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A RELAO DIREES CARDEAIS-ESQUEMA CORPORAL NO ENSINO DE GEOGRAFIA: UMA PERSPECTIVA HISTRICA E AFIRMATIVA1
Srgio Luiz Miranda Universidade Federal de Uberlndia
[email protected] 1. Introduo
Este trabalho resulta de uma questo que surgiu na prtica em sala de aula,
depois compartilhada com um grupo de colegas professores, e que diz respeito a um
procedimento clssico no ensino de geografia, geralmente situado no currculo escolar
entre a terceira e a quinta sries do ensino fundamental, que consiste em se colocar ou
se imaginar com o lado direito do corpo voltado para a direo em que o sol nasce para
se identificar as direes cardeais no lugar: esse procedimento ou no correto,
adequado, pertinente, vlido ou necessrio e por qu?
No percurso realizado para o tratamento dessa questo, a anlise de publicaes
didticas e da literatura especializada voltadas para o ensino de geografia revelou
posicionamentos divergentes e mesmo contraditrios, explcitos ou no, ainda que sob
os mesmos referenciais terico-metodolgicos, acerca das direes cardeais no ensino
relacionando-as com as direes definidas a partir do esquema corporal, referidas aqui
como direes corporais, ou seja, frente, atrs, direita, esquerda, especialmente, e em
cima e embaixo.
Tanto os contedos do ensino que a questo envolve e as formas como so
abordados em alguns livros didticos bem como as orientaes terico-metodolgicas
propostas para o ensino de geografia em algumas publicaes dirigidas aos professores,
parecem indicar uma indefinio ou incerteza quanto pertinncia ou adequao,
validade ou mesmo necessidade de se ensinar e aprender a determinao das direes
cardeais no lugar atravs das direes corporais, ou seja, utilizando o prprio corpo
como instrumento. Essa situao de incerteza, indefinio ou apenas de divergncias
no explicitadas e que podem, portanto no chegar s conscincias, pode repercutir na
produo do conhecimento tanto na formao inicial de professores, atravs da
bibliografia utilizada nos cursos de licenciatura, quanto no trabalho pedaggico dos
professores em sala de aula, atravs daquela formao inicial e tambm dos livros
didticos utilizados nas escolas. A identificao dessa situao esboada na literatura j
nos indica a necessidade de um tratamento sistemtico da questo que ao menos a
1 Trabalho apresentado e publicado nos anais do 9.o Encontro Nacional de Prtica de Ensino de Geografia (ENPEG), realizado em Niteri-RJ de 29 de outubro a 1 de novembro de 2007 na Universidade Federal Fluminense.
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explicite e traga argumentos para instaurar e alimentar um debate, fundamentar e
nortear uma reflexo e, qui, que possam proporcionar subsdios para o esclarecimento
da questo e apontar possveis encaminhamentos para a mesma. essa a inteno nesse
trabalho, buscando contribuir para a reflexo terico-metodolgica sobre os contedos e
as prticas no currculo da geografia escolar e, mais especificamente, com subsdios que
possam balizar o tratamento desse contedo especfico do ensino tanto na prtica dos
professores de geografia e daqueles que atuam nas sries iniciais do ensino fundamental
quanto daqueles que trabalham na formao desses professores, sobretudo nos cursos de
licenciatura em geografia e pedagogia.
2. Primeiras consideraes e outras questes decorrentes
Quando falamos em encontrar as direes norte, sul, leste e oeste no lugar onde
estamos, quem j concluiu os estudos como aluno na escola bsica certamente deve
lembrar-se daquele procedimento tratado nas aulas de geografia, ilustrado nos livros
didticos quase sempre atravs da figura de uma criana em p, com os braos abertos,
estendidos para cada lado do corpo e paralelos ao cho, a mo direita na direo em que
o sol aparece nascendo no horizonte, com os ps no centro de uma cruz ou uma rosa-
dos-ventos traada no cho com a indicao das quatro direes cardeais coincidindo
com quatro direes definidas pelos lados do corpo, respectivamente, frente-atrs-
direita-esquerda com norte-sul-leste-oeste (figura 1).
Podemos dizer que esse procedimento clssico para se orientar espacialmente
atravs das direes cardeais integra a vulgata da Geografia Escolar brasileira, ou seja,
Figura 1 Ilustrao clssica em livros didticos mostrando como encontrar as direes cardeais no lugar a partir da direo em que o sol nasce e das direes definidas pelo prprio corpo. (Fonte: Mirabelli e Yonemoto, 1984, p. 70).
