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Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias Licenciatura em Direito - 1º Ano | Disciplina: História do Direito II Docentes: Professor Doutor Rui

Reformas Legislativas de D. João VI no Brasil

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Introdução Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias

Licenciatura em Direito - 1º Ano | Disciplina: História do Direito IIDocentes: Professor Doutor Rui

Marcos e Dr. Luís GomesDiscente: Flávia Campos Machado

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1. Apresentação do TemaDevido a eminente invasão francesa à Portugal, D. João VI vê-se

obrigado a abandonar o seu país rumo as terras de um Estado nascente: o Brasil.

Esta atitude do príncipe regente português acaba por fomentar o surgimento de novas formas de legislações dos dois lados do oceano: no Brasil, D. João VI redireccionava a história do direito brasileiro com a Legislação Joanina. E deste lado do oceano (em Portugal), o rosto da soberania portuguesa mudava e ganhava espaço, ainda que forçadamente, as legislações napoleónicas escritas por Jean-Andoche Junot, militar francês de confiança de Napolão.

Este trabalho visa, entretanto, focar-se no espelho legislativo brasileiro do príncipe, demonstrando consequentemente a dimensão da importância que o novo quadro político e jurídico levou às terras que até então eram apenas uma colónia.

2. Enquadramento HistóricoNo século XIX, precisamente em Novembro do ano de 1807, o

mar parecia ser a única saída para o comandante de um pequeno país europeu pressionado pelas duas maiores potências da época. De um lado, o imperador francês Napoleão, expandia seus domínios em uma guerra pelo continente europeu. Do outro lado, a Inglaterra, parceira comercial e militar de Portugal há centenas de anos, desenvolvia fervorosamente a sua industrialização.

Em Portugal, o príncipe regente Dom João era quem tomava as decisões, já que sua mãe, a rainha Dona Maria I, estava impedida pela sua insanidade mental.

Em meio à guerra de interesses entre franceses e ingleses que afectava toda a Europa e o mundo, o príncipe regente português opta pela “neutralidade”.

No entanto, o governo francês insistia em ignorar o compromisso de respeitar a neutralidade de Portugal e exigia a sua ruptura com a Inglaterra. O que levantava um grave problema económico para a Coroa Portuguesa.

Nessas circunstâncias, em 26 de Novembro de 1807, através de um decreto, Dom João declara sua partida para o Brasil. Foi este Decreto o meio escolhido para justificar aos portugueses a sua atitude de deixar o país, e além disso, revelava o seu intuito de evitar um vazio de poder, designava com este objectivo os destinos políticos do Reino a uma junta de governadores e destacava a eles que a sua missão cimeira era a realização judicativa do valor da justiça (Pax opus justitiae). D. João salientava no Decreto, entre suas justificativas que, como o objectivo de Napoleão era capturar a família real, os seus leais vassalos seriam menos inquietados se ele se ausentasse do país.

Perante este quadro, o príncipe concluía declarando que ele, a Rainha e toda a Família Real, para benefício dos seus próprios vassalos, iriam passar a estabelecer-se no Rio de Janeiro até a Paz Geral voltar a prevalecer.

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Desenvolvimento1. Legislação Joanina no Brasil

No Brasil, a chegada de D. João VI representou um grande acontecimento. O modo de legislar do príncipe regente se intensificou e refulgiu ao púlpito de uma sabedoria virada para o modo de agir processual americano.

Em uma primeira análise superficial, podemos já afirmar que a história do direito brasileiro e a história política do Brasil não teriam seguido o mesmo curso se não houvesse essa transferência da Corte. Foi um período de tempo não imenso mas capaz de transformar a ordem jurídica brasileira e, no plano político, elevar o Estado do Brasil à categoria de Reino.

Numa percepção mais aprofundada, centralizaremos na actividade legislativa joanina, que começa em Janeiro de 1808 (quando a Corte chega à Baía), até Abril de 1821 (altura em que D. João lega instruções para o Governo do Brasil na eminência de embarcar para Portugal), de modo prevalecente a entrever alguns dos alicerces da construção jurídica do Brasil.

2. Periodização da Legislação Joanina no BrasilOs diplomas joaninos são, em género, transparentes e

compreensíveis e introduzem-se harmoniosamente no Brasil. Sem negar a artificialidade que está condenada uma tentativa

de periodização em uma realidade jurídica que é por natureza contínua, somos tentados a distinguir no processo evolutivo do direito joanino brasileiro duas fases fundamentais, distintas entre si na perspectiva adoptada e nos objectivos que se pretendiam cumprir: antes e depois de 1815, ano em que o Brasil ascende à categoria de Reino.

