9
Atualidades Ornitológicas, 210, julho e agosto de 2019 - www.ao.com.br 59 Registros de comportamentos do mocho-dos-banhados, Asio flammeus (Strigiformes: Strigidae) durante atividade reprodutiva em ambiente antropizado Valdir Felipe Paulete¹, Eduardo Roberto Alexandrino 2 & Silvia Regina Gobbo 1,3 Recebido: 27/2/2019. Aprovado: 19/7/2019. Resumo. A coruja mocho-dos-banhados (Asio flammeus), embora seja considerada sob algum grau de ameaça de extinção em alguns estados brasileiros, ainda é comumente registrada em atividade re- produtiva em paisagens antropizadas, como áreas agrícolas e periur- banas. Visando prover mais informações sobre os comportamentos relacionados a sua atividade reprodutiva nesses locais, realizamos sete meses (fev-ago/2015) de observação a dois casais de Asio flam- meus no interior paulista (municípios de Piracicaba e Americana). Os casais foram monitorados ad libitum (108 h de esforço amostral em 44 dias) e todos os comportamentos foram registrados em um eto- grama. Dentro de cinco comportamentos padrões observados (caça, manutenção, interação, empoleirado, alimentando) identificamos 19 comportamentos específicos, inclusive um comportamento de corte- jo e outro de sinalização de local para nidificação, pouco conhecidos entre os observadores de aves brasileiros. Os comportamentos relati- vos à “caça” perfizeram aproximadamente 75% de todos os registros aos casais. Dois ninhos foram registrados, ambos confeccionados no solo em meio à vegetação rasteira alta, tendo sido observados até três ovos e um filhote que conseguiu atingir a fase adulta. Todos os com- portamentos são descritos ao longo deste artigo. Palavras-chave: corujas, história natural, nidificação, conservação de aves, impactos antrópicos, etograma. Abstract. Behaviors of Short-eared Owl, Asio flammeus (Strigi- formes: Strigidae) during the breeding activity in human-mod- ified landscape. The Short-eared Owl (Asio flammeus) is a species commonly reported in breeding activity in human-modified land- scapes, such as rural and urban landscapes, although it is considered under some extinction threat. In order to provide more information about the breeding behaviors performed in these landscapes, we monitored two couples in Sao Paulo countryside (i.e., in Piracicaba and Americana municipalities, Brazil) throughout seven months (Feb-Aug/2015). We used ad libitum surveys (108 h of sampling effort in 44 days) and all behaviors that were observed composed an ethogram. We observed five general behaviors (hunting, main- tenance, interaction, perching, eating) and 19 specific behaviors, in- cluding two poorly known behaviors among Brazilian birdwatchers, the “courtship” and the “nest signaling”. Hunting-related behaviors were the most common during the surveys, accounting 75% of all records from both couples. We opportunely found two nests with up to three laid eggs, both designed on the ground and surrounded by tall undergrowth, and we discovered through our surveys that one fledg- ing reached the juvenile-adult stage. Our paper brings the description of all behaviors observed in the field. Key-words: owl, natural history, nesting, bird conservation, anthro- pogenic impacts, ethogram, breeding behavior. Introdução Existem no mundo 250 espécies de corujas. Pertencem à Ordem Strigiformes e são representadas pelas famílias Tytonidae e Strigi - dae, esta última com mais de 200 espécies descritas (König & Weick 2008). Ocorrem em praticamente todos os continentes, com exceção da Antártida, sendo que no Brasil há atualmente o registro de 23 es- pécies (Piacentini et al . 2015). São predadoras noturnas vorazes que apresentam algumas particularidades, como excelente visão e audi- ção, e capacidade de girar a cabeça em até 270 graus para aumentar seu campo visual (Trevor 1997, Sick 1997, Motta-Junior et al. 2004, Olsen et al. 2019). Uma espécie de coruja cosmopolita, ocorrente no Brasil, é o mocho- -dos-banhados, Asio flammeus Pontoppidan, 1763. Por possuir ocor - rência mundial, não está entre as espécies consideradas sob algum grau de ameaçada de extinção na lista da IUCN - União Internacional para a Conservação da Natureza (Soares et al. 2008, IUCN 2012). No Brasil, atualmente a espécie possui ocorrência documentada para os estados da Bahia, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, sendo que há ainda um único registro para Roraima e Mato Grosso (Sick 1997, Lopes et al. 2009, Menq 2016, WikiAves 2019). Embora ocorrente em uma área ampla do país, a densidade populacional desta coruja é baixa (Motta-Junior et al . 2004), argumento que pode ser comprova- do pelos constantes registros feitos por “cidadãos cientistas” (como os observadores de aves) de poucos indivíduos da espécie (e.g. , Ale- xandrino 2015, Paulete 2016, Cordeiro 2017, Machado 2017, Sas- sim 2017, Souza 2017, Cardoso 2017). Desse modo, o status para a conservação do mocho-dos-banhados em escala nacional pode ser preocupante. No estado de São Paulo a espécie consta na categoria “em perigo de extinção” (Silveira et al. 2009), em Minas Gerais e em Santa Catarina é considerada “vulnerável” (Consema 2011, Soares et al. 2008), enquanto que no Rio Grande do Sul e Paraná ainda há incertezas sobre sua população para categorizá-la em algum status de ameaça de extinção (Menq 2016, Soares et al. 2008). A espécie ocorre preferencialmente em áreas abertas (Roberts & Bowman 1986, Shaw 1995, Trevor 1997, Sick 1997), como campos de gramíneas naturais, cerrados (e.g., Bagno & Rodrigues 1998, Motta-Junior et al. 2008), pântanos e banhados (Sick 1997). Também possui ocorrência em campos agrícolas com cobertura ve- getal rasteira (Onrubia & Jubete 1998, Arroyo & Bretagnolle 1999)

Registros de comportamentos do mocho-dos-banhados, · 2019-10-12 · Atualidades Ornitológicas, 210, julho e agosto de 2019 - 59 Registros de comportamentos do mocho-dos-banhados,

  • Upload
    others

  • View
    8

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Registros de comportamentos do mocho-dos-banhados, · 2019-10-12 · Atualidades Ornitológicas, 210, julho e agosto de 2019 - 59 Registros de comportamentos do mocho-dos-banhados,

Atualidades Ornitológicas, 210, julho e agosto de 2019 - www.ao.com.br 59

Registros de comportamentos do mocho-dos-banhados, Asio flammeus (Strigiformes: Strigidae) durante atividade reprodutiva em ambiente antropizado

Valdir Felipe Paulete¹, Eduardo Roberto Alexandrino2 & Silvia Regina Gobbo1,3

Recebido: 27/2/2019. Aprovado: 19/7/2019.

