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Relações de Gênero no Cenário do Rap Brasileiro: mulheres negras e brancas Sandra Mara Pereira dos Santos 1 Doutoranda em Ciências Sociais pela UNESP Marília Resumo: As reflexões desta pesquisa foram baseadas em observações realizadas em uma revista impressa intitulada Rap Nacional, em um site www.hiphopmulher.com.br, em vídeos de rap na internet. A análise de tais veículos de comunicação revelou que a quantidade de cantores do sexo masculino é bem maior que o número de mulheres cantantes de rap no Brasil. Para compreender este fato analisa-se a questão de gênero nesse estilo musical. O espaço do rap permite construir referências e marcadores culturais de valorização e reconhecimento social, principalmente para as pessoas que são inferiorizadas socialmente como, por exemplo, as mulheres negras e moradoras das periferias. Dessa forma, o tema central foi delimitado nas diferenças e nos significados atribuídos à relação de gênero nas letras das músicas. Palavras Chaves: Relação de Gênero;Corpo; Rap; Mulheres; Periferias. Abstract: The results of this study were based on observations made in a print magazine called Rap, on a site www.hiphopmulher.com.br in rap videos on the Internet. The analysis of such media outlets revealed that the amount of male singers is much larger than the number of female rap singers in Brazil. To understand this fact we analyze the gender issue in this musical style. The space allows the construction of rap references and cultural markers of recovery and social recognition, especially for people who are socially inferior, for example, black women and residents of the suburbs. Thus, the focus was limited to the differences and the meanings attributed to gender relations in the lyrics. Keyword: Gender Relations; Body; Rap; Womem; Suburbs. 1 Graduada e mestre em Ciências Sociais pela UNESP- Marília, doutoranda em Ciências Sociais pela mesma instituição. Endereço para contato: Rua Conrado Zapaterra,124, Jardim Marajó, Marília, SP, CEP: 17521-110. Email: [email protected] .

Relações de Gênero no Cenário do Rap Brasileiro: mulheres ... · Segundo Sherry Ortner (2006) atualmente a dominação masculina não é o foco central da antropologia feminista,

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Relações de Gênero no Cenário do Rap Brasileiro: mulheres negras e brancas

Sandra Mara Pereira dos Santos1

Doutoranda em Ciências Sociais pela UNESP – Marília

Resumo:

As reflexões desta pesquisa foram baseadas em observações realizadas em uma revista

impressa intitulada Rap Nacional, em um site www.hiphopmulher.com.br, em vídeos de

rap na internet. A análise de tais veículos de comunicação revelou que a quantidade de

cantores do sexo masculino é bem maior que o número de mulheres cantantes de rap no

Brasil. Para compreender este fato analisa-se a questão de gênero nesse estilo musical. O

espaço do rap permite construir referências e marcadores culturais de valorização e

reconhecimento social, principalmente para as pessoas que são inferiorizadas socialmente

como, por exemplo, as mulheres negras e moradoras das periferias. Dessa forma, o tema

central foi delimitado nas diferenças e nos significados atribuídos à relação de gênero nas

letras das músicas.

Palavras Chaves: Relação de Gênero;Corpo; Rap; Mulheres; Periferias.

Abstract:

The results of this study were based on observations made in a print magazine called Rap,

on a site www.hiphopmulher.com.br in rap videos on the Internet. The analysis of such

media outlets revealed that the amount of male singers is much larger than the number of

female rap singers in Brazil. To understand this fact we analyze the gender issue in this

musical style. The space allows the construction of rap references and cultural markers of

recovery and social recognition, especially for people who are socially inferior, for

example, black women and residents of the suburbs. Thus, the focus was limited to the

differences and the meanings attributed to gender relations in the lyrics.

Keyword: Gender Relations; Body; Rap; Womem; Suburbs.

1 Graduada e mestre em Ciências Sociais pela UNESP- Marília, doutoranda em Ciências Sociais pela

mesma instituição. Endereço para contato: Rua Conrado Zapaterra,124, Jardim Marajó, Marília, SP, CEP:

17521-110. Email: [email protected] .

1-Introdução:

A quantidade de homens que cantam rap no Brasil é consideravelmente maior que

o número de mulheres. As cantoras do sexo feminino enfrentam diversos preconceitos de

gênero ao procurarem inserção neste cenário musical, por isso, elas elaboram estratégias

socioculturais para conquistarem reconhecimento artístico no rap. Dessa forma, tais

mulheres vivenciam “jogos sérios”, que ao possuírem metas e “agência”, constroem

redes sociais para transporem formas de poder presentes entre os dois sexos. Ambos os

conceitos em destaque são postos em discussão pela autora Sherry Ortner (2006; 2007).

