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Estudos Feministas, Florianópolis, 14(3): 272, setembro-dezembro/2006  765 Refutações ao feminismo: efutações ao feminismo: efutações ao feminismo: efutações ao feminismo: efutações ao feminismo: (des)compassos da cultura letrada (des)compassos da cultura letrada (des)compassos da cultura letrada (des)compassos da cultura letrada (des)compassos da cultura letrada brasileira brasileira brasileira brasileira brasileira R R R R R esumo  esumo  esumo  esumo  esumo : Ao considera r a forç a d o dis c urso a ntifeminista no Brasil, examino c om o ess e d is c urso  ap arec e no âmbito do jornalismo cultural para então tecer algumas relaç ões com a história  soc ial b rasileira à luz da qual épo svel co mp ree nder por que o fem inis mo c omo p xi s  transformado ra p are c e tão fora dos bitos do p s. P roc uro sus tenta r meu argumento a pa rtir  da leit ura d e obras de pensadores da histór ia e d a cult ura b rasi leiras consi de rados de e squerda”  ao mesmo tempo em que po ntuo os li mites de suas aná lises, ou seja, o si lenciamento sobre a  op ress ã o d a s mulher es e qu estõ es de g ê ne ro. A s eg uir, exa mino a pe rsisnc ia d e d iversas formas do a nti feminismo no c am po das Letras a fim de co mp reend er o estatuto da crí tica femini s ta  no cam po do s es tudo s l iterá rios e as razões de sua invi sibilida de, co m c onsidera ç ões sobre  c on quistas e limita ç ões de sua s prá tic a s. P P P P P alavras-chave  alavras-chave  alavras-chave  alavras-chave  ala vras-c have: cultura; pod er; his tóri a; c lass e socia l; l iteratura; crí tica fem inis ta. Copyright    2006 by  Revista Estudos Feministas. Rita Terezinha Schmidt Universidade Federal do Rio Grande do Sul Não é de hoje nem de ontem que o termo “feminismo” sofre uma sistemática depreciação e des legitim ão nos m ais divers os cír culos l etr ados do pa ís . Via de regra, o uso d o term o vem at relado a c ert os s enti dos do feminismo associados ao movimento de mulheres dos anos 60, os quais são destacados e universalizados, em uma operação análoga à da sinédoque (figura que condensa na parte o todo) para sustentar determinada, e por que não dizer deliberada, representação discursiva, cultural e política. Estou me referindo à assimilação de algumas idéias pelo senso comum esclarecido, as quais se cristalizam na representação do feminismo como um movimento extremista de libertação das mulheres (Women’s L ib) s us tent ad o por um a ideologia homofóbica , monolít ica, autoritária, enges sada na his tór ia pass ada e, o que é pior, empenhada na tr ansfor mação da mu lher , destituindo-a de suas características femininas! 1  Essa repres entaç ão, em s uas várias modulaç ões de s entido, est á pres ente não s oment e 1  A título de ilustração, refiro as palavras de Paulo Ghirardelli J r ., que, ao dizer que as pessoas libertárias do século XIX (e XX) pregaram o culto à liberdade individual muito mais que as mulheres liberais, acrescenta: “Mas não pregaram o feminism o. Ao menos não aquele feminismo que tira as ditas características femininas de mulher” (GHIR ARD EL LI J R., 2006, p. 14).

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RRRRRefutações ao feminismo:efutações ao feminismo:efutações ao feminismo:efutações ao feminismo:efutações ao feminismo:(des)compassos da cultura letrada(des)compassos da cultura letrada(des)compassos da cultura letrada(des)compassos da cultura letrada(des)compassos da cultura letrada

brasileirabrasileirabrasileirabrasileirabrasileiraR R R R R esumo esumo esumo esumo esumo : Ao c onsidera r a força d o d isc urso a ntifeminista no Brasil, exam ino c om o esse d isc urso ap arec e no âmb ito do jornal ismo c ultural pa ra e ntão tec er a lguma s relações com a história soc ial b rasileira à luz da qu al épo ssível co mp ree nd er p or q ue o fem inismo c om o p ráxis transforma do ra p are c e tão fora do s hábitos do p aís. Proc uro sustenta r meu a rgum ento a pa rtir da leitura d e ob ras de p ensadores da história e d a c ultura b rasileiras conside rad os “de e sque rda ” ao mesmo temp o em que po ntuo os limites de suas análises, ou seja, o silenciam ento sobre a op ressão d as mu lher es e questões de gêne ro. A seg uir, examino a pe rsistênc ia d e d iversas formas do a ntifeminismo no c am po da s Letras a fim de comp reend er o estatuto da crítica feminista no c am po do s estudo s literários e as razões de sua invisibilida de , co m c onsiderações sob re c onquistas e limita ções de sua s prátic a s.

P P P P P alavras-chave alavras-chave alavras-chave alavras-chave ala vras-c ha ve: c ultura; p od er; história; c lasse socia l; literatura ; crítica fem inista.

Copy r i g h t     2006 b y  RevistaEstudos Feministas.

Rita Terezinha SchmidtUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

Não é de hoje nem de ontem que o termo“feminismo” sofre uma sistemática depreciação edeslegitimação nos mais diversos círculos letrados do país.Via de regra, o uso do termo vem atrelado a certos sentidosdo feminismo associados ao movimento de mulheres dosanos 60, os quais são destacados e universalizados, emuma operação análoga à da sinédoque (figura quecondensa na parte o todo) para sustentar determinada, epor que não dizer deliberada, representação discursiva,

cultural e política. Estou me referindo à assimilação dealgumas idéias pelo senso comum esclarecido, as quaisse cristalizam na representação do feminismo como ummovimento extremista de libertação das mulheres (Women’sLib) sustentado por uma ideologia homofóbica, monolítica,autoritária, engessada na história passada e, o que é pior,empenhada na transformação da mulher, destituindo-a desuas características femininas!1 Essa representação, em suasvárias modulações de sentido, está presente não somente

1 A título de ilustração, refiro as

palavras de Paulo Ghirardelli Jr.,que, ao dizer que as pessoaslibertárias do século XIX (e XX)pregaram o culto à liberdadeindividual muito mais que asmulheres liberais, acrescenta:“Mas não pregaram o feminismo.Ao menos não aquele feminismoque tira as ditas característicasfemininas de mulher”(GHIRARDELLI JR., 2006, p. 14).

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na esfera pública de produção e circulação de bensculturais, mas surpreendentemente também na esferainstitucional de produção de conhecimento – naacademia, mais precisamente –, onde se dissemina emdiscursos reducionistas, de conotação pejorativa epreconceituosa. Vulgarizar o feminismo e associá-lo àsnoções de marginalidade e anacronismo para marcar anatureza de algo que não é bom, sadio e desejável paraa sociedade brasileira tem sido parte da estratégia quasedesesperada de parte de segmentos da elite intelectual,em sua tentativa de desqualificar os avanços semprecedentes das conquistas feministas em escala globalnessas últimas décadas, sobre os quais a crítica Mary

Hawkesworth discorre brilhantemente em seu artigoapresentado nesta seção Debates.

Com o intuito de contribuir para uma reflexão sobrea disseminação do discurso antifeminista no Brasil, pretendoexaminar, primeiramente, como esse discurso aparece emmatérias veiculadas no âmbito do jornalismo cultural dehoje, para então examinar brevemente o contexto dodesenvolvimento histórico de uma sociedade patriarcal eelitizada, à luz do qual é possível compreender por que ofeminismo como práxis transformadora situa-se tão fora doshábitos do país. Para tanto, busco o apoio de leituras sobrea história e a cultura brasileiras no pensamento intelectualque aqui chamamos “de esquerda”, procurando

redimensionar o alcance de suas percepções com ainclusão de questões de gênero. Em seguida, buscoevidenciar como o antifeminismo se expressa no campodas Letras na tentativa de compreender o estatuto da críticafeminista no campo dos estudos literários e as possíveisrazões de sua invisibilidade, com considerações finais sobrea eficácia de suas práticas.

A violência simbólicaA violência simbólicaA violência simbólicaA violência simbólicaA violência simbólica22222 dos discursosdos discursosdos discursosdos discursosdos discursos

A capa da edição especial Mulher  da revista Veja de junho de 2006 apresenta uma imagem caricata, quechoca pelo reducionismo. Nela, uma mulher vestida comum visual que associamos à figura do executivo – terno

preto e complemento, uma maleta também preta,estrategicamente posicionada ao lado – se apresentaamamentando um bebê. A manchete “O que sobrou dofeminismo” interpela os/as leitores/as para uma determinadaleitura da imagem que induz ao seguinte raciocínio: o querestou do feminismo é a conquista da mulher branca declasse média, ao conciliar profissão com os prazeres damaternidade, ponto. Não vou me deter aqui no atoperformativo da manchete – o que as palavras estão

2 Utilizo a expressão no sentidoelaborado por Pierre BOURDIEU,1989. Para Bourdieu, toda açãona esfera humana é interessada,em direção a elementos materiaisou simbólicos. Ambos os inte-resses são formas objetivas deinteresse que mobilizam estra-tégias e colocam em movimentorecursos na relação de acúmuloe troca com outras formas decapital, inclusive o capitaleconômico. Quando recursos sãotransformados em capital, os inte-resses que os motivam funcionamcomo relações sociais de poder.

É a partir desses pressupostos queBourdieu desenvolve seu con-ceito de capital cultural comoformas irredutíveis de poder. Aconcepção de cultura como umcampo simbólico de mediaçõesdas práticas sociais, onde há inte-resses investidos na criação emanutenção de diferençassociais e hierarquias, faz da cultu-ra uma forma de dominação.

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REFUTAÇÕES AO FEMINISMO: (DES)COMPASSOS DA CULTURA LETRADA BRASILEIRA

fazendo ao constituir um ato enunciativo que efetua a açãoa que se refere, e não somente faz uma afirmação sobreum estado de coisas – e nem nas contradições e equívocos,principalmente na matéria de caráter descritivo intitulada“O feminismo na crise dos 40”, com citaçõesdescontextualizadas, inclusive de feministas brasileiras, queprovavelmente não tinham idéia de como suas falas seriameditadas. O que suscita atenção é, de um lado, a utilizaçãorecorrente do termo “pós-feminismo” como se fosse umtermo consensual, dissociado, portanto, do contexto deembates em algumas correntes do feminismo teóricocontemporâneo, particularmente nos Estados Unidos, e que

 já perdura por algum tempo. Basta lembrar aqui os

argumentos levantados por Tânia Modleski com relaçãoàs conotações duvidosas da frase “época pós-feminista”em seu clássico Fem inism without Wome n  de 1991,3 no qualevidencia como essa perspectiva, na academia, carregaem seu bojo implicações profundamente conservadoras.4

Na matéria da Veja  o uso do termo naturaliza um sentidorestritivo e irônico para anunciar o fim do feminismo, emum contexto brasileiro muito particular – comportamentossociais de uma certa faixa da geração jovem de classemédia branca –, fazendo, portanto, t abu la rasa   dasarticulações do pensamento feminista, em sua diversidadede afiliações políticas, teóricas e ideológicas, no campoda sua atuação no país, desde sua presença transfor-

madora em movimentos sociais como sindicatos, ONGs eorganizações de base ao seu impacto crescente naformulação de políticas públicas, sendo o caso maisrecente a Lei Maria da Penha, sancionada pelo Presidenteda República no dia 7 de agosto de 2006 e que representaum avanço dos mais significativos para coibir a violênciadoméstica e familiar contra a mulher que, em nosso país,alcança índices escandalosos. Por outro lado, é desurpreender, mas não tanto, se considerarmos a intensidadeda resistência aos temas feministas no país, o silêncioabsoluto, nas matérias da referida revista, sobre o feminismocomo campo de corte teórico, com seus c o r p i deinvestigação e de produção de saberes em todas as áreasdo conhecimento através da diversidade de pesquisas que

vêm sendo realizadas sob os auspícios de órgãosgovernamentais de fomento e veiculadas em periódicoscientíficos como Revista Estudo s Fem inistas  e Cadernos Pagu , entre tantas outras fontes de referência. Se, por umlado, esse silêncio revela o quanto os avanços do feminismoacadêmico são ignorados nas matérias que circulam pelosveículos de comunicação dirigidos ao público letrado, poroutro, pode ser considerado uma estratégia para evitartrazer ao pensamento a opressão das mulheres e a

3 MODLESKI, 1991.

4  Segundo a crítica LillianRobinson, o termo “pós-feminis-mo” foi criado pelo jornal conser-vador The New York Times   nadécada de 1970. Essa tese édesenvolvida em ROBINSON,1991.