O primeiro período é marcado por uma enorme aceleração legislativa e caracterizado pela grande predominância de normas de direito público. Já o segundo período, tem um visível abrandamento dessa aceleração legislativa acompanhado de uma tentativa de aperfeiçoamento dos vários sectores da ordem jurídica brasileira, torna-se neste segundo momento uma legislação de largo alcance.

3. Ciclo Legislativo Joanino de Pendor Publicista (antes de 1815)

O primeiro ciclo legislativo joanino constitui o mais fulgurante, dominado por uma actividade febril, com o rótulo de urgência. Visto que a Família Real não chega ao Brasil com um direito pronto, um novo direito iria construir-se a partir da sua chegada.

Das fontes cognoscendi inscritas neste arco temporal, desvelam-se características que permitem compor os distintos rostos da política legislativa de D. João VI no Brasil. Os primeiros interesses que realçam centralizam-se nos domínios da legislação económica, da legislação de forte tendência político-administrativo e da legislação que redefiniu a organização judiciária.

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4. O Princípio da Liberdade Económica no BrasilNo ano de 1808, pouco tempo depois de chegar ao Brasil, o

príncipe regente tomou de imediato uma providência de grande alcance económico. Em termos legislativos estamos a falar da Carta Régia de 28 de Janeiro de 1808, que consagrou a abertura dos portos do Brasil ao comércio.

Até esta altura, o Brasil só podia por via directa se relacionar comercialmente com a metrópole. Com a promulgação deste diploma, ficou consentida a entrada nas alfândegas brasileiras de todos os géneros, fazendas e mercadorias vindas de fora, ainda que transportadas em navios estrangeiros. Em contrapartida, facultava também a exportação dos vários géneros e produções coloniais a qualquer destino portuário, por meio de navios portugueses ou estrangeiros.

De facto, não seria possível conservar o privilégio exclusivo entre Brasil e Portugal uma vez que o território português se encontrava ocupado por tropas francesas e forças britânicas barravam a entrada no país. A manutenção do privilégio exclusivo só traria benefícios aos invasores.

A Carta Régia de Janeiro de 1808 teve a consequência de libertar internacionalmente o comércio do Brasil em definitivo e desenhou os primeiros incentivos ao giro de manufacturas brasileiras entre nações. O Alvará de 28 de Abril de 1809 estabeleceu uma isenção tributária relativamente ao tráfego mercantil de manufacturas, estava expressa na lei: “todas as manufacturas nacionais serão isentas de pagar direitos alguns na sua exportação para fora dos meus Estados e todas as do Reino serão isentas de os pagar por entrada nos meus domínios no Brasil”. A mesma lei ainda determinou, no propósito de estimular o aparecimento de uma poderosa marinha, a redução para a metade dos direitos alfandegários que pagavam as matérias-primas destinadas à construção de navios e à sua armação.

Retiradas as amarras ao tráfego internacional, coerentemente o princípio da liberdade económica não poderia ser dificultado no plano interno. De modo que, o Alvará de 1 de Abril de 1808, na intenção de promover a riqueza nacional, decidiu remover qualquer obstáculo legal que subsistisse ao estabelecimento de indústrias nascentes no Estado do Brasil e nos domínios ultramarinos. Assim, dizia a proclama legal: “daqui em diante seja lícito a qualquer dos meus vassalos, qualquer que seja o país em que habitem, estabelecer todo o género de manufacturas, sem exceptuar alguma, fazendo os seus trabalhos em pequeno ou em grande, como entenderem que mais lhes convém”. Revogando assim o Alvará de 5 de Janeiro de 1785 que ordenara a destruição de todas as fábricas existentes no Brasil.

Desta forma, resplandece no Brasil a liberdade de navegação, do comércio e da indústria.

5. Reedificação das Estruturas Político-Administrativas Brasileiras

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A transferência da sede da monarquia de Lisboa para o Rio de Janeiro implicava, necessariamente, a recomposição das estruturas político-administrativas brasileiras. Da chegada da Corte à promulgação da Constituição do Império do Brasil, virou quase regra a reprodução no Brasil das velhas estruturas da metrópole. Neste quadro, destaca-se o Gabinete Ministerial (criado no Brasil pelo Decreto de 10 de Março de 1808) e o Conselho de Estado (instituído por ordem do Alvará de 1 de Março de 1808.

Num primeiro momento do papel governamental do Gabinete Ministerial, entregaram-se as funções estaduais a um reduzido número de elementos, onde sobressai a figura do Secretário do Estado dos Negócios Internos do Reino. Ao lado deste, havia o titular da pasta dos Negócios Estrangeiros e da Guerra e o titular da pasta dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos.

