Upload
lamdiep
View
213
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1
OESTES DO BRASIL: HISTORIOGRAFIA, PROGRESSO E SILENCIAMENTOS EM
NELSON WERNECK SODRÉ E GERALDO ROCHA (1941)
FLÁVIO DANTAS MARTINS1
O programa Marcha para Oeste do Estado Novo, iniciado em 1938 pelo ditador Getúlio
Vargas, é um tema de estudo de diversos autores (COELHO, 2010; SILVA e MELLO, 2013;
CALONGA, 2015). Partindo de uma noção de “imperialismo interno”, integração nacional pela
economia para garantia da unidade e segurança pátria, alguns autores consideram que foi
ineficaz em termos de realizações práticas. Considerado seu principal ideólogo, Cassiano
Ricardo construiu no seu ensaio Marcha para Oeste o documento basilar de fundamentação
histórica ideológica do programa, partindo da noção de bandeira moderna de conquista do
interior.
O objetivo deste texto é refletir sobre outros oestes. Pretendemos analisar outras
propostas, dentro do contexto nacional de colonialismo interno (GONZÁLES CASANOVA,
2007), de conquista de outros espaços, fundamentados em narrativas históricas de formação
regional. Selecionamos duas obras, o ensaio “Oeste” de Nelson Werneck Sodré, militar e
historiador, e “Rumo ao Oeste” do jornalista, proprietário de terras e engenheiro baiano Geraldo
Rocha. Na medida em que os dois constroem narrativas históricas dos seus “oestes”,
pretendemos articular uma história comparada da historiografia regional. Queremos entender
como os autores articulam presente – de anúncio de nova conquista do interior – com passado,
como constroem suas narrativas históricas, quais os sujeitos da conquista no passado e do
pretendido avanço no futuro e como articulam o enredo de formação de uma região histórica?
Por fim, como essa ideia de região historicamente constituída justifica uma ação no presente?
Primeiramente, faremos uma breve introdução do programa Marcha para Oeste. A
seguir, analisaremos o livro Oeste de Nelson Werneck Sodré e tentaremos identificar a trama
do enredo, a construção dos personagens, os caracteres peculiares da região e os imperativos
práticos decorrentes da história. Por último, compararemos o texto de Sodré com o panfleto
Rumo ao Oeste de Geraldo Rocha e nos deteremos em como este jornalista apresenta uma
1 Professor de História da Universidade Federal do Oeste da Bahia, Mestre em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana
2
história regional do “oeste” alternativo – o vale do São Francisco – para o qual o país deve
marchar.
Oeste oficial do Estado Novo
George L. S. Coelho estudou a obra de Cassiano Ricardo e comparou o poema Martim
Cererê e o ensaio de sociologia histórica Marcha para Oeste. De acordo com o autor, ambos
constroem o mito do bandeirante paulista como agente da conquista territorial e integração
nacional; a bandeira como núcleo da democracia social e racial. Cassiano Ricardo passou, de
acordo com Coelho, de ideólogo do regionalismo das elites paulistas em 1930 e 1932 para
formulador do discurso nacional do Estado Novo, quando o mito regional se tornou o núcleo
da identidade nacional propagada pela propaganda oficial. Uma metamorfose de regionalismo
em nacionalismo. A eficácia é comprovada, na análise de Coelho, pela inauguração do
monumento do bandeirante em Goiânia. O Oeste de Cassiano Ricardo é um ocidente histórico-
místico que parte da Piratininga colonial e alcança todos os sertões até a Amazônia (COELHO:
2010).
Coelho afirma que a Marcha para Oeste não saiu do papel. Não logrou realizar a
integração econômica nacional. A ação se resumiu a implantação de oito colônias agrícolas em
Goiás e outras em Amazonas, Mato Grosso, Pará, Maranhão, Piauí, Minas Gerais e Paraná
(SILVA; MELLO: 2013, 58).. Entretanto, julgo que o autor estaria de acordo que o programa
não se realizou nos termos megalomaníacos e faraônicos que se propunha, mas deu legitimidade
ideológica à ditadura a quem servia. Numa leitura de ideologia enquanto conjunto de ideias
articuladas utilizadas para a luta política (VAISMAN: 2010), a Marcha para Oeste seria eficaz
se fosse capaz de produzir consenso, sem necessariamente realizar aquilo que projeta. O êxito
deste discurso estaria na constituição (ou continuação) de uma formação discursiva – penso
aqui em Michael Foucault – que é fonte de poder e justifica uma série de ações, especialmente
aquelas protagonizadas ou patrocinadas pelo Estado. Após a queda do Estado Novo, tanto
sobreviveu a Fundação Brasil Central, criada dentro da Marcha para Oeste, quando foi
constituída em 1947 a Comissão do Vale do São Francisco, cujos objetivos e justificação são
idênticos ou desdobramentos que continuam a Marcha para Oeste: integração econômica,
absorção da região isolada pelo nacional e avanço do processo civilizatório sobre os sertões
através da ação política estatal que abandona o liberalismo econômico da livre iniciativa e tutela
3
a economia ao planejamento econômico dos especialistas e cientistas que detém o poder
simbólico de estabelecer a verdade objetiva. Refletiremos sobre as perguntas: em que medida
Sodré e Rocha aceitam o mito oficial do bandeirante nas suas narrativas do passado? Quais os
problemas diagnósticos por esses autores? Em que medida os autores retorcem a Marcha para
Oeste com base em seus objetivos?