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contribuição epistemológica do feminismo para aredefinição da subjetividade e da socialidade.

Nessa mesma linha poder-se-ia considerar a matériaintitulada “Viva a diferença”, publicada também em junhode 2006, no número especial da Revista Líng ua Portugue sa ,com o tema “Sexo e linguagem”. Ao se recusar até mesmoa nomear o termo “feminista” nas suas referências àsconquistas das mulheres, enunciadas como “avançosfemininos”, o articulista atribui a desenvolvimentos napsicologia e às “conquistas femininas” um “novo dinamismoao discurso sobre a mulher” na medida em que, “longe dedesembocar em patrulhas feministóides”, atentam para ofato de que a reprodução da cultura patriarcal se cristaliza

no idioma. É surpreendente verificar como o articulista nãotoma consciência de que seu próprio discurso é um beloexemplo do que ele próprio afirma, isto é, a existência deuma confluência entre linguagem patriarcal e poder. Amatéria é permeada pela desinformação, resultando emum texto em que as idéias são ou equivocadas ou malformuladas, razão pela qual o texto se presta a ser lidocomo uma paródia do feminismo, o que significa dizer queseus efeitos negativos ultrapassam em muito o meroemprego irônico do termo “feministóides”.5

 Também nesse ano de 2006 recebi de uma aluna,via e-mail, um texto de autoria do renomado crítico WilsonMartins, veiculado no Jornal O Glob o  on line , de 11 de

agosto de 2005. Trata-se da matéria intitulada “O universofeminino de Nísia Floresta”, na qual o intelectual faz umacrítica à apropriação que Nísia Floresta fez do texto de MaryWollstonecraft, a escritora inglesa que, inspirada nasdiscussões na França pós-revolucionária sobre os direitoscivis do cidadão, publicou “A Vindication of the Rights of Woman” na Inglaterra em 1792. A partir desse texto, NísiaFloresta escreveu o seu “Direitos das mulheres e injustiçasdos homens”, publicado no Recife em 1832. Usando odiscurso erudito, que se apóia em convenções ritualizadase, por isso mesmo, validadas pela cultura literária (o queevoca as colocações de Michel Foucault sobre o papeldo ritual na qualificação do sujeito que fala bem comosobre a função das sociedades do discurso no controle

dos discursos autorizados),6 Martins descreve o uso do termo“mulher” no singular, no caso de Wollstonecraft, e “mulheres”no plural, no caso de Floresta, afirmando uma oposiçãoideológica entre ambas – a intenção puramente jurídico-legal da primeira, e a conotação social mais ampla e maisvaga da intenção da segunda – para então fixar a distorçãoda visão de Floresta, sobre a qual, afirma Martins, “se funda,diga-se de passagem, todo o feminismo contemporâneo”.

6 De acordo com FOUCAULT, 1999.

5 A visão do articulista deixa clarosseus referenciais em termos devalores: “De observar a posiçãoreceptiva no coito e a sensaçãode espera que a mulher vive

(espera do filho, da menstruação,dos ciclos vitais), a culturalocidental deduziu uma passivi-dade inata ao feminino. Hoje,está claro que a mulher deveaceitar ativamente ser receptiva,do contrário as relações tendema não ser satisfatórias paraninguém” (p. 22).

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REFUTAÇÕES AO FEMINISMO: (DES)COMPASSOS DA CULTURA LETRADA BRASILEIRA

A citação a seguir é longa, mas imprescindível paraentender a estratégia discursiva de Martins:

Não se trata de chinesices lingüísticas e a prova estáem que, dois anos antes de sua própria vindication,Mary Wollstonecraft publicara uma outra – a dos “rightsof men”, no plural, por onde entramos nas sutilezassemânticas que o vocabulário feminista claramenteignora (nos dois sentidos da palavra). [...] A palavra“men”, no plural, observei na História da inte ligênc ia bra sileira II ,7 foi empregada no sentido comum dogênero humano, o mesmo em que, no singular, éentendida nas línguas neolatinas, sem qualquerconotação machista. Em latim, de onde veio tudo isso,

homo designa o gênero humano, por oposição aosanimais, e vir é a designação do homem, por oposiçãoà mulher. Como as feministas, em outra incorreçãocaracterística, passaram a designar como “gênero” acondição da mulher, essas noções desapareceram,sem falar no imperialismo implícito que parece atribuirapenas às mulheres a condição do gênero humano.

A leitura rasa do pensamento de Wollstonecraft, semas devidas contextualizações no debate intelectual de suaépoca8 e o desconhecimento de Martins do conceito degênero, sem falar sobre sua crítica mordaz à biógrafa deNísia Floresta, Constância Duarte, exigiriam um trabalho comobjetivo outro que não o do presente texto. O que éimportante assinalar é que o texto de Martins constitui um

ato de fala cuja estrutura retórica é reveladora de como aargumentação, com vistas à persuasão, opera pelo recursoda citação, a qual acumula a força da autoridade

 justamente pela repetição para ratificar o poder doenunciado e reafirmar a posição do falante como agentede um discurso performativo, definido como práticasignificante em que a palavra não somente diz sobre algo,mas também constrói esse algo através de uma violentainterpelação. Na construção do sentido em que as palavrasrealizam o ato que elas denotam (o sujeito implícito “euafirmo” está elidido mas pressuposto no enunciado queafirma: “o feminismo contemporâneo é uma distorção quecomeçou de um equívoco semântico”), o crítico interpela

os/as leitores/as nos termos de uma inteligibilidade culturalalicerçada no efeito fixo e regulador de uma posição desujeito, declinada como pertença patriarcal, lugar a partirdo qual são forjadas identificações de parte de umacomunidade lingüístico-cultural. Portanto, compreender odiscurso de Wilson Martins implica qualificá-lo comosofisticada manobra de dominação em que se inscreveuma subjetividade com marcas que a vinculam aosinteresses de um conjunto de sujeitos politicamente situados,

7 MARTINS, 1979.

8 Nesse sentido, ver as análiseslúcidas e iluminadoras apresen-tadas em Timothy REISS, 1989, eFrances FERGUSON, 1989.

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RITA TEREZINHA SCHMIDT

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localizados em um mesmo campo cultural e alinhados auma mesma tradição. A lógica do texto de Martins é amesma dos outros textos mencionados aqui: refutar ofeminismo. Como se pode observar, o rechaço assumevariadas formas, quer pela via da retórica do declínio e daforma caricata, quer pela via do fraseado erudito, umaarmadilha para leitores/as não versados/as nas sutilezas deum discurso que não tem outro propósito a não ser descartartudo o que estiver relacionado ao feminismo e aos direitosdas mulheres. Poder-se-ia dizer que as matérias referidasacima se sustentam sob as mesmas bases ideológicas namedida em que produzem efeitos discursivos derivados deuma mesma matriz hegemônica que é a misoginia, cujo

intento sempre foi o de normatizar, regular e controlar oespaço, os papéis e as intervenções das mulheres na vidasocial. A pergunta que obrigatoriamente se coloca é “Quaisseriam as condições que possibilitam a regularidade dessesdiscursos, de forma que ganham aval para circularemcomo verdade em nosso meio e produzirem efeitossocialmente tão perniciosos”.

PPPPPoder e cultura: na casa patriarcaloder e cultura: na casa patriarcaloder e cultura: na casa patriarcaloder e cultura: na casa patriarcaloder e cultura: na casa patriarcal

No ensaio “Politicamente correto: o processocivilizador segue seu curso”,9 Luiz E. Soares examina como,no cenário nacional, se disseminou entre as elites umconsenso de repulsa a idéias oriundas da cultura norte-

americana e delimitadas pela expressão “politicamentecorreto”, com base em sentidos cuja interpretação, pelopúblico brasileiro letrado, se desdobra em trêspossibilidades: 1) expressão de um fanatismo histérico norte-americano, que cerceia e controla o humor e aespontaneidade; 2) manifestação de uma intolerância debase puritana, com forte tendência racionalista e autoritáriae que visa a constituir uma sociedade artificialmenteuniforme; 3) posição perigosa e equivocada que sealimenta da pretensão de definir o que sãocomportamentos socialmente aceitos, o que levaria àanulação do dissenso e das diferenças. Segundo Soares,embora essas interpretações possam ser explicadas à luz

de argumentos com alguma validade, pois certamente háexcessos e radicalizações que deram ensejo a essesreducionismos interpretativos, todas pecam por nãopropiciar uma compreensão mais rica e complexa defenômenos associados à própria dinâmica cultural de umasociedade que, em suas crises, abriu espaços para debatese, em seus recuos e avanços, tem feito esforços no sentidode redefinir seus parâmetros ético-políticos, com vistas àconstrução de uma sociabilidade democrática. O que eu

9 SOARES, 1998. Soares é, além deorganizador, co-autor de Vio lên- c ia e po lítica no Rio de Janeiro 

(SOARES, 1996).

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REFUTAÇÕES AO FEMINISMO: (DES)COMPASSOS DA CULTURA LETRADA BRASILEIRA

gostaria de assinalar é a importância de seu comentáriosobre o fato de ter deixado de fora de seu sucinto inventáriodas interpretações brasileiras correntes do “politicamentecorreto” as reações mais extremadas, aquelas “quedesqualificam, com desprezo arrogante, por princípio e in limine , tudo o que estiver associado aos temas dos direitosde minorias ou às questões feministas”.10 Muito embora aproposta de Soares seja a de desenvolver umacompreensão alternativa dos significados da referidaexpressão através da descrição do campo de fenômenospolíticos, particularmente em termos de manifestaçõessociais e de reações que estas suscitam nacontemporaneidade, o que foge ao âmbito de minhas

atenções neste texto, sua leitura do reducionismointerpretativo do “politicamente correto” como expedientede exorcismo simbólico é extremamente relevante para seentender os mecanismos através dos quais a nossa cultura,patriarcal e conservadora, estigmatiza a cultura do “outro”para naturalizar e afirmar a nossa diferença cultural,positivamente superior, inscrita nas formulações mitológicasda nossa suposta e inata espontaneidade, criatividade econvivência pacífica com as diferenças, a despeito de umaexperiência nacional cuja história é uma história deviolências e autoritarismos, repressões e exclusões jamaisseriamente questionadas ou perturbadas por grande parteda sociedade. Na imagem caricata do “politicamente

correto” disseminada pelo país afora não há espaço, aocontrário do que acontece nos Estados Unidos, paradiscussões sobre o que nele há de sério e relevante parase avançar sobre as questões cívicas de c idadania e sobrepolíticas públicas de acesso e de inclusão de larga faixade segmentos marginalizados e alijados da sociedade debens, materiais e simbólicos, cujo fato, por si só, escancaraos limites do conceito de democracia, enunciado àexaustão nos discursos políticos e institucionais de ontem ede hoje.11

