia italiana levou em considerao, para analisar o manicmio e a

    psiquiatria, as relaes de explorao e opresso presentes na sociedade.

    Amarante (2003a) afirma que, em um dado momento, o trabalho em Gorizia

    concentrava-se em trs grandes linhas de interveno:

    (a) a origem e o pertencimento de classe dos internos do hospital;

    (b) a pretenso de neutralidade e de produo de verdade das cincias e

    (c) a funo social de tutela e controle social da psiquiatria, do manicmio

    e do tcnico na constituio da hegemonia.

    As reflexes de Basaglia e dos reformadores de Gorizia voltaram-se para o

    projeto institucional da psiquiatria. Reconheceram que a liberdade o primeiro

    passo para a cura do doente.

    O que, no princpio, era um movimento de humanizao e transformao do

    hospital psiquitrico (DESVIAT, 1999) passou, no final dos anos 60, a um amplo

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    experincia limitada ao espao hospitalar. Em 1971, em Trieste, inicia o trabalho de

    completo desmonte da estrutura manicomial e a construo de um complexo de

    assistncia psiquitrico comunitrio, o qual ficou conhecido como

    desinstitucionalizao (AMARANTE, 2003a).

    A experincia de Trieste levou destruio do manicmio, ao fim da violncia

    e do aparato da instituio psiquitrica tradicional, demonstrando que era possvel a

    constituio de um circuito de atendimento que, ao mesmo tempo em que oferecia

    e produzia cuidados, oferecesse e produzisse novas formas de sociabilidade e de

    subjetividade aos que necessitassem de assistncia psiquitrica (ROTELLI, 2000).

    Uma das primeiras atitudes de Basaglia no Hospital San Giovanni foi a

    contratao de pessoal. Baseado nos princpios elencados desde a experincia e

    reflexes em Gorizia, o objetivo passou a ser a superao do reformismo

    psiquitrico, atravs da recusa ao mandato teraputico da psiquiatria e do

    questionamento do conceito de doena mental.

    O hospital foi dividido em cinco setores (e, posteriormente, sete) e os

    pacientes, agora hspedes, foram divididos por bairros de procedncia. Acabaram

    com a diviso dos pavilhes por sexo ou diagnstico. Cada um dos setores tinha

    uma equipe fixa, responsvel no s pelo tratamento do paciente dentro da

    instituio, mas tambm pelo atendimento a todas as necessidades assistenciais de

    cada pessoa, sem pulveriz-la em diferentes espaos, garantindo a continuidade no

    tempo da relao equipe-paciente. O trabalho com ex-internos foi garantido atravs

    da transferncia dos recursos (antes destinados internao), a fim de possibilitar

    melhoria de qualidade de vida e estimular a autonomia daquelas pessoas.

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    Durante toda a dcada de 1970, o hospital de Trieste foi sendo desmontado,

    desconstrudo, e foram sendo criados outros servios na cidade3 . O trabalho se

    projetava sobre a comunidade, entendida como o terreno no qual se encontravam as

    reais formas de excluso e, conseqentemente, marginalizao e segregao

    manicomial. Assim, comeou-se a construir a noo de territrio, como o espao

    onde se constri o conjunto das referncias subjetivas, sociais e polticas que

    formam o cotidiano de vida, bem como a insero dos sujeitos no meio social.

    A repercusso do trabalho em Trieste e em muitas outras cidades da Itlia,

    onde intervinham militantes da Psiquiatria Democrtica4, levou aprovao, pelo

    Parlamento Italiano, da Lei 180 (Lei Basaglia), no ano de 1978, que previa a

    extino dos manicmios na Itlia. Aps a aprovao da lei, passou-se a vivenciar e

    construir o perodo que ficou conhecido como a fase da instituio inventada

    (AMARANTE, 2003a). A instituio inventada constitui o conjunto dos novos

    servios, estratgias e dispositivos com carter de permanente construo,

    criatividade, renovao de seus objetos, atores e tcnicas, tendo sido construdo na

    Itlia.

    Conforme j afirmamos, as caractersticas da experincia italiana de reforma

    psiquitrica tm sido consideradas uma espcie de guia para a experincia

    brasileira, constituindo o que a literatura chama de paradigma da

    desinstitucionalizao, que ser abordado em seguida.

    3Uma descrio riqussima desse processo encontra-se em Amarante (2003).

    4 O movimento da Psiquiatria Democrtica Italiana (PDI) foi criado em 1973, por um grupo de

    profissionais de todas as regies da Itlia os quais compartilhavam das idias iniciadas e

    desenvolvidas por Basaglia (dentre eles, Franca Basaglia, Franco Rotelli, Giuseppe DellAcqua,Ernesto Venturini, Domenico Casagrande, entre outros). Esse movimento existe at hoje. Muitosautores, segundo Amarante (2003a) chamam de psiquiatria democrtica o conjunto de experinciasde reforma psiquitrica ocorrido na Itlia.