O corpo das cantoras e suas letras foram e ainda são orientados pelo mundo social

e pela performance masculina. Contudo, algumas MC´s estão mudando o modo de cantar

estabelecido no rap brasileiro. Elas constroem, desde a década de 80, espaços e

significados sociais para expressarem suas vivências, questionamentos e visão critica,

bem como buscam a valorização das mulheres negras. No entanto, suas intenções e

estratégias de mudanças têm gerado relações complexas e ambíguas no que tange a

questão de gênero.

Apresento, nos próximos tópicos, uma discussão conceitual sobre gênero,

“agência” e poder, categorias escolhidas para entender o rap e a performance de mulheres

que atuam nesse campo musical.

2- Relação de Gênero

Segundo Linda Nicholson (2000), no final dos anos 60 a categoria usada para

diferenciar o masculino do feminino era o “sexo”, ou seja, a biologia do corpo. O

feminismo desse período teve que lidar com esse tipo de concepção ao refletir sobre as

distinções sociais entre os homens e as mulheres. Devido a esse uso do gênero, a autora

apresenta o “sexo” como um conceito que esteve e ainda está atrelado as discussões e

visões sobre o masculino e o feminino, mas que em diferentes contextos sociais e

históricos podem ter ganhado sentidos diversos.

De acordo com Joan Scott (1992), nos Estados Unidos, a partir da década de

60, as feministas acadêmicas reivindicavam que não apenas os homens fossem vistos

como sujeitos históricos, mas também as mulheres. Partindo da necessidade política de

inserir e comprovar o protagonismo histórico feminino, amplia-se o campo de estudos

e questões críticas sobre as mulheres até definir-se gênero como uma categoria

analítica.

Joan Scott (1922), ao descrever o modo como a categoria gênero foi criada nos

Estados Unidos, apresenta que este conceito foi pensado como forma de teorizar a

questão da diferença entre mulheres e homens. Tal autora introduz, em seu texto, as

reivindicações feministas que visavam a participação de mulheres na vida pública, já

que o mundo privado não possuía uma dimensão política, esfera ainda era dominada

pelos homens naquele momento. Como mulheres, tiveram que teorizar a diferença em

relação aos homens visando projetar o feminino na história, na vida, dando-lhe

reconhecimento social. Ainda no início de 1970 o gênero foi pesando como diferença

sexual socialmente construída entre homens e mulheres, não determinado pelas

fronteiras biológicas do sexo, o que deu ao feminino e masculino a conotação social e

cultural atribuídas pelos sujeitos, desnaturalizando os significados aplicados ao corpo.

A partir da década de 1970 nos Estados Unidos, e final dos anos 1980 no Brasil,

as pesquisas sobre as mulheres deixaram de ser foco de estudos isolados, relacionando-se

cada vez mais com os estudos sobre os homens, em outras palavras, a categoria gênero

passa a ser usada para pensar a mulher em relação ao homem. Logo, essas pesquisas

introduziram a perspectiva das diferenças sociais entre homens e mulheres como

distinções relacionais (Kaslsing, 2008; Soihet,1986, Linda Nicholson,2000).

A categoria de gênero foi construída em reação a teorias que utilizavam-se da

biologia dos corpos para explicar as diferenças de papéis sociais desempenhados pelos

homens e pelas mulheres. O gênero seria o resultado dos significados sociais dados ao

sexo. No entanto, Butler (2003) questiona a separação binária entre os conceitos de sexo

e gênero, tendo como argumento que o sexo também é uma criação de alguns discursos

sociais, os quais foram formados no campo da medicina, da política e outros; em outras

palavras, assim como a categoria gênero, sexo também é derivado de uma construção

social.

Tendo-se em vista que o corpo é uma invenção cultural, o “sexo” não é um meio

passivo, no qual são depositados os significados culturais denominados como gênero

(Butler, 2000; 2003). Assim, Butler (2000) propõe que se considere, nas discussões de

gênero, a matéria e a realidade do corpo. De acordo com a autora, a discussão de gênero

também engloba a biologia do corpo e os significados culturais assumidos pelo corpo

sexuado e não somente impostos. A partir de alguns estudiosos como Foucault, o estudo

de gênero é conduzido por uma crítica genealógica, que consiste em não buscar uma

identidade sexual verdadeira e oculta nas pessoas, mas as implicações políticas, as quais

permeiam a temática de gênero. Portanto, afirma a autora:

A genealogia toma como foco o gênero e análise relacional por ele sugerida

precisamente porque o „feminino‟ já não parece mais uma noção estável,

sendo seu significado tão problemático e errático quanto o de „mulher‟, e

porque ambos os termos ganham seu significado problemático apenas como

termos relacionais. (Butler,2003:09).