Resumo. A coruja mocho-dos-banhados (Asio flammeus), embora seja considerada sob algum grau de ameaça de extinção em alguns estados brasileiros, ainda é comumente registrada em atividade re-produtiva em paisagens antropizadas, como áreas agrícolas e periur-banas. Visando prover mais informações sobre os comportamentos relacionados a sua atividade reprodutiva nesses locais, realizamos sete meses (fev-ago/2015) de observação a dois casais de Asio flam-meus no interior paulista (municípios de Piracicaba e Americana). Os casais foram monitorados ad libitum (108 h de esforço amostral em 44 dias) e todos os comportamentos foram registrados em um eto-grama. Dentro de cinco comportamentos padrões observados (caça, manutenção, interação, empoleirado, alimentando) identificamos 19 comportamentos específicos, inclusive um comportamento de corte-jo e outro de sinalização de local para nidificação, pouco conhecidos entre os observadores de aves brasileiros. Os comportamentos relati-vos à “caça” perfizeram aproximadamente 75% de todos os registros aos casais. Dois ninhos foram registrados, ambos confeccionados no solo em meio à vegetação rasteira alta, tendo sido observados até três ovos e um filhote que conseguiu atingir a fase adulta. Todos os com-portamentos são descritos ao longo deste artigo.Palavras-chave: corujas, história natural, nidificação, conservação de aves, impactos antrópicos, etograma.

Abstract. Behaviors of Short-eared Owl, Asio flammeus (Strigi-formes: Strigidae) during the breeding activity in human-mod-ified landscape. The Short-eared Owl (Asio flammeus) is a species commonly reported in breeding activity in human-modified land-scapes, such as rural and urban landscapes, although it is considered under some extinction threat. In order to provide more information about the breeding behaviors performed in these landscapes, we monitored two couples in Sao Paulo countryside (i.e., in Piracicaba and Americana municipalities, Brazil) throughout seven months (Feb-Aug/2015). We used ad libitum surveys (108 h of sampling effort in 44 days) and all behaviors that were observed composed an ethogram. We observed five general behaviors (hunting, main-tenance, interaction, perching, eating) and 19 specific behaviors, in-cluding two poorly known behaviors among Brazilian birdwatchers, the “courtship” and the “nest signaling”. Hunting-related behaviors were the most common during the surveys, accounting 75% of all records from both couples. We opportunely found two nests with up to three laid eggs, both designed on the ground and surrounded by tall

undergrowth, and we discovered through our surveys that one fledg-ing reached the juvenile-adult stage. Our paper brings the description of all behaviors observed in the field.Key-words: owl, natural history, nesting, bird conservation, anthro-pogenic impacts, ethogram, breeding behavior.

IntroduçãoExistem no mundo 250 espécies de corujas. Pertencem à Ordem

Strigiformes e são representadas pelas famílias Tytonidae e Strigi-dae, esta última com mais de 200 espécies descritas (König & Weick 2008). Ocorrem em praticamente todos os continentes, com exceção da Antártida, sendo que no Brasil há atualmente o registro de 23 es-pécies (Piacentini et al. 2015). São predadoras noturnas vorazes que apresentam algumas particularidades, como excelente visão e audi-ção, e capacidade de girar a cabeça em até 270 graus para aumentar seu campo visual (Trevor 1997, Sick 1997, Motta-Junior et al. 2004, Olsen et al. 2019).

Uma espécie de coruja cosmopolita, ocorrente no Brasil, é o mocho--dos-banhados, Asio flammeus Pontoppidan, 1763. Por possuir ocor-rência mundial, não está entre as espécies consideradas sob algum grau de ameaçada de extinção na lista da IUCN - União Internacional para a Conservação da Natureza (Soares et al. 2008, IUCN 2012). No Brasil, atualmente a espécie possui ocorrência documentada para os estados da Bahia, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, sendo que há ainda um único registro para Roraima e Mato Grosso (Sick 1997, Lopes et al. 2009, Menq 2016, WikiAves 2019). Embora ocorrente em uma área ampla do país, a densidade populacional desta coruja é baixa (Motta-Junior et al. 2004), argumento que pode ser comprova-do pelos constantes registros feitos por “cidadãos cientistas” (como os observadores de aves) de poucos indivíduos da espécie (e.g., Ale-xandrino 2015, Paulete 2016, Cordeiro 2017, Machado 2017, Sas-sim 2017, Souza 2017, Cardoso 2017). Desse modo, o status para a conservação do mocho-dos-banhados em escala nacional pode ser preocupante. No estado de São Paulo a espécie consta na categoria “em perigo de extinção” (Silveira et al. 2009), em Minas Gerais e em Santa Catarina é considerada “vulnerável” (Consema 2011, Soares et al. 2008), enquanto que no Rio Grande do Sul e Paraná ainda há incertezas sobre sua população para categorizá-la em algum status de ameaça de extinção (Menq 2016, Soares et al. 2008).

A espécie ocorre preferencialmente em áreas abertas (Roberts & Bowman 1986, Shaw 1995, Trevor 1997, Sick 1997), como campos de gramíneas naturais, cerrados (e.g., Bagno & Rodrigues 1998, Motta-Junior et al. 2008), pântanos e banhados (Sick 1997). Também possui ocorrência em campos agrícolas com cobertura ve-getal rasteira (Onrubia & Jubete 1998, Arroyo & Bretagnolle 1999)

Page 2: Registros de comportamentos do mocho-dos-banhados, · 2019-10-12 · Atualidades Ornitológicas, 210, julho e agosto de 2019 - 59 Registros de comportamentos do mocho-dos-banhados,

Atualidades Ornitológicas, 210, julho e agosto de 2019 - www.ao.com.br60

e especificamente no Brasil já foi relatado em pastagens (e.g., Pau-lete 2016), campos de soja e milho (e.g., Freitas & França 2009, Ghizoni-Jr & Azevedo 2010), cana-de-açúcar em início de cresci-mento (e.g., Gomes et al. 2012) e até mesmo em terrenos ocupados por gramíneas em zonas periurbanas (e.g., Pinto 2018, Cordeiro 2017, Machado 2017, Sassim 2017, Souza 2017, Cardoso 2017). Logo, a manutenção das populações desta espécie em áreas abertas antropizadas, de certa forma depende da intensidade e forma de uso antrópico nestas áreas (e.g., Roberts & Bowman 1986, Onrubia & Jubete 1998). No caso, uma das ameaças está relacionada a sua re-produção. Seu ninho é construído geralmente no chão ou em peque-nos arbustos a pouca altura do solo, de modo a ficar camuflado pela vegetação rasteira (Roberts & Bowman 1986, Shaw 1995, Trevor 1997, Sick 1997, Amaral 2007). Assim, qualquer intervenção no local, como fogo, roça, ou preparo do solo para plantio ou constru-ção, pode comprometer o sucesso reprodutivo da espécie. Sabendo que áreas de campos naturais preservados são bastante escassos no Brasil (Overbeck et al. 2015), garantir que áreas abertas antropi-zadas possam servir de habitat seguro para espécie é uma forma de contribuir com a preservação das populações brasileiras. Não se sabe, por exemplo, quais os motivos que fazem os indivíduos da espécie insistirem em nidificar em áreas agrícolas, mesmo exis-tindo constantes ameaças a sua reprodução. Logo, conhecer seus

hábitos, comportamentos e preferências são passos importantes a seres dados para enfim propor técnicas de manejo agrícola menos impactantes à espécie (e.g., Arroyo & Bretagnolle 1999).