 É muito revelador que uma figura controvertida esem projeção maior na academia norte-americana comoCamille Paglia12 tenha merecido tanto destaque na mídiabrasileira nos anos 90, particularmente no jornal Folha de São Paulo ,,,,, cujos cadernos semanais como Folha Ilustrad a e Caderno Ma is  são considerados de referência nacionalpara a classe letrada do país. Sem maior prestígio nocenário intelectual norte-americano e quase desconhecidade seus pares no campo acadêmico do feminismoteórico,13 Camille Paglia granjeou uma fama repentina noBrasil, sendo elevada à condição de ícone pop star  comoa feminista ‘modernosa’, a antifeminista e a pós-feminista.Entre os anos de 1994 e 2000, seu nome foi citado 105

11  Muitos dos argumentoslevantados contra a política decotas para o acesso à universi-dade pública, em debatesenvolvendo vários setores dasociedade civil, ilustram, sintoma-ticamente, as dificuldades, doponto de vista psicológico,sociológico e político, emtrabalhar e aprofundar questõesdemocráticas. Essas dificuldadesrevelam uma indisposição pararepensar, do ponto de vistahistórico e social, a estrutura e as

relações de dominação quedefinem o modo de funciona-mento e organização da socie-dade brasileira, e mais, umacerta fixação com a preservaçãode uma auto-imagem tradicionale conservadora da brasilidade,que se alimenta da ideologiadominante e que nada tem dedemocrática, tolerante, generosae includente.12  Autora de Persona s sexuais (PAGLIA, 1992).13  Uma forma de verificar oranking intelectual de umprofissional da academia éatravés do número de citações

de seu nome em produçõesrelacionadas a sua área deatuação. Com mais de vinte anosde experiência como leitora daprodução feminista na academianorte-americana, jamais encon-trei o nome de Camille Pagliacitado em livros ou artigos deperiódicos científicos ou algumlivro seu listado em referênciasbibliográficas.

10 SOARES, 1998, p. 221.

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vezes em matérias diversas, como resenhas, editoriais,entrevistas, todas colocando o nome de Paglia comoreferência para questões relacionadas com o feminismo.A sua autoproclamação como a mais importante feministadesde Simone de Beauvoir, e a propagação de suasdeclarações bombásticas como a de reformar o feminismono segundo milênio, pois, em suas palavras, “não podemais ser essa pregação de ódio aos homens”,14 foi muitoconveniente para os segmentos conservadores da mídiae da elite, que se deleitaram com suas críticas ao“politicamente correto”, seus ataques ao feminismoacadêmico, o que acabou obtendo um reforço importantepara a manutenção das práticas vouyeristas locais com

relação às mulheres, bem como para a legitimação davisão de que os homens constituem a nova ‘minoria’oprimida. Importar Camille Paglia para ridicularizar ofeminismo teve efeitos duradouros na memória brasileira,tanto que ainda hoje é considerada uma das mulheres quederam importante contribuição ao feminismo no Brasil eno mundo, uma “intelectual influente nos Estados Unidospor sua atitude libertária” e pela autoria de livrosconsiderados “referências na literatura feminista”.15 Poder-se-ia considerar com certa complacência esse prestígioforjado pela mídia brasileira, se ele não se constituísse emmais uma impostura intelectual que, lastimavelmente,contribui para minar a compreensão do público brasileiro

sobre os sentidos do feminismo.Voltando ao repúdio brasileiro ao feminismo, comose este fosse uma causa ilegítima, não se pode deixar deconsiderar a sua associação à cultura estrangeira: aexplicação é que se trata de um corpo estranho‘importado’, como muitas vezes ouvi falar, até mesmo nosbastidores acadêmicos, na linha de argumento de umnacionalismo rançoso que, em defesa da singularidadenacional, decreta a estrangeirice das idéias feministascomo se elas não tivessem nada a ver com a nossarealidade e com um campo de problemas reais na vidanacional. Para Soares, o grau de repúdio impressiona:

A discriminação social por gênero não é uma surpresa,nem uma originalidade brasileira. Surpreendente eoriginal é a intensidade da resistência, no Brasil, aofeminismo e a seus temas. Apesar da existência demilitantes, líderes, intelectuais e deputadas feministas,apesar dos avanços conquistados nas legislações,apesar de características fortemente progressistas denossa Constituição (assinada em 1988), a resistênciaao feminismo e a seus temas ainda é imensa. Mesmonos meios intelectuais, mesmo na esquerda, mesmoentre mulheres. Feminismo é freqüentemente objeto de

14 Folha de São Pau lo , 11 jul. 1994.Caderno Especial, p. A-3.

15 Conforme nota da reportagem“Elas abriram caminhos”, daseção “Mulher”, por DianaMedeiros e Rosilene Pereira, naRevista Filosof ia   (MEDEIROS ePEREIRA, 2006, p. 69).

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  Estudos Feministas, Florianópolis, 14(3): 765-799, setembro-dezembro/2006 773

REFUTAÇÕES AO FEMINISMO: (DES)COMPASSOS DA CULTURA LETRADA BRASILEIRA

pilhéria e seus temas são muitas vezes tratados de forma jocosa.16

A complexidade dos fatores que se conjugam naarticulação desse fenômeno que é o antifeminismobrasileiro impõe, obviamente, que sua apreensão se dêpara além do limite das associações que se possam fazercom a repulsa ao “politicamente correto”, ou com orechaço às idéias “fora do lugar”, expressão inventada porRoberto Schwarz17 para explicar o nosso torcicolo cultural,isto é, a dependência de idéias forjadas nos centrosmetropolitanos de poder e o seu transplante acrítico parao contexto de uma realidade brasileira em descompassocom a realidade onde tais idéias são produzidas, ensejandoentre nós uma vida cultural artificial, mascarada e alienadadas condições materiais de vida. Fazendo um jogo com aexpressão de Schwarz e invertendo seu sentido, afirmo queo antifeminismo, entre nós, enraizou-se no âmbito da culturaletrada como uma idéia muito própria do lugar, na medidaem que foi se consolidando no curso do próprio desenhodo desenvolvimento econômico e da organização socialbrasileira, como decorrência das relações materiais deprodução e da consolidação de um pensamento patriarcale senhorial que ancorou um sistema social de relações depoder em que formas de misoginia e de racismo foraminstrumentais na materialização dos interesses de classeda elite dominante. É no horizonte dessa lógica histórica

em que se imbricam interesses de classe com interessesde gênero e de raça que se pode compreender a forçainstitucional do conceito de família patriarcal, uma formade organização de poder, estruturada hierarquicamente,inicialmente afeita a um segmento específico e privilegiadoda população e que veio a se tornar modelo para asrelações tanto na esfera privada quanto na pública.18 Nocentro desse modelo, descrito por Roberto Reis como trêscírculos concêntricos, está “o senhor de terras (prevalênciade uma ordem senhorial), que acumula papéis de pai(prevalência de uma ordem patriarcal) e de homem(prevalência de uma ordem masculina”.19

Estruturada no âmbito das elites dominantes, pode-se dizer que essa configuração apontada por Reisdecalcou, no contexto histórico específico dos modos deprodução e de organização da sociedade brasileira, opoder absoluto do senhor, homem livre, dono de escravos,chefe da família, coronel e chefe político cujas açõesdecisórias se articulavam através de um sistema declientelismo, de preferências pessoais e de troca de favores,uma rede de manipulações que reforçou a sua posiçãohegemônica, controlou a mobilidade social através de

18  Ver, nesse sentido, SérgioBuarque de HOLANDA, 1995;Dante Moreira LEITE, 1992; EmiliaViotti da COSTA, 2000.

17 Ver SCHWARZ, 2000.

16 SOARES, 1998, p. 219.

19 REIS, 1989, p. 566.

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relações de dependência e subserviência – de mulheres,classes subalternas e minorias étnicas – e assegurou umaestabilidade política calcada em uma concepçãohierárquica e autoritária, dissimulada, sob a formaconveniente, sob a forma de uma retórica benigna e liberal.Daí a razão de Sérgio Buarque de Holanda ter definido, nonúcleo de sua análise da formação da sociedade brasileiraapresentada em seu Raíze s do Bra sil , o homem brasileirocomo o homem cordial, um ser social produto desseprocesso histórico, enfatizando, contudo, não sem uma finaironia, que o sentido da cordialidade, predicada em umsentimento avesso à c ivilidade, à rejeição de formalidadese convenções por influência de padrões de convívio rural

e patriarcal, não comporta, “apenas e obrigatoriamente,sentimentos positivos e de concórdia”.20  O querecentemente tem sido colocado em discussão na tese,hoje clássica, da cordialidade como um elemento definidorda brasilidade é o limite de sua aplicabilidade, isto é, oconceito só se refere às relações entre iguais, portanto, dizrespeito aos comportamentos entre segmentos da classedominante21 cujos valores, permeados pelo personalismoe patriarcalismo, ganham uma fachada de civilidadeatravés da adoção de um liberalismo conveniente paracada situação: progressista, nos embates ideológicoscontra a dominação colonial até meados do século XIX, ede feitio conservador, depurado de seus aspectos mais

radicais e moldado pelo sistema de clientelismo, paramanter intacta a estrutura hegemônica de privilégio degênero, raça e classe que sustentava a estrutura socialbrasileira e o seu funcionamento. Na segunda metade doséculo XIX, esse tipo de liberalismo teria sido a mola mestrada ideologia de base conservadora, autoritária eantidemocrática associada à perpetuação das elites nopoder e ao estabelec imento de uma verdadeira oligarquiano Segundo Reinado.22 Com o início do processo deurbanização e modernização, desencadeado pelaAbolição da Escravatura em 1888 e pela Proclamação daRepública em 1889, a prevalência da ordem senhorial sedeteriorou, mas a base da estrutura econômico-socialgerada pela exploração colonial se manteve através da

nova ordem de dominação representada pelas classesdominantes locais. Isso quer dizer que a ideologia patriarcalganhou reforço e se disseminou em todas as esferas davida social, com a manutenção da relevância e dacentralidade da família, declinada pela experiência daelite dominante e incorporada pela classe burguesa,protagonista das transformações políticas e sociaisdesencadeadas pela república. Como observa RobertoReis, a importância da família “se arraigou no inconsciente

22 COSTA, 2000, p. XXI- XXIV.

21 LEITE, 1992, p. 293.

20 HOLANDA, 1995, p. 205.

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social, legando marcas como o paternalismo e o filhotismoprotecionista, que ainda hoje têm trânsito em larga escalae deterioram as relações políticas no país”.23 Em outraspalavras, as inovações do progresso burguês e as idéiasmodernas de civilização pressupostas na construção doEstado-nação como liberdade, cidadania e direitos civispassaram a coexistir, em um complexo de relações própriasao cenário brasileiro, com formas antigas de mandonismo,exploração de trabalho, latifúndio, gerando desigualdadessociais imensas, opressões e exclusões que persistem,lastimavelmente, como signos dos preconceitos quepermeiam toda a sociedade.