Para Butler (2003), o contexto histórico, a raça, a classe, a etnia, entre outros,

são categorias que atuam na noção de gênero; e, por isso, essa noção não está separada

das políticas de poder e do contexto cultural.

3- Cultura, gênero e rap

A constatação de que as mulheres compõem, em números, uma população

consideravelmente menor que a dos homens no cenário do rap, demonstra uma relação

desigual no campo de gênero e, portanto, das relações de poder entre homens e mulheres

nesse cenário musical no nosso país. As ações das mulheres no rap perante essa

desigualdade podem ser analisadas segundo a perspectiva de “agência” da autora Sherry

Ortner( 2006).

Em entrevista realizada por antropólogas brasileiras, a autora Sherry Ortner

(2006) afirma pensar cultura no modo como Clifford Geertz e James Clifford

apresentavam em seus trabalhos, no entanto, sem desconectá-la da visão dos indivíduos

que estão nela inserida. É importante, para a autora, romper com o olhar que tranca essas

perspectivas individuais dentro da cultura, e a essencializa, e ao mesmo tempo considerar

o que as pessoas nos dizem sobre o que elas fazem. Dessa maneira, a autora faz o uso do

conceito “agência” que, em conjunto com a ideia de cultura, procura de nexos entre os

vários níveis socioculturais, mesmo em um mundo globalizado, mas que possui suas

particularidades locais.

Penso aqui com esta perspectiva de “agência” e cultura, apresentada por Sherry

Ortner (2006), para analisar relação de gênero no rap. Vejo, no rap, a transformação dos

sentidos, estes mobilizados pelos sujeitos de acordo com suas demandas sociais. Segundo

a autora, a questão de gênero, imbuída nas relações sociais, está presente em diversas das

suas pesquisas, e ela apresenta um aspecto também utilizado neste texto para leitura de

gênero rap brasileiro:

“(...) há muito mais mulheres em varais posições de poder, muito mais

mulheres executivas nos estúdios de que antes, muito mais mulheres

executivas nos estúdios do que antes, muito mais produtoras, especialmente

no campo independente, o que é ótimo, e há algumas diretoras. Mas os

diretores, particularmente os que têm mais prestígio artístico, são ainda, na

grande maioria homens, 99%. Quando se chega perto da zona que parece ser

o lugar „mana‟, onde o poder reside, lá estão os homens.(...)”

Após essa declaração acima Sherry Otner (2007) diz que vai pesquisar em

Hollywood mais detalhamente essas relações entre homens e mulheres. Todavia, vejo o

fato que há desigualdades e diferenças entre os dois sexos em Hollywood da mesma

forma que existe no rap do Brasil.

Sherry Ortner (2006) explica o contexto de um dos seus artigos mais lido “Esta a

mulher para o homem assim como a natureza para a cultura?”. Esse contexto foi marcado

pela influência universal e binária do estruturalismo da década de 70, anos nos quais a

discussão sobre gênero crescia nos Estados Unidos, e ela juntamente com outras

antropólogas apresentaram estudos sobre a universalidade da dominação masculina. Tal

poder dos homens foi questionado pelas marxistas e pelo feminismo de outros países

como da Índia. Segundo a autora essas feministas pensavam que o colonialismo, a

pobreza etc. são mais importantes que a dominação masculina, para esse feminismo

pensar a imposição de gênero é para pessoas de países que não possuem como prioridade

preocupar-se com a vida econômica básica como, por exemplo, obter alimentação e

emprego.

Segundo Sherry Ortner (2006) atualmente a dominação masculina não é o foco

central da antropologia feminista, visto que recentemente temos um feminismo voltado

para as diferenças entre as mulheres, o qual pode falar de todos os conflitos e opressões

que as pessoas do sexo feminino lidam, e não somente da dominação do homem. A

autora afirma ainda, o modo como hoje o poder do homem não tem o mesmo grau de

estudo que já teve antes, e ela gostaria de entender o motivo pelo qual isso ocorre nas

ciências sociais.