Aqui nossa leitura não tem a pretensão de afirmar sobre o pensamento dos autores, mas
se orienta por uma exegese do documento. Está fora de nosso modesto objetivo analisar o
pensamento de Nelson Werneck Sodré ou mesmo uma fase dele (CUNHA, 2001; CONTE,
2010), tal qual o de Geraldo Rocha. Privilegiamos o texto em seu contexto mundano (SAID,
2004: 14-15) em detrimento do autor. Acreditamos que a publicação sobre uma política
nacional em um contexto de ditadura fascista é feita com uma série de limitações para os
autores, mesmo uma espécie de autocensura. Todavia, os textos foram escritos nesse contexto
e não em outro e é refletindo sobre suas relações com o mesmo que faremos a sua leitura. Um
texto escrito em um período de Estado de exceção é um exemplo que “Não há documento de
cultura que não seja documento de barbárie” e aí o historiador precisa “escovar a história a
contrapelo” (BENJAMIN, 2012: p. 12-13). Afinal, um texto impresso é um produto de um
processo coletivo – editores, censores, leitores (CHARTIER, 2007) – e uma vez no mundo, não
pertencem mais ao seu autor (Said). Ao mesmo tempo, eles fazem parte de uma disputa em que
há um campo de luta pelo monopólio da representação da realidade. “Oeste” e “Rumo ao Oeste”
serão lidos como algo do mundo do texto, e não como exemplares de um pensamento do autor.
Por fim, mas não menos importante, um texto é um ato de poder (SAID, 2004) não
menosprezável em um mundo em que há pessoas sem texto, ou porque não publicam, porque
não escrevem ou porque não leem.
Mato Grosso: Oeste como desertão em Nelson Werneck Sodré
Sodré é um dos principais historiadores brasileiros, em que pese o ostracismo de sua
obra relativamente a outros contemporâneos. Publicado em 1941, “Oeste” é um ensaio histórico
que visa caracterizar os aspectos econômicos e sociais do Mato Grosso, diagnosticar problemas
políticos, identificar a formação histórica do regional dentro do nacional e apresentar
perspectivas fundamentadas no conhecimento do passado. Designando o Mato Grosso sem
fronteiras precisas – às vezes vaga por Goiás, às vezes pela Amazônia – o Oeste de Sodré foi
4
objeto privilegiado do plano de Vargas. O Oeste de Sodré está ao oeste de Piratininga colonial
– o verdadeiro centro da nação. Em que pese isso, a região está mais integrada com o vale do
Prata do que com o leste brasileiro do ponto de vista econômico.
Sodré afirma que os 50 anos de República marcaram o regresso às “fontes primitivas e
básicas” da nacionalidade através da “marcha lenta e contínua da civilização no sentido do
interior” sob hegemonia do poder central (SODRÉ, 1941: 11).
O Oeste se caracteriza pela predominância do regime pastoril, sobretudo após a
“decadência da borracha” (SODRÉ, 1941: 13). O pastoreio atraiu os ex-seringueiros na
República, os paraguaios no período imperial, especialmente no pós-guerra e os gaúchos e
mineiros do rio São Francisco no período colonial (SODRÉ, 1941: 13). um “habitat prodigioso”
no Mato Grosso o “regime pastoril encontrou a sua força máxima” nas serras do Maracujá e do
Amanbai, na vazante do Pantanal e nos vales do Paraná, Paraguai e Madeira (SODRÉ, 1941:
15). Com “fome inesgotável de novas terras”, de acordo com Sodré, o homem do regime
pastoril “vive na fascinação dos horizontes” (SODRÉ, 1941: 16), quase numa lógica
antieconômica. Essa “civilização do couro” – ao contrário do sentido do conceito criado por
Capistrano de Abreu – “não chegou a criar sinais visíveis de estabilidade social” devido ao seu
“nomadismo” característico (SODRÉ, 1941: 22,25). Até mesmo a história é difícil de escrever,
pois, afirma Sodré, a ocupação da fazenda pecuarista não deixou documentos, visto que o
vaqueiro foge da autoridade e do fisco (SODRÉ, 1941: 55). O autor não considera preencher
essa lacuna pela “pura tradição oral” (SODRÉ, 1941: 88) e não somos capazes de entender por
quê. Não empresta sua voz aos dizeres dos sem texto. Aliás, Sodré considera difícil escrever a
história do pastoreio pois este só deixou rastros “na tradição oral, na documentação escassa,
nos arquivos normais, nas freguesias, dos cartórios, em que se nota a repetição monótona, a
constância dos motivos, a eternidade de sinais, e a inercia pronunciada, a resistência às
modificações, a atonia” (SODRÉ, 1941: 92).
“Nômade e dispersiva”, a cultura pastoril do autor não possibilita “acarretar a fixação,
a casa, o arraial” (SODRÉ, 1941: 56). Povoamento de pioneiros de Mato Grosso pelo pastoreio
é “lento, pausado, demoralíssimo” e tende a “permanecer” no Oeste, afirma o autor, ao contrário
dos surtos migratórios que chegaram e debandaram atraídos pela borracha e mineração – e
dispersos pela sua crise (SODRÉ, 1941: 67). Embora marcado pelo “primitivismo social”
(SODRÉ, 1941: 24), a cultura pastoril desbravava e civilizava” (SODRÉ, 1941: 67), uma leitura
5
ambígua do historiador. Aqui a pecuária é demasiado civilizada para exaltar os pioneiros sobre
os índios e primitiva o suficiente para requerer sua extinção pelo desenvolvimento.
Impermeável à mudança, pastoreio mantem “traços primitivos” de “sua “ordem estática”
(SODRÉ, 1941: 92).
Quando se detém no sujeito histórico da ocupação, Sodré narra sua luta contra os vários
adversários, a solidão, a pobreza, o estrangeiro – seja na forma do índio ou do invasor paraguaio.
O habitante do Oeste – e só o não-índio e o não-paraguaio habitam – é um fugitivo da lei e da
autoridade. Sodré começa a aventura desses heróis encourados com a chegada e
estabelecimento em clãs. Chamados pela geografia – “as terras convidam” (SODRÉ, 1941: 72)
– com seus pastos e rebanhos, de acordo com Sodré esses homens enfrentam os perigos do oeste
para permanecerem, na pobreza e solidão, é fato, mas em liberdade. Do mesmo modo que o
autor exalta essa liberdade no passado, pretende suprimi-la então com o fortalecimento da
autoridade.