O Conselho do Estado representava um amparo do rei e do Gabinete Ministerial. Ele constituía um órgão de natureza consultiva que ajudava à condução de uma administração pública cada vez mais existente. Era formado por homens de Estado e jurisconsultos que tinham o papel de aconselhar o monarca no exercício dos seus vastos poderes.

6. Paternalismo Régio no BrasilNa concepção de Estado anterior ao constitucionalismo liberal,

os reis eram tidos como únicos proprietários do bem público e tutelavam os interesses, desde os mais significativos como os económicos, culturais e políticos até os mais mesquinhos. Os soberanos não podiam deixar de ser protectores sem perderem a sua soberania, então o monarca envergava-se a condição de pater patriae (pai da pátria). Neste âmbito, a ideia era de que o rei fazia servir toda a grandeza do seu real poder à felicidade dos vassalos, compondo assim um entrelaçamento da imagem do pai e a do rei, ou seja, um paternalismo do rei.

A esta linha paternalista não escapou a legislação joanina brasileira. O Alvará de 28 de Abril de 1809 ilustra este facto. Nele, o príncipe regente identificava, como sendo o primeiro e principal objecto do seus “paternais cuidados” o de promover a felicidade pública dos seus fiéis vassalos. De acordo com as proclamas legislativas, a determinação do bem público pelo critério subjectivo do príncipe devia conduzir o Estado do Brasil à prosperidade.

O Brasil estava prestes a assistir uma enorme densificação da actuação administrativa.

7. Reformas na Administração Militar e na Organização Judiciária

Com a habitação do Estado português no Rio de Janeiro, as novas formatações administrativa, militar, judiciária e financeira pronunciavam a autonomização.

7.1 Administração Militar

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O Alvará de de 1 de Abril de 1808 institui o Conselho Supremo Militar e de Justiça, competindo a este todos os assuntos de ordem militar que, em Lisboa, pertenciam aos Conselhos de Guerra, do Almirantado e do Ultramar. Cabia também ao Conselho Militar fazer subir consultas ao rei relacionadas à economia e à disciplina, tanto do exército como na marinha.

No Decreto de 7 de Abril de 1808, o príncipe fundava o Arquivo Militar. O objectivo era responder à grande necessidade que existia de reunir e conservar todos os mapas e cartas, tanto das costas como do interior do Brasil, e de outros domínios, para que servissem como base rigorosa à definição e rectificação de fronteiras, à elaboração de planos de fortalezas e ao desenho de projectos de novas estradas e comunicações.

7.2. Organização JudiciáriaA comunicação directa com a metrópole tornara-se impraticável

e impôs uma refundação da organização judiciária no Brasil. A política legislativa de D. João VI teve de abandonar qualquer recurso aos órgãos existentes em Portugal. E com isso, tornou-se oportuno aperfeiçoar o aparelho judiciário às específicas necessidades locais.

7.2.1. Mesa do Desembargo do Paço e da Consciência e Ordens

O Alvará de 22 de Abril de 1808 criou no Brasil a Mesa do Desembargo do Paço e da Consciência e Ordens. Unificando assim as competências que antes destinadas aos tribunais do Desembargo do Paço, da Mesa de Consciência e Ordens (que, em Lisboa, existiam desde sua fundação como instituições distintas e separadas), do Conselho Ultramarino e, ainda, acrescenta-se a competência de resolução dos casos que se decidiam até então na Mesa do Desembargo do Paço da Relação do Rio de Janeiro. Não deixou de ser esta uma medida de economia de meios.

7.2.2. Casa de Suplicação do BrasilO estabelecimento da Casa de Suplicação do Brasil foi o facto

jurídico que coroou a emancipação brasileira.No Alvará de 10 de Maio de 1808 ficou proclamado legalmente:

“para se findarem ali todos os pleitos em ultima Instância, por maior que seja o seu valor” colocando assim a Casa de Suplicação na condição de supremo tribunal de justiça.

Desta forma, exceptuando o recurso de revista, as sentenças proferidas pela Casa de Suplicação do Brasil não possuíam hipótese de recurso. Isto em prol da segurança jurídica no Brasil. A partir de então, tais sentenças transitavam em julgado, ou seja, estava definitivamente esgotado o prazo para a interposição de qualquer recurso sobre a decisão judicial.