Sherry Ortner (2007) é uma das antropólogas norte-americanas mais reconhecidas

atualmente no mundo. Seus estudos são referências nas pesquisas de antropologia e

feminismo. Em tais reflexões ela desenvolveu discussões que ficaram conhecidas como

“teoria da prática” e de “agência”. Nos estudos de “teoria da prática” e de agenciamento

ela encara o desafio de buscar articular estrutura e processos sociais. Após os anos 80 ela

já escrevia que o agenciamento era a questão a ser enfrentada para termos uma teoria da

prática consistente e pertinente ( Debert, Almeida:2006)

Como apontou Sherrey Ortner (2007), vejo a maneira como as mulheres do rap

também não falam em uma dominação masculina, no sentido fiel do termo: os homens

mandam e elas obedecem. Mas, penso que há relação de poder sim entre homens e

mulheres no cenário desse estilo musical no Brasil. No entanto, essa interação não ocorre

simplesmente da seguinte forma: os homens dominam as mulheres. Além disso, a maioria

das cantoras de rap não possuem em todos os contextos a prioridade de questionar a

desigualdade social de gênero no rap, e algumas delas e alguns homens até negam que tal

discrepância de poder exista hoje no rap nacional.

Assim analiso como devido as poucas referências femininas no rap nacional as

mulheres nesse meio musical desenvolveram ao longo dos anos algumas estratégias

para participarem desse espaço e criarem dentro do rap representações femininas.

4- Diferenças e desigualdades entre homens e mulheres: “agência”no rap.

Ao estudar o texto “Poder e Projetos: reflexões sobre a agência” de Sherry

Ortner (2007), visualizei em suas análises alguns aspectos que vejo na relação de gênero

no rap no Brasil. Isso pelo fato de ter lido nesse seu trabalho a seguinte reflexão sobre os

agentes/atores sociais:

“ encarando-os como estando sempre envolvidos na multiplicidade de relações

sociais em que estão enredados e jamais podendo agir fora dela. Assim sendo,

assume-se que todos os atores sociais „têm‟ agência, mas a idéia de atores como

sempre envolvidos com outros na operação dos jogos sérios visa a tornar

praticamente impossível imagina-se que o agente é livre ou que é um indivíduo

que age sem restrições.( Ortner,2006:47)”

O conceito de “agência” das pessoas é formado por autores autônomos, mas não

individualista visto que o indivíduo não é totalmente livre. Pois, elas sempre estão

envolvidas em relações de solidariedade, poder, competição e em significados culturais.

Assim, para Sherry Ortner(2007) os indivíduos não triunfam sobre seu contexto,

entretanto, articulam e movimentam seus projetos pessoais.

Para Sherry Ortner(2007) as forças dos seres humanos e o movimento das ações

coletivas estão relacionadas nas sociedades. Dessa forma, as análises da autora se voltam

para as “agências”, ou seja, atores e suas intenções, todavia, os resultados das atitudes dos

atores não correspondem suas intenções iniciais, e isso, devido às forças coletivas e

formações culturais que interferem nas ações dos sujeitos. Para a autora a “agência” não é

puro individualismo americano, mas sim, um empoderamento que os seres humanos

possuem em suas sociedades; visto que “agência” implica em intenção construída na

cultura, no entanto, esse empoderamento está em conexão com o poder das estruturas

sociais.

Nos estudos de Sherry Ortner(2007) o conceito de “agência” é pertinente em

muitas pesquisas, isso porque nele temos pessoas inseridas em projetos culturalmente

definidos, mas que possuem dentro deles intencionalidade, desejos, necessidades e

vontades, onde as ações desses sujeitos apontam para algum propósito. Assim, há nessa

concepção uma intencionalidade ativa que é diferente da simples rotina e reprodução

cultural.

A “agência” é universal na concepção de Sherry Ortner (2007), pois todos os seres

humanos possuem a capacidade de agir, todavia, é culturalmente e historicamente

construída; por isso, ela varia no tempo e de lugar. Assim, a “agência” é a capacidade de

afetar as relações e discursos sociais, visto que ela tem sua raiz no poder, possui ideia de

resistência, está nos movimentos sociais e nas relações de gênero. Sendo assim, a

“agência” pode ser para dominar, resistir ao poder, perseguir projetos coletivos e

individuais, mas sempre com intencionalidade dos indivíduos.