É na perspectiva das redes de dominação presentes

na história social brasileira e da persistente atualização datradição de um pensamento patriarcal e conservador emdescompasso com as articulações do pensamento críticocontemporâneo sobre hegemonias e suas violênciasepistêmicas que se pode avaliar a função do discursocultural e de suas representações simbólicas nadomesticação e controle das tensões no campo dasrelações sociais, não só com relação à questão da mulher,mas também com relação ao negro e ao índio. Dentreesses discursos, destaco a idealização e a glorificação damulher branca, como imagem prospectiva da mãe, umfeminino puro e não contaminado pela sexualidade e queteve sua contrapartida, ao longo da história, na imagem

da mulher índia, considerada coletivamente como um‘animal de caça’ durante os séculos de colonização, e namulher negra, concubina das senzalas e precursora damulata, imagem erotizada e objeto do desejo carnal queainda hoje é projetado pelo imaginário masculino comouma propriedade nacional e um bem de exportação. Agênese dessas imagens está na mentalidade escravocratae suas formas de subordinação da mulher cujos resíduossobrevivem no patriarcalismo ideológico burguês que,pode-se dizer, constitui um problema estrutural, de difícilsolução, na sociedade e na cultura brasileiras. Muitoembora o mito da caracterização da mulher branca comopassiva e dependente, uma eterna prisioneira daautoridade patriarcal, tenha sido contestado em estudos

recentes, particularmente sobre o século XIX,24 como regrageral a mulher branca de classes média e superior foielevada à condição de símbolo da honra masculina, umvalor doméstico sagrado, enclausurado no espaçosentimentalizado do lar e da família.25 Essa imagem semprefoi um ponto inegociável nos bastidores ideológicos datradição brasileira, mesmo quando seu discurso se viuatropelado pela modernidade, não a das vanguardaseuropéias, mas a trazida pelas demandas das mulheres

23 REIS, 1989, p. 568.

24 Ver, nesse sentido, o capítulo 10,“Patriarchalism and the Myth of the Helpless Woman in theNineteenth Century”, em COSTA,2000;25 Contribuições importantessobre essas questões em MariaLúcia ROCHA-COUTINHO, 1994;Maria Ângelo D’INCAO, 2001; e June HAHNER, 1978.

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por seus direitos civis. Como bem mostra Sylvia Paixão emsua pesquisa sobre as revistas que circulavam no Rio de

 Janeiro da década de 1920, a questão do direito ao votodas mulheres, por exemplo, desencadeou uma verdadeiraguerra cultural com vistas a erradicar o perigo querepresentava para a estabilidade da família e, por extensão,da sociedade, o desejo de emancipação feminina. Doartigo intitulado “Feminismo”, publicado na Revista Para Tod os  (março de 1920), a referida pesquisadora ofereceuma amostra da diatribe:

De que vale permitir-se à mulher o ingresso nos colégioseleitorais e nas agremiações partidárias [...] Ofeminismo, tal como o preconizam aqueles queentendem que à mulher não deve ser vedado oexercício de algumas funções incompatíveis com afragilidade de seu sexo e a inigualável missão que lhedestinou Jesus, desorganiza a família.26

Nesse contexto, não surpreende que tenhamos sidoo último país das Américas a homologar o voto feminino,tardiamente, em 1932. Também a emergência de mulheresescritoras no cenário da literatura brasileira rendeu vitupériosque deixam à mostra o efeito do recalque sofrido com aentrada da mulher em um domínio de prerrogativamasculina. Assim, escrevendo nos anos 30, o crítico OlívioMontenegro ironiza:

Vamos ser positivos: a literatura de ficção, de autoriafeminina, entre nós, tem sido quase sempre de umcalete fraco. Sentimental e pueril. E quando aparececom uns estremecimentos maiores de emoção, nofundo é histerismo. A exaltação não é da imaginação;é do desejo. São autoras mais fiéis ao sexo do que àliteratura. Entretanto não é a literatura o melhorderivativo para o sexo, nem o mais são. Seria amaternidade bem compreendida e bem aproveitada.27

Pode-se afirmar que a oposição à luta das mulherese ao feminismo se alimentou e ganhou força justamenteatravés da retórica da família – da grande e harmoniosafamília miscigenada cristã brasileira, na visão idealizadade Gilberto Freyre, em seu clássico Casa -G rande & 

Senzala 28

 –, uma retórica que, amparada pelo Estado epela Igreja desde o passado, vem jogando para baixo dotapete toda a tragédia decorrente do autoritarismo, daviolência, da luxúria e da bastardia que marca nossahistória. É sintomático que a literatura canônica, aquelaque adquiriu o status representativo de literatura nacionalatravés do aval de historiadores e de críticos literários, seabstenha de contar essas histórias ou, pelo menos, silenciesobre a real dimensão dos infortúnios da brasilidade,

26 Citado em PAIXÃO, 1996, p.131.

27 MONTENEGRO, 1953, p. 273.

28 FREYRE, 1987. Ver também oestudo de Ria Lemaire sobre asmetáforas em Casa-Grande & Senzala  (LEMAIRE, 2000). A autoramostra o quanto metáforasfamiliares naturalizam para o

leitor uma outra realidade: “averdade pouco ‘fraterna’, nadaharmoniosa [...] a de que aconfraternização não se produziaentre irmãos. Ela era sexual, prati-cava-se num pé de desigual-dade radical, sendo a sua basea violência sexual [...] entre ohomem, colonizador branco, e amulher escrava ou índia”(LEMAIRE, 2000, p. 136).

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limitando-se a sinalizar a ‘crise’ da identidade/autoridadedo pa ter fami l ias  no contexto do declínio econômico daoligarquia rural e da conseqüente falência das relaçõesfamiliares, como é o caso do clássico Dom Casmurro  (1899),de Machado de Assis. Nesse mesmo período, isto é, séculoXIX, outras histórias circularam, denunciando a farsa dosvalores tradicionais da família patriarcal e a violência dasrelações de gênero, raça e classe no contexto de umasociedade escravocrata e autoritária. E, pelo seu teor, estãolonge de serem histórias sentimentais e pueris, como é ocaso de romances como Ursula (1859), de Maria Firminados Reis, D.  Narc isa de Villar  (1859), de Ana Luiza AzevedoCastro, Ce leste ( 1893), de Maria Benedita Borman, ou A

fa lênc ia  (1901), de Julia Lopes de Almeida. A razão de osromances terem sido esquecidos pelas histórias literárias ede serem, hoje, considerados como objeto de interesseapenas para uma minoria de feministas comprometidascom a recuperação das vozes das mulheres no campo daprodução literária do passado deve-se ao fato de a culturaletrada se recusar a atribuir-lhes qualquer valor, reservando-lhes o status de “literatura menor”, para não dizer irrelevante,sob a alegação de que são textos que não interferiram nosistema, uma atitude altamente reveladora dacumplicidade da cultura letrada com o modo de pensar –e de fazer – da classe dominante. Como esses textos nemsequer foram reconhecidos em seu tempo e, precisamente

por isso, deixaram de circular, a alegação de que nãotiveram força de intervenção no sistema29 não passa deuma manobra retórica para justificar o ponto de vista sobresua irrelevância e o seu descarte.

Na perspectiva da historicidade que pauta aconstituição, a circulação e a regularidade dos discursoscom vistas a produzir efeitos de normalização e deconsensualidade, não vejo nenhuma distinção qualitativaentre a retórica de exaltação à família que subjaz, de formasubliminar, na refutação ao feminismo na contempo-raneidade brasileira e os discursos que circulam nos fórunsde literatura no país e que fazem a apologia de critériosde valor estético, com vistas à preservação da tradiçãodominante ou da alta cultura. Permito-me explicar. Sabe-

se que a origem histórica da subordinação das mulheresfoi a família patriarcal e que o seu funcionamento, comomodo de produção de gênero (e de heterosexualidade),foi equacionado ao poder na esfera pública de forma quea família patriarcal é definida ainda hoje como osustentáculo da ordem moral e política. Quando falo nafamília como modo de produção penso no controle socialda sexualidade feminina e de como esse controle, emtermos de Brasil, ainda está, sob vários aspectos, vinculado

29 Conforme a definição do críticoe historiador da literatura brasi-leira Antonio Candido, que, aodiscernir entre o que consideramanifestações literárias e litera-tura propriamente dita, produzidano Brasil, considera literaturacomo “um sistema de obrasligadas por denominadorescomuns” (CANDIDO, 1964, p. 25).

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ao poder do Estado e à influência da Igreja, muito emboraa política do Estado neoliberal nos faça crer o contrário.Em se tratando de sexualidade feminina e reprodução, ocontrole da mulher pelo Estado brasileiro é ditatorial, comobem ilustra o incidente ocorrido na cidade de Natal, RioGrande do Norte, em março do 2006, quando um grupode mulheres que fazia colagem de cartazes a favor dadescriminalização do aborto foi abordado por policiaismilitares e preso sob a acusação de apologia ao crime eformação de quadrilha. Que correlações existiriam entre ocontrole da sexualidade feminina e a questão de valorcomo critério para definir o que é literatura? Penso que odescrédito veemente à literatura produzida por mulheres

no passado é uma forma de controlar o campo literário apartir de um conceito de literatura que ratifica o aparatode saber/poder indissociável das elites culturais – diga-se,a comunidade interpretativa de indivíduos que introjetaramo ponto de vista do gênero, da classe e da raça dominante– e que, portanto, está inserido no campo de relaçõessociais de poder. Por outro lado, a proibição do aborto éuma forma de manter o controle sobre o corpo da mulhercom o objetivo de preservar o sentido ideológico dasexualidade reprodutiva e a verdade do ‘papel natural’ damulher no horizonte idealizado de uma idéia de famíliapatriarcal. Se, por um lado, a definição do que é literárionão pode ser desvinculado de suas implicações materiais,

ou seja, do controle de recursos, acesso, circulação edistribuição de certos textos e certos conhecimentos, umcontrole que visa a reproduzir as hierarquias tradicionaisdo campo para preservar a sua identidade (seus centros emargens), a definição do aborto como crime estáimbricada na imposição universal da Lei do Pai em nomeda defesa de uma definição sacralizada de vida que nãoadmite o contraditório e se ampara na retórica da famíliaque, sabemos, é reprodutora de hegemonias e, portanto,se constitui em um capital simbólico eficiente no controledo campo material/social onde se constituem asidentidades. Nesse sentido, tanto a retórica da famíliaquanto os discursos de apologia do cânone são claramenteinvestidos de interesses de segmentos sociais em posições

de privilégio, o que configura uma forma de servir a umaeconomia social e política de manutenção do status quo .Portanto, nada mais avesso a uma prática efetivamentedemocrática do que a disseminação de ambos os discursosreferidos, o do campo jurídico-legal e o do campo literário-cultural.