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o conjunto daqueles contedos de ensino que a caracterizam, a identificam e a
distinguem dentre as disciplinas escolares.
Tendo tambm, quando aluno, aprendido na escola aquele procedimento, a
questo sobre sua adequao ou no s comeou a se esboar para mim quando iniciei a
docncia como professor de geografia na escola fundamental e comecei a utilizar em
meu trabalho a coleo didtica de Almeida, Sanchez e Picarelli (1995).
No primeiro volume da coleo citada, a determinao das direes leste e oeste
no lugar feita atravs da observao do movimento aparente do sol e do registro das
sombras durante o dia em um gnomom ou relgio de sol para, depois, relacionar essas
observaes com o traado dos paralelos e meridianos e o movimento de rotao da
Terra em outras atividades com o globo terrestre, s a introduzindo as direes norte e
sul. No Manual do professor (p. 3), encartado no mesmo volume 1 da coleo, os
autores colocam que com as atividades propostas, paralelamente, so construdas as
coordenadas geogrficas, iniciando com a transferncia das coordenadas do esquema
corporal para a esfera terrestre, evitando que haja uma identificao errnea entre elas.
Para se identificar as direes norte e sul no local, propem que se coloque sob a base
da estaca do relgio de sol uma cruzeta ou rosa-dos-ventos com o leste apontando
para a direo em que o sol nasce e que j se identificou antes. Em outra publicao,
dirigida a professores, apoiada principalmente nos estudos de Piaget e Inhelder (1993),
Almeida explicita melhor os fundamentos dessa proposta:
Assim, determinam-se as direes leste-oeste e norte-sul a partir de seu verdadeiro referencial, que o movimento aparente do Sol, sem confuso com direita-esquerda e frente-atrs. bom esclarecer que o uso do corpo do aluno como referencial para determinar as direes geogrficas poder lev-lo a idias equivocadas, como achar que o leste est sempre direita, sem observar a trajetria do Sol. As relaes espaciais devem descentrar-se dos referenciais do esquema corporal, por isso o uso dos lados direito e esquerdo do corpo associados direo leste-oeste no parece adequado. A direo leste-oeste decorre do movimento de rotao da Terra e de sua posio em relao ao Sol e nada tem a ver com os lados do corpo humano. (ALMEIDA, 2001, p. 54).
Para a autora, a relao entre os referenciais do esquema corporal e as direes
geogrficas o estabelecimento de outros sistemas de referncia, com o das direes
geogrficas, a partir daquele definido pelo esquema corporal. Do ponto de vista
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cognitivo, a criana precisa se ver sobre a superfcie da Terra e coordenar seus
referenciais corporais com os referenciais terrestres (ALMEIDA, 2001, p. 54).
As duas publicaes citadas esto, sem dvida, entre as mais bem elaboradas e
fundamentadas na rea e constituem importantes referncias para o ensino, com
propostas de atividades bem estruturadas, com objetivos e contedos bem delimitados,
seqenciados e articulados coerentemente. Proporcionaram contribuio significativa
para minha formao docente e meu trabalho pedaggico com os alunos na escola.
Na experincia em sala de aula, de fato, muitas vezes encontrei alunos que
respondiam que o leste fica direita, o norte frente, etc., e quando pedia para indicar
qual era a direo leste na sala de aula, apontavam para a sua direita, independente da
posio do corpo no espao em relao ao movimento aparente do Sol no cu do lugar.
Essa constatao em aula levou-me, a princpio, a abandonar o ensino daquele
procedimento, aceitando o argumento de sua inadequao pela confuso que pode gerar
com sua in-compreenso pelos alunos. Mas ainda no tinha convico de que era
mesmo preciso ou melhor abandonar aquele procedimento clssico, entendendo que os
outros propostos so insuficientes para resolver o problema elementar de se posicionar
corretamente um mapa, orientar-se por ele, indicar uma direo ou dar uma localizao
geogrfica quando no se trata de uma situao didtica planejada para aula.