Sodré caracteriza esses clãs que vivem dispersos, em desordem, sem lei nem moeda,
nem cidades (SODRÉ, 1941: 16-17). O “campeador tem hábitos firmes e padrão de vida pobre”
(SODRÉ, 1941: 16). Impossibilitados de reunir grande fortuna, no Oeste, são “os grandes
senhores pobres” (SODRÉ, 1941: 74). Essa “gente forte” malhada pela solidão, barbárie e
pobreza é “apta ás agruras da existência livre” (SODRÉ, 1941: 75). Para o historiador, “só
homens livres podiam cingir-se ao modo de existência que o nomadismo impunha” (SODRÉ,
1941: 85). Teríamos aqui que crer que não havia escravos na pecuária do Mato Grosso.
Marcados pelo nomadismo e “pobreza, essa gente de transição, primaria, obscura, apagada”
(SODRÉ, 1941: 85), conquistou o Oeste numa “história monotona” que não deixou “marcos
que assinalem a grandeza dessa conquista” (SODRÉ, 1941: 88). Os clãs do Oeste não são
passíveis de grande classificação sociológica, afirma o historiador, que diz que “hierarquia
pastoril é mínima” e senhor e servo estão em pé de igualdade (SODRÉ, 1941: 131). Embora
não constitua uma sociedade de uma classe só, “na servidão pastoril não há maldade,
malevolência, prepotência”, apenas “imposição do processo de produção” (SODRÉ, 1941:
131).
Para Sodré, são o mineiro e o gaúcho que levam o pastoreio para o Oeste. Os grupos
humanos pré-existentes se tornam elementos estranhos, nem da sociedade, nem da natureza;
esta sempre aquiesce com o colonizador e não oferece “obstáculo serio e intransponível (...) à
6
expansão pastoril”. Para o historiador, “único obstáculo era o índio” (SODRÉ, 1941: 74).
Impedindo a fixação – que não vamos chamar de branca ou mestiça porque não aparece no
texto do autor, mas sobram os adjetivos humanos para se referir à expansão e ocupação do
latifúndio pastoril – o índio é associado ao “saque, ao roubo e à destruição” (SODRÉ, 1941:
79). Claro, isso quando os índios estão na condição de sujeitos de. Quando sujeitos a, eles são
vítimas das bandeiras, o espólio da guerra entre paulistas e jesuítas castelhanos que compõem
a narrativa da “civilização” do Oeste. Um marco da conquista dos paulistas é a destruição de
Santiago de Xerez em 1632, para Sodré (SODRÉ, 1941: 36). A leitura do historiador não deixa
dúvida da atividade dos paulistas no Oeste, pois ele afirmava que estes fizeram “razzias” nas
missões dos jesuítas a partir de 1648 (SODRÉ, 1941: 37). A leitura de Sodré de que os paulistas
enfrentavam os jesuítas para conquistarem territórios e consolidarem sua autonomia – contra
os lusitanos no litoral atlântico e contra os castelhanos no Oeste – ou se eram escravizadores de
índios capturados às missões (SODRÉ, 1941: 40).
Ao encerrar a fase das bandeiras, Sodré narra a atividade mais nobre que os paulistas se
dedicavam a partir das monções – embora não abandonassem as práticas de extermínio dos
homens e escravização de mulheres e crianças – que é a descoberta de ouro em Goiás e Cuiabá
no século XVIII (SODRÉ, 1941: 43-48). Na narrativa de Sodré, a hegemonia da conquista do
Oeste se deve às bandeiras e monções, tal qual a ditadura do Estado Novo difundia no programa
Marcha para Oeste. Sodré está alinhado com Cassiano Ricardo nessa narrativa, sobretudo com
seu paulistocentrismo da conquista territorial a partir de Piratininga (SODRÉ, 1941: 33). O
historiador não deixa claro se o paulista recuou do Oeste no declínio do ouro (SODRÉ, 1941:
50) e mineiros e gaúchos o ocuparam com pastoreio depois – Sodré sequer oferece uma data
precisa para o início deste, embora ele sempre prevaleça ou sobreviva aos declínios de
mineração.
Os clãs pastoris se definem pela pobreza, “baixo padrão de vida”, e pela liberdade,
“ânsia autônoma” (SODRÉ, 1941: 22). O historiador afirma que sua “alimentação (...)
paupérrima”, mas não esmiúça em que ela consiste (SODRÉ, 1941: 23). Braudel em seu estudo
Civilização... menciona como são privilegiados os povos que comem carne no período
moderno, enquanto a esmagadora maioria da humanidade dispõe apenas de papas.
É aqui que Sodré constrói o paradoxo da convivência entre latifúndio e pobreza. O
historiador afirma que os “donos de latifúndios extensos, viviam num padrão de existência
7
paupérrimo, ligado indefectivelmente ao regime pastoril” (SODRÉ, 1941: 84). E aí aparece
uma das partes mais interessantes do texto, que é a história da propriedade no Oeste.
Primeiro, a propriedade se baseia na “posse primitiva”, sempre extensa, sem cultivo ou
benfeitoria, como impunha o pastoreio, segundo o autor (SODRÉ, 1941: 83). A impossibilidade
de conseguir sesmarias – além de fugitivos das autoridades – levava os clãs do Oeste a
preferirem a posse (SODRÉ, 1941: 83). Sodré menciona o “registro perante o vigário da
freguesia de Miranda” feita por alguns donos de latifúndios como falsificação de documentos
de terra (SODRÉ, 1941: 79). Sabemos hoje por pesquisadores diversos (NEVES, 2005;
MOTTA, 2008; SILVA, 1996) que o “registro perante o vigário” não era registro, mas livre
declaração e compõem uma espécie de censo fundiário decorrente da lei de terras de 1850. Por
fim, nenhum título garante propriedade, o que lhe dá legitimidade são as relações sociais
estabelecidas.
Para Sodré, uma vez “adquirido as posses por processo manso, pacífico e primário;
aqueles que adiante, foram os troncos formidáveis de famílias numerosas” (SODRÉ, 1941: 86).