Na tentativa de tecer uma linha de pensamento quepossa alcançar um entendimento sobre as determinaçõesque condicionam as especificidades históricas do

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antifeminismo no Brasil, é impossível não convocar asanálises da história e da cultura brasileiras produzidas pelaslentes de importantes intelectuais definidos como “deesquerda”, tais com Sérgio Buarque de Holanda,anteriormente referido, e outros como Caio Prado J unior eRaymundo Faoro. Suas interpretações, pelos vieses dahistória, política e sociologia, se descolam da historiografiatradicional marcada por abordagens evolucionistas eculturalistas para captar as tensões e contradiçõesconstitutivas da nossa identidade e, nesse sentido, podemser definidos como redescobridores do Brasil. RaymundoFaoro, em seu Os donos do po der ,30 nos conduz por umaanálise lúcida e penetrante do perfil das classes dominantes

e do processo de expropriação econômico-social queocorreu ao longo da história política com a consolidaçãode um Estado patrimonial e estamental-burocrático e depadrões culturais correspondentes às relações dedominação: a formação de duas sociedades paralelas,uma cultivada e letrada e a outra primária, inculta e àmargem do governo. No seu entendimento, a chamadacivilização brasileira não passa de uma “monstruosidadesocial”.31 Por outro viés, Caio Prado Junior, em Formação do Brasil co ntemp orâneo ,32 apresenta uma leitura históricadas raízes do Brasil contemporâneo, referindo-se aosprocessos políticos implantados no país sob o signo demodernização como uma adaptação ao capitalismo, pois

conservou elementos da antiga ordem: o latifúndio, opatronato e o c lientelismo. Para Prado J unior, tais arranjospolíticos feitos pelo alto tiveram repercussões de caráterautoritário e excludente na vida social na medida em queencobriram, sob o verniz artificial do progresso, asdisparidades econômicas e sociais do país, deixandointocável o sistema patriarcal ou a velha ordem. Foi SérgioBuarque de Holanda, em Raízes do Bra sil , quem definiu,com extrema propriedade e acuidade crítica, o perfilintelectual da elite brasileira, particularmente no períodode consolidação de nossa identidade nos termos de umEstado nacional moderno. Para ele, o pensamento esensibilidade romântica, em que “o amor às letras nãotardou em instituir um derivativo cômodo para o horror à

nossa realidade cotidiana [...]”, é um indicador de que“todo o pensamento dessa época revela a mesmafragilidade, a mesma inconsistência íntima, a mesmaindiferença, no fundo, ao conjunto social”.33 Para Buarquede Holanda, que observava os processos do passadohistórico na perspectiva dos anos de 1930, o pensamentobrasileiro absorveu a herança ibérica de uma verbosidadeartificiosa e superficial, distante das condições materiaisde vida e alheia ao mundo circundante, porque

30 FAORO, 1957.

31 FAORO, 1957, p. 271.32 PRADO JR., 1942.

33 HOLANDA, 1995, p. 162.

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empenhado no cultivo do saber erudito, índice desuperioridade mental, um dos traços que revela “sua missãonitidamente conservadora e senhorial”.34 Nessa linha deargumentação, pondera que o móvel do conhecimentodessa classe não visava ao intelectual ou ao social, masao enaltecimento e dignificação daqueles que ocultivavam.

A nacionalidade é sempre um termo relacional cujaidentidade é resultado de uma construção social esimbólico-discursiva em torno de um sistema ideológico dediferenças cuja administração e direcionamento acionaum projeto de nação através do qual ela se estabiliza comouma “comunidade imaginada”, conceito formulado por

Benedict Anderson em seu provocante estudo Imagined Communities: Reflections on the Origins and the Sprea d of Nationalism .35 Para Anderson,,,,, a construção das naçõesmodernas obedeceu a uma lógica conjuntiva que buscouassimilar as diferenças na demanda por uma totalidadesem fissuras, isto é, além de um território demarcado,limitado e soberano, a nação se concebeu na figurapolítica e antropológica de uma comunidade imaginada,forjada pelo sentimento compartilhado de uma fraternidadehorizontal por meio da qual se estabeleceram os processosde identificação e singularização necessários à constituiçãode uma identidade nacional. Em termos de Brasil, aformação da identidade nacional não pode ser vista

dissociada de uma conjuntura histórica que passa peloprocesso de colonização, pela territorialização de suamissão civilizatória, com sua ordem ritualística de sacrifícioe violência, pela formação de um Estado escravocrata,oligárquico e autoritário e pela constituição de uma eliteeconômica e cultural, protagonista de um projetohegemônico cujos sentidos políticos nada tinham ou têmde fraterno. Os ideais iluministas da emancipação, daconciliação, do futuro e do progresso que alimentaram aconcepção do Estado moderno permanecem como nonível das idéias, abstraídas das práticas reais, pois essas,implicadas na reprodução de relações de poder, têm setraduzido em atos violentos de segregação, marginalização,exclusão e coerção econômica. Daí porque, nas palavras

de Octavio Ianni, “amplos setores das classes dominantes,ou suas ‘elites’, continuam a agir no mando e desmandodas coisas públicas e privadas como desfrutadores,colonizadores, conquistadores”.36

No processo de construção da nacionalidade, osmitos funcionais da cultura brasileira – o da não-violência,o da democracia racial e o da índole pacífica de um povoque se reconhece como resultado do cruzamento de raçase de culturas – são ficções coletivas que se apresentam

34 HOLANDA, 1995, p. 164.

35 ANDERSON, 1983.

36 IANNI, 2003, p. 259-260.

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como soluções à compreensão de uma realidade histórico-social complexa e contraditória, o que requer uma reflexãosobre os sentidos da colonização em um cenário em quea hegemonia patriarcal de gênero, classe e raça moldaum capitalismo periférico cujas formas de funcionamentoestruturam os ideologemas da nação. Com isso quero dizerque é a perspectiva de classe da elite patriarcal dominante,em suas relações materiais de produção, que formula eordena as estruturas simbólico-discursivas determinantes dasformas de subjetividade e de sociabilidade definidoras dofuncionamento político-institucional da nação. Cabereconhecer a prevalência dessa perspectiva nashierarquizações das diferenças de gênero e de raça, nas

segregações de classe e nas limitações impostas aoagenciamento da mulher como sujeito da comunidadehorizontal da nação. A representação da mãe republicanano século XIX, vinculada à mulher no contexto docasamento e da família onde exerce seu papel dereprodutora de cidadãos visceralmente ligados à uma visãoteleológica do grande destino nacional, foi uma imagemdeclinada pelos valores de classe burguesa e de seusinteresses de reprodução. A força de sua sedimentaçãono imaginário nacional explica por que hoje oantifeminismo só pode ser compreendido no contexto daconsolidação dessa elite, como efeito da tradição de umpensamento que se renova na lógica de um discurso de

classe com vistas a manter assimetrias e desigualdades degênero,37 revelando uma indisposição histórica de aberturapara a atualidade. Pode-se afirmar que o patriarcalismo,refinado pelo reacionarismo e conservadorismo da classesocial dominante, constitui a formação discursivahegemônica que sustenta a base de estruturas institucionaise ideológicas do campo político. O termo “político”, talcomo o emprego aqui, designa não só as formas deorganização social do Estado, da economia, da sociedadee do gerenciamento do capital simbólico na esfera pública,mas também as relações familiares e afetivo-sexuais naesfera privada.

A cada estatística ou relatório sobre a situação demulheres e de crianças no contexto da sociedade brasileira,

realizado por diversas instituições do país e do exterior, comoIBGE, FGV, IPAS/Brasil, UNESCO, Fórum Econômico Mundial,levamos um sobressalto diante de índices alarmantes:diferenças substantivas de renda (30%) entre homens emulheres, o que coloca o Brasil como um dos países daAmérica Latina com piores índices em relação ao trabalho;a exploração do trabalho infantil, que coloca também oBrasil em terceiro lugar na América Latina, perdendo apenaspara o Haiti e a Nicarágua; o crescente abuso e violência

37 Friedrich ENGELS, 2005.

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sexual contra as crianças, e particularmente contrameninas, a prostituição infantil, a insegurança alimentargrave de 6,5% das famílias brasileiras, a maioria delasconstituída de mulheres e seus filhos, tráfico de mulheres eviolência doméstica, que atinge índices epidêmicos emum quadro em que uma mulher é agredida no país a cadaquatro minutos, via de regra por homens de seu círculofamiliar. Ou seja, o ambiente doméstico é o lugar maisperigoso para as mulheres brasileiras! Essa situação revelaos descaminhos dos movimentos de uma sociedade quenão conseguiu superar a retórica naturalizada de seus mitos– incluindo-se aqui a retórica da família – e enfrentar asestruturas de dominação e expropriação que têm

caracterizado o seu desenvolvimento histórico. Semdesmerecer os importantes estudos aqui referidos e quetêm contribuído sobremaneira para a compreensão dahistória política e social da brasilidade através da qual épossível fazer uma arqueologia do antifeminismo e ver oque está plantado fundo nessa história, é relevante observarque nenhum dos estudiosos “de esquerda” mencionou aquestão de gênero ou a opressão das mulheres em suasanálises, fato que evidencia não só o quanto a presençadas mulheres na construção e manutenção dacomunidade nacional tem sido relegada por análisessupostamente neutras, do ponto de vista de gênero, mastambém o quanto a cegueira para as questões da

dominação de gênero no contexto da sociedade queprocuravam compreender inscreve esses mesmos sujeitosna condição de assujeitamento ao aparato ideológico dopoder/saber dominante. As relações de desigualdade,opressão e violência de gênero no campo político brasileirosão evidências da violência simbólica de um projeto mal-acabado de nação que passa ao largo da existênciaconcreta, social/política/cultural, das mulheres. Ou seja, o“direito dos homens” e o “direito dos cidadãos” presentesnos discursos da dialética moderna da igualdade e daliberdade não incorporam as mulheres que, em suacondição de sujeitos ex-cêntricos, sempre tiveram umarelação problemática com o Estado-nação moderno e suaconstrução de subjetividades.38

No campo minado da crítica e dos valoresNo campo minado da crítica e dos valoresNo campo minado da crítica e dos valoresNo campo minado da crítica e dos valoresNo campo minado da crítica e dos valores

Não se pode desvincular a episteme patriarcalnacional dos rumos da crítica feminista no país, e o meupercurso de reflexão busca justamente procurar entendera sua posição marginal, do ponto de vista teórico, eambivalente, do ponto de vista político, no quadro dosestudos literários e da cultura do país. A institucionalização

38 Ver, nesse sentido, os diversos

desdobramentos teórico-criticosdessa questão nos estudos dacoletânea Between Woman and Nat ion   (Caren KAPLAN, NormaALARCÓN e Minoo MOALLEM,1999).

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REFUTAÇÕES AO FEMINISMO: (DES)COMPASSOS DA CULTURA LETRADA BRASILEIRA

da crítica feminista na academia brasileira é hoje um fatoincontroverso de norte a sul; basta verificar currículosacadêmicos, projetos de pesquisa, linhas de pesquisa eprodução docente e discente nos níveis de graduação ede pós-graduação, bem como o número significativo deprojetos que recebem apoio das agências governamentaisde financiamento à pesquisa. Mas também é um fatoinquestionável que a crítica feminista nunca se consolidoucomo uma corrente teórico-crítica de impacto nos estudosliterários e seu status acadêmico, como aporte teórico aoestudo da literatura, é, via de regra, quase invisível noquadro de abordagens teórico-metodológicas valorizadascomo a sociologia da literatura, a estética da recepção, o

estruturalismo e o marxismo, e mais recentemente o pós-estruturalismo e os estudos culturais, dos quais ela é, àsvezes, vista equivocadamente como uma vertente oudesdobramento. Um dos estudiosos de maior prestígio nocampo das Letras nos Estados Unidos, Jonathan Culler, autorde um livro que circulou muito no Brasil nos anos 70 intituladoPoétic a e strutu ra l ista , faz a seguinte afirmação naIntrodução de Sob re a desc onstrução :

Ao mapear a crítica contemporânea como um embateentre os adeptos do New Critic ism , os estruturalistas e,depois, os pós-estruturalistas, considerar-se-ia difícil fazer justiça à crítica feminista, que teve maior efeito sobre ocânone literário do que qualquer outro movimento

crítico, e que comprovadamente foi uma das maispoderosas forças de renovação da críticacontemporânea.39

Entre nós, evidentemente que não é esse o cenário.Livros e estudos sobre teoria da literatura e história daliteratura escritos por brasileiros40 nem sequer mencionamo feminismo e suas epistemologias ou o pioneirismo dacrítica feminista com relação aos modos tradicionais depensar o campo literário, o que sem dúvida é curioso, umavez que muitos livros estrangeiros em tradução circulampelos programas de graduação e de pós-graduação dopaís, como Teo ria literária : um a intro dução , de JonathanCuller, Teo ria da l i teratura : um a introd ução , de TerryEagleton, e