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    1.4. Buscando sintetizar a viagem da loucura

    Neste captulo, buscamos recuperar a histria do trato da loucura atravs do

    tempo e categorizar a reforma psiquitrica O Quadro 1 busca sintetizar essa

    trajetria.

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    QUADRO N1 - TRAJETRIA DA LOUCURA NA SOCIEDADE

    PERODO/CATEGORIA

    AT A IDADE MDIA CLSSICA/RENASCENA

    MODERNISMO

    CONTEXTO At sculo XIV - XV

    Final: Nau dos LoucosRenascimento

    Sculos XVI Sc XVII

    Iluminismo

    Racionalismo imprioda razo. DESCARTESPenso, logo existo

    desenvolvimento daeconomia necessidadede trabalhoLei dos pobres

    Fim do sculo XVIII

    Ps Revoluo Francesa

    Revoluo Industrial

    Conhecimento cientficoEspecialidades

    PSIQUIATRIA

    PMM

    S

    Qh

    RPdd

    LOUCURA J-estar da morteManifestao do outromundoExperincia trgica

    Forma de erro ou iluso(perda da verdade).Avesso da razoConscincia crticaDESVIOGrande Internao.

    Doena mentalCoisa mdicaDesordem que semanifesta pelas maneirasde agir e sentir pelaliberdade e vontade dohomem.ALIENAO

    Dts

    LOUCO Espcie de vidente.Algum que tinhacapacidade de secomunicar ou entender asmensagens dos deuses.

    Sujeito destitudo derazo

    Doente mentalalienado

    Cd

    LCUS Sociedade Hospital Geral Hospcio/ manicmio S

    ShHh

    Fonte: Sistematizao da Pesquisadora

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    Partindo da trajetria inscrita por Foucault, nosso embarque se deu no Final

    da Idade Mdia, coma instaurao do racionalismo, que capturou a loucura atravs

    de uma razo dominadora. As manifestaes do louco, antes vistas como estranhas,

    mas fascinantes, passaram a ser entendidas como algo que iria contra a ordem

    normal/natural das coisas, e o louco passou a ser considerado como um sujeito

    destitudo de razo e, por isso, passvel de ser excludo dessa sociedade por um

    acontecimento que Foucault chamou de Grande Internao.

    A instaurao da sociedade capitalista e do modernismo demarca um

    fenmeno com dupla face: a medicalizao da loucura, como conseqncia do

    surgimento da psiquiatria, e a definio da loucura como doena mental. De sujeito

    destitudo de razo, o louco passou a ser um doente mental ou, nas palavras de

    Pinel, pai da psiquiatria, um alienado. A internao e o isolamento do louco

    assumem carter de terapia, absolutamente necessria para livr-lo das paixes do

    mundo que o tiraram da razo.

    O louco e a loucura ficaram ilhados no manicmio at o sculo XX, mais

    especificamente, at o Ps-Segunda Guerra Mundial, quando a questo da loucura

    passar a se constituir em expresso da questo social e a demandar preocupao

    por parte de governos e dos tcnicos. Desse modo, iniciam-se os processos de

    reformas psiquitricas que, mesmo variando entre os diversos pases, tm, emcomum, o fato de questionarem o carter teraputico da internao psiquitrica.

    Para esse debate ganha centralidade a busca pelo entendimento dos

    conceitos que so apontados como fundamentais para a compreenso do que se

    constitui como desinstitucionalizao.

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    1.5. Desinstitucionalizao trilhando o conceito

    A discusso sobre processos de desinstitucionalizao perpassa pela

    literatura sobre sade mental. Sobretudo nos estudos baseados na perspectiva do

    paradigma italiano de desinstitucionalizao, essa discusso e a diferenciao entre

    tipos de desinstitucionalizao fazem-se presentes e obrigatrias. Tais so os casos

    de AMARANTE (1994, 2003), BARROS (1994 e 2003), VASCONCELOS (1997),

    LANCETTI (2001) e os textos dos autores italianos que participaram da experincia

    da reforma psiquitrica naquele pas (BASAGLIA, 1982, 2006, ROTELLI et. al,

    2001).

    Nesta etapa de nossa viagem sobre o processo da reforma psiquitrica

    brasileira, iremos fazer uma breve pausa nos registros histricos dos

    acontecimentos, para demarcar nosso referencial de anlise, no caso, o paradigma

    da desinstitucionalizao italiana. Para tanto, iremos abordar caractersticas do que

    chamaremos de desinstitucionalizaes, ou seja, caractersticas das experincias

    de transformaes em sistemas de sade mental ocorridos na Europa e EUA, a fim

    de demonstrar as caractersticas das experincias que no consideramos como

    fazendo parte do paradigma da desinstitucionalizao. Nessas experincias, adesinstitucionalizao limitou-se critica instituio hospitalar ao manicmio.