Como encontrar as direes cardeais no lugar quando no temos mo rosa-dos-
ventos, bssola ou mapa em escala grande que traga indicao das direes cardeais ou
alguns pontos de referncia que possamos observar e identificar na paisagem para
posicionar/orientar corretamente o mapa e, atravs dele, achar aquelas direes no
local? Se nas situaes didticas podemos dar aos alunos ou pedir que confeccionem
uma cruzeta com as direes cardeais e que a tragam em nossas aulas, ningum, supe-
se, carrega sempre consigo uma cruzeta ou uma bssola para quando precisar e, ainda,
os mapas nem sempre trazem a indicao das quatro direes cardeais, o que mais
comum apenas nos mapas para fins didticos, mas, mesmo nesses, a incluso da rosa
dos ventos no a regra.
A maioria dos mapas, mesmo nos atlas escolares e livros didticos, geralmente
trazem somente a indicao grfica do norte por uma seta, mas tambm podem no
trazer nem essa indicao e seguir apenas a conveno pela qual o norte no mapa
corresponde com parte superior da folha, como no atlas geogrfico escolar do IBGE
(2002). Nesses casos, como podemos determinar as demais direes cardeais no mapa?
Se sabendo apenas qual a direo norte podemos deduzir que o sul a oposta, como
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saber, a partir disso, qual o leste e qual o oeste? Nessas situaes, que so as mais
comuns quando precisamos determinar as direes cardeais no lugar onde estamos ou
na maioria dos mapas que usamos, nos parece que saber em que direo o sol nasce
nesse lugar, que esta aproximadamente o leste e posicionar-se ou imaginar-se com o
lado direito do corpo nessa direo para identificar o norte frente, o sul atrs, e o oeste
esquerda, pode ser um procedimento ainda til e necessrio. E tambm para a leitura e
utilizao dos mapas, sabendo que se o norte no mapa estiver para frente em relao ao
nosso corpo, o leste, o oeste e o sul no mapa ficam, respectivamente, para a direita, para
a esquerda e para trs, independente dessas direes no lugar.
No desenvolvimento de uma pesquisa sobre saberes e prticas docentes no
ensino do espao local com atlas escolares municipais, realizada entre 2002 e 2004 na
Unesp de Rio Claro, do qual participei como professor de Geografia da Educao
Bsica e cujo grupo era composto ainda por outros professores que tambm atuavam em
escolas pblicas, por alunos da licenciatura e acadmicos da universidade, a questo da
adequao ou no do emprego do corpo como instrumento para identificar as direes
cardeais no lugar surgiu na discusso de atividades de iniciao cartogrfica para classes
de sries iniciais do ensino fundamental. O planejamento de tais atividades tinha como
principal referncia a proposta de Almeida (2001) e Almeida, Sanchez e Picarelli
(1995), e as professoras que atuavam nas sries iniciais queriam compreender porque
era inadequado o modo como aprenderam, que ainda estava nos livros didticos e que
continuavam ensinando, e de que outro modo poderiam ou deveriam ento ensinar.
Uma outra proposta apresentada no grupo foi a de se empregar a rosa-dos-ventos
posicionando-a com o leste voltado para a direo em que o Sol nasce e deixar que o
modo como cada aluno fosse relacionar as direes cardeais com os referenciais de
orientao espacial do prprio corpo fosse definido pessoalmente, por cada aluno.
Poderamos deixar por conta dos alunos, cada qual a seu modo, o
relacionamento entre as direes cardeais e aquelas definidas a partir do prprio corpo
para se orientar geograficamente no espao? O relacionamento entre as direes
definidas pelos dois sistemas de orientao espacial, o do esquema corporal e o do
movimento de rotao da Terra, e a coordenao dos mesmos seria uma questo
meramente individual, dependente apenas da preferncia ou da capacidade de cada
sujeito e sem implicaes epistemolgicas fora da subjetividade de cada um? Aquela
associao entre direes cardeais e as corporais seria s uma tradio restrita ao mbito
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da geografia escolar e que se mantm apenas pela sua vulgata, entendida como algo
esttico, que no comporta mudana, movimento?
A reflexo sobre as questes suscitadas, algumas situaes vivenciadas na
experincia em sala de aula e a possibilidade de compartilh-las com outros colegas em
um grupo de pesquisa me levaram a comear sistematizar algumas idias em torno do
problema levantado em um texto produzido como parte do trabalho desenvolvido com
aquele grupo e de circulao restrita ao mesmo (MIRANDA, 2004).