Aqui, mais uma vez, há o silenciamento dos grupos humanos que foram vítimas das razias e
extermínio. É a repetição de sua morte, na história e na narrativa histórica (BENJAMIN: 2012,
11-12). Como os heróis dessa narrativa são nômades e livres, cabe bem que sejam desapegados
à terra – “Nada os prendia” comenta o autor (SODRÉ, 1941: 87). Predominava no pastoreio de
Sodré o “absoluto desvalor do solo, a desestima pela terra” (SODRÉ, 1941: 85). Sem dúvida é
esse momento do texto em que o idílio mais aparece: o “patriarcado pastoril é manso, nas suas
relações de propriedade” (SODRÉ, 1941: 89). Desaparecem o paraguaio, o guarani, o índio e
reina a pax no Oeste - “não há questões de propriedade, entre esses bravos” (SODRÉ, 1941:
88). “Não havia conflitos de terras” (SODRÉ, 1941: 90) segundo o historiador. Contudo, o
autor acrescenta duas páginas adiante: o pastoreio tem mais pontos de conflito que de contato
com outras formas de vida, de produção” (SODRÉ, 1941: 92) e a história permite novamente a
contradição e a violência.
O historiador distingue a agricultura como “forma de vida, de produção” das lavouras
“pequeniníssimas, rudimentares, primitivas” existente dentro do pastoreio para subsistência,
jamais comércio (SODRÉ, 1941: 91). Os estudos sobre pecuária no sertão da Bahia sugerem,
ao contrário, a convivência entre a criação de gado e uma policultura camponesa densa, sem
que esta se sobreponha àquela (NEVES, 2012). O historiador se aproxima de uma descrição do
8
britânico James W. Wells de um vilarejo no sertão baiano em 1885, quando este afirma que
“Habitantes de lugares como o Boqueirão são tão inúteis como se não existissem; não tem nada
para vender, ou recursos para comprar” (WELLS, 1995: 62). A visão do “imperialismo intra-
fronteiras” não é distinta do viajante da potência imperialista nos trópicos quando se trata de
ver a produção de vida por meio de valores de uso.
Para Sodré, só se vence o desertão – outro personagem que aparece a ser batido – por
meio da agricultura que transformará o Oeste em celeiro e integrará a América (SODRÉ, 1941:
127). Não logrou êxito nisso, porém, o cultivo de erva-mate iniciado em 1822 e intensificado
após a Guerra do Paraguai, de acordo com o autor. Porque usaram mão de obra paraguaia, os
empreendimentos eram de estrangeiros e o produto se voltava ao mercado argentino através do
curso natural da bacia do Prata. Mais extrativismo que agricultura, a erva-mate não integrou o
Oeste na economia nacional, nem levou a civilização para o interior, na avaliação de Sodré,
apesar de romper com o exclusivismo do pastoreio no desertão.
A ferrovia seria mais bem sucedida na medida em que esta alterou os “fundamentos” do
“ambiente do Oeste” onde foi implantada, segundo o autor (SODRÉ, 1941: 151). Apenas
Cuiabá e as cidades da via férrea possuíam, então, casas de tijolo, atesta o historiador para falar
das mudanças (SODRÉ, 1941: 125) – ficamos tentados a acrescentar que a imprensa costumava
chegar onde os transportes fluviais e ferroviários barateavam o papel (MACHADO, 2009).
Apenas as ferrovias, ao lado dos rios Paraguai, Madeira, Paraná, Parnaíba “determinaram zonas
de condensação humana” (SODRÉ, 1941: 144-145). Nos dizeres do autor, a ferrovia atou o
Oeste ao corpo nacional (SODRÉ, 1941: 151).
A seguir, o autor levanta o problema da organização política territorial. “Para Portugal,
administrar era dividir” (SODRÉ, 1941: 159), o que instala um vício no passado brasileiro que
é preciso ser corrigido pela integração através do “imperialismo intra-fronteiras”. Fica a dúvida
se a fragmentação municipal proposta pelo autor, à medida que a “condensação humana”
permita, não seria também uma forma de dividir para dominar? Integrar através de ferrovias
não é também subordinar, administrar, desarticular? Para Sodré, o pluralismo administrativo
não favoreceu unidade nacional do mesmo modo que o provincianismo não proporcionou a
integração econômica do Brasil (SODRÉ, 1941: 161). O autor e o ditador do Estado Novo tem
em mente algo em comum: a integração através do poder central contra o provincianismo ou
federalismo fragmentadores.
9
No Oeste, os municípios do desertão são imensos e carecem de autoridade para se
contrapor ao poder dos clãs. A luta política, afirma o historiador, ocorreu em torno das câmaras
e dos municípios (162) e se baseia no predomínio do campo sobre a cidade (SODRÉ, 1941:
164). Os núcleos dos municípios não tem poder efetivo, afirma Sodré (SODRÉ, 1941: 164).
Para o autor, a razão é histórico-social: no pastoreio, o município não consegue se firmar como
comunidade de interesse (SODRÉ, 1941: 172). As câmaras dominadas pela força do
patriarcalismo familiar esmagam as cidades do Oeste, de acordo com Sodré (SODRÉ, 1941:
164). O pastoreio, o familismo e a pobreza enfraquecem a autoridade do município, levando,
nas palavras do historiador, à “contínua inconciliação entre a grande propriedade e as
organizações municipais” (SODRÉ, 1941: 165). O pastoreio fundamenta o “mandonismo dos
clãs” contra a “autoridade social”, segundo Sodré (SODRÉ, 1941: 167). Há municípios que
distam até 10 dias – ou mais de 1000 quilômetros – da capital do Estado, não há auxílio eficaz
deste em socorrer à autoridade independente frente ao poder do clã pastoril, afirma o autor
(SODRÉ, 1941: 172). Considerando que o pastoreio não evoluirá para a agricultura parcelada
(SODRÉ, 1941: 173), diz o historiador, os municípios estão condenados a não ter existência
graças ao latifúndio pastoril, ao mandonismo e à pobreza (SODRÉ, 1941: 177). Sodré trás duas
coisas importantes na tradição do pensamento social brasileiro: a denúncia do latifúndio como
estrutura que perpetua uma organização social de penúria extrema, fome, alta mortalidade
infantil, precariedade das moradias; e a associação causal e recíproca entre mandonismo e
estagnação econômica. Também há uma grande afinidade do texto sobre o Oeste brasileiro com
o mito do West americano que associa propriedade parcelada da terra com democracia de
massas (VELHO, 2009).