É interessante o modo como Sherry Ortner(2007) descreve em seu trabalho

“ Poder e Projetos: reflexões sobre a agência” algumas heroínas de histórias infantis e

populares no mundo ocidental, que são castigadas por tomarem uma atitude, ou seja,

agirem contra o poder presente na relação de gênero. Esses contos são construções

culturais que constrói “agências”, ou seja, intenções das heroínas em agirem fora e, às

vezes, contra o poder cultural e político presentes na relação de gênero. Dessa forma, a

autora demonstra o modo como a “agência” é a conexão do poder e intenção das pessoas,

as quais estão nos “jogos sérios”, ou seja, nas formações culturais. Essa antropóloga

define “jogos sérios” da seguinte forma:

As interpretações da vida social por meio de jogos sérios não envolvem

a modelagem formal da teoria dos jogos e não envolvem o seu

pressusposto de que prevalece uma espécie de racionalidade universal

em praticamente todos os tipos de comportamento social. Ao contrário,

os „jogos sérios‟ são, bem enfaticamente, formações culturais, não

modelo de analista. Além disso, a perspectiva dos jogos sérios

pressupõe atores culturalmente variáveis (e não universais) e

subjetivamente complexos (e não predominantemente racionalistas e

interessados em si mesmos). (Sherry Ortner,p.46:2007)”

Também está intrínseco na “agência” um poder que as pessoas possuem sobre si

mesmas e sobre as outras. Tal força social pode ser para dominação ou resistência e

ambas estão relacionadas aos desejos e projetos desses atores. Noto em meus estudos

sobre gênero no rap que as mulheres e homens desse cenário musical utilizam em seus

projetos duas formas de poder: um que ocorre sobre o “outro” e um para resistir diversas

formas de formações culturais, que ambos não desejam vivenciar em suas vidas.

Os desejos e metas, ou seja, as “agências” emergem de categorias sociais e

culturais. Observa-se o modo como há nessa ideia da autora projetos de resistência

perante o modo ocidental de viver, ou diante do poder do “outro”.

Nos textos de Sherry Ortner (2007) ela cita exemplos de como grupos de pessoas

elaboram formas de resistência explícita, camuflada e consciente, perante um tipo de

poder que está mudando suas vidas e que não é desejado por essas pessoas. Dessa forma,

os “jogos sérios” são flexíveis, pois eles mudam dependendo do poder em ação social,

que é instável e, por isso, entrará em confronto com projetos individuais e coletivos

Analiso o modo como tal autora joga luz ao poder dos projetos particulares das pessoas,

que estão lidando com diversas formas de imposição social. Ela enxerga o poder desses

projetos e não somente o dos coletivos, e como esses projetos articulam-se de modo mais

estruturado nas propostas do macro-social.

Assim como Sherry Ortner (2006) comenta em seu trabalho, vejo que no rap

nacional as mulheres constroem laços de solidariedade e projetos individuais, no entanto,

também lidam com o “machismo moderno”, formas de poder e outros. Discutirei abaixo

aspectos desse quadro, no qual cantoras de rap estão vivendo.

Tendo em vista que homens e mulheres no campo do rap possuem

comportamentos corporais diferentes uns dos outros, mas que esse estilo musical é

cantado com a utilização de movimentos físicos dominados mais pelos homens, para as

mulheres realizarem seus objetivos de produzir e divulgar seus raps, elas são levadas a

pensarem em mais de uma estratégia artística para atingirem essa finalidade. Noto o

modo como a maioria delas não querem usar, em todos os espaços, seus corpos do

mesmo modo que os homens. Vejamos abaixo algumas de suas opiniões declaradas para

mim sobre vestuário, corpo e sexualidade:

Bom, por ter vindo de uma época onde havia muito preconceito da

mulher, eu aprendi que devemos nos vestir de forma discreta, mas

sem deixar de ser feminina. Afinal de contas, acredito que em

qualquer meio onde a mulher que deseja vêem problema algum em

usar saia ou shortinho curto, acho que vai de cada uma né.

( Blumenau-S.C.)

Como ela se sentir melhor no começo nos vestimos como homens

pra poder ser aceita ai percebemos que não era o caminho porque

o que eles têm que aceitar são as nossas ideias e não nossas

roupas.(Santos-S.P.)

Bem irmã, eu acredito que quem faz a roupa é a pessoa, o rap

não exige etiqueta, tu tem que ser verdadeiro!

Eu canto Rap, mais não deixo de ser feminina, tem dias que canto

com um boné, outro com uma calça larga, outro com uma

chapinha no cabelo e bem maquiada, isso é indiferente o que vale

é tua ideologia, o que tu vai passar através da tua letra não da tua

roupa, é claro que não se deve ir vestida como se fosse pra um

baile funk né!(Gravatí-R.G.S.)

Ela deve se vestir da maneira que ela se sinta bem.