Durante outra pesquisa, realizada para tese de doutorado, trabalhando com uma
colega professora e seus alunos de terceira srie do ensino fundamental, no livro que
utilizava com a turma (LUCENA et alii, 2001) chamou-me a ateno a ausncia daquele
procedimento clssico para se encontrar as direes cardeais no local utilizando o corpo
como instrumento, abordando esse contedo de orientao espacial de modo semelhante
ao proposto por Almeida (2001) e Almeida, Sanchez e Picarelli (1995).
Essa constatao no livro didtico durante a pesquisa para a tese, na qual apenas
registrei em uma nota de rodap (MIRANDA, 2005, p. 102) o que vinha pensando sobre
o assunto, parecia indicar uma tendncia a se considerar mesmo inadequado aquele
procedimento, o que, no entanto, no se confirmou pela anlise de outras colees
didticas e publicaes especficas para professores, o que possibilitou redimensionar e
compreender melhor o problema. Na literatura, podemos identificar posicionamentos
distintos, divergentes e mesmo contraditrios sobre a questo.
Das treze colees didticas consultadas de autores, editoras e datas de edio
diferentes, destinadas, dentre as que trazem essa indicao, para terceira e quinta sries
do ensino fundamental as que apresentam o procedimento para identificao das
direes cardeais no lugar posicionando-se com o lado direito do corpo para a direo
em que o sol nasce, geralmente com ilustrao desse procedimento, so as de: Adas
(1994), Azevedo (1995), Ferreira (2000), Lucci (2000), Marote (1993), Mirabelli e
Yonemoto (1984), Simielli (1993) e Vesentini e Vlach (2000). Outras duas colees, as
de Boligian et alii (2001) e de Pereira, Santos e Carvalho (1997), se referem
orientao pelos astros e possibilidade de se identificar no local as direes cardeais a
partir dos pontos em que o Sol nasce e se pe no horizonte, mas no esclarecem como
proceder para se determinar as direes norte e sul e sem fazer referncia s direes
corporais para isso. J a proposta de Moreira e Sene (2006), ilustrada com uma foto de
algum na praia, de frente para o Sol baixo sobre o mar e com as mos espalmadas e
acima da cabea, se distingue de todas as demais e os autores a colocam assim:
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E se voc no tiver uma bssola? Como poder localizar os pontos cardeais e colaterais, mesmo que de forma aproximada? Fique de frente para o Sol nascente, junte as mos espalmadas, depois aponte para ele, como se estivesse fazendo mira, e voc encontrar o leste; s suas costas, para onde aponta sua sombra, estar a direo oeste, que onde o Sol se pe. Em seguida, abra os braos em forma de cruz, sua mo esquerda apontar para o norte e a direita, para o sul. (MOREIRA e SENE, 2006, p. 51)
As outras duas colees didticas consultadas so as de Almeida, Sanchez e
Picarelli (1995) e a de Lucena et alii (2001) que, como j dito, propem outro
procedimento para a determinao das direes cardeais no local.
Em trs publicaes dirigidas a professores, com orientaes terico-
metodolgicas e propostas de atividades para se desenvolver em aula, tambm aparecem
divergncias, explcitas ou no, maiores ou menores, em relao determinao das
direes cardeais no local coordenando-as com as do esquema corporal, embora os
autores apresentem a mesma argumentao terica dos estudos piagetianos sobre a
estruturao do espao e a construo das noes topolgicas, projetivas e euclidianas
pela criana (PIAGET e INHELDER, 1993). Como vimos, Almeida (2001) nega aquele
procedimento no ensino. J Antunes, Menandro e Paganelli (1999) propem a atividade
para ser desenvolvida com os alunos nas sries iniciais do ensino fundamental e, no
texto de fundamentao e orientao terico-metodolgica, aps descreverem as trs
fases do desenvolvimento da construo das noes projetivas de direita e esquerda pela
coordenao das perspectivas em relao ao prprio corpo e aos objetos no espao,
afirmam em relao s direes cardeais que:
Se a criana passa pelas trs fases descritas anteriormente, ao dar a posio dos objetos, ela est dando os passos que vo permitir-lhe entender as direes cardeais (Norte, Sul, Leste e Oeste). Na verdade, o que a criana vai conseguir transpor a orientao corporal para a orientao atravs das direes cardeais. Esse tipo de orientao se inicia pela identificao dessas direes no espao concreto. Por exemplo: no ptio da escola, a criana identifica com o brao direito o nascente (o Leste), com o brao esquerdo o poente (o Oeste), sua frente localiza o Norte, e, s costas, o Sul. As direes cardeais devero ser aplicadas em vrias situaes concretas: primeiro, em trajetos, por exemplo, e depois nas representaes grficas, nas plantas e nos mapas. (ANTUNES, MENANDRO e PAGANELLI, 1999, p. 52-53)
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Em outra publicao (SCHAFFER et alii, 2003), voltada para prticas com o
globo terrestre em aula, os autores, tratando da orientao espacial, no se referem ao
emprego do corpo como instrumento para se determinar as direes cardeais no lugar,
mas relacionam os lados direito e esquerdo e as partes de cima e de baixo do corpo com
os hemisfrios do globo terrestre e, logo, das direes corporais com as direes
cardeais, a partir e atravs de uma hemisferizao do corpo, ilustrada com a figura 2.