Em contrapartida, concordando com autores dos mais diversos espectros políticos e
ideológicos, fica expresso no texto que o desenvolvimento econômico ruiria as bases do
mandonismo ao erradicar a pobreza e o monopólio das terras e do poder, embora liberais e
desenvolvimentistas discordem de quais sujeitos e leis operariam na dissolução modernizante
desse atraso. Ambos subestimaram a capacidade tanto do latifúndio se modernizar, quanto do
mandonismo se mesclar com a modernidade.
Por fim, Nelson Werneck Sodré aborda o problema nacional. Ele menciona que no Oeste
o guarani é o idioma predominante (SODRÉ, 1941: 185) e que o isolamento do Oeste em termos
de transporte leva à predominância da influencia paraguaia (SODRÉ, 1941: 191). Essa
10
tendência de desnacionalização marcada pela falta de escolas que difundam a língua portuguesa
(SODRÉ, 1941: 185, 192), deve ser combatido pela ação apoiada no “primado do regime
agrícola” (SODRÉ, 1941: 199), no avanço da ferrovia e no parcelamento das propriedades
pastoris (SODRÉ, 1941: 200). A ferrovia escoará a produção do Oeste – e mesmo da Bolívia e
Paraguai – para o porto de Santos, neutralizando “ação desnacionalizadora e anti-brasileira do
sistema fluvial” que conduz a produção do Oeste ao vale do Prata (SODRÉ, 1941: 200). Não
deixa de ser irônico que o mito nacionalista da Marcha para Oeste seja o bandeirante auxiliado
pelas águas que correm para o ocidente, mas então as mesmas águas exercem um papel
antinacional.
A ferrovia, afirma Sodré, abrirá mercados para o parque industrial paulista (SODRÉ,
1941: 200). O incremento demográfico consequente levará à fragmentação dos imensos
municípios e maior atividade destes na vida (SODRÉ, 1941: 201). Essa nova “faze de riqueza
e libertação” se sustentará na “marcha da agricultura com o advento civilizador e
nacionalizador”, afirma o historiador. Novamente a imagem militar da conquista imperialista.
Desse modo, a infantaria da agricultura avançaria após a cavalaria ferroviária nessa nova
aventura do “imperialismo intra-fronteiras”. Os derrotados previsíveis são os déspotas locais, a
vitória da cidade sobre o campo, a conquista de mercados para o “parque industrial paulista” e
o silenciamento dos povos do Oeste. A ideia de ferrovia como agente do progresso andava meio
abalada com o desmonte de várias linhas no mundo inteiro nos anos 1930 (CAMELO FILHO,
2000), mas Sodré confia nela e no poder desse personagem de mudar essa narrativa.
Sodré encerra assim sua obra, irônica no sentido de que os heróis do passado que
conquistaram o território em busca de liberdade e fugindo da autoridade se tornaram os vilões
do presente, déspotas chefes de clãs que esmagam a autoridade municipal e implantam seu
mandonismo do atraso. Essa epopeia dos foras da lei terminará com o avanço civilizador e
nacionalizador da agricultura, da ferrovia que levará produtos, camponeses e tropas e do Estado.
Os vilões, porém, também são vítimas do desertão, ao mesmo tempo serão derrotados e salvos,
pelas manufaturas paulistas e pelo progresso agrícola-ferroviário.
O São Francisco na Marcha rumo a Oeste segundo Geraldo Rocha
O panfleto Rumo ao Oeste consiste em duas cartas abertas publicadas no mesmo ano,
com conteúdos afins, uma endereçada ao presidente da República Getúlio Vargas e outra ao
11
interventor federal na Bahia – não está nomeado, mas então ocupava Landulfo Alves. Na
primeira, datada de sete de janeiro de 1941, o autor inicia com uma exposição do histórico
precedente – uma característica do mesmo. Até 1929, no Brasil “levávamos uma existência
mais ou menos artificial, recorrendo sempre aos empréstimos externos (...) constante inflacção
de créditos (...) sem a evolução decorrente da passada guerra, nos levaria com certeza a
situações semelhantes ás que fizeram o Egypto perder a sua independência em 1881”. Aqui
percebemos a ênfase na dependência econômica – conceito popularizado décadas depois – da
exportação de capitais dos países centrais que resultou, com o fechamento desses mercados, no
período protecionista e de depressão econômica dos anos 1920 na chamada política de
substituição de importações. Ao mesmo tempo, o autor associa o fenômeno da dívida pública a
uma questão de segurança nacional e soberania e faz analogia ao endividamento do Egito – país
o qual Rocha constantemente faz paralelos ao Brasil – antes de ser invadido e colonizado pela
Grã-Bretanha. Enquanto Sodré temia pelos países do Prata sobre o Mato Grosso, Rocha
vislumbrava o perigo de uma conquista soviética ou japonesa.
A seguir, começa uma análise das classes e sua situação na década precedente.
Curiosamente, Rocha opõe a classe produtora empresarial à classe proletária, a primeira
mourejando e a segunda assistida pelo Estado assistencial. Por um lado, estão as “classes
productoras”, entendidas como as as classes empresarias e proprietárias “sem assistência ou
garantia de qualquer espécie” (ROCHA, 1941). Por outro lado, a classe proletária, beneficiada
pela “legislação humana” de Vargas que subiu valor da mão de obra. Para Rocha, Brasil não
tem meios de produção nem transporte, mas compensava com mão de obra barata “graças ao
standart de vida reduzido a que se achavam condemnadas as classes proletárias”, mas Vargas
“antevendo perigos e choques entre capital e trabalho” forneceu “garantias e assistência” ao
último, como ninguém na América do Sul.
Essas garantias legais subiram o salário e atraíram populações do “hinterland” para
“rumo a leste” levando ao crescimento das cidades e “déficit”, indo de encontro ao projeto do
Estado Novo que previa o país seguir Rumo ao oeste. “elementos mais eficientes das
populações sertanejas affluem ao litoral em busca de uma melhor cultura”, serviço militar e
viram “funccionários públicos e em elementos onerosos (...) desfalcando a concha positiva da
balança produtiva” (ROCHA, 1941: 3).