Embora existam materiais bibliográficos que relatem a ecologia reprodutiva, comportamento alimentar e preferências de habitat da espécie (e.g., Roberts & Bowman 1986, Shaw 1995, Onrubia & Ju-bete 1998, Arroyo & Bretagnolle 1999, De la Penã 2016, Olsen et al. 2019, WikiAves 2019) ainda hoje não existem estudos que foquem na descrição do repertório comportamental desta ave durante evento reprodutivo em áreas antrópicas. Assim, descrevemos neste artigo os comportamentos realizados por dois casais do mocho-dos-banhados durante atividade reprodutiva, ambos monitorados em campos antró-picos no interior do estado de São Paulo.

Material e métodosÁreas de estudo

Realizamos o estudo nos municípios de Piracicaba e Americana, na porção sudeste do estado de São Paulo (Figura 1A). A região apre-senta clima subtropical (i.e., clima Cwa na classificação de Köppen, ver Alvares et al. 2013), com período seco entre março e setembro, e chuvoso entre outubro e fevereiro. O bioma original é a Mata Atlân-tica de Interior (Silva & Casteletti 2003, Ribeiro et al. 2009), sendo a Mata Estacional Semidecidual a formação florestal predominante.

Figura 1. A) Localização dos municípios de Piracicaba e Americana no interior do estado de São Paulo e indicação dos pontos onde este estudo foi realizado. B) Destaque em amarelo da localidade 1 (imagem à esquerda) na paisagem agrícola próximo do campus da Unimep e localidade 2 (imagem à direita)

na paisagem urbana. Região escura dentro desta localidade corresponde a uma queimada que ocorreu na época do monitoramento. (C) Vegetação alta com Brachiaria brizantha presente na localidade 1. (D) Localidade 1 após ser roçada, com a vegetação baixa exemplificando a visão

que era possível ter das corujas durante o monitoramento. Fotos: Valdir Felipe Paulete, Fonte imagens aéreas: Google Earth, imagens de agosto de 2015.

Page 3: Registros de comportamentos do mocho-dos-banhados, · 2019-10-12 · Atualidades Ornitológicas, 210, julho e agosto de 2019 - 59 Registros de comportamentos do mocho-dos-banhados,

Atualidades Ornitológicas, 210, julho e agosto de 2019 - www.ao.com.br 61

Duas localidades, uma em cada município, foram utilizadas no pre-sente estudo.

Alguns meses antes de iniciarmos nosso estudo, vínhamos, bem como outros observadores de aves (e.g., Pinto 2015a), relatando a espécie em ambos os locais realizando atividades que indica-vam uma possível ocorrência futura de evento reprodutivo (e.g., formação de casais, comportamento de inquietação conforme havia aproximação de humanos na área, registro de atividade de caça a pequenos roedores, visualização de um adulto adentrando num possível local para ninho, Shaw 1995, Arroyo & Bretagnol-le 1999). Com estes indícios, delineamos o presente estudo para realizar um monitoramento sistemático da espécie, a fim de des-crever os comportamentos dos indivíduos nestes locais durante evento reprodutivo.

Descrição das localidades Localidade 1 - Campus da Universidade Metodista de Piracica-ba – Unimep, Piracicaba/SP (22º 47’10”S, 47º35’27”W). Neste local monitoramos um casal de Asio flammeus em área de 21,8 hectares constituída predominantemente por vegetação rasteira, tal como Brachiaria brizantha e por pequenos arbustos. A pai-sagem agrícola é predominante, sendo que na época do monito-ramento havia nos arredores um condomínio residencial ainda com poucas casas construídas, pequenas manchas florestais (<2 ha) que sofreram crescimento secundário, talhões de cana-de--açúcar e uma área de 12 ha conhecida como “Fazendinha” per-tencente ao campus da Unimep onde havia uma lagoa artificial, algumas edificações espaçadas e grande número de árvores fru-tíferas plantadas (Figura 1B). Durante o período que visitamos este local observamos a ocorrência de roçadas (Figura 1C) e queimadas na vegetação. Localidade 2 – Jardim Terramérica, Americana /SP (22°45’54.64”S, 47°20’55.42”W). Assim como na localidade 1 esta também era cons-tituída por vegetação rasteira, como gramíneas da espécie Brachiaria brizantha e pequenos arbustos. No entanto, este local se está inserido da matriz urbana (Figura 1A), que na época do monitoramento era um terreno com 2,2 hectares rodeado por casas e construções (Figura 1B). Monitoramos um casal de Asio flammeus nesta localidade. Durante os três últimos meses das observações o local sofreu diversas interven-ções antrópicas, como roçadas e queimadas que prejudicaram o local de nidificação (Virtude 2014, Gustavo Pinto, com. pess, ver Figura 1B).

Levantamento e análise de dadosMonitoramos os dois casais durante sete meses, entre fevereiro e

agosto de 2015, por meio de observações visuais, com o auxílio de binóculo Nikon MONARCH 7 8x42 e câmera Nikon COOLPIX P520 para registros fotográficos. A descrição dos comportamentos observados foi realizada pelo método ad libitum (Del-Claro 2004), onde anotávamos todos os comportamentos em um etograma (Tabela 1). Este método consiste em identificar padrões comportamentais a partir da quantificação dos variados tipos de comportamento exibido pela espécie durante um período amostral. Dessa forma é possível compreender o repertório comportamental que a espécie apresenta, e assim entender suas interações intraespecíficas e interespecíficas (Del-Claro 2004).

Inicialmente realizamos 39 h de esforço amostral em 17 dias de observação, entre 2 e 26 de fevereiro de 2015, sendo que 10 dias fo-ram de observação na localidade 1 e sete dias na localidade 2. Apenas os horários das 16:00 h às 20:00 h foram utilizados, momento em que há grande atividade da espécie (e.g,. Arroyo & Bretagnolle 1999,

Calladine et al. 2010). Em todas as ocasiões o observador se manteve a uma distância de 5 a 20 m das aves, utilizando roupas que ajudavam a se camuflar no ambiente para não prejudicar a amostragem (Menq 2015). Esta primeira fase de observação serviu para levantar os com-portamentos comuns da espécie para a montagem do etograma. Sa-lientamos que a denominação e descrição dos comportamentos que trazemos neste artigo foram criadas por nós, mas embasadas em dife-rentes literaturas que trazem descrições de comportamento de aves de rapina (corujas, gaviões e falcões). Consultamos desde artigos cientí-ficos (Roberts & Bowman 1986, Shaw 1995, Arroyo & Bretagnolle 1999, Renaud & Leroux 2009, Motta-Junior et al. 2010, Reid et al. 2012), livros com descrição geral da espécie (e.g., Trevor 1997, Sick 1997, Olsen et al. 2019), publicações de outra natureza (Motta-Junior et al. 2004, Alonso 2011, De la Penã 2016), até descrições obtidas por observadores de aves depositadas no WikiAves (e.g., Pinto 2015a, WikiAves 2019). Assim, um etograma com 17 comportamentos es-pecíficos diferentes foi elaborado no final desta fase (Tabela 1).