Para a construo da noo de localizao projetiva, o ponto de partida o prprio corpo a partir do qual se marca uma hemisferizao. Com a construo da hemisferizao corporal, o ser humano est elaborando as primeiras noes para a compreenso das relaes norte-sul e leste-oeste, num espao de trs dimenses, como num globo. [...] O trabalho com as direes norte-sul e leste-oeste deve partir de diferentes situaes concretas. importante que se transponha a orientao corporal, dada por exerccios de hemisferizao, para a orientao atravs do traado das coordenadas geogrficas. Nos globos terrestres, o eixo norte-sul da Terra, cuja inclinao sobre a rbita de 23o27, est, via de regra, fixo. Isso acaba fortalecendo a idia de que o norte est em cima e o sul embaixo. (SCHAFFER et alii, 2003, p. 71 e 73)
Essa idia equivocada de que o norte ou est em cima e o sul embaixo pode se
dar tambm pelo uso comum de mapas colocados na vertical, como na lousa e nas
paredes da sala de aula ou na TV e no monitor de vdeo do computador. Mas, mesmo
com o mapa colocado na horizontal, essa idia pode se originar ainda pela orientao
convencional dos mapas com o norte correspondendo parte superior do suporte que,
no uso convencional da folha de papel, corresponde a para cima e, a parte inferior, para
baixo, como empregamos essas direes na folha quando desenhamos. Portanto,
relacionar os hemisfrios do globo com lados e partes do corpo, como aparece na figura
Figura 2 Hemisferizao corporal (Fonte: SCHAFFER et alii, 2003, p. 71).
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2, s pode reforar aquela associao rgida e equivocada com norte-sul e em cima-
embaixo e tambm entre direita-esquerda com leste-oeste, como se os hemisfrios do
globo e as direes cardeais existissem ou fossem definidas no prprio corpo,
contribuindo para uma incorporao das direes geogrficas pelo aluno. Enquanto
que para Almeida (2001) o problema parece ser o aluno, em decorrncia do seu
egocentrismo, poder estender as direes do corpo para a Terra, como que tomando-a
com o corpo e ocupando o leste com sua direita, o norte com sua frente, etc., em
Schaffer et alii (2003) parece que ocorreria o contrrio, isto , os hemisfrios da Terra
que seriam trazidos do globo para o corpo, substituindo seu lado direito pelo leste, a
parte de cima do corpo pelo hemisfrio norte, etc., e no haveria problema nisso.
Nessas abordagens da questo, aparecem, de um lado, as idias de transferncia
(ANTUNES, MENANDRO e PAGANELLI, 1999) ou de transposio (SCHAFFER et
alii, 2003) do sistema de coordenadas do esquema corporal para o das direes cardeais
e, de outro lado, a idia de coordenao entre os referenciais corporais com os
referencias terrestres, mas sem faz-la para identificar as direes cardeais no local ou
nos mapas (ALMEIDA, 2001).
Se tomarmos a mesma teoria que fundamenta essas idias sobre a orientao
espacial, preciso lembrar que para Piaget a coordenao de conjuntos de relaes
espaciais uma das ltimas e mais importantes conquistas do desenvolvimento
cognitivo quando, a partir da coordenao de um determinado conjunto de relaes
formando um sistema e a coordenao de um outro conjunto de relaes em um outro
sistema, se torna possvel coordenar um conjunto com outro, o que Piaget e Inhelder
(1993) chamam de coordenao de conjuntos. No caso da representao do espao, o
que ocorre quando se capaz de coordenar as relaes projetivas (como as relaes de
direita-esquerda-frente-atrs e as perspectivas espaciais em um grupo de objetos
observados de diferentes pontos de vista) com as relaes euclidianas (como as
distncias e ngulos entre as posies fixas dos mesmos objetos, que permanecem,
apesar de mudarem as formas projetivas como so vistos os objetos e as relaes de
direita-esquerda-frente-atrs entre os mesmos quando se muda o ponto de vista, por
exemplo, quando vistos de cima, de um lado e de outro). Assim, segundo essa teoria,
possvel e seria mesmo desejvel ou recomendvel relacionar o sistema de orientao
espacial pelas direes corporais com aquele das direes cardeais definido na Terra
pelo seu movimento de rotao.