A decisão fundamentava-se no argumento de que muito convinha ao bem comum dos súbditos brasileiros que a administração da justiça não continuasse exposta a embaraços que prejudicavam a pronta tutela de segurança nacional dos cidadãos e do direito de

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propriedade. Era inevitável o aparecimento de um supremo tribunal brasileiro, visto que, encontrando-se interrompida a comunicação com Portugal, havia-se tornado inviáveis os agravos ordinários e as apelações que se interpunham para a Casa de Suplicação de Lisboa e as incertezas das decisões que provinha dessa situação já não era tolerada.

Mas o Alvará guardava ainda um forte argumento político: erigir uma Casa de Suplicação no Brasil constituía na realidade um reflexo da fixação da residência do rei no Rio de Janeiro que impunha considerar esta cidade a verdadeira Corte do Reino e, logo, a capital jurídica portuguesa.

7.2.3. Os Tribunais de RelaçãoO novo ordenamento jurídico brasileiro recebeu ainda a

incorporação de duas novas instituições: a Relação de S. Luís do Maranhão (1812) e a Relação de Pernambuco (1821).

A Relação de São Luís do Maranhão exercia jurisdição sobre as capitanias de Amazonas, Pará, Maranhão, Piauí e Ceará Grande.

A Relação de Pernambuco foi criada sob o argumento de D. João VI de que os habitantes desta província estariam muito afastados da Relação da Bahia (na altura, o tribunal mais próximo do Recife).

7.2.4. Os Juízes de FóraNo que diz respeito à magistratura singular, a legislação joanina

fez proliferar os chamados juízes de fóra no Brasil.Esta disseminação de magistrados por nomeação no detrimento

dos juízes efectivos era, na realidade, um propósito de aperfeiçoar a administração da justiça e de garantir um maior cuidado com a aplicação da lei pátria.

8. O Novo Figurino Legal das Finanças Públicas BrasileirasNo Alvará de 28 de Junho de 1808 modelaram-se

normativamente as peças cruciais para a reforma da organização das finanças públicas no Brasil.

8.1. Abolição das Juntas da Fazenda e da RevisãoO Alvará de Junho de 1808 determinou a redução a uma única

jutisdicto de todos os assuntos que pertencessem à fazenda real e que, antes disso, dependiam das jurisdições exercidas pelas juntas da fazenda e da revisão da dívida passiva da capitania do Rio de Janeiro. Esta acção deu-se no intuito de responder as instantes necessidades da administração fiscal que, como própria de uma capital do Império, deveria ser desenvolta e eficaz.

8.2. Tesouro RealEste Alvará criou no Brasil um Erário Público, ou seja, um

Tesouro Real, que possuía as mesmas competências que a Carta Lei de 22 de Dezembro de 1761 atribuíra ao Real Erário de Lisboa. Consequentemente, o método de escritura e de formulação

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contabilística devia seguir a escritura mercantil por partidas dobradas. Isto representava uma providência imperativa para impedir que as contas públicas ficassem sob o arbítrio dos contadores, colocando assim a contabilidade pública brasileira actualizada ao modelo na altura consagrado pelas nações mais polidas e civilizadas da Europa.

8.3. Conselho da FazendaEsta mesma lei ergueu também, à semelhança de Portugal, um

Conselho da Fazenda no Rio de Janeiro. O Conselho da Fazenda era um tribunal especial que resolvia lítigios inscritos na área da arrecadação das rendas e direitos da coroa. Competia a ele os territórios do Estado do Brasil, das Ilhas dos Açores e da Madeira, de Cabo Verde, São Tomé e outros domínios portugueses na África e na Ásia. A partir daí, todas estas áreas ficaram a depender, em matéria de justiça fiscal, de um tribunal no Rio de Janeiro, revelando que o império português passava a girar em torno do Brasil.

9. A Décima BrasileiraNo período de influência das legislações joaninas no Brasil

esteve presente também a modernização no sistema de tributação. Neste âmbito, a novidade com maior impacto significativo residiu na aplicação do imposto da décima (imposto que incide sobre o equivalente à décima parte de um rendimento) sobre os prédios urbanos existentes nos domínios ultramarinos.

9.1. Carácter da DécimaFoi o Alvará de 27 de Junho de 1808 que instituiu o imposto da

décima. Nos termos da lei, a décima assemelhava-se a uma verdadeira contribuição predial urbana, porém mais evoluída que esta por obedecer ao princípio de igualdade fiscal. Este princípio de igualdade concretizava-se no carácter de generalidade e uniformidade que a décima tinha.

Generalidade na medida em que todos os súbitos se encontravam sujeitos ao pagamento do imposto, sem distinção de classe, de ordem e de raça.

A uniformidade decorria do tributo assentar numa repartição que obedecia a um critério idêntico para todos.