Com o etograma elaborado, realizamos novas observações dos indivíduos para quantificar os comportamentos específicos apresen-tados pela espécie e, oportunamente, para o levantamento de novos possíveis comportamentos. Esta etapa ocorreu ao longo de 27 dias entre março e agosto de 2015, e seguiu o mesmo procedimento de trabalho de campo realizado em fevereiro, totalizando 69 horas de esforço amostral. Durante as observações identificamos dois outros comportamentos específicos – “Cortejo para reprodução” e “Sinali-zação do ninho” – os quais foram inseridos no etograma. Após as duas fases de observações, agrupamos os comportamentos específi-cos registrados em campo conforme aos que eram desempenhados, tais como caça, manutenção, interação, empoleirado e alimentação (Tabela 1). Todas as campanhas de campo foram realizadas apenas por um de nós (Valdir Paulete) e apenas em dias sem chuva.

Resultados e discussãoComportamento padrão “Caça”

Entre todos os comportamentos padrões exibidos por A. flammeus, o comportamento padrão “Caça” foi o que obteve maior número de registros, correspondendo a quase 75% dos registros realizados (Fi-gura 2). Dentre os comportamentos específicos, o “Voo de busca” (Figura 3 A) foi o mais observado nas amostragens, seguido pelo comportamento especifico “Investida”. Embora mocho-dos-banha-dos possua a capacidade de fazer algumas manobras aéreas devido a suas asas alongadas, largas e arredondadas (Trevor 1997, Olsen et al. 2019), isso não o exime de realizar constante busca e várias in-vestidas para enfim capturar uma presa (e.g., Arroyo & Bretagnolle 1999), e por isso obtivemos uma grande quantidade de registros para esse comportamento.

O comportamento especifico “Pousada no chão” (Figura 3B) ob-teve 89 registros, representando 13% do total. Infelizmente devido a elevada altura da vegetação e visão limitada do observador, não foi possível concluir se cada registro da ave no chão correspondeu a um sucesso ou insucesso de captura de presas. O comportamento espe-cífico “Peneirar” obteve 84 registros, uma vez que mocho-dos-ba-nhados consegue parar no ar, como alguns gaviões do gênero Circus (Sick 1997, Motta-Junior et al. 2004, Wiki Aves 2019), auxiliando na sua busca por presas.

Comportamento padrão “Manutenção” Observamos 31 registros que corresponderam ao comportamento

de “Manutenção” (Figura 2). Dentre os comportamentos específicos deste grupo, o comportamento “Chacoalhar as penas” (Figura 4B) foi

Page 4: Registros de comportamentos do mocho-dos-banhados, · 2019-10-12 · Atualidades Ornitológicas, 210, julho e agosto de 2019 - 59 Registros de comportamentos do mocho-dos-banhados,

Atualidades Ornitológicas, 210, julho e agosto de 2019 - www.ao.com.br62

o que obteve o maior número de registros com 20 observações, suge-rindo que este é um dos comportamentos mais presentes no momen-to da higiene geral e organização das penas (Sick 1997). Os demais comportamentos relacionados à manutenção foram menos expressi-vos, como o ato de se alongar (Figura 2 e 4A).

Comportamento padrão “Interação” Observamos 99 registros que corresponderam ao comporta-

mento de “Interação” (Figura 5B). Dentre os comportamentos es-pecíficos deste grupo, o comportamento “Vocalizar” (Figura 5A) obteve 54 observações, sendo que foi possível observar em um único dia de campo (17 de março) 37 repetições. Observamos vo-calização emitida por adultos em momentos em que a ave estava empoleirada, algo esperado para corujas em período reprodutivo para demarcação e defesa de território (Sick 1997, Motta-Junior et al. 2004, WikiAves 2019), mas também observamos vocaliza-

ções emitidas durante o voo em observações de interações intra e interespecífica. Além de gritos de alarme, observamos também a emissão de um tipo de “chamado” territorial (i.e., call) composto por notas agudas quando a ave estava em interação com filhotes ou outro indivíduo.

Observamos o comportamento de “Sinalização do ninho” em seis ocasiões (ver descrição detalhada mais adiante), “Cortejo para repro-dução” cinco vezes, e “Interação com o filhote” em nove oportuni-dades. Também observamos 23 outras situações que representam o comportamento “Interação intraespecífica diversa”. A interação des-te tipo mais observada foram os voos agressivos da fêmea sobre o macho quando este retornava ao ninho (época que já havia filhotes) sem algum alimento para oferecer. Toda vez que o macho sofria tal agressão observávamos que o mesmo voltava a procurar alimento, e quando havia sucesso na captura de presas a fêmea permitia nova-mente sua aproximação ao ninho.

Tabela 1. Lista dos comportamentos padrões e específicos registrados por meio do monitoramento de dois casais de Asio flammeus e a descrição de cada um deles.

Comportamento padrão

Comportamento específico observado em campo Descrição

Caça Todos os comportamentos específicos relacionados a atividade de caçaVoo de busca A ave está em voo ativo à procura de uma presa.

Investida A ave está em voo de busca e tenta um ataque até o chão para pegar uma presa avistada.

PeneirarA ave está em voo de busca, mas repentinamente para no ar batendo as asas, de modo que se consegue manter no mesmo extrato vertical e horizontal (mesma posição no espaço aéreo).

Pousada no chão A ave permanece por mais de cinco segundos pousada no chão, como se houvesse capturado uma presa.

Falso ataque A ave está em voo de busca quando tenta uma investida, mas interrompe subitamente este ato antes de se caracterizar como tal.

Manutenção Todos os comportamentos específicos relacionados a atividade de manutençãoAlongar A ave estica as pernas ou asas.Limpar com o bico A ave limpa alguma parte do seu corpo utilizando o bico.Limpar com os pés A ave limpa alguma parte do seu corpo usando os dedos.Chacoalhar as penas A ave chacoalha as penas.

Interação Todos os comportamentos específicos relacionados a atividade interaçãoVocalizar A ave emite alguma vocalização.

Cortejo para reprodução A ave apresenta voo circular ascendente juntamente com outro indivíduo em trajetórias que lembram movimento em vórtice/funil.

Interação com o filhote A ave está realizando qualquer interação com os filhotes.

Sinalização do ninhoA ave está em voo e ao passar em um determinado local, muda sua batida de asas lentas para batidas rápidas com as asas quase se tocando acima da cabeça.

Interação intraespecífica diversa A ave está realizando outros tipos de interação (diferente dos comportamentos anteriores) com outros indivíduos da sua espécie.