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Mas, para isso, o encaminhamento mais adequado e coerente do ensino no seria
evitar ou negar o relacionamento entre as direes corporais e as cardeais, e tampouco
apenas transferir ou transpor umas para outras, mas ao contrrio, seria explicitar como
podem ser coordenadas entre si para que os alunos compreendam e aprendam, entre
outras coisas, que: o leste no a sua direita ou que a parte de cima do seu corpo no o
norte, etc.; direita-esquerda e frente-atrs so dois eixos de direes opostas definidos a
partir do prprio corpo e constituem um sistema de coordenadas; norte-sul e leste-oeste
tambm so dois eixos de direes opostas formando tambm um sistema de
coordenadas, mas definidas na Terra pelo seu movimento de rotao; sabendo isso e
fazendo coincidir a direita com o leste, logicamente, esquerda estar o oeste, e que
nessa situao o norte coincide com a frente e sul com atrs; ento, coordenando assim
os eixos de coordenadas, pode se determinar direes em um sistema tambm a partir
do outro, correlacionando direes em um e em outro. E a isso se acrescenta ainda um
terceiro eixo, a vertical, que define as direes para cima e para baixo na superfcie
terrestre pela gravidade da Terra. Quando se coloca com o corpo em outra posio em
relao ao Sol no cu do lugar, por exemplo, de frente para o nascente, direita-esquerda-
frente-atrs no mudam no prprio corpo e, portanto, permanecem as mesmas relaes
entre elas, assim como leste-oeste-norte-sul no mudam no lugar ou na superfcie
terrestre porque se virou com o corpo para outra direo, ou, nesse exemplo, o Sol
passaria a nascer direita do sujeito, ou seja, no sul, porque se colocou com a sua direita
nessa direo?
Ser que isso to difcil, incompreensvel ou inalcanvel para as crianas em
idade escolar, para nossos alunos? Talvez seja, ou pelos menos demorem a descobrir e
compreender, se esperarmos que eles aprendam sozinhos e espontaneamente. Sozinhos,
podero chegar a idias equivocadas, ou erradas mesmo, e continuar com elas, como
achar que o leste a sua direita e no que o leste s est sua direita quando se coloca
com o lado direito do corpo na direo em que o Sol nasce. Espontaneamente,
provavelmente nem venham a pensar sobre isso, e a no saber; ou ento podero
empregar as direes corporais de outras formas para se identificar as direes cardeais
no lugar como, por exemplo, ficando de frente para o nascente para encontrar direita o
sul e esquerda, o norte, ou qualquer outra forma, o que no teria importncia, como
naquelas duas propostas comentadas antes. Mas, relacionar e coordenar as direes
corporais e as cardeais tem um porque histrico e continua sendo necessrio saber.
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Diante disso, para abordagem e esclarecimento do problema um bom critrio
seria o modo como se estabelece historicamente a relao entre as direes cardeais e o
esquema corporal naquele procedimento para orientao geogrfica to comum na
geografia escolar, buscando suas origens nos conhecimentos geogrficos e cartogrficos
sistematizados e acumulados historicamente.
3. Outras consideraes para as mesmas questes
O mapa, enquanto representao espacial, constitui uma linguagem grfica
multidirecional, ou seja, pode se comear a ler um mapa a partir de qualquer ponto, em
qualquer direo e em qualquer ordem. Mas os mapas modernos trazem tambm a
linguagem escrita (ttulo, legenda, data, fontes, escala, nomes dos lugares e dos
chamados acidentes geogrficos, etc.). E a escrita tem uma direo definida: na nossa
cultura, se escreve/l da esquerda para a direita e de cima para baixo (ou da parte
superior para a inferior do suporte). Na elaborao do mapa, as palavras devem ser
dispostas de modo que o leitor no precise girar o mapa ou mudar-se de posio para ler
a escrita, mas que possa faz-lo, quando muito, apenas movendo a cabea para
acompanhar uma mudana na disposio da escrita s vezes necessria (mas no
desejvel), por exemplo, na escrita/leitura de nomes de rios ou estradas em curvas.