9.2. Motivos para a Implantação da DécimaComo o Brasil na altura necessitava de um incremento nas

receitas públicas para a sustentação do Estado nascente, o imposto predial da décima foi o meio encontrado para gerar receita por via de uma tributação mais cómoda e justa, a fim de não sobrecarregar muito o contribuinte.

A lei, para além disso, exibia um argumento de política fiscal bem ostensivo: tributar o rendimento dos prédios urbanos envolvia a opção de não agravar fiscalmente a agricultura, que era onde verdadeiramente residia o manancial de riqueza dos Estados.

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9.3. Imposto da DécimaA lei vinculava o pagamento anual, em benefício da fazenda

real, de dez por cento dos rendimentos dos proprietários de todos os prédios urbanos, que estivessem em estado de serem habitados, situados na corte ou nas restantes cidades, vilas ou lugares notáveis, localizados à beira-mar, no Estado do Brasil.

Para que as determinações da lei pudessem ser fiscalizadas, ela fornecia o conceito de prédio urbano: todos aqueles que, segundo as demarcações da Câmara respectiva, fossem compreendidos nos limites das cidades, vilas e lugares notáveis.

9.4. Isenções do Imposto da DécimaA lei abrigava duas isenções tributárias. Embora o imposto

também incidisse sobre prédios urbanos situados nos domínios ultramarinos, exceptuava-se os imóveis localizados na Ásia. Isto, devido a decadência e ruína em que os mesmos se encontravam.

A outra face de isenção tributária do imposto da décima estava destinada às Santas Casas das Misericórdias, era entendido que “pela piedade do seu intuito” a isenção fazia-se merecida.

9.5. Juntas da DécimaEm todas as cidades, vilas e lugares notáveis, criava-se então

uma Junta da Décima. Na sua composição, integravam-se dois juízes do crime, um escrivão, dois homens de bem (um nobre e outro do povo), dois carpinteiros, um pedreiro e um fiscal (que deveria ser um advogado). Essa diversidade dentre os elementos que compunham a Junta asseguraria o desempenho do princípio de igualdade e de controlo recíproco entre os membros que havia no espírito da lei.

9.6. Alvará de 3 de Junho de 1809 Diante da premente necessidade de receitas fiscais, entendia-se

que não se podiam excluir da tributação da décima os prédios situados fora de beira-mar, e nas capitanias interiores.

Então, o Alvará de 3 de Junho de 1809 vem para determinar que o imposto, além de incidir a todos os prédios urbanos das cidades, vilas e lugares notáveis do Estado do Brasil e dos domínios ultramarinos, tal como anteriormente, agora também incidiria aos prédios urbanos que não estivessem à beira-mar. Alargava-se assim a base de alcance do imposto da décima com a emenda que dizia que o pagamento da decima passava a incidir sobre os “prédios urbanos (…) sejam ou não situados à beira-mar”.

É importante referir que esta reformulação da lei conserva, porém, as previsões de isenção referidas no tópico anterior.

10. Junta de Comércio no BrasilO Alvará de 23 de Agosto de 1808 fundou a “Real Junta do

Comércio, Agricultura, Fábricas, e Navegação deste Estado, e Domínios Ultramarinos”, à imagem e semelhança da Junta do Comércio criada em Lisboa por D. José I. Com isto, o Brasil ganha a sua primeira experiência com um tribunal de comércio.

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As competências deste tribunal de comércio inscreviam-se em processos que tocassem matérias relativas ao trato mercantil terrestre e marítimo, à agricultura, à indústria e à navegação. Além disso, o tribunal tinha um papel preponderante na elaboração da legislação comercial, na medida em que podia fazer subir consulta todos os projectos de lei que entendesse serem favoráveis à melhoria dos objectos em que superintendia.

11. A Fundação do Banco do BrasilO Alvará de 12 de Outubro de 1808 justificou a fundação do

Banco do Brasil com a necessidade de criar um banco nacional na capital para animar o comércio, promover os interesses reais e públicos. Os propósitos eram basicamente: estimular o giro de espécies cunhadas, reunir em ordem capitais ociosos e isolados e, com isto, possivelmente financiar despesas públicas.

O inicio da actividade do Banco do Brasil extinguiu, no Rio de Janeiro, o chamado Cofre do Depósito. A partir de então, qualquer depósito, seja ele judicial ou extrajudicial, de jóias, de prata, de ouro ou de dinheiro, passou a ser feito na nova instituição. Em via oposta, os empréstimos a juro também passaram a realizar-se unicamente através do banco.