Interação interespecífica agonística A ave está realizando interação com indivíduos de outra espécie animal.

Empoleirado Todos os comportamentos específicos relacionados a atividade empoleirado

Alerta A ave está empoleirada, mas claramente inquieta, com olhos bem abertos e cabeça se movendo para todos os lados para visualização de tudo ao seu redor.

Parado ativoA ave está empoleirada, mas com a cabeça, asa ou corpo se movimentando em ritmos claramente menores que o comportamento “Alerta”. Olhos também estão com aparência nitidamente mais tranquila.

Alimentação Todos os comportamentos específicos relacionados a atividade alimentaçãoAlimentar A ave está se alimentando de algo.Defecar A ave defeca.

Page 5: Registros de comportamentos do mocho-dos-banhados, · 2019-10-12 · Atualidades Ornitológicas, 210, julho e agosto de 2019 - 59 Registros de comportamentos do mocho-dos-banhados,

Atualidades Ornitológicas, 210, julho e agosto de 2019 - www.ao.com.br 63

Figura 2. Número de registros dos comportamentos padrões (gráfico pizza) e dos comportamentos específicos (gráficos de barras) observados em campo.

Figura 3. (A) Fotos que demonstram o comportamento específico “Voo de busca” e o “Pousado no chão” (B). Fotos: Valdir Felipe Paulete.

Figura 4. (A) Comportamento específico “Alongar”, (B) Comportamento específico “Chacoalhar as penas”. Fotos: Valdir Felipe Paulete.

Page 6: Registros de comportamentos do mocho-dos-banhados, · 2019-10-12 · Atualidades Ornitológicas, 210, julho e agosto de 2019 - 59 Registros de comportamentos do mocho-dos-banhados,

Atualidades Ornitológicas, 210, julho e agosto de 2019 - www.ao.com.br64

Observamos sete “Interações interespecífica agonística” em cam-po, todas realizadas ao casal da localidade 1 com outras aves de ra-pina que ocorreram na região. Com o intuito de defender território e filhote recém-nascido, observamos voos agressivos a dois carcarás (Caracara plancus) que foram atraídos à localidade 1 após a ocor-rência de roçada (Sick 1997, ver Figura 7 B). Em outra ocasião ob-servamos comportamento agonístico semelhante ao gavião-peneira (Elanus leucurus) e falcão-coleira (Falco femoralis); no entanto, in-terpretamos que tal comportamento não ocorreu em virtude de afu-gentar possível predador de filhote de coruja, mas sim, para defender seu território de caça, ou seja, sua fonte de recurso alimentar.

Comportamento padrão “Empoleirado”Observamos o comportamento padrão “Empoleirado” em 93 oca-

siões, sendo o comportamento específico “Parado ativo” (Figura 6B) com 71 repetições, e o comportamento “Alerta” (Figura 6A) com 22 repetições. Vale destacar que inicialmente acreditávamos que tería-mos o comportamento “parado inativo” em nosso etograma, que cor-responde a um comportamento claramente mais calmo, olhar mais pacífico e com a ave quase estática, algo que já havíamos observado em outras localidades, mas fora do período reprodutivo. No entan-to, esse comportamento esteve ausente em nossas amostragens e por isso não aparece em nossas quantificações. É notável que durante o

período reprodutivo as corujas tornam-se mais ativas, e consequente-mente, elevam seu comportamento territorial para defender ninho e filhotes contra possíveis predadores (Roberts & Bowman 1986, Mot-ta-Junior et al. 2004, 2010). Portanto, manter-se empoleirado, mas em estado de constante atenção parece ser uma forma de otimizar a defesa de território, lançando-se ocasionalmente a eventos de intera-ções intra e interespecíficas (e.g., Cavalli et al. 2016). A presença do observador próximo ao território reprodutivo e sem muita opção para estar totalmente escondido do campo de vista das corujas, explica a ocorrência desses comportamentos mais atentos entre os indivíduos monitorados.

Comportamento padrão “Alimentação” O comportamento relacionado a “Alimentação” (Figura 7) foi o

que ocorreu em menor número, sendo que observamos em apenas seis ocasiões. Em quatro delas, observamos as aves executando o comportamento específico “Alimentar” que na sua maioria ocorreu no chão em meio à vegetação alta. Em todas estas ocasiões obser-vamos apenas roedores (não identificados) em sua dieta. A dieta do mocho é composta principalmente por pequenos mamíferos, como roedores, e uma pequena parcela por aves (Colvin & Spaulding 1983, Roberts & Bowman 1986, Sick 1997, Motta-Junior et al. 2004). Ob-servamos o comportamento específico “Defecar” em apenas duas

Figura 6. (A) Fotografia feita durante a observação do comportamento especifico “Alerta”, onde se percebe os olhos mais atentos; (B) Fotografia tirada durante a observação do comportamento especifico “Parado ativo”. Fotos: Valdir Felipe Paulete.

Figura 5. (A) Comportamento específico “Vocalizar”, (B) Comportamento especifico “Interação interespecífica agonística” A. flammeus (direita) e Caracara plancus (esquerda, abaixo). Fotos: Valdir Felipe Paulete.

Page 7: Registros de comportamentos do mocho-dos-banhados, · 2019-10-12 · Atualidades Ornitológicas, 210, julho e agosto de 2019 - 59 Registros de comportamentos do mocho-dos-banhados,

Atualidades Ornitológicas, 210, julho e agosto de 2019 - www.ao.com.br 65

ocasiões. Neste comportamento as corujas excretam ácido úrico jun-to com suas fezes e todo o resto do composto biológico da presa que não foi digerido (Motta-Junior et al. 2004).

O fato das corujas geralmente engolirem suas presas por inteiro em poucos segundos (apenas quando necessário, corujas ingerem peque-nos pedaços por vez após despedaçarem suas presas), bem como o ato de defecar também ser realizado rapidamente, diminui as chances do observador capturar estes comportamentos em campo (Motta-Ju-nior et al. 2004), fato que explica o nosso baixo número de registros relacionado a “Alimentação”.

Comportamentos pouco registrados entre observadores de aves no Brasil

Os comportamentos “Cortejo para reprodução” e “Sinalização do ninho”, observados nos casais monitorados, são na verdade raramen-te observados entre os observadores de aves brasileiros (e.g., Pinto 2015b), e até então não havia uma literatura brasileira trazendo tal descrição. Assim, fornecemos mais detalhes sobre o que observamos em campo:

- O “Cortejo para reprodução” se inicia quando dois indivíduos se aproximam em voo e executam logo em seguida um voo em círculos, sempre ganhando altitude e quase tocando suas garras um no outro. Após alguns minutos de voo lado a lado os indivíduos se separam e cada um se desloca para direções opostas. Esse comportamento é denominado em Olsen et al. (2019) como uma “dança aérea para re-produção” (sky-dancing display) e já foi observado em outras partes do mundo (e.g., Renaud & Leroux 2009).