Assim, a leitura/escrita das palavras e a orientao convencional do mapa com o norte
voltado para a parte superior do suporte condicionam a posio em que nos colocamos
em relao ao mapa para ler. Quando o mapa, cujo norte corresponde parte superior da
folha, colocado no cho ou sobre uma mesa, na posio que assumimos diante dele
para ler, estabelece-se a mesma correspondncia entre os referenciais de orientao
espacial dados pelo esquema corporal e os referenciais geogrficos no mapa, como
quando nos colocamos com a direita para o nascente: direita-leste, esquerda-oeste,
frente-norte, sul-atrs (destaque na Figura 3).
Mas para determinar no local direes e localizaes da superfcie terrestre a
partir do mapa, preciso orientar o mapa, coloc-lo na posio horizontal em que as
posies e direes no mapa as direes cardeais ou as direes entre objetos e
localizaes correspondam com as mesmas direes no lugar ou na superfcie
terrestre. Quando orientamos o mapa e nos colocamos diante dele para fazer sua leitura,
estabelece-se aquela mesma correspondncia entre os referenciais de direita-esquerda-
frente-atrs com as direes cardeais no s no mapa, mas tambm no lugar, no espao
real (Figura 4). Ou seja, a posio do nosso corpo para ler o mapa orientado,
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posicionado de acordo com as direes e localizaes no espao real, a mesma
daquele procedimento que aprendemos usar para definir, aproximadamente, as direes
cardeais no lugar, empregando as direes corporais e a observao do sol.
Todas essas relaes de correspondncia entre as direes corporais e as
cardeais na leitura do mapa seriam outras se, em nossa cultura, os mapas fossem
Posicionando/orientando os mapas e o globo terrestre na sala de aula de acordo com as
direes cardeais no lugar. O
L N S
O
L N S
N S
L
O L
O N S
Para cima
Para baixo
D
EA F
Figura 4 Correspondncia entre direes corporais e as direes cardeais no lugar (traadas sobre o cho da sala), no globo e nos mapas orientados pelo norte (foto e composio grfica do autor).
S
N L
O
S
N
L O
S N
L
O S
N L O
F
A E
D
Para cima
Para baixo
Figura 3 As direes cardeais no lugar, traadas na foto sobre o cho da sala de aula, nos mapas e no globo terrestre em posies diferentes e habituais na sala, e as direes corporais (foto e composio grfica do autor).
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orientados pelo sul, como fizeram os cartgrafos rabes, cuja influncia aparece
tambm em mapas antigos de cartgrafos europeus (figura 5).
Mas a orientao dos mapas pelo norte prevaleceu na cultura europia na Idade
Moderna graas ao uso da bssola levada da China por viajantes, a qual passou a ser
utilizada pelos europeus no sculo XIII como importante instrumento para as grandes
navegaes e usado na confeco das cartas portulanas, de origem desconhecida
(ABRIL CULTURAL, s.d.). E essa orientao geogrfica pelo norte tem origem
histrica entre os europeus anterior mesmo ao uso da bssola. O astrolbio, inventado
pelos gregos no sculo II a.c., usado para se tomar medidas angulares entre um
observador na Terra, o horizonte e a altura de um astro no cu, possibilitava determinar
as latitudes no hemisfrio norte tomando como referncia a Estrela Polar, cuja posio
no cu alinhada com o eixo de rotao da Terra e, portanto, ficando perpendicular ao
Plo Norte, ou seja, a latitude 90oN (CARBER et alii, 1988). Assim, de frente para a
Estrela Polar, da bssola, dos mapas, os europeus, de quem herdamos grande parte dos
conhecimentos cartogrficos e geogrficos, tambm ficavam ou ainda ficam de frente
para o norte e com o lado direito para o leste, como ainda ficamos diante dos mapas
para leitura, ao menos nos mapas mais comuns que utilizamos, inclusive na escola.