Foi ainda outorgado um privilégio legal ao Banco do Brasil. Consistia este na obrigação dos “Bilhetes do dito Banco Público pagáveis ao portador, ou mostrador à vista” serem recebidos como dinheiro em todos os pagamentos efectuados à fazenda real. Esta prerrogativa conduzia a um curso forçado.

A providência foi inspirada na legislação pombalina. Visto que, com esta medida legislativa, os bilhetes do Banco do Brasil começaram a ser meios de pagamento, embora constituíssem na verdade dívidas à fazenda. No âmbito da legislação pombalina, o Alvará de 21 de Junho de 1766 advertira que as acções das grandes Companhias pombalinas representavam as quantias líquidas dos respectivos valores, permitindo que as acções cumprissem funções da moeda, uma vez que circulavam como dinheiro líquido. O ponto importante aqui é que o poder liberatório que este Alvará reconheceu aos títulos afastava uma eventual recusa na aceitação deles como forma de pagamento.

A lei de instituição do Banco do Brasil foi acompanhada dos respectivos estatutos, assinados por D. Fernando José de Portugal, Secretário de Estado dos Negócios do Brasil.

12. Traços Societários inscritos no Alvará de 12 de Outubro de 1808

Confrontado com o modelo societário proeminente no século XVIII em Portugal, o figurino jurídico do Banco do Brasil leva vantagens.

Desde logo, tinha uma definição clara do princípio da responsabilidade limitada. Na prática, os accionistas não respondiam por nada acrescido ao valor de entrada.

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O capital social do Banco compunha-se de mil e duzentas acções (de um conto de réis cada), salvaguardando-se a possibilidade de futuros aumentos de capital.

Por ditame estatutário, constituía-se no Banco do Brasil um fundo de reserva que acumularia a sexta parte do que tocasse a cada acção, extinguindo assim a velha técnica do “principal acrescentado” que funcionava como fundo de reserva.

12.1. Administração da SociedadeO ponto de maior relevância é o da administração da sociedade.O antigo modelo de governo das grandes sociedades

portuguesas por acções concentrava o poder na chamada “Junta”. Tratava-se do único órgão social existente. A Junta dirigia e controlava a sociedade numa proposital confusão de atribuições, emitindo suas ordens em tom de indiferença à vontade dos accionistas.

Já os estatutos do Banco do Brasil previam uma assembleia geral, formada por quarenta dos seus maiores capitalistas, uma junta de dez e uma directoria constituída por quatro dos mais hábeis entre todos. Apesar de o Banco admitir sócios portugueses e estrangeiros, só podia integrar a assembléia geral associados portugueses. Era uma forma de manter um favorecimento à pátria.

Ao contrário do recorte administrativo setecentista em Portugal, onde estava afirmado o princípio de voto único, o Banco do Brasil acatou a tese da proporcionalidade, para o direito a voto dos seus sócios. Porém, a adopção desta medida veio acompanhada de um travão. Funcionava da seguinte maneira: para que um sócio tivesse direito de voto deliberativo precisava possuir no mínimo cinco acções. A cada conjunto de cinco acções que um sócio tivesse, ele teria direito a um voto na assembleia geral. Mas com um limite intransponível: nenhum dos sócios, fosse por qualquer motivo, poderia reunir mais do que quatro votos.

De modo que, ao contrário do passado societário português, os sócios teriam menos possibilidades de influir nos destinos da sociedade. Mesmo assim, os maiores benefícios aos sócios, com base no que estava definido nos estatutos do Banco do Brasil, com certeza seriam cabíveis apenas às mãos dos ricos titulares das grandes participações accionárias que seriam, por conseguinte, os senhores da maioria dos sufrágios.

13. Instauração da Ordem da Torre e Espada em Feição Brasileira

Punições e premiações constituíam atributos esplêndidos da monarquia. Num período em que os portugueses passavam por inquietações, o príncipe regente, no intuito de engrandecer a estimação pública de alguns, cedia condecorações.

Para isso, instaurou e renovou a Ordem da Torre e Espada, através da Carta Lei de 29 de Abril 1808. Cabe referir que as diversas Ordens de Cavalaria existentes em Portugal não se ajustavam a uma nova atmosfera honorífica que se pretendia implementar.

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As antigas Ordens Militares a que se haviam coligado instituições e cerimónias religiosas não encaixavam, designadamente, aos estrangeiros de credos diversos a quem o príncipe considerava merecedores de distinção. D. João na verdade visava premiar os notáveis serviços de alguns estrangeiros de nacionalidade inglesa que o acompanharam com zelo na sua viagem para o Brasil. Era uma forma também de celebrar o extraordinário acontecimento de ter aportado felizmente a uma preciosa parcela do seu Império.