O inc on sc iente polític o , de Fredric Jameson,

entre outros.41

A realidade é que, fora do círculo de suaspraticantes, a crítica feminista nem sequer existe, e quandomencionada é considerada com descrédito, muitas vezescom preconceito explícito, e freqüentemente com suspeita,como sendo mais uma teoria “de fora”, expressão que,como já referi, inscreve a crítica feminista no cenário derepúdio ao mimetismo teórico, questão que é associada à

39 CULLER, 1997, p. 36.

40 Ver, nesse sentido, RobertoAcízelo SOUZA, 2004; MariaEunice MOREIRA e Luiz RobertoCAIRO, 2006; Luiz Costa LIMA,2005.

41 CULLER, 1999; EAGLETON, 1983;e J AMESON, 1992.

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tendência brasileira de angariar prestígio intelectual peloendosso de nomes difíceis e de teorias estrangeiras, sobreo que Sérgio Buarque de Holanda já nos alertava em 1936.Sem ignorar esse lado da questão, pode-se argumentarque a crítica ao mimetismo não explica de todo aresistência a ela, já que, por exemplo, não se verifica amesma reação diante dos influxos teóricos do pós-estruturalismo ou do pós-colonial. Nesse quadro, odescrédito específico à crítica feminista está atrelado a umacombinação de desconhecimento com um ressentimentocontra o que é considerado um dos desdobramentos doneocolonialismo norte-americano e que se expressa sob aforma de um nac ionalismo cultural. Mas como a história já

nos ensinou, o nacionalismo cultural pode assumir feiçõesprogressistas ou reacionárias, e essas últimas têm comoobjetivo domesticar e controlar o dissenso. Assim, o que sepode desentranhar no inconsciente político dessedescrédito e/ou resistência é o receio da desestabilizaçãode valores profundamente enraizados na nossa cultura – aalta literatura é um deles –, uma vez que a crítica feminista,na sua heterogeneidade epistemológica, participa doprojeto ontológico de desmantelamento de reivindicaçõesde autoridade e privilégio cultural/patriarcal cristalizadasem representações historicamente situadas. É por essecaminho que a crítica feminista causa perturbações aomundo letrado. Vejamos quais as formas dessa perturbação.

 Em um dos ensaios do livro Litera tura e re sistênc ia ,42

intitulado “Os estudos literários na era dos extremos”, AlfredoBosi, um dos mais renomados críticos e historiadores daliteratura brasileira, tece comentários sobre o universocaótico do fim de milênio, com o foco sobre processos dedegradação da literatura e sua transformação em literatura-para-massas e cultura-espetáculo em tempos de mercado,afirmando que há uma correspondência entre discursomercadológico e acadêmico na medida em que ambosvalorizam a emergência de subconjuntos literários“exclusivamente em função de seus conteúdos”. Sua expli-cação do que entende por subconjunto merece atenção:

Surgiram, desde pelo menos os anos 70, uma literaturae uma crítica feminista, uma literatura e uma crítica deminorias étnicas (os exemplos americanos do romancenegro e do romance chicano são bem conhecidos),uma literatura e uma crítica homossexual, uma literaturae uma crítica de adolescentes, ou de terceira idade,ou ecológica, ou terceiro-mundista, ou de faveladosetc. O que as diferencia é o público-alvo; o que asaproxima é o hipermimetismo, o qual, no regime damercadoria em série, cedo ou tarde, acaba virandoconvenção.

42

 BOSI, 2002.

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Mais adiante, ao afirmar que o conteudismoprevalece na cultura contemporânea, evoca os estudosculturais nos Estados Unidos e periferias como exemplo deparadigma de leitura que, no seu entender, tem substituído“a interpretação literária e a crítica estética pela exposiçãonua e crua do assunto, valorizando-o, se politicamentecorreto, e condenando-o, se politicamente incorreto”.43

As colocações de Bosi já não surpreendem tanto,visto que se relacionam com algumas questões jáabordadas anteriormente neste texto, tais como asinterpretações equivocadas do politicamente correto, oolhar judicativo em relação às práticas simbólicas eacadêmicas da cultura “do lado de lá”, particularmente

quando há receio de que possam interferir e prejudicarinteresses e práticas locais relacionadas com amanutenção de privilégios de classe, gênero e raça, bemcomo a defesa do valor estético, corrente na esfera dacultura letrada brasileira. Vou me deter nos pressupostossobre o literário que alimentam sua posição para chegar asua desqualificação da crítica feminista. Bosi fala do lugarde uma crítica de contorno esteticista e de um conceitode literatura referenciado na tradição de autores clássicoseuropeus e quatro brasileiros (Machado de Assis, GuimarãesRosa, Mário de Andrade e Carlos Drummond), portanto umconceito que essencializa o valor artístico na medida emque coloca as obras fora e além das contradições

engendradas pelo e nos discursos culturais de seu tempoe lugar, como se um texto literário não fosse um objetohistórico, como se valor não estivesse colado a umaestrutura e essa não fosse resultante de uma funçãoideológica. Se juízo de valor artístico só pode ser formuladoem relação ao puramente artístico, na hipótese de queseus elementos sejam passíveis de serem descolados dadialética entre forma e conteúdo, estrutura e função, entãoestaríamos de volta à vertente mais radical do formalismorusso do início do século XX. Mas esse é precisamente olugar para onde nos leva a posição de Bosi. Portanto, adesqualificação da crítica feminista está pressuposta nasua refutação do que entende ser uma análise ideológica,com foco no conteúdo, o que, na sua perspectiva, fere

frontalmente o estatuto do literário. Para Bosi, a críticafeminista responde em natureza e grau à existência de umsubconjunto literário que chama de literatura feminista, e éa partir desse momento que o seu argumento peca porcolocações vagas e generalistas, sem conhecimento decausa e, o que é pior, marcadas pelo menosprezo àsmarcas de pertencimento que são tecidas nos processosde mediação entre a consciência que representa e o

43 BOSI, 2002, p. 251.

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mundo e que se entranham nos enredos literários, nasestratégias de composição, nas operações de linguagem.

 Para expor ao ridículo a crítica feminista/literaturafeminista, pelo viés do que chama hipermimetismo, Bosifaz analogias com a crítica e literatura de minorias étnicasnos Estados Unidos, e com a crítica queer , acrescentandoum rol fictício de crítica como recurso irônico, como “críticaliterária de adolescentes” e “crítica de terceira idade”, entreoutras. Aqui, várias questões mereceriam serproblematizadas, mas vou me ater a três. Primeiramente, arelação especular entre a crítica feminista e uma literaturafeminista é um equívoco grave, pois aquela,particularmente nos anos 70, nos Estados Unidos, foi

marcada pela releitura do cânone, isto é, obras de autoriamasculina, e pelo revisionismo crítico, ou seja, ainvestigação dos critérios de valor e paradigmas utilizadosna tradição dos estudos literários. Lembro de obrasconsideradas clássicas publicadas nessa primeira fase dacrítica feminista norte-americana: o livro de Kate MillettSexua l Politics , em que a autora apresenta uma releituracrítica de obras de D.H. Lawrence, Henry Miller e J eanGenet, o de J udith Fetterly, The Resisting Rea der , no qual aautora retoma as obras canônicas da ficção norte-americana dos séculos XIX e XX, e a coletânea crítica The Author ity of Expe rienc e: Essays in Fem inist Cr iticism ,44 doqual cito o seguinte, como forma de contra-argumentar a

afirmação de Bosi sobre o conteudismo:Embora muitos críticos e muitas escolas críticasacreditem na inter-relação entre sociedade e arte, ascríticas feministas, obviamente, se destacam por causade sua preocupação especial com as crenças dasociedade sobre a natureza e a função das mulheresno mundo, com a transformação dessas crenças emtemas literários, com os modos nos quais as estratégiasartísticas e críticas ajustam e controlam atitudes emrelação às mulheres.45

Em segundo lugar, a colocação sobre o romancenegro, também nos Estados Unidos, é, no mínimo,reveladora de um pré-conceito, uma atitude de parte dealguém que se coloca no lugar de uma cultura superior eque considera aquela produção deficitária em razão daoperacionalização de um conceito de literatura formuladono contexto de estudos literários e da tradição da culturabranca erudita. O reducionismo de Bosi faz tab ula rasa  dahistória do romance negro norte-americano, cujodesenvolvimento foi marcado por intensos debates entreestética e política, particularmente a partir da Renascençado Harlem, nos anos 20 do século passado. Fazer

44 MILLETT, 1969; FETTERLY, 1978; eArlyn DIAMON e Lee EDWARD,1977.

45 Arlyn DIAMON e Lee EDWARD,1977, p. x. A tradução dessacitação, assim como dascitações referenciadas nas notas46 e 59, é de Maria Isabel deCastro Lima.

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 julgamentos deprec iativos generalistas a pa rtir dodesconhecimento das tradições e da evolução das formasliterárias em contextos culturais específicos e historicamentesituados traduz um gesto de arrogância intelectualincompatível com uma inteligência crítica sensível aosnexos de identidade e diferença que se entrelaçam nasformações culturais. Em terceiro lugar, o que ficasubstancialmente não dito por Bosi, mas que estásubjacente à sua visão da degradação da literatura noâmbito da associação, perversa porque destituída dequalquer lógica explicativa, entre o vale-tudo do mercadoe a produção de minorias, é o velho critério dauniversalidade pautado na concepção do alcance estético

de um texto e que ampara hierarquicamente a distinçãoentre o que é literatura com L maiúsculo, exemplificado naprática dos grandes mestres, e uma literatura de segunda.O problema não está na universalidade em si, mas nalógica com que os críticos na linha de Bosi a articulam: éuniversal a literatura isenta de marcas ideológicas, ou seja,é a literatura canônica ou a alta literatura. O ideológico,segundo esse raciocínio, é a entrada em cena daprodutividade textual de um viés particularista, o quesignifica dizer que o texto apresenta uma mediação nulaou uma neutralidade discutível, uma vez que o artístico seencontra contaminado e sobredeterminado por algoespúrio e estranho a ele, ou seja, valores espec íficos a uma

forma de pertencimento ou a um pleito identitário. Diga-sede passagem que não se sabe o que Bosi quer dizer porcrítica feminista ou literatura feminista, exceto que ambassão descartadas em razão do chamado particularismo,aqui colocado em oposição ao discurso universalista. É

 justamente sobre essa lógica que J udith Fetterly, naIntrodução a seu livro acima citado, é enfática:

A literatura é política. É doloroso ter de insistir nesse fato,mas a necessidade de tal insistência indica a dimensãodo problema [...]. Os maiores trabalhos da ficçãoamericana constituem uma série de propósitos sobre amulher leitora, ainda mais potentes em seus efeitos porserem ‘impalpáveis’. Uma das coisas mais importantesque mantêm o projeto de nossa literatura indisponível

para a consciência da mulher leitora e, portanto,impalpável é a própria postura apolítica, a mentiradissimulada de que a literatura fala as verdadesuniversais através de formas a partir das quais tudoaquilo que é meramente pessoal, o puramentesubjetivo, foi destruído pelo fogo, ou ao menostransformado, por meio da arte, em representante.46

Pode-se identificar o paradigma bosiano de leituranas posições de outros críticos de projeção no quadro