Quanto ao fato de que o Sol no nascer exatamente a leste todos os dias do ano
nas reas situadas entre os trpicos e de que isso nunca acontece mesmo nas regies
Figura 5 Primeiro mapa-mndi em que aparece o nome Brasil, de 1512, do veneziano Jernimo Marini, orientado pelo sul e com a Palestina no centro indicada por um prespio. (Fonte: Abril Cultural, s.d., p. 4)
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extra-tropicais, ainda assim possvel se determinar o leste e o oeste quando e onde o
Sol nasce e se pe em um dia qualquer, projetando-se uma reta ligando esses dois
pontos no horizonte e uma outra paralela primeira e passando pelo ponto onde
estamos, que corresponder ao paralelo, e na qual estar o leste e o oeste identificados
ainda pelo nascente e pelo poente no lugar (CARBER et alii, 1988). Mas isso tudo e o
que no foi tratado aqui e que se precisa saber sobre esse contedo, no se aprende
sozinho e precisa ser ensinado. As atividades propostas por Almeida, Sanchez e
Picarelli (1995) e por Caniato (1989), alm de outros, so contribuies que podem
auxiliar no desenvolvimento desse contedo do ensino em sala de aula.
Mas podemos considerar a hiptese de que aquela correspondncia entre os
referenciais do esquema corporal e as direes cardeais na orientao espacial foi
estabelecida historicamente pela prpria cartografia em nossa cultura, o que permite
admitir que o emprego dos referenciais do prprio corpo para identificar as direes
cardeais no mapa e no lugar no est em desacordo com os conhecimentos geogrficos e
cartogrficos, mas, ao contrrio, o integra e ainda vlido em nosso tempo. Portanto,
no se justifica excluir aquele procedimento clssico do ensino de geografia, mas, ao
contrrio, preciso ensin-lo adequadamente.
4. Considerando o j exposto...
Se o procedimento clssico sobre o qual se tratou aqui ainda vlido e
necessrio, o ensino-aprendizagem da orientao geogrfica no pode se restringir a
esse procedimento, sendo fundamental compreender as direes cardeais no globo
terrestre. Mas na maioria dos livros didticos de geografia os dois principais
movimentos da Terra so abordados no ensino apenas para tratar dos fenmenos dos
dias e das noites, dos fusos horrios e das estaes do ano, mas no as suas relaes
com os referenciais geogrficos de localizao e orientao na superfcie terrestre para
se determinar das direes cardeais no local. Chega a ser surpreendente e mesmo
curioso o fato de que manuais didticos ou propostas metodolgicas para o ensino de
geografia, sejam documentos oficiais ou publicaes do mercado editorial dirigidas aos
professores, no orientem para um procedimento to bsico quanto fundamental que
posicionar corretamente um mapa para se orientar atravs dele, encontrar localizaes e
direes. Colocar as representaes cartogrficas devidamente orientadas pelos
referenciais geogrficos no local, como na figura 4, alm de fundamental para saber se
orientar por elas no espao real, j contribuiria para colocar a questo da necessidade de
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se coordenar os referenciais corporais e os geogrficos nos mapas, no globo terrestre e
no lugar onde se est na Terra.
Mas, na literatura especializada, nota-se que a questo tratada sobre a orientao
geogrfica envolve tambm uma concepo de ensino-aprendizagem que ainda hoje est
bastante enraizada nos estudos e propostas para o ensino de geografia, baseada na teoria
piagetiana, segundo a qual o ensino deve seguir atrs do desenvolvimento cognitivo do
indivduo, em vez de se adiantar a ele e impulsiona-lo (VIGOTSKI, 1998). Com
algumas concesses, essa concepo est na base da idia de que a construo das
coordenadas geogrficas se alicera na construo do esquema corporal, o qual seria
uma construo individual, espontnea, natural.
Em nosso desenvolvimento, quando ensinamos-aprendemos uns com os outros
determinados modos de pensar ou proceder na prtica, novos, em constituio ou
historicamente j constitudos, necessariamente no abandonamos ou substitumos
outros j conhecidos, que continuam sendo utilizados em situaes e contextos prprios
(VIGOTSKI, 2000). Na orientao espacial, quando aprendemos os referenciais
geogrficos, continuamos utilizando os corporais, por exemplo, para dar localizaes na
cidade: siga em frente por essa rua, vire esquerda no posto de gasolina.... Isso se
aplica tambm s inovaes tecnolgicas. Assim, a existncia hoje do GPS, que todos
os livros didticos j apresentam, no significa necessariamente que no se precise ou
no se empregue outros instrumentos mais simples ou mais antigos para orientao
geogrfica, como a bssola, um mapa, uma rosa-dos-ventos e... o prprio corpo.
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GTD 2: Histria das prticas de ensino em Geografia.