- A “Sinalização do ninho” se caracteriza por um voo a pouca altura do solo, onde a coruja adulta ao passar em cima do exato local do ninho modifica subitamente o ritmo e modo das batidas de suas asas. As batidas passam de leve e suaves (i.e., as asas são mantidas mais alinhadas ao corpo com pouca intensidade e frequência no ato de ba-ter as asas) para batidas fortes e bastante alongadas, de modo que as asas quase se tocam acima da cabeça. Observamos esse comporta-mento sendo realizado por ambos os sexos e em variadas situações, como posteriormente ao voo de cortejo, durante o voo de busca, e logo após a ave estar empoleirada.

Importante ressaltar que confirmamos que ambos os comporta-mentos correspondiam a tais propósitos devido a nossas observações posteriores à postura dos ovos nos locais indicados pelas aves (ver próximo item). Estes comportamentos foram observados nas duas áreas de estudo, sendo que na localidade 1 observamos cinco vezes no dia 13 de março e na localidade 2 observamos apenas uma vez, no dia 11 de maio. Estes registros podem sugerir os primeiros dias do período da fase reprodutiva da espécie na região. Embora tenhamos observado esses comportamentos em campo, não conseguimos obter um registro fotográfico ou vídeo de alta qualidade para o presente artigo; no entanto, uma amostra pode ser vista no site WikiAves (ver Pinto 2014) e em Del Hoyo (2019).

Registro do ninho Dois ninhos foram encontramos em campo. Na localidade 1 (Pi-

racicaba) registramos um ninho pela primeira vez no final do mês de fevereiro e na localidade 2 (Americana) observamos no começo do mês de maio. Ambos foram instalados diretamente no solo, mas escondidos no meio de uma vegetação rasteira alta, o que corrobora com o relato de outros pesquisadores sobre a dificuldade de encontrá--los em campo (e.g., Roberts & Bowman 1986, Shaw 1995). Os ovos foram depositados diretamente sobre a vegetação, sem nenhum tipo de forragem (Figura 8A e 8B). As características observadas corrobo-ram o sugerido em Simon & Pacheco (2005) e vários outros registros fotográficos depositados no WikiAves (2019) como sendo do tipo “simples/desnudo”. Esta parece ser a forma mais comum do ninho do mocho-dos-banhados mas, em alguns casos, pode haver algum tipo de forragem no fundo, como penas e galhos (Amaral 2007, WikiAves 2019, Olsen et al. 2019).

No registro do ninho da localidade 1, em 20 de março de 2015, que corresponde ao começo do outono na região do estudo, obser-vamos dois filhotes, sendo que apenas um deles sobreviveu (Figura 8B). No registro do ninho da localidade 2, encontramos três ovos em 24 de maio de 2015. Após o encontro deste ninho não foi pos-sível acompanhar seus filhotes, devido ao local possuir vegetação rasteira alta. Apenas foi possível registrar movimentos na vegetação rasteira próxima ao ninho semanas após o encontro deste, os quais se assemelhavam com filhotes se locomovendo pelo solo (e.g., ex-plorando o local ou se escondendo de possíveis predadores), mas sem possibilidade de identificar o número exato de filhotes (i.e., um, dois ou três).

Embora haja relatos na literatura que no hemisfério norte a espé-cie é capaz de fazer postura de até 10 ovos numa sessão reprodutiva (Olsen et al. 2019), nossas observações se aproximam dos demais estudos que reportaram posturas em torno de três ovos (Roberts & Bowman 1986, De La Penã 2016).

Independentemente das subespécies existentes de mocho-dos--banhados, é válido destacar que o período em que observamos ati-vidade reprodutiva em nossa área de estudo (i.e., início do período seco e com temperaturas mais amenas para a região), difere do que é frequentemente reportado para o hemisfério norte, onde a reprodu-ção da espécie inicia-se logo após o término do período de inverno mais intenso, correspondendo aos meses de abril a junho (Roberts & Bowman 1986, Shaw 1995, Onrubia & Jubete 1998, Arroyo & Bretagnolle 1999, Reid et al. 2012, Olsen et al. 2019). Para o Brasil, Amaral (2007) apontou em sua revisão o período de março e junho como época reprodutiva da espécie. Embora nossas observações corroborem com este período, observadores de aves já reportaram a espécie nidificando em outros meses no Brasil (WikiAves 2019), sendo que na Argentina há também registros de atividade reproduti-

Figura 7. Asio flammeus com um rato no tarso. Foto: Valdir Felipe Paulete.

Page 8: Registros de comportamentos do mocho-dos-banhados, · 2019-10-12 · Atualidades Ornitológicas, 210, julho e agosto de 2019 - 59 Registros de comportamentos do mocho-dos-banhados,

Atualidades Ornitológicas, 210, julho e agosto de 2019 - www.ao.com.br66

va em praticamente todo ano (De la Penã 2016). Acreditamos que a ampla ocorrência da espécie em várias latitudes, somado a uma boa oferta de pequenos roedores comuns nas áreas agrícolas neotropicais durante todo o ano (e.g., Gheler-Costa et al. 2013) possa ser uma das razões para suportar a atividade reprodutiva da espécie de forma não padronizada na região neotropical. Do mesmo modo, para ele-var as chances de sucesso reprodutivo, nidificar num período com baixa precipitação (como no período de março a julho na nossa área de estudo) pode ser mais vantajoso para esta ave que tem seu ninho estabelecido diretamente no chão.

Considerações finaisEm nosso artigo conseguimos identificar 19 comportamentos

específicos de mocho-dos-banhados executados em áreas antropi-zadas, o que contribui para o conhecimento da ecologia compor-tamental da espécie. Embora nossas observações não sejam capa-zes de apontar quais comportamentos indicam alguma adaptação da espécie à antropização, incentivamos demais pesquisadores e observadores a continuarem compartilhando registros de compor-tamento da espécie, oriundos de áreas antropizadas e paisagens preservadas. Quanto mais registros comportamentais forem de-vidamente disponibilizados aos pesquisadores (e.g., Alexandrino et al. 2019), maiores serão as chances de entendermos como as atividades antrópicas afetam esta espécie e quais suas respostas adaptativas

Por fim, visando um trabalho futuro de conservação da espécie no interior do estado de São Paulo, incentivamos que sejam feitos novos acompanhamentos em uma escala temporal maior e que consigam identificar detalhes sobre a movimentação destes indivíduos nas pai-sagens antrópicas, mesmo fora do período reprodutivo. Somente as-sim será possível compreender a real importância das áreas agrícolas do interior paulista para esta espécie e se a mesma tem o comporta-mento de buscar locais alternativos para sua reprodução após certo nível de distúrbio antrópico.

Agradecimentos

Agradecemos as ricas sugestões na escrita do artigo feito pelos re-visores deste artigo. Agradecemos também a Daniel Perella, Willian Menq e Fernando C. Straube pelo compartilhamento de material bi-bliográfico que utilizamos neste artigo. Eduardo Alexandrino é bolsi-ta de pós-doutorado CAPES PNPD (2013/1723).