12
São Francisco “é das mais atingidas” (ROCHA, 1941: 5). Águas “decrescem (...) de
volume, devido à destruição das mattas pelas queimadas e á erosão constante das cachoeiras”
(ROCHA, 1941: 3), afirma Rocha. Assim, a “navegação se torna cada vez mais precária”. Sem
“iniciativa inteligente” – drenada pelos altos salários das cidades – as populações se reduzem
“á penúria” e fogem “em massa à procura do litoral” (ROCHA, 1941: 3).
O fim da “economia autarchica e do regimen artificial de tarifas” e fim do café paulista
obrigam, na avaliação imperativa de Rocha, “o aproveitamento do valle amplo, fértil e irrigado”
do São Francisco para “nossas necessidades da política de intercambio universal” (ROCHA,
1941: 4). Mais uma vez voltando aos argumentos da soberania nacional, dessa vez com o risco
do separatismo, alerta que a navegação precária transforma em um deserto região da unidade
nacional, ameaçando-a (ROCHA, 1941: 4).
Uma “simples barragem” a 90 km da confluência do Rio Grande com o São Francisco,
no Estreito, criará reserva de cinco bilhões de metros cúbicos, igual á de Assum no Egito. Essa
barragem, afirma o engenheiro, asseguraria navegação em mais de 500 quilometros do São
Francisco. E reservaria água da enchente para distribuir na estiagem. Ainda já “potencial de
energia electrica para beneficiar matérias primas” e facilitando o “grande celleiro” (ROCHA,
1941: 7). Assim, Brasil poderá estabelecer “cultura mecânica” livre dos “caprichos da natureza”
(ROCHA, 1941: 8). Porém, uma obra de tal vulto – faraônico para mais uma analogia com
Egito – “só ao Estado forte compete realizal-a” (ROCHA, 1941: 8).
Com o espírito prático, Rocha realizou experimentos para provar suas teses. Assim, o
“progresso de minha terra (...) incitará imitadores” na região (ROCHA, 1941: 12). Autor
empreendeu construção da barragem de Ouriçangas no Riacho de Angical. De “iniciativa
privada”, explorará “confins” onde os “cursos dagua são de volume mais reduzido” (ROCHA,
1941: 8). Em Barreiras, autor mandou construir no Rio de Ondas, em 1927, um canal para
“pequena usina” de 500 HP para “industrias rudimentares”. Autor pretende represa em
Gameleira para irrigação no vale do Rio Branco (ROCHA, 1941: 8). Os objetivos das barragens
estão relacionados à industrialização da pecuária. Entretanto, temendo pelo futuro dessa
atividade econômica, autor apresenta preocupações ecológicas de lógica econômica, autor
denuncia que queimadas são feitas para “destruir insectos e reptis daninhos e crescer capoeiras”
para gado, destrói “bosques” e interrompe “o curso das enxurradas” levando a secar “fontes e
lagoas”. Isso tem arruinado a pecuária na avaliação de Rocha (ROCHA, 1941: 9). Está aí uma
13
preocupação do desenvolvimento sustentável, conservar a natureza para continuar explorando-
a. A seguir, o autor considera que os mercados litorâneos fazem tropeiros perderem 50% das
reses, sem contar o preço das que chegam com peso perdido, representando, nos cálculos do
autor, 25% do que saiu. Solução tem sido o “xarque” que rende somente 100$000 por gado
adulto (ROCHA, 1941: 10). Daí, a conclusão é que é preciso abater o gado no “hinterland” e
beneficiar seus produtos com a indústria aí mesmo. aqui o contraste entre Nelson Werneck
Sodré e Geraldo Rocha a respeito da criação de gado é notória: o pastoreio primitivo deve
desaparecer na avaliação do primeiro; a atividade econômica mais estável da história do Brasil
deve ser industrializada e combinada com irrigação na opinião do segundo.
Autor pretende ampliar hidrelétrica para “prensas hydraulicas (...) aproveitamento do
óleo da mamona e do algodão e beneficiamento de lã” economizando “transporte de 70% de
substâncias de pouco valor” e remunerando melhor o produto local. Também é sua pretensão –
e consegue realizar posteriormente – implantar frigorífico para aproveitar os miúdos
desperdiçados. Há também a possibilidade de aproveitamento, defende Rocha, de “milhares de
toneladas de fructas que vegetam anualmente”. Plano é “fixar no oeste os excelentes humanos”
criando “unidade de interesses (...) de vistas e de objetivos” entre patrão e operário (ROCHA,
1941: 11).
Todos esses empreendimentos são, para o autor, mais um ato de civismo do que uma
prática de acumulação de capital. Os “hábitos simples” dos pais levaram a ter “deveres sagrados
para com seus semelhantes”, afirma Rocha com um desprendimento e ascetismo intramundano
típicos do empresário capitalista ideal de Max Weber. Mais adiante, o empresário se assemelha
mais, talvez, ao terceiro Fausto de Goethe. Os “resultados materiais” serão divididos em: 1)
renovar instalações; 2) aumentar salários por mérito e posição; 3) “bonificar os fornecedores de
fructos nativos, sementes oleaginosas, gado e matérias primas” criando “regimen cooperativo”
para “confiança (...) prosperidade e riqueza da região” (ROCHA, 1941: 13). Em relação ao
segundo ponto – aumento de salários por produção -, o autor estava familiarizado com a alta
produtividade e elevado grau de exploração do salário por peça e menciona a prática na União
Soviética.
Para empreender sua obra cívica de desenvolvimento regional, o autor pede ao Estado
Novo “paz” e evitar “tributação irracional” na navegação. Também propõe um “texto legal
prohibindo aos Estados e municípios tributaram diretamente quaesquer indústria novas”
14
(ROCHA, 1941: 13). Uma das dificuldades, alegou anteriormente, é a ausência de “credito a
longo prazo” (ROCHA, 1941: 12), o que pode ser compensado com a isenção de impostos
(ROCHA, 1941: 13). O autor se despede pedindo permissão para publicar carta e ensejar “maior
solidariedade dos meus conterrâneos” (ROCHA, 1941: 14).