    Posteriormente, abordaremos as reflexes italianas a respeito da

    desinstitucionalizao. A, sim, buscaremos caracterizar o que, nesta tese,

    chamamos paradigma da desinstitucionalizao. Demonstraremos, tambm, o

    caminho reflexivo de Basaglia e seus companheiros na construo de uma outra

    forma de cuidar, lidar e tratar a loucura e mostrar que a crtica, embora inicie no

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    Rotelli, Leonardis e Mauri (2001) afirmam que as experincias de

    desinstitucionalizao como desospitalizao em pases europeus e nos EUA -

    foram impulsionadas pelo intento de renovar a capacidade teraputica da psiquiatria,

    libertando-a das suas funes arcaicas de controle social, coao e segregao. Os

    autores chamam as experincias de psiquiatria reformada e afirmam que

    desinstitucionalizao era palavra de ordem central, sendo utilizada com diferentes

    objetivos, quais sejam: para os reformadores, as funes j citadas de renovar a

    capacidade teraputica da psiquiatria; para os grupos de tcnicos e polticos

    radicais, ela simbolizava a perspectiva da abolio de todas as instituies de

    controle social e se emparelhava perspectiva antipsiquitrica; para os

    administradores, ela era sobretudo um programa de racionalizao financeira e

    administrativa, sinnimo de reduo de leitos nos hospitais e resposta crise fiscal.

    Dizem, ainda, os autores que , sobretudo, com este ltimo significado que a

    desinstitucionalizao foi realizada, ou seja, foi praticada como desospitalizao,

    poltica de altas hospitalares, reduo mais ou menos gradual do nmero de leitos

    (op. cit, p. 19). Alm disso, apontam alguns traos comuns das experincias da

    psiquiatria reformada:

    (a) a internao psiquitrica continua a existir tanto na Europa, quanto nos

    EUA. Ressaltam que os hospitais seguem fazendo parte do sistema de sademental. Alm disso, ocorreu a transinstitucionalizao, ou seja, passagem dos

    hospitais para outras instituies, tais como: casa de repouso, albergues, entre

    outros.;

    (b) os servios territoriais ou de comunidade convivem com a internao mas

    no a substituem. Ao contrrio, confirmam sua necessidade; j que ocorreu uma

    especializao dos servios psiquitricos, colocando em questo os riscos de

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    psiquiatrizar os problemas sociais e difundir mecanismos de controle social na

    comunidade; alm do mais, a especializao dos servios cria uma espcie de

    triagem dos problemas, excluindo toda uma gama de situaes;

    (c) o sistema de sade mental funciona como um circuito. Entre os servios

    da comunidade e as estruturas de internao, existe uma complementariedade, um

    jogo de alimentao recproca. O sistema uma espiral: alimenta os problemas e os

    torna crnicos (pp. 20-24).

    Conforme procuramos demonstrar, as experincias reformistas em sistemas

    de sade mental (especialmente as experincias de comunidades teraputicas e da

    psicoterapia institucional) representaram um avano no sentido de propor mudanas

    no interior do manicmio. Entretanto, tais mudanas constituram-se em mudanas

    superficiais ou cosmticas1, no sentido de que, ainda que tenham provocado

    transformaes aparentes na forma de tratar a loucura, no alcanaram o que , a

    nosso ver, o cerne da questo: o cuidado do louco, o lugar do louco e da loucura na

    sociedade.

    Dessa forma, passaremos a apresentar a perspectiva italiana de

    desinstitucionalizao, como um contraponto a essas experincias reformistas.

    1.5.2. Desinstitucionalizando a desinstitucionalizao o paradigma italiano

    Conforme j afirmamos, a experincia italiana de desinstitucionalizao

    extrapola a idia de desospitalizao. A inovao de Franco Basaglia e seus

    1Paulo Amarante utilizou esse adjetivo em um minicurso proferido em Florianpolis, na ocasio do IEncontro Sul-Brasileiro de Sade Mental, para se referir s experincias reformistas de reformapsiquitrica. Consideramos ser um termo apropriado para designar as experincias dedesinstitucionalizao burocrtico-administrativas.

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    companheiros italianos diferencia-se, por no questionar somente o manicmio e

    suas desumanidades, mas por entender e denunciar que aquela situao desumana

    era reflexo da questo social da excluso e produto da opresso da sociedade

    capitalista. As reflexes, conceitos, valores e crticas construdas nessa experincia

    de autocrtica vivenciada pelos italianos constituram uma outra explicao, um outro

    lugar para a loucura, tanto em nvel tcnico (como tratar a loucura - a teraputica da

    loucura), quanto em nvel poltico (como transformar a viso e o lugar da loucura na

    sociedade capitalista). A literatura atribuiu a esse conjunto de explicaes, entre

    outras denominaes, a de paradigma italiano de desinstitucionalizao.

    A desinstitucionalizao italiana2, que inspirou e inspira a experincia

    brasileira (Amarante, Lancetti e outros), parte da noo de desinstitucionalizao

    como desconstruo. Trata-se de uma produo prtico-terica de desmont