Na altura, a única Ordem puramente política de instituição portuguesa era a Ordem da Espada, e era uma instituição desta natureza que o príncipe precisava para cumprir seus objectivos no âmbito das prestações de honras. Esta instituição então recebeu a nova designação de Ordem da Torre e Espada.

A concessão da Torre e da Espada destinava-lhe àqueles que se tivessem destacado por acções de alta valia, quer na carreira militar, quer em cargos políticos, quer ainda na vida civil. Evidentemente que ficava reservada ao arbítrio régio o juízo acerca do teor dos serviços que mereceriam tamanha recompensa.

Estas recompensas proferidas pelo príncipe regente não assumiam um caris apenas prestigiante. Podiam englobar atribuições de uma tença ou a doação de uma certa porção de terras legalmente fixada. Não tratava-se de uma situação inédita, dentro do Antigo Regime, onde conquistar insígnias das Ordens Militares representava uma vistosa condecoração social, acompanhada muitas vezes de um significado relevante no plano econômico e jurídico.

A Ordem da Torre e da Espada foi desenhada para o contexto específico do Brasil. Nas simples condecorações não se esgotavam as pretensões do regente, na verdade ia para além do plano das retribuições individuais. Ao príncipe interessava, acima de tudo, conquistar popularidade nas terras brasileiras. Os brasileiros ainda não estavam acostumados a tais distinções, mas era uma questão de tempo até que eles voltassem as atenções em torno do monarca reconhecido.

14. PolíciaNo Brasil joanino cresce o âmbito da polícia aos moldes da

administração interna do despotismo iluminado e do seu intenso programa. Essa administração compreendia a polícia, não à luz de uma visão contemporânea onde a polícia é entendida como uma das actividades do Estado desenvolvidas ao abrigo da função legislativa, mas em uma concepção que a identificava globalmente com uma polícia interna do príncipe.

O soberano esclarecido absolutizava-se na condição única de funcionário superlativo. A polícia persistia em tocar aquilo que dizia respeito à elevação do nível de vida material e espiritual dos vassalos.

A noção de polícia que no tempo imperava resplandecia na política legislativa joanina no Brasil. D. João, pioneiro tratadista nesta matéria, desenhava o sentido de polícia que visava o bem comum e a

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felicidade do homem. E a realização integral da felicidade do homem dependia do acesso deste às três espécies de bens: os bens da alma, os bens do corpo e os bens da fortuna.

15. Os Bens Necessários para a Realização da Felicidade do Homem

Delamare em Traité de la Police, define os bens da seguinte forma: os bens da alma abordavam à religião e os costumes, a privação atrairia as trevas ao espírito do homem. Os bens do corpo encaravam as leis respeitantes à saúde, aos víveres, ao alojamento, à comodidade das artérias públicas e à segurança da vida. A falta dos bens do corpo levaria o homem ao sofrimento. Finalmente, os bens da fortuna tocavam assuntos relacionados ao comércio, as manufacturas, e as artes mecânicas, que seriam os meios de levar o homem aos bens de fortuna, e acender a eles faria o homem suprir a inquietude que suas carências causavam.

16. Modo de Pensar o DireitoEste tópico visa analisar o modo de pensar do direito no Brasil

durante este período ao qual estamos a tratar, tendo como base os textos normativos regimentais das Relações brasileiras, por serem essenciais ao esboço que se pretende traçar. Abre-se aqui um contraste entre o Regimento da Relação do Rio de Janeiro (aprovado pelo Alvará de 13 de Outubro de 1751) e o Regimento da Relação de São Luís do Maranhão (Alvará de 13 de Maio de 1812).

16.1. Relação de São Sebastião do Rio de JaneiroNo Regimento da Relação do Rio de Janeiro encontra-se a forte

presença de um romantismo bartolista tardio, ou seja, um eco das Escolas jurídicas medievais ressaltava-se. Explica-se isto pelo facto de, durante os primeiros anos do consulado pombalino, a vassalagem do império do bartolismo continuar a reluzir positivamente, ignorando as rudes críticas que lhe eram dirigidas.

Em conformidade com o que acaba de ser referido, já no ano de 1751 e o Regimento da Relação do Rio de Janeiro impôs que para o expediente do despacho judicial, devia haver na Relação as Ordenações do Reino, com os seus Repertórios e também um jogo de Textos de Lei, com Glosas de Acúrsio e outro de Cânones, como também um jogo de Bartolos de última edição.

16.2. Relação de São Luís do MaranhãoCom a evolução das correntes jurídicas européias, excluíram-se

do quadro jurídico disciplinador dos tribunais brasileiros os resquícios do romantismo bartolista.