Referências bibliográficasAlexandrino, E.R. (2015) [WA2072747, Asio flammeus (Pontoppidan, 1763)]. Wi-

kiAves - A Enciclopédia das Aves do Brasil. Disponível em: <http://www.wikia-ves.com/2072747>. Acesso em: 3 de março de 2018.

Alexandrino, E.R., J.A. Bogoni, A.B. Navarro, A.A.A. Bovo, R.M. Gonçalves, J.D. Charters, J.A. Domini, & K.M.P.M.B. Ferraz (2019) Large Terrestrial Bird Adapting Behavior in an Urbanized Zone. Animals 9(6): 351.

Alonso, H. (2011) Coruja-do-nabal, Asio flammeus. Grupo de Trabalho sobre Aves Nocturnas: Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves. Disponível em:< ht-tps://tinyurl.com/yy477bro>. Acesso em: 10/9/2018.

Figura 8. (A) Ninho de Asio flammeus na vegetação. (B) Filhote de A. flammeus. (C) Fêmea adulta de A. flammeus (face e coloração escura ligeiramente marrom). (D) Macho adulto de A. flammeus (face e coloração claras). Fotos: Valdir Felipe Paulete.

Page 9: Registros de comportamentos do mocho-dos-banhados, · 2019-10-12 · Atualidades Ornitológicas, 210, julho e agosto de 2019 - 59 Registros de comportamentos do mocho-dos-banhados,

Atualidades Ornitológicas, 210, julho e agosto de 2019 - www.ao.com.br 67

Amaral, K.F. (2007) Composição e abundancia de corujas em florestas atlântica e sua relação com variáveis de habitat. Programa de pós-graduação em Ecolo-gia. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Arroyo, B.E., & V. Bretagnolle (1999) Breeding biology of the Short-eared Owl (Asio flammeus) in agricultural habitats of southwestern France. Journal of Raptor Research 33(4): 287-294.

Bagno, M.A. & F.H.G. Rodrigues (1998) Novos registros de aves para o estado de Goiás, Brasil. Ararajuba 6: 64-65.

Calladine, J., G. Garner, C. Wernham & N. Buxton (2010) Variation in the diurnal ac-tivity of breeding Short‐eared Owls Asio flammeus: implications for their survey and monitoring. Bird Study 57(1): 89-99.

Cardoso, A.M. (2017) [WA2647579, Asio flammeus (Pontoppidan, 1763)]. Wiki Aves - A Enciclopédia das Aves do Brasil. Disponível em: <http://www.wiki-aves.com/2647579>. Acesso em 2/4/2018.

Cavalli, C., J.P. Isacch, A.V. Baladrón, L.M. Biondi & M.S. Bó (2016) Differing nest-defence behaviour in urban and rural populations of breeding Burrowing Owls. Emu 116(4): 428-434.

Consema. Conselho Estadual do Meio Ambiente (2011) Resolução CONSEMA Nº 002, de 06 de dezembro de 2011. Lista Oficial de Espécies da Fauna Ame-açadas de Extinção no Estado de Santa Catarina. Disponível em: < https://tinyurl.com/y9x593er>. Acesso em 20/3/2018.

Colvin, B & S. Spaulding (1983) Winter Foraging Behavior of Short-eared Owls (Asio flammeus) in Ohio. Bowling Green State University. American Midland Natu-ralist 110: 124-128.

Cordeiro, T.M. (2017) [WA2757520, Asio flammeus (Pontoppidan, 1763)]. Wiki Aves – A Enciclopédia das Aves do Brasil. Disponível em: <http://www.wikia-ves.com/2757520>. Acesso em 2/4/2018.

De la Peña, M.R. (2016) Aves Argentinas: descripción, comportamiento, reproducción y distribución - Charadriidae a Trochilidae. Comunicaciones del Museo Pro-vincial de Ciencias Naturales Florentino Ameghino 20(1): 1-627.

Del-Claro, K. (2004) Comportamento Animal - Uma introdução à ecologia com-portamental. Jundiai: Livraria Conceito.

Del Hoyo, J. (2019) Short-eared Owl Asio flammeus. Disponível em: <https://tinyurl.com/y5s69qat>. Acesso em 20/2/2019.

Freitas, M.A. & D.P.F. França (2009) Primeiro registro do mocho-dos-banhados para o nordeste brasileiro. Atual. Ornitol. 148: 4-5.

Gheler-Costa, C., G. Sabino-Santos Jr, L.S. Amorim, L.M. Rosalino, L.T.M. Figueiredo & L.M. Verdade (2013) The effect of pre-harvest fire on the small mammal assem-blage in sugarcane fields. Agriculture, Ecosystems & Environment 171: 85-89.

Ghizoni-Jr, I.R & M.A.G. Azevedo (2010) Registros de algumas aves raras ou com distribuição pouco conhecida em Santa Catarina, sul do Brasil, e relatos de três novas espécies para o Estado. Atual. Ornitol. 154: 33-46

Gomes, S.C, L.T. Ribeiro, J. Takaishi, M.C. Poletto, L.S.M. Chaves & C.M.S Berbert (2012) Espécies Ameaçadas da Fauna em Áreas de Canaviais do Setor Sucro-alcooleiro no Estado de São Paulo. 2ª Conferência da REDE de Língua Por-tuguesa de Avaliação de Impactos. 1° Congresso Brasileiro de Avaliação de Impacto. Livro de resumos.

IUCN (2012) Asio flammeus: The IUCN Red List of Threatened Species. Dis-ponível em: <http://www.iucnredlist.org.>. Acesso em: 18/3/2015.

König, C. & F. Weick (2008) Owls of the World, 2ºedição. New Haven, Connecticut: Yale University Press. 528p.

Lopes, L.E., J.B.D. Pinho, B. Bernardon, F.F.D. Oliveira, G. Bernardon, L.P. Ferreira, M.F. Vasconcelos, M. Maldonado-Coelho, P.F.A. Nóbrega & T.C. Rubio (2009) Aves da Chapada dos Guimarães, Mato Grosso, Brasil: uma síntese histórica do conhecimento. Pap. Avulsos Zool. 49(2): 9-47.

Machado, J.C. (2017) [WA2711279, Asio flammeus (Pontoppidan, 1763)]. WikiA-ves - A Enciclopédia das Aves do Brasil. Disponível em: <http://www.wikiaves.com/2711279>. Acesso em 2/4/2018.

Menq, W. (2015) Técnicas para observação de corujas - Aves de Rapina Brasil. Disponível em: <https://tinyurl.com/y2vg239z>. Acesso em: 22/5/2015.

Menq, W. (2016) Mocho-dos-banhados (Asio flammeus) - Aves de Rapina Brasil. Disponível em: <https://tinyurl.com/y53v69fc>. Acesso em: 3/3/2018

Motta-Junior, J.C., A.A. Bueno & A.C.R. Braga (2004) Corujas Brasileiras. Depar-tamento de Ecologia: Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo.