46 FETTERLY, 1978, p. xi.

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brasileiro, para quem os particularismos, exemplificados nasreferências ao feminismo ou à crítica feminista, estãocolocando em risco a própria sobrevivência da literatura,uma perspectiva que parece desconhecer que areivindicação do universal está pautada em umparticularismo fechado que, em algum momento, se tornoudominante precisamente ao desreconhecer suas origens,como nos coloca Ernesto Laclau em suas discussões sobrea construção contemporânea de conceitos queacompanham os processos da modernidade tais comoidentidade e diferença, universalismo e particularismo ede como hoje se articulam em combinações paradoxaispara sustentar hegemonias no campo político-cultural.47 Na

medida em que tomamos consciência de que o l ocus enunciativo de muitos discursos que invocam o universalinscreve de forma acrítica uma noção particular douniversal, isto é, aquela que foi historicamente declinadapela perspectiva de um processo hegemônico deimposição e de homogeneização de valores culturais e deimplantação de um sistema de pensamento que tinha apresunção de se colocar como totalidade, a emergênciade novos atores sociais e novas identidades historicamenteexcluídas do acesso à universalidade significa duas coisas:o colapso do lugar epistemológico de onde o sujeitouniversal pressupunha falar e o colapso da ficção de queesse era o único lugar viável de uma fala autorizada, isto

é, legitimada do ponto de vista político, simbólico,institucional. Em textos de críticos literários como LeylaPerrone-Moisés48 e Benjamin Abdala Junior,49 as críticas aoparticularismo se revestem de uma forte conotação política,do que se conclui que ambos subscrevem posiçõesconservadoras em relação à questão da diferença,considerada tanto em relação à emergência de novasidentidades que querem se auto-afirmar no jogo de forçasdo campo da produção literária, quanto em relação acorrentes críticas que, de forma direta ou indireta, sãoresponsabilizadas por colaborarem para o declínio deconceitos e critérios valorativos construídos no campoliterário à luz da tradição ocidental, tida como paradigmade uma universalidade de gosto estético e de valores

morais. Para Perrone-Moisés, o feminismo norte-americanoé responsável pela instalação, nos departamentos deliteratura daquele país, de disciplinas “particularistas”,fomentadas por um grupo social – as feministas – que, entreoutros, “disputa os destroços da velha literatura para usá-los exclusivamente a seu favor”. O sentido da expressão “aseu favor” quer dizer, nos termos de Perrone-Moisés, abdicarde estudar a literatura com base em critérios estéticosuniversalizantes, uma vez que o uso desses critérios “tornara-

48  Ver PERRONE-MOISÉS, 1998 e2000.49 ABDALA JUNIOR, 2006.

47 Ver Ernesto LACLAU, 1995, bem

como Simon CRITCHLEY, J acquesDERRIDA, Richard RORTY e ErnestoLACLAU, 1996.

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REFUTAÇÕES AO FEMINISMO: (DES)COMPASSOS DA CULTURA LETRADA BRASILEIRA

se politicamente incorreto”.50 É importante observar que osentido do politicamente (in)correto, tal como no texto deBosi, essencializa uma univocidade de sentido afinada coma interpretação corrente no senso comum brasileiro.51

Seguindo na linha da crítica à cultura da diferença, Abdala J unior se refere à abertura do IV Congresso ABRALIC,realizado em 1995, cujo tema foi “Literatura e diferença”, eexplicita o seu conceito de diferença ao se dirigir aosparticipantes na condição de presidente da Associação.Ao definir a sua posição sobre os estudos literários do pontode vista da construção de um comunitarismo culturalsupranacional, Abdala J unior faz questão de esclarecerque sua ênfase constituiria uma estratégia de contrafluxo

“à unilateralidade do processo de americanização domundo” (também a pedra de toque nos argumentos dePerrone-Moisés), e que seu conceito de diferença viria nacontracorrente

dos insulamentos de correntes críticas que identificavamdiferença com uma espécie de guetização. Diferençaseria uma forma de propiciar reflexões críticas abertas,a partir das margens não hegemônicas, semconfinamento ao local, ao étnico e mesmo ao nacional.Logo uma perspectiva avessa aos particularismosfechados, tais como se desenhavam, por exemplo, nosmovimentos dos negros norte-americanos.52

Partindo de um antiamericanismo reducionista que

toma o país como uma entidade uniforme, como se fosseum imenso shopping  de produtos massificados aguardandoserem transformados em instrumentos de globalizaçãocultural pelo imperialismo (as idéias estão no texto deAbdala), ou seja, uma engrenagem hegemônica destituídade suas margens internas e suas dissidências, o críticopressupõe uma homologia entre vertentes radicais demovimentos sociais e correntes críticas (quais?), o que, alémde ser um equívoco, leva a entender que somente um lugarindiferenciado de pertencimento – nem local, nem étnicoe nem nacional – pode efetivamente articular comlegitimidade um conceito de diferença. Essa articulaçãoeleva o termo a um nível de abstração que não pode darconta das redes de relações que possibilitam identificaçõesentre as margens, por exemplo, identificações entremulheres de diferentes latitudes, brancas e negras, emtermos da opressão de gênero e de raça, mesmo que aopressão adquira formas múltiplas e diferenciadas emcontextos históricos e geográficos específicos. Embora nãoreferida explicitamente, a crítica feminista estácontemplada na referência à guetização e aoparticularismo fechado, uma interpretação que fixa e

50 PERRONE-MOISÉS, 2000, p. 12.

51 É pertinente examinar as discus-sões esclarecedoras sobre ochamado PC e as humanidadesem Michael BÉRUBÉ, 1994.

52 ABDALA JUNIOR, 2006, p. 19.

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congela o conceito de diferença, reduzindosignificativamente o seu alcance em termos de construçãode afiliações e de alianças, base para políticas culturaisanti-hegemônicas. Por fim, cabe assinalar que sua visãomonolítica do movimento dos negros, da mesma forma queo reducionismo de Bosi, deixa em evidência, senão umantagonismo racial, pelo menos uma indisposição parauma leitura mais abalizada e sensível das formas múltiplasde resistência que não podem ser dissociadas dosprocessos históricos particulares de uma sociedade quetoma consciência do que significa um ponto de vista racialformulado na perspectiva do outro e não simplesmenteimposto pelo sujeito branco, o que ainda está por acontecer

em termos de Brasil. Na linha do argumento de umadiferença indiferenciada, as colocações de Abdala J unioralimentam um conceito que mais parece uma versão, sobnovas vestimentas, do velho universal, o que é muitosurpreendente em um texto que postula estudoscomparados de comunidades culturais/textuaisatravessadas por diferenças internas, ou seja, locais,acrescidas de experiências históricas e diversidadesculturais análogas. Estamos diante de uma combinaçãoparadoxal de noções de particularismo e universalismo paraviabilizar um conceito de diferença excludente, uma vezque as redes (de povos) de que Abdala fala são as situadasao sul do Equador. O que se constata nos discursos dos três

críticos brasileiros é uma parcialidade tendenciosa no tratodas noções de particularismo e de diferença com relaçãoa contextos culturais com uma história nacional por trás,como se as suas posicionalidades no campo simbólico nãoestivessem desde já atravessadas por particularismoscontingentes e, portanto, comprometidas com certosvalores que levam a estigmatizar a crítica feministaenquanto instância crítica e produtora de conhecimentos.

Da crítica feminista: limites e alcancesDa crítica feminista: limites e alcancesDa crítica feminista: limites e alcancesDa crítica feminista: limites e alcancesDa crítica feminista: limites e alcances

Considerando o panorama que apresentei até aqui,com inclusão de aspectos da história social brasileira emtermos das relações de dominação, referências sobre a

formação do campo intelectual e sobre a tradiçãoconservadora das letras no contexto da permeabilidadeda ideologia patriarcal burguesa e de sua eficácia históricana construção de uma sociedade resistente àemancipação, pode-se compreender a falta deressonância intelectual da crítica feminista, ou seja, suahistória está em compasso com o contexto em que égerada. Mas tenho dúvidas se faz sentido falar emcausalidade externa como forma de explicar essa

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REFUTAÇÕES AO FEMINISMO: (DES)COMPASSOS DA CULTURA LETRADA BRASILEIRA

contingência, pois entendo que, do mesmo modo que éimprodutivo pensar em teoria a partir da dicotomianacional/estrangeiro, também não se pode justificar o statusda crítica feminista somente pelo contexto externo às suaspráticas. Nesse sentido, ao buscar na identidade da críticafeminista o que faz sua articulação possível e, ao mesmotempo, o que atrofia a concretização de sua radicalidade,é importante deixar claro que também estou implicada naatividade de autoconhecimento e de autocrítica, comosujeito cultural situado no campo de poder. Por esse viés,formulo algumas provocações: Será que não temos partena invisibilidade da crítica feminista no campo literário?Será que essa situação ocorre somente porque a área de

Letras é tida como a mais conservadora dentre as áreasdo conhecimento? Ou será porque a identidade daliteratura brasileira ainda não se desvinculou de suatradição e forma elitista53 e o feminismo é visto como formade desgastar essa aura? Ou será porque as pesquisadorasda área temem serem vistas como menos femininas porsubscreverem o termo “feminista”? E será que a crítica deWilson Martins sobre a confusão de gênero com mulhernão é alimentada pelas nossas próprias formas de fazer?Não creio que possamos chegar a um momento em quemtodos os impasses possam ser solucionados na constituiçãode um corpo coerente de práticas de forma a sustentaruma identidade estável, o que seria uma impossibilidade,

 já que a diferença é o seu limite constitutivo comoarticulação possível e como impossibilidade defechamento. Mas é imperativo que façamos uma auto-avaliação, até porque explicitar questões e ajustar direçõescom vistas à necessidade de adequação de práticasteóricas e formulação de estratégias específicas em razãode contextos diversificados tem sido parte fundamental dosavanços históricos do feminismo.

Um dos poucos textos, entre nós, a fazer algumaavaliação da crítica feminista é o de Heloísa Buarque deHollanda, “O estranho horizonte da crítica feminista noBrasil”,54 de 2003. É necessário dizer, primeiramente, quediscordo de várias afirmações feitas sobre o feminismoteórico em geral, por considerá-las generalizações sem

procedência ou sustentação em termos de respaldobibliográfico. Por exemplo, considero falaciosa a afirmaçãode que, apesar do avanço do debate teórico, há “sinaisde confinamento e declínio da área”.55 Aqui a articulistasegue a argumentação de Gayatri Spivack em texto de1986 em que essa faz uma crítica ao desenvolvimento deuma crítica feminista tutelada pelos paradigmasmetropolitanos dominantes, o que remete a velhasdiscussões, muitas delas já superadas. A título de exemplo,

53 Segundo LEITE, 1969, p. 289. Porsua vez, Antonio Candido apontaa literatura culta dos senhorescomo sendo “a matriz daliteratura brasileira culta” aodiscutir a formação do campoliterário e de como a literaturaatuou como instrumentocolonizador, “destinado a impore manter a ordem política esocial estabelecida pelaMetrópole, através inclusive dasclasses dominantes locais”(CANDIDO, 1999, p. 13).

54 HOLLANDA, 2003.

55 HOLLANDA, 2003, p. 16.

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poderíamos mencionar textos de impacto sobreparadigmas de um feminismo branco classe média comoThis Bridg e C al led my Bac k (Esta p uente mi e spa lda ) ,editado por Cherrie Moraga e Ana Castillo, o de Trinh Minh-Ha When the Mo on Waxes Red , ou o de Bell HooksTea c hing to Transgre ss .56 O que quero dizer é que muito já se avançouem termos teóricos desde 1986, e que “declínio” é um termoabsolutamente inapropriado para definir o cenário deprodução feminista no contexto norte-americano. Quantoao contexto brasileiro, é outra história, já que “declínio” éum termo que não poderia definir uma crítica feminista quenunca atingiu expressão nacional na área de Letras.