Geraldo Rocha já havia falado do fracasso em empreendimentos anteriores quando
“machinas agrícolas aperfeiçoadas” não foram aproveitadas em empreendimento que tentou em
Barreiras, atribuindo o fracasso à incapacidade do técnico responsável em impor autoridade aos
seus parentes e à “mentalidade estreita de minha gente” (ROCHA: 1937, p. 253). A lembrança
de um Policarpo Quaresma tentando fixar o progresso nos sertões da Bahia é tentadora se o
autor, além de idealista, como o quixotesco personagem de Lima Barreto, não fosse também
um empreendedor capitalista e grande proprietário de terras.
Na carta endereçada ao interventor baiano, datada de 17 de janeiro de 1941, os
argumentos são semelhantes, mas as vezes aprofundam a contida na epístola para Vargas.
Pecuária ainda não alcançou todas as suas “possibilidades”.
Há também o argumento ecológico de que “queimadas annuais” empobrecem o solo,
reduzem águas e prejudicam os rebanhos com o “desapparecimento das aguadas escassez das
pastagens” no trajeto das boiadas até o litoral.
Para Rocha, as “dificuldades de communicações” levam sertanejos a “constante êxodo
para o litoral”. Rocha defende que frigoríficos surgindo sobre os espaços da pecuária poderiam
solucionar a crise. Essa solução de multiplicar frigoríficos na “região central do nordeste
brasileiro” remuneraria melhor o criador da “região pastoril”.
Em contrapartida aos “especuladores estrangeiros” que prejudicam produção de
mamona, Rocha sugere a instalação de “prensas apuradoras na região produtctora do
‘hinterland’ central” economizando 66% de fretes inúteis com transporte de resíduos. Na
mesma linha de raciocínio, a industrialização da mamona pode ser usada para criação de
empregos e fixação das populações através do progresso no interior.
Apelando à formação em zootécnica do interventor Landulfo Alves, Geraldo Rocha
chama atenção para o declínio do rebanho equino devido à elevação do preço da terra nas
proximidades do litoral. A região do São Francisco, afirma o jornalista, é propícia à
suinocultura, livrando-a de jacarés e felinos. A mesma solução da mamona e do gado bovino
15
pode ser aplicada através da instalação de “fábricas apuradoras de banha e de defumação de
carne de porco”.
A Companhia Sertaneja, de propriedade e sob direção do autor, pensa no “progresso do
Brasil” e quer “ampliar o aproveitamento das zonas irrigadas do alto Rio Grande, construindo
barragens e canoas” para dessedentar rebanhos e evitar mortandade na seca. Esses canais podem
gerar energia elétrica com turbinas que acionariam “machinas do matadouro e fabrica de ‘carne-
d-beef’ e de produção de banha”. Com o mesmo princípio – canais, turbinas, fábricas – é
possível ainda, afirma Rocha, aproveitar o caju, a goiaba para exportação. Há também a
montagem de prensas de algodão e mamona – que aliás, já existiam em vários lugares do vale
do São Francisco, como Barreiras, Jupaguá, Santa Maria da Vitória, Xique-Xique e Pilão
Arcado.
Geraldo Rocha afirma que Barreiras, cidade onde se sedia a Companhia Sertaneja, dista
1.000 quilômetros do litoral e sofre de problema de transportes: “navegação deficiente” com
barcas pequenas de no máximo 60 toneladas, “frete proibitivo” na ferrovia Bahia ao São
Francisco – que liga o porto fluvial de Juazeiro à Salvador. Sem melhoria nos transportes,
afirma Rocha, “a vida da indústria tornar-se-á efêmera e o valle do São Francisco tornar-se-á
improductivo como actualmente” com 3.000 toneladas de mercadorias por ano. Não adianta a
esfera da produção se desenvolver, através da indústria, sem a melhoria no sistema de
transportes, afirma Rocha em comum acordo com o papel da circulação na civilização na visão
de Nelson Werneck Sodré.
Por fim, Geraldo Rocha afirmar acreditar que “seu programa obedece ás diretrizes do
‘Rumo ao Oeste’ ditadas pelo Chefe da Nação” – e do interventor – de modo que pede para
“todos aquelles que emprehenderem novas industrias tendentes a incrementar a riqueza animal
ou vegetal da região são-franciscana a garantia de que não serão esmagados por impostos
estaduais e municipaes” sem a resolução do problema de “transporte a baixo preço”.
Considerações finais
Nas cartas do panfleto Rumo ao Oeste, Rocha faz o diagnóstico de uma crise econômica.
Essa crise se revela pelo drama do êxodo. Aqui temos uma diferença entre o Mato Grosso e o
vale do São Francisco, o primeiro representado como vazio demográfico e o segundo com
excedente populacional. Ambos em relação, como a trajetória de Martins de Oliveira
16
demonstra: o escritor nasceu em Barra-Ba e após a falência sucessiva dos negócios da família,
migra para Cuiabá (OLIVEIRA). Contraditoriamente, o vazio demográfico do Mato Grosso em
Sodré é efeito da predominância da pecuária enquanto o êxodo do São Francisco é efeito da
crise da pecuária aliada à dificuldade de escoar produtos agrícolas para os mercados
consumidores. Perspicaz em apresentar problemas de conservação da natureza como um dos
motivos da crise da pecuária, Rocha ignora a crise mundial dos anos 1930, provavelmente
porque invalida sua argumentação na medida em que uma crise regional pode ser resolvida com
intervenção regional do Estado brasileiro.
Resta comentar mais algumas questões. Sodré e Rocha aceitam a necessidade de
conquista do interior. Sodré fala em conquista da agricultura, enquanto Rocha fala em uma
espécie de industrialização da pecuária. Em Rocha, os habitante do São Francisco são agentes
do progresso, caso as condições necessárias sejam devidamente atendidas, enquanto em Sodré,
os moradores do Oeste chegam a ser um empecilho ao progresso que transformará os sujeitos.