Hoje com essa evolução do movimento, a mulher não precisa mais

colocar uma calça larga, tênis e blusão para ser aceita, ela não

precisa mais se masculinizar.

A Fabiana que é minha parceira de grupo e eu, nos vestimos de

forma bem feminina, com vestidos às vezes curto (não muito) ou

logo, quase sempre de turbante e roupas coloridas, pois a nossa

ancestralidade nos mostrou que temos que nos apresentar assim e

apesar de não ter nenhuma religião eu respeito (....) Mas em

shows sempre tem os abusados né, então as minas tem que tomar

cuidado com saia muito curta por conta do palco, pois sempre tem

um idiota querendo ver além do que você já está

mostrando.(Santos-S.P.)

Mais uma vez acredito que é melhor usar o corpo também de

forma discreta sem querer aguçar a sexualidade, porque quero

que meu público preste atenção em minhas palavras e não no meu

rebolado. (Blumenau-S.C.)

Analiso nas citações anteriores de algumas cantoras de rap do Brasil, descritas

nos questionários sócio/cultural/econômico enviados para elas via email, algumas

relações e estratégias criadas por elas para lidarem com a desigualdade e diferenças de

gênero. Uma das estratégias que as MCs2 usam é aproximarem-se o máximo possível do

comportamento corporal dos homens, e procurarem utilizar algumas peças de roupas e

acessórios freqüentemente mais apropriados pelos homens.

Um segundo caminho que as cantoras adotam no campo do rap é usar roupas

cujos modelos deixam seus corpos mais sensuais, por isso, são peças mais justas,

garantindo assim sua feminilidade. No entanto, para serem vistas como MCs, elas

continuam utilizando um timbre de voz mais grossa, rouca e profunda, em outras palavras

elas mantém a clássica estética sonora do rap e ainda cantam sobre os temas mais

presentes nos raps dos homens.

Uma terceira estratégia é aquela na qual as rappers apropriam-se de diversos

tipos de roupas e acessórios como, por exemplo, vestuários com tecidos mais leves e

2 MC’s e rappers também significam cantora de rap.

suaves, também usam vestidos, saias, brincos, batons, calças jeans justas, etc. Elas não

apresentam um padrão homogêneo de vestimenta, o que já muda constantemente a

utilização dos seus corpos no rap. Todavia, elas continuam discutindo em suas letras

sobre violência urbana, preconceitos, desigualdade social, cantam com vozes fortes,

grossas e outros; além disso, ainda atuam com muitos movimentos corporais, já descritos

anteriormente, reconhecidos socialmente como específicos dos homens.

Analiso o modo como essa terceira estratégia é mais utilizada pelas cantoras que

entrevisto via questionário, diálogo através do facebook e pelas mais reconhecidas no

cenário do rap nacional. Atualmente tal forma de “ser mulher” nesse campo é a mais

utilizada porque propicia para que elas sejam aceitas como cantoras de rap e sem

perderem a sua feminilidade.

Noto no rap pelo menos dois lados sobre o modo como as mulheres pensam os

seus corpos nas suas apresentações nos palcos. Um desses lados é que elas se sentem

mais livres durante suas performances, isso pelo fato de hoje não ser mais obrigatório

usarem as roupas dos homens, como foi no início do rap no Brasil. O outro lado é a

forma como elas pensam que seus corpos não devem usar roupas que as deixem sensuais,

mas somente femininas, ser sensual e/ou sexual no rap é um ponto de tensão social. A

seguir segue uma imagem com “atributos femininos” já descritos neste texto de uma das

MC’s mais consagradas no momento:

Flora Matos - Foto retirada do google.

Analiso que é um grande trabalho para as cantoras de rap vestir e movimentar seus

corpos de modo que eles demonstrem como elas são mulheres e possuem um corpo

feminino, mas sem sexualidade. É presente nos raps os discursos por meio dos quais

explicita a forma como a mulher pode e/ou deve ser sensual, mas sem ser sexual. E isso

principalmente nos palcos, vídeos, fotos que estejam dentro do cenário do rap. Percebo

nas declarações das MC’s que elas desejam serem vistas da seguinte forma: em um corpo

de mulher feminino, entretanto, sem sexualidade.

Concordo com as rappers quando dizem que usar apenas seus corpos de modo

sexual para cantarem dificilmente os homens prestarão atenção em suas ideias; esse é um

dos motivos pelos quais elas não seguem a via sexual. As MC’s evitam demonstrar

sensualidade em quase todos os momentos e jamais sexualidade, porque o objetivo

principal delas não é obter atenção por meio do corpo, mas pelas ideias que cantam em

suas músicas.