 Também discordo da afirmação de que a crítica feminista

no Brasil, ao investir predominantemente nos estudoshistoriográficos de tendência arqueológica, tem privilegiadoo exame de gêneros “menores” da literatura produzida pormulheres no século XIX. Pelo trabalho editorial que vemsendo realizado como resultado dessas pesquisas, com apublicação de volumes de romance e poesia, creio quenão se poderia definir literariamente esses gêneros comomenores. Por outro lado, corroboro outros pontos levantadose gostaria de explicitá-los: 1) apesar da institucionalizaçãoda crítica feminista, as pesquisadoras encontramresistências no meio acadêmico; 2) os textos de autoria demulheres são vistos como tendo valor apenas “sociológico”;3) na área de Literatura Brasileira a produção feminista é

“tímida”; e 4) as discussões nessa área ficam enredadasem temas como “linguagem ou sensibilidade feminina”,omitindo-se de “enfrentar questões de recorte mais político”,o que significaria relacionar o estudo da literatura demulheres ao debate cultural brasileiro. E subscrevo suaconclusão: “No mínimo, percebe-se uma série dedificuldades em se estabelecer o lugar de uma fala feministana discussão do campo cultural onde se inserem aspesquisadoras”.57

Retomando minhas questões sobre os modos defazer da crítica feminista e costurando-as aos pontosdestacados acima, acho necessário observar que aslimitações locais, detectáveis no conjunto de suasrealizações, se inserem perfeitamente na malha cultural

brasileira no sentido de que sofre as determinações dalógica cultural de uma sociedade patriarcal e estratificada,com imensos problemas para resolver as desigualdadessociais e raciais e, com isso, tende a reproduzir essa lógicade várias maneiras. Em outras palavras, sua produção éum sintoma das contradições através das quais os própriossujeitos da produção são constituídos na vida social ematerial e vivem suas realidades.58 Nessa moldura,apresento algumas questões no sentido de explorar a

56 MORAGA e CASTILLO, 1988;MINH-HA, 1991; e HOOKS, 1994.

57 HOLLANDA, 2003, p. 21.

58  Internalização do discurso dodominador pelo dominado deforma que esse se torna cúmplicede sua dominação (BOURDIEU,1999).

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problemática aludida acima. Não passa despercebido ofato de que a utilização da categoria de gênero é nãoraro dissociada do projeto político-epistemológico dosfeminismos que, a par de suas múltiplas e diferenciadasarticulações teóricas, mantém em seu horizonte a noçãode intervenção e de transformação social a partir dapoliticização de todos os aspectos da vida social no quediz respeito à organização das relações sociais de poder,à vigência de lógicas binárias nas estratégias decolonização (gênero, raça, classe, etnia, orientação social),incluindo a organização, acesso, produção e distribuiçãodo conhecimento, pois lutas por justiça social, direitoshumanos, cidadania e democratização são lutas que se

travam, também, sobre conceitos. A desterritorialização dacategoria de gênero do feminismo que se observa em umgrande número de trabalhos apresentados em fóruns deliteratura (congressos da ANPOLL e da ABRALIC, congressos“Mulher e literatura”, entre outros) se apresenta em doiscontextos. Primeiramente, quando se trata de tornar ofeminismo palatável, dando-lhe um conteúdo ameno oul ight , particularmente, em situações de obtenção definanciamentos institucionais para a pesquisa, o quesignifica entrar em competição com os discursosdominantes dos estudos literários. Nesse caso, há umadescaracterização do gênero como categoria histórica eanalítica, pois é deslocado do aparato discursivo-

representacional das relações de poder e assimetrias,tornando o feminismo desnecessário, o que vem aoencontro de argumentos disseminadores da idéia de quenão é necessário o amparo de teorias feministas para serealizar uma análise de gênero do texto literário. O segundocontexto está relacionado à confusão conceitual eterminológica entre gênero e mulher, ou seja, fala-se emgênero quando o objeto da análise é a categoria “mulher”,o que desvirtua o alcance da força crítica de intervençãodo feminismo nos discursos hegemônicos. Nesse segundosentido, o termo “gênero” é usado apenas como pretextoem discussões pautadas pelo dogma de uma identidadefeminina – antes invisível, agora visível – em argumentaçõesgeneralistas que tomam a cultura branca de camadas

médias como norma, sem a problematização, explícita enecessária, do que se entende pela categoria “mulher”pressuposta e posicionada em determinados lugaresidentitários e lugares textuais. A modalidade predominanteda crítica feminista entre nós insere-se no que se podedenominar de feminismo cultural, com sua ideologiavoltada à supervalorização de características femininasatravés de temas como memória feminina, corpo feminino,poética feminina, escrita feminina, história literária de

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mulheres, tradição feminina. Os riscos dessa modalidadecrítica é que ela pode agregar uma política romanticizadae essencializada da diferença que acaba por reforçar ereinscrever os binarismos e seus guetos, justamente o queo feminismo busca desarticular. A esse respeito, cito aspalavras inspiradoras de Chantal Mouffe:

O feminismo é, para mim, a luta pela igualdade dasmulheres. Mas isso não deve ser compreendido comouma luta pelo reconhecimento da igualdade de umgrupo empírico definível, com uma essência eidentidades comuns, mulheres, mas ao contrário, comouma luta contra as múltiplas formas nas quais acategoria “mulheres” é construída na subordinação.59

Diferenças entre mulheres podem iluminar asdiferentes facetas da desigualdade de raça e classe. Porexemplo, o significado da autoridade patriarcal no Brasil,conforme observa Maria Inácia D’Avila Neto, se traduziu“em diferentes modos de dominação na relação homem-mulher, variando conforme a cor da pele ou da camadasocial da mulher ou seja a sua ‘classe-cor’”.60 Por mais quea virada historiográfica, com seu trabalho importante deresgate de textos de autoria de mulheres relegados pelahistoriografia e pelo discurso crítico patriarcal, tenhafomentado novos conhecimentos sobre o papel dasmulheres como produtoras de discursos no século XIX, porsi só esse viés não tem força de intervenção nem nos

padrões institucionalizados de avaliação nem nos padrõesinstitucionalizados de interpretação. Portanto, é importantecaminhar para além de leituras sociológicas de caráterdescritivo de um texto literário para se construir um ato críticode enfrentamento literário/ideológico/político sobre anatureza da experiência social brasileira e dequestionamento das estruturas dominantes da alta culturaliterária. Não acredito que a crítica feminista possa causarimpacto nos estudos literários se não investir em um trabalhoconsistente de crítica textual/histórica/antropológica/cultural,entendendo o cultural não como instância isolada, mascomo lugar de práticas simbólicas onde ganham forma osmecanismos sociais que produzem sujeitos e subjetividades

e que, portanto, está imbricado na organização efuncionamento material da sociedade. Mas é evidente quepara a crítica feminista poder perseguir uma visão detransformação social e cultural no contexto brasileiro,permeado por especificidades de contradições,disparidades e assimetrias, a analítica de gênero não ésuficiente.

 A compreensão interdisciplinar da história brasileirae uma consciência histórica dos processos sociais no

59 MOUFFE, 1992.

60 NETO, 1980, p. 6.

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contexto político de privilégios e de relações de dominaçãoparecem-me ser uma condição sine qua n on  para que acrítica feminista possa desempenhar um papel importantena produção de uma forma nova de pensar a cultura e aliteratura à luz das intersecções de classe social, gênero eraça. Todavia, muitos dos estudos de textos de autoria demulheres contemplam análises em um quadro interclassedominante em que gênero aparece como categoriaisolada de outras determinações de pertencimento que,embora presentes de forma subjacente, não sãoinvestigadas e integradas ao foco das análises. Nessecontexto, a reivindicação de uma política de inclusãocondicionada, na base, por um pertencimento de classe

pode ser mais uma atualização do conceito de políticaliberal-burguesa, que coloca a igualdade de certasmulheres (como no caso da capa da revista Veja ) perantea lei, ou perante a ordem simbólica, como limite para oprojeto feminista, o que colide frontalmente com o sentidodo político construído no feminismo e que está radicadoem uma crítica radical dos discursos dominantes. Emboraconstitua uma atividade de corte acadêmico, a críticafeminista não deixa de ser um tipo de movimento social,pois pode contribuir para a desestabilização de categoriasou de paradigmas tradicionais,61  segundo definição deSandra Harding. Para nós, da literatura, que trabalhamoscom sistemas estéticos/cognitivos/simbólicos/textuais – pois

é desse lugar que posso falar – o exercício da crítica literáriaatravés de uma política interpretativa sustentada porestratégias textuais que possam decodificar os regimes deverdade incrustados nos textos da cultura, deslocar suashierarquias e abrir espaços para as diferenças é a formamais importante de construir novos conhecimentos sobrequem somos nós. Não se trata de produzir conhecimentossobre determinados sujeitos, mas de articular um projetoepistemológico através de uma prática discursivaintervencionista que produza reflexões sobre os sentidosda dominação e as práticas domésticas de colonização,inclusive a intelectual. Esta é, no meu entender, a maiorcontribuição que a crítica feminista pode oferecer: produzirum deslocamento em relação ao modelo de democracia

instalada no país e que levou Sérgio Buarque de Holandaa afirmar que a democracia entre nós é “um lamentávelmal-entendido”.62

 Para chegar a esse nível de intervenção são muitosos desafios e receio que não existem fórmulas emetodologias prontas a serem apropriadas, mas sim teoriase categorias de análise a serem transformadas emprocedimentos hermenêuticos específicos à articulação deum discurso crítico conseqüente. Também creio que não

62 HOLANDA, 1995, p. 160. Essavisão é reiterada na idéia do Brasilcomo uma nação fictícia,elaborada por José Murilo deCARVALHO, 1999.

61 Conforme HARDING, 1986.

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há modelos que nos ensinem, no trabalho com a literatura,a desenvolver a compreensão da construção de sentidostextuais e a explicar e interpretar esses sentidos com vistasà significação e à crítica. O refinamento de habilidadesinterpretativas e o exercício da imaginação criativa sãopré-condições para se construir a voltagem crítica e aautoridade intelectual da crítica feminista brasileira.

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[Recebido em dezembro de 2006 e aceito para publicação em dezembro de 2006]

R R R R R efuting F efuting F efuting F efuting F efuting F em inism: (Dis)alignm ents of the Bra zilia n Lem inism: (Dis)alignm ents of the Bra zilia n Lem inism: (Dis)alignm ents of the Bra zilia n Lem inism: (Dis)alignm ents of the Bra zilia n Lem inism: (Dis)alignm ents of the Bra zilia n Lettered Culture ettered Culture ettered Culture ettered Culture ettered Culture Abstract Abstract Abstract Abstract Abstrac t: On c onsidering the streng th of antifem inist disc ourse in Brazil, I exam ine how this discou rse c ircula tes in the field of c ultural journa lism so a s to ra ise some relations with Brazilian soc ial history in the light of whic h it is po ssible to un de rstand why feminism as a pra xis of c ha ng e seems so a lien to the co untry s soc ial hab its. To d evelop my line of argume nt I d raw from works of Brazilian inte llec tuals from the le ft, while I po int out the limits of ana lysis tha t silenc e on wom en s op pre ssion a nd o n qu estions of gend er. Then, I exam ine the p ersistenc e of d iverse form s of anti feminist disco urses in the ac ad em ic field o f letters, in the a ttempt to unde rstand the status of fem inist critic ism in litera ry stud ies and the re asons for its invisibility, with rem a rks on the ac hievem ents and limitations of its pra ctice s.Key W Key W Key W Key W Key W ords ords ords ords ord s: Cultu re; Powe r; Histor y; Soc ial Cla ss; Litera ture ; Fem inist Critic ism.