Sodré considera que a ferrovia e a agricultura são os elementos necessários para
dissolver o pastoreio e civilizar o Oeste. Rocha tem uma visão de seu oeste são-franciscano não
só como espaço civilizado, mas o verdadeiro berço na nacionalidade. As medidas de Sodré são
de conquista do Oeste para a civilização. As de Rocha são uma resposta à decadência. Em Sodré
o Oeste é um lugar a ser integrado ao restante do Brasil. Em Rocha o São Francisco é fator
físico da integração nacional, pois a via fluvial une sul e norte, litoral e hinterland amazônico.
Em ambos, a natureza é um personagem ativo na narrativa, pois os rios do Oeste
fragmentam a nacionalidade, levam a sul e norte, mas a planície lhe dá unidade. Em Rocha, o
rio São Francisco integra, troca e circula pessoas, bens, nacionalidade. As terras convidam o
bandeirante para o Oeste e o rio São Francisco leva o homem do interior para o litoral, a um
alto frete.
A narrativa de Sodré, em terceira pessoa, fala dos clãs e sua história grandiosa de
conquista contra os índios. Os personagens da conquista que estar por vir, porém, são a
agricultura e a ferrovia, agentes da condensação humana e da civilização. Em Rocha, o sujeito
do passado histórico de conquista é idêntico ao do projeto: o bandeirante que virou sertanejo,
pelo menos o grande proprietário de terras e usinas. O índio é a alteridade do conquistador do
Oeste em Sodré; em Rocha, é um ingrediente da receita do sertanejo mestiço. O sertanejo de
Geraldo Rocha – e no seu texto o personagem e autor se confundem – é sujeito da pecuária e
17
agricultura no São Francisco, mas carece que o Estado não atrapalhe – com impostos – e se
possível ajude – com obras hidráulicas – na continuidade da obra do progresso. Rocha é um
narrador-personagem e Sodré é um narrador fora da história. Ambos silenciam uma miríade de
sujeitos, o primeiro ao representa-los ou ocupar o lugar e falar por eles e o segundo por ignorá-
los ou coloca-los como um outro não-cognoscível, como o exemplo do índio.
O Oeste de Sodré é um lugar a ser integrado pelo “imperialismo intra-fronteiras”. O
oeste são-franciscano de Rocha é a região que integra a nação e reconquistá-la é industrializá-
la.
Referências
BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte:
Autêntica, 2012.
CALONGA, Maurilio Dantielly. A Marcha para Oeste e os intelectuais em Mato
Grosso: política e identidade. Revista Espaço Acadêmico, n. 168, maio 2015.
CAMELO FILHO, José Vieira. A Implantação e Consolidação das Estradas de Ferro
no Nordeste Brasileiro. Tese de Doutoramento. Campinas, UNICAMP, 2000.
CHARTIER, Roger. Inscrever & apagar. Cultura escrita e literatura. São Paulo: Editora
Unesp, 2007.
COELHO, George Leonardo Seabra. Marcha para o Oeste: entre a teoria e a prática,
Dissertação de Mestrado (História), Universidade Federal de Goiás, 2010.
CONTE, Daniela. Nelson Werneck Sodré e as interpretações do Brasil moderno (1958-
1964): análise de conceitos e contexto de um intelectual brasileiro. Dissertação de mestrado
(história) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2010.
CUNHA, Paulo Ribeiro Rodrigues da. A utopia tenentista na construção do pensamento
marxista de Nelson Werneck Sodré. Tese de doutorado (Sociologia) - Universidade de
Campinas. Campinas, 2001.
GONZÁLES CASANOVA, Pablo. Colonialismo interno: uma redefinição. In:
BORON, A (org.), AMADEO, J (org.), GONZÁLEZ, S. A teoria marxista hoje. São Paulo:
Expressão Popular, 2007.
18
MACHADO, Fabiana da Silva. O trem das grotas: a ferrovia Leste Brasileiro e seu
impacto social em Jacobina (1920-1945). Dissertação de Mestrado (História) – Universidade
Estadual da Bahia. Santo Antonio de Jesus, 2009.
MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder. 2 ed. rev. e amp. Niterói:
Editora da UFF, 2008.
NEVES, Erivaldo Fagundes. Escravidão, pecuária e policultura: Alto Sertão da Bahia,
século XIX. Feira de Santana: UEFS Editora, 2012.
NEVES, Erivaldo Fagundes. Estrutura fundiária e dinâmica mercantil. Feira de
Santana: UEFS; Salvador: EdUFBA, 2005.
ROCHA, Geraldo. Nacionalismo político e econômico. Finanças e actualidades
mundiaes. Rio de Janeiro: Oficinas da A Nota, 1937.
ROCHA, Geraldo. Rumo ao Oeste. Rio de Janeiro, Cia. Sertaneja, 1941.
SAID, Edward W. El mundo, el texto y el crítico. Traducción Ricardo García Pérez.
Buenos Aires: Debate, 2004.
SILVA, Genilder Gonçalves da; MELLO, Marcelo de, A revolução de 1930 e o discurso
de ruptura: Goiania e a marcha para Oeste, Cordis: Revoluções, cultura e política na América
Latina, São Paulo, n. 11, p. 57-89, jul.dez. 2013.
SILVA, Lígia Osorio. Terras devolutas e latifúndio. Campinas: Editora da Unicamp.
1996.
SODRÉ, Nelson Werneck. Oeste. Ensaio sobre a grande propriedade pastoril. Rio de
Janeiro: Livraria José Olýmpio Editora, 1941.
VAISMAN, Ester. A Ideologia e sua determinação ontológica, Verinotio revista on line,
n. 12, Ano VI, out. 2010.
VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo autoritário e campesinato. Rio de Janeiro:
Centro Edelstein de Pequisas Sociais, 2009.
WELLS, James W. Explorando e viajando três mil milhas através do Brasil. Do Rio de
Janeiro ao Maranhão. Tradução de Myriam Ávila. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro/
Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1995.