Motta-Junior, J.C., M.A.M. Granzinolli, & P.F. Develey (2008) Aves da Estação Eco-lógica de Itirapina, estado de São Paulo, Brasil. Biota Neotropica 8(3). Disponí-vel em: <https://tinyurl.com/y3uemcyv>. Acesso em: 20/01/2019.

Motta-Junior, J.C., M.A.M.Granzinolli & A.R. Monteiro (2010) Miscellaneous ecologi-cal notes on Brazilian birds of prey and owls. Biota Neotropica 10(4): 255-259.

Olsen, P.D., G.M. Kirwan, D.A. Christie & J.S. Marks (2019) Short-eared Owl (Asio flammeus). In: del Hoyo, J., A. Elliott, J. Sargatal, D.A. Christie & E. de Juana (eds.). Handbook of the Birds of the World Alive. Barcelona: Lynx Edicions. Disponível em: <https://www.hbw.com/node/55128>. Acesso em: 20/01/2019.

Onrubia, A.F. & F. Jubete (1998) Status reproductor de la Lechuza Campestre Asio flammeus en España. In: Chancellor, R.D., B.-U. Meyburg & J.J. Ferrero (eds). Holarctic Birds of Prey. Conference paper.

Overbeck, G.E., E. Vélez‐Martin, F.R. Scarano, T.M. Lewinsohn, C.R. Fonseca, S.T. Meyer, S.C. Muller, P. Ceotto, L. Dadalt, G. Durigan, G. Ganade, M.M. Gossner, D.L. Guadagnin, K. Lorenzen, C.M. Jacobi, W.W. Weisser & V.D. Pillar (2015) Conservation in Brazil needs to include non‐forest ecosystems. Diversity and Distributions 21(12): 1455-1460.

Paulete, V.F. (2016) [WA2235144, Asio flammeus (Pontoppidan, 1763)]. WikiA-ves - A Enciclopédia das Aves do Brasil. Disponível em: <http://www.wikiaves.com/2235144>. Acesso em 25/1/2018.

Piacentini, V.Q., A. Aleixo, C.E. Agne, G.N. Maurício, J.F. Pacheco, G.A. Bravo, G.R.R. Brito, L.N. Naka, F. Olmos, S. Posso, L.F. Silveira, G.S. Betini, E. Car-rano, I. Franz, A.C. Lees, L.M. Lima, D. Pioli, F. Schunck, F.R. Amaral, G.A. Bencke, M. Cohn-Haft, L.F.A. Figueiredo, F.C. Straube & E. Cesari (2015). An-notated checklist of the birds of Brazil by the Brazilian Ornithological Records Committee. Rev. Bras. Ornitol. 23(2): 91-298.

Pinto, G.G. (2014) [WA1230426, Asio flammeus (Pontoppidan, 1763)]. WikiAves - A Enciclopédia das Aves do Brasil. Disponível em: <http://www.wikiaves.com/1230426>. Acesso em: 19/4/2018.

Pinto, G.G. (2015a) [WA1594581, Asio flammeus (Pontoppidan, 1763)]. WikiA-ves - A Enciclopédia das Aves do Brasil. Disponível em: <http://www.wikiaves.com/1594581>. Acesso em: 22/2/2019.

Pinto, G.G. (2015b) [WA1692313, Asio flammeus (Pontoppidan, 1763)]. WikiA-ves - A Enciclopédia das Aves do Brasil. Disponível em: <http://www.wikiaves.com/1692313>. Acesso em: 19/4/2018.

Renaud,G. & Leroux, A. (2009). Nidification du Hibou des marais Asio flammeus dans la Vienne en 2008. L’Outarde 46:13-17.

Reid, D.G., F.I. Doyle, A.J. Kenney & C.J. Krebs (2012) Some observations of Short-eared Owl, Asio flammeus, ecology on arctic tundra, Yukon, Canada. The Cana-dian Field-Naturalist 125(4): 307-315.

Roberts, J.L. & N. Bowman (1986) Diet and ecology of short-eared owls Asio flam-meus breeding on heather moor. Bird Study 33(1):12-17.

Sassim, M.N. (2017) [WA2682139, Asio flammeus (Pontoppidan, 1763)]. WikiA-ves - A Enciclopédia das Aves do Brasil. Disponível em: <http://www.wikiaves.com/2682139>. Acesso em 2/4/2018.

Shaw, G. (1995). Habitat selection by short-eared owls Asio flammeus in young conif-erous forests. Bird Study 42(2): 158-164.

Sick, H. (1997) Ornitologia Brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.Silveira, L.F., G.A. Benedicto, F. Schunck, & A.M Sugieda (2009) Aves. In: Bressan,

P.M., M.C.M. Kierulff, & A.M. Sugieda (eds). Fauna ameaçada de extinção no Estado de São Paulo, São Paulo. São Paulo: Fundação Parque Zoológico de São Paulo, Secretaria do Meio Ambiente, 645p.

Simon, J.E. & S. Pacheco (2005) On the standardization of nest descriptions of neo-tropical birds. Rev. Bras. Ornitol. 13(2): 143-154.

Soares, E.S., F.S.R. Amaral, E.P.M.C. Filho, M.A. Granzinolli, J.L.B. Albuquerque, J.S. Lisboa, M.A.G. Azevedo, W. Moraes, T. Sanaiotti & I.G. Guimaraes (2008) Plano de Ação Nacional para a Conservação de Aves de Rapina. v. 5. Brasí-lia: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. p. 136.

Souza, J.V. (2017) [WA2653203, Asio flammeus (Pontoppidan, 1763)]. WikiAves - A Enciclopédia das Aves do Brasil. Disponível em: <http://www.wikiaves.com/2653203>. Acesso em 2/4/2018.

Trevor, B. (1997) Owls of the world. Hardcover: Parkgate Books Ltd.Virtude (2014) Em Perigo: os mochos-dos-banhados de Americana – SP – julho

de 2014 Disponível em: <http://virtude-ag.com/mochos-americana>. Acesso em 18/7/2018.

WikiAves (2019) A Enciclopédia das Aves do Brasil. Mocho-dos-banhados (Asio flammeus). Disponível em: <https://www.wikiaves.com.br/wiki/mocho-dos--banhados>. Acesso em: 21/2/2019.

1Universidade Metodista de Piracicaba. Curso de Ciências Biológicas. Autor para correspondência:

E-mail: [email protected]ório de Ecologia, Manejo e Conservação de

Fauna Silvestre – LEMaC, Departamento de Ciências Florestais, Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”,

Universidade de São Paulo. Piracicaba, SP, Brasil. Instituto Nacional da Mata Atlântica, Av. José Ruschi,

n. 4 - Centro, Santa Teresa - ES, 29650-000.E-mail: [email protected]

3Docente e coordenadora do curso de Ciências Biológicas - Universidade Metodistas de Piracicaba – Faculdade de

Ciências da Saúde – Facis. E-mail: [email protected]