Penso que obter voz e reconhecimento no rap através da racionalidade e não do

corpo é um dos motivos que as fazem procurarem o espaço do rap para serem artistas e

não outro gênero musical, que aceitaria mais facilmente as mulheres devido ao seu corpo.

Analiso em algumas falas das MC’s que elas procuram expor suas ideias no rap porque

nele elas são notadas como pessoas que criam, criticam, produzem pensamentos e

racionalidades. Assim, essas pessoas possuem como principal intencionalidade serem

mulheres que não querem ganhar visibilidade e reconhecimento social pelo sua

sexualidade, como ocorre em outros gêneros musicais como, por exemplo, no estilo

musical mais citado por elas: no funk (Shery Ortner,2006).

A história das mulheres cantoras de rap no Brasil nos mostra que elas criaram

espaços e performances em uma forma de arte que nasceu como masculina. Essa prática

delas foi e ainda é, para não serem vistas pelos homens e mulheres apenas como pessoas

que possuem apenas duas funções: reproduzir biologicamente e dar prazer sexual aos

homens. Dessa forma, estrategicamente, elas apropriam-se de um espaço ainda

majoritariamente masculino, usam recursos musicais e corporais desenvolvidos pelos

homens como, por exemplo, vozes fortes, gestos duros, sonoridades do espaço urbano,

temas considerados socialmente como do espaço público e, portanto, dos homens etc.,

para negarem um padrão social de gênero, e não serem vistas como apenas um ser sexual,

emocional e doméstico. Vejo que nesse espaço essas três dimensões são vistas como

negativas e, consequentemente, o que conhecemos como “atributos e papeis femininos”.

Em minhas observações de nos sites, revistas e em shows de rap, observei a

expressiva participação de mulheres negras. Isso ocorre devido ao fato de o cenário do

rap discutir e refletir constantemente sobre a diferença racial no Brasil. As mulheres

negras encontram nesse estilo musical um campo propício para fortalecer seus projetos de

valorização social. Tal reconhecimento social é possível na medida em que no rap há

discursos de valorização da mulher negra. Essa visão de tal mulher é tão explícita e

estimulada no rap que as mulheres brancas que participam desse estilo musical também

constroem uma negritude. Esta elaboração ocorre por meio de acessórios, tranças nos

cabelos, roupas etc. que as façam se sentirem e serem vistas como mais próximas da

estética negra, pois é essa a referência de beleza no rap. Mas, apenas a estética negra não

é o suficientemente para construírem essa negritude; os comportamentos como mulher,

gestos durante as performances e discursos devem enfatizar as mesmas problemáticas

socioeconômicas presentes nas músicas das cantoras negras.

Algumas MC’s do Brasil rejeitam o termo mulata e se autointitulam negra e

preta. Esta e pretinha são categorias nativas do rap, que estão sendo pesquisadas e

pensadas em minha pesquisa. Mas, já vejo que o termo negra e preta são para elas

afirmarem sua condição racial, assim vão contra os discursos racistas e enaltecem sua

raça e cor. Vejamos abaixo exemplos retirados do site rapnacional.com.br que exaltam a

negritude das mulheres, desde o nome das cantoras, que está em destaque, até sua estética

corporal total.

Especial Mulheres: Nega Gizza

Postado por Mandrake em 8 de março de 2010 ás 16:16

Especial Mulheres: Negra Li

Postado por Mandrake em 9 de março de 2010 ás 9:42

Noto no espaço artístico do rap que classe e raça são duas categorias

discutidas de modo explícito pelas MC‟s, as mulheres negras e brancas buscam elaborar

um forte discurso para a construção da auto-estima das mulheres negras, assim gênero,

classe e raça estão em destaque nas músicas dessas cantoras.

Penso ainda o modo como é utilizando mecanismos artísticos e recursos

sociais que os homens possuem, que muitas MC’s reecriam, ultrapassam e flexibilizam as

fronteiras dos significados culturais no rap nacional e, em alguns casos, da separação que

as inferiorizam socialmente via relação de gênero no rap e nas periferias. No entanto, do

meu ponto de vista usar símbolos já citados aqui do mundo dos homens para ser uma

artista de rap cria um paradoxo e/ou uma “armadilha” para algumas mulheres. Isso

ocorre porque muitas vezes esses símbolos e discursos reproduzem e reforçam por velhos

e novos caminhos a “mulher sem direito e expressão a prazer sexual”, e quando ela

possui essa forma de sexualidade é vista como uma pessoa inferior e sem intelecto. Dessa

maneira, a intencionalidade dessas mulheres de mudanças na relação de gênero continua

em conexão com o poder masculino intrínseco no papel social para as mulheres. Sobre

esse ponto Sherry Ortner (2006) nos esclarece o seguinte:

Sugere-se aqui que „desejos e motivações‟ que são os ingredientes da intenção e da

agência, às vezes são irrelevantes para os resultados, mas no mínimo guardam com estes

uma relação complicada e altamente mediada” ( Sherry Ortner, 2006:p.49-50)

São as formas de atuação das mulheres no rap que me levou a pensar suas

estratégias para cantarem os raps, e isso como projetos de atores inseridos e confrontando

certos poderes como, por exemplo, a predominância da performance e dos olhares

masculinos sobre a vida nas periferias; assim as mulheres que cantam rap estão em

“jogos sérios” da forma como Sherry Ortner (2007) nos apresenta. Notei que o conceito

de “agência” dessa antropóloga possui relação e ajuda a compreender as ações artísticas

das pessoas do sexo feminino no rap no Brasil.

“Os jogos sérios e agência” em Sherry Ortner (2007) podem ser utilizados para

pensar o modo como as mulheres no rap lidam e participam no espaço do rap nacional,

assim compreendo essa relação entre os dois sexos e as formações culturais como uma

complexidade de subjetividades e de poderes, ou seja, de “jogos sérios”. Em outras

palavras, as pessoas criam e vivem significados culturais atribuídos à relação de gênero

dentro de projetos pessoais e de uma cultura contextualizada socialmente.

Para Sherry Ortner(2007) “jogos sérios” são formações culturais com atores

variáveis e não universais e, por isso, não é o jogo formal. Na concepção de “jogos

sérios” dessa autora, ela define que a vida social está voltada para metas e projetos das

pessoas e não somente para reprodução de um contexto macro social. Percebo isso no

modo como as mulheres no rap driblam uma cultura machista para colocarem em prática

seus projetos de serem cantoras de rap. Por isso os “jogos sérios” focalizam no micro-

político, mas sem perder de vista as formações culturais gerais.

Considerações Finais

Neste texto analisamos alguns aspectos do modo como as mulheres atuaram e

atualmente participam no cenário do rap nacional. Para tal finalidade também utilizo o

conceito de “agência” da autora Sherry Ortner (2007), para pensar o papel das mulheres

nesse espaço musical.

Observo que as pessoas do sexo feminino possuem projetos com intencionalidades,

essas suas metas envolvem busca por reconhecimento, valorização e obtenção de espaço

no cenário do rap para expressarem suas ideias, mas para isso elas lidaram, e ainda

enfrentam um poder estrutural. Tal poder é o do discurso no qual elas devem provar que

são merecedoras de serem vistas como cantoras de rap com seriedade; assim elas

encontram-se em “jogos sérios”.

Para alcançarem suas metas pessoais e sociais as cantoras de rap criam estratégias

perfomáticas e discursivas; uma dessas metas consiste em serem reconhecidas como

possuidoras de intelecto. No entanto, problematizo neste texto, que essas estratégias não

mudam todos os aspectos na relação de gênero e, muitas vezes, reforçam a visão de um

poder machista no qual a mulher deve ser uma pessoa sem sexualidade para ser levada a

sério. Esse é um dos pontos de tensão que visualizo no rap nacional e que ganha sentido

quando lemos o seguinte:

“(...) „agência‟ veio a ser equiparada, no entender de muita gente, à idéia de „resistência‟.

Porém, Ahearn afirma com razão que „agência de oposição é apenas uma de muitas formas

de agência. Mesmo assim, é claro que as questões de poder mais amplamente concebidas

são centrais no pensamento de Ahearn a respeito de agência. O que essa autora quer dizer

não é que dominação e resistência sejam irrelevantes, e sim que, no seio de relações de

poder e de desigualdades, as emoções humanas,e, por conseguinte, as questões de agência,

são complexas e contraditórias ( Sherry Ortner,2007:p.56)

Essa complexidade citada no trecho acima e existente nas intencionalidades e

resultados dos projetos das mulheres no rap nacional, bem como aspectos de suas ações

que são de resistência frente ao poder cultural e de reprodução desse poder, do meu ponto

de vista constitui um dos pontos mais conflituosos e problemáticos nesse estilo musical.

Assim, este artigo foi um esforço de identificar e problematizar as mudanças,

desigualdades, diferenças e reprodução da relação de poder na questão de gênero no rap e

nas periferias do Brasil.

Referências Bibliográficas:

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