No Regimento da Relação de São Luís do Maranhão, sentia-se um começo de mudança. Lá, das fontes cognoscendi que deviam existir no tribunal para o expediente do despacho desapareceram os livros de direito canônico, as glosas de Acúrsio e as obras de Bartolo. Na nova Relação, haveria as Ordenações do Reino com os seus

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Repertórios, a Colecção das Leis extravagantes, e dos Assentos da Casa de Suplicação, e o Corpo de Direito Romano.

A retirada dos livros de cânones não se pode dissociar da ordem de despejo que recebeu o direito canónico, como fonte de direito subsidiário (por força da Lei de Boa Razão de 1769). Recolhera, em definitivo, aos tribunais eclesiásticos o direito canónico. O banimento da Glosa Magna de Acúrsio e das opiniões de Bártolo resultara das violentas objurgatórias que o reformismo pombalino lhes dirigiu. E as críticas mais devastadoras eram duas: a ignorância crassa em matéria histórico-jurídica e o bárbaro desconhecimento da pauta jusracionalista.

Acúrsio era qualificado como um diligente jurista, mas ignorante em áreas fundamentais, designadamente, no que toca a latinidade, ao grego, à história e à filosofia. De modo que, não dominava os subsídios indispensáveis para a interpretação genuína das leis.

Igualmente ignorante teria sido Bártolo. Porém, como foi mais atrevido, a ponto de lançar-se na elaboração de amplos comentários, arrojou a jurisprudência nos maiores precipícios. Infiltrando de todo modo a sua opinião, tornou a jurisprudência incerta, controvertida, totalmente dependente do juízo opinativo dos doutores.

O espectro das fontes jurídicas mencionado no Regimento brasileiro de 1812 não deixava de ser um voto na revitalização da força imperante do direito pátrio. A alusão à presença de uma colectânea de assentos da Casa de Suplicação revelava, por outro lado, a predilecção do iluminismo jurídico pela interpretação autêntica da lei em relevância ao valor da segurança jurídica.

17. Modificações no Direito Privado no BrasilAs reformas legislativas no período joanino significaram para o

Direito Privado do Brasil apenas algumas modificações pontuais. Na realidade o que aconteceu foi, nos primeiros anos de 1800, o legislador inscreveu pequenas alterações no direito de propriedade, as servidões, as tutelas dos órfãos e ausentes, as vendas a prazo e o contato de câmbio marítimo.

Modificações que não desfiguraram de modo algum a face do ius privatum brasileiro.

18. Notas ConclusivasEm primeiro lugar, e notável que o teor da legislação joanina no

Brasil é em elevadíssima proporção publicista, acompanhando o próprio direito português.

Há também um forte apelo a continuidade da legislação pombalina, com a reprodução das instituições da metrópole no Brasil. O mesmo não acontece no que toca à matéria de legislação económica, onde se instalava pouco a pouco um pendor liberal.

Por último, verifica-se nas legislações joaninas um carácter nacionalista que, traiçoeiramente, acaba por impulsionar que o direito brasileiro se desvincule dos interesses portugueses.

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ConclusãoJá era do meu conhecimento que a estabilização da Corte Real

portuguesa no Brasil desempenhou um papel fundamental para o desenvolvimento do país. Desenvolvimento este que se deu em várias vertentes: política, administrativa, social, económica, cultural e histórica, dentre outras. No entanto ainda não tinha uma noção pormenorizada da importância que isto significou para o Direito brasileiro e a forma magnífica que a face jurídica dessa questão revela as influências causadas nas outras áreas.

Acredito que o Brasil já teria uma grande influência do Direito Português simplesmente por ser uma colónia, mas de facto o que fica constatado na análise deste tema é que a fixação da metrópole no Brasil tornou essa influência extremamente mais consistente e, desse modo, foi um ponto decisivo para a formação do Direito no Brasil.

Com o trabalho pude notar ainda que a influência legislativa é tão forte quanto a influência política. Um facto que prova isto é a dita independência do Brasil em 1822, poucos anos após a chegada da Corte Real ao Rio de Janeiro, a qual suponho que não teria ocorrido tão cedo sem que antes houvesse anos antes a transferência da Corte.

Como brasileira este trabalho acaba por ter um significado especial, agravado pelo facto da bibliografia utilizada, de autoria do Professor Doutor Rui Marcos, tratar o tema com uma dialéctica apaixonante.

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Indicação BibliográficaMARCOS, Rui Manuel de Figueiredo, Rostos Legislativos de D.

João VI no Brasil, Almedina, Coimbra, 2008.