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1386 RELAÇÕES ENTRE FOTOGRAFIA, MEMÓRIA E FICÇÃO Karine Perez / PPGAV Universidade Federal do Rio Grande do Sul Comitê de Poéticas Artísticas RELAÇÕES ENTRE FOTOGRAFIA, MEMÓRIA E FICÇÃO Karine Perez / PPGAV Universidade Federal do Rio Grande do Sul RESUMO Neste artigo, problematizo o caráter contraditório da fotografia: sua compreensão como ras- tro da presença física do referente, que a coloca como espécie de atestado da memória passada, e a consciência do aspecto ficcional implícito nas imagens fotográficas. Este en- tendimento da fotografia ora como “detentora” de memórias e veracidade, ora como meio para a criação de ficções, parte de duas séries de trabalhos: “Micronarrativas Veladas” e “Vestidos de Memórias”. Ambas as séries estão em desenvolvimento durante pesquisa de doutorado em Poéticas Visuais no PPGAV/UFRGS e a partir delas são discutidas questões prático-teóricas, embasadas em autores como Barthes (1984), Flores (2011) e Fontcuberta (2012). PALAVRAS-CHAVE fotografia; memória; ficção. RESÚMEN En este artículo, problematizo el carácter contradictorio de la fotografía: su comprensión como rastro de la presencia física del referente, que la sitúa como especie de atestado de la memoria pasada, y la consciencia del aspecto ficcional implícito en las imágenes fotográfi- cas. Este entendimiento de la fotografía ora como “poseedora” de memorias y veracidad, ora como medio para la creación de ficciones, parte de dos series de trabajos: “Micronarrativas Veladas” y “Vestidos de Memorias”. Ambas las series están en desarrollo durante investig a- ción en Poéticas Visuales en el PPGAV/UFRGS y a partir de ellas son discutidas cuestiones práctico-teóricas, fundamentadas en autores como Barthes (1984), Flores (2011) y Fontcu- berta (2012). Palabras clave fotografía; memoria; ficción.

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RELAÇÕES ENTRE FOTOGRAFIA, MEMÓRIA E FICÇÃO

Karine Perez / PPGAV – Universidade Federal do Rio Grande do Sul Comitê de Poéticas Artísticas

RELAÇÕES ENTRE FOTOGRAFIA, MEMÓRIA E FICÇÃO Karine Perez / PPGAV – Universidade Federal do Rio Grande do Sul RESUMO

Neste artigo, problematizo o caráter contraditório da fotografia: sua compreensão como ras-tro da presença física do referente, que a coloca como espécie de atestado da memória passada, e a consciência do aspecto ficcional implícito nas imagens fotográficas. Este en-tendimento da fotografia ora como “detentora” de memórias e veracidade, ora como meio para a criação de ficções, parte de duas séries de trabalhos: “Micronarrativas Veladas” e “Vestidos de Memórias”. Ambas as séries estão em desenvolvimento durante pesquisa de doutorado em Poéticas Visuais no PPGAV/UFRGS e a partir delas são discutidas questões prático-teóricas, embasadas em autores como Barthes (1984), Flores (2011) e Fontcuberta (2012). PALAVRAS-CHAVE fotografia; memória; ficção.

RESÚMEN

En este artículo, problematizo el carácter contradictorio de la fotografía: su comprensión como rastro de la presencia física del referente, que la sitúa como especie de atestado de la memoria pasada, y la consciencia del aspecto ficcional implícito en las imágenes fotográf i-cas. Este entendimiento de la fotografía ora como “poseedora” de memorias y veracidad, ora como medio para la creación de ficciones, parte de dos series de trabajos: “Micronarrativas Veladas” y “Vestidos de Memorias”. Ambas las series están en desarrollo durante investiga-ción en Poéticas Visuales en el PPGAV/UFRGS y a partir de ellas son discutidas cuestiones práctico-teóricas, fundamentadas en autores como Barthes (1984), Flores (2011) y Fontcu-berta (2012).

Palabras clave

fotografía; memoria; ficción.

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Introdução

O objeto de análise, alvo das reflexões prático-teóricas desenvolvidas neste artigo,

parte do processo artístico pessoal de criação de duas séries de imagens que estão

sendo concebidas por mim durante pesquisa de Doutorado em Poéticas Visuais,

realizada no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV/UFRGS), sob a

orientação de Sandra Rey, com fomento da CAPES. As referências iniciais para o

processo de criação do trabalho são micronarrativas relatadas por sujeitos próximos,

rememoradas a partir de roupas, pertencentes aos seus acervos pessoais. As

memórias narradas a partir das roupas são os dados antropológicos que servem de

material para originar duas séries de trabalhos artísticos em desenvolvimento:

"Micronarrativas Veladas" e "Vestidos de Memórias".

“Micronarrativas Veladas”

A proposta consiste em retratar sujeitos com roupas através das quais compartilhem

comigo histórias, memórias passadas ou recentes, tratando-se de eventos marcan-

tes ou banais, rememorados pelas roupas. Tais roupas podem ser da própria pessoa

ou de outra/s julgada/s por ela significativa/s. Também se recorre ao uso de vestes

que, por algum motivo, o retratado não consiga se desfazer.

Durante a realização da tomada fotográfica, as roupas são vestidas pelos retratados.

Em caso de não mais servirem, ou pertencerem a outras pessoas, são apenas colo-

cadas em frente ao corpo ou arranjadas de outros modos. A criação da série "Micro-

narrativas Veladas" parte da elaboração de fotografias de silhueta dos colaborado-

res. Essa tipologia de imagem, a qual oculta os traços fisionômicos, interessa, quem

sabe, por sugerir certo mistério sobre o retratado, já que remete apenas a alguns

traços dos sujeitos, tais como detalhes do corpo, modos de posar ou mover-se.

Em razão desse “ocultamento” de variados aspectos dos sujeitos retratados, as rou-

pas, que poderiam sugerir ser a motivação inicial, tornam-se quase imperceptíveis

nessa série. Cabe mencionar que esse emprego das roupas importa ao trabalho na

medida em que provoque nos sujeitos a capacidade de ativar memórias relaciona-

das ao seu uso anterior, possibilitando a narração de histórias, sejam estas marcan-

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tes ou banais. Portanto, a semelhança física não é um dado importante, mas sim a

presença dos sujeitos diante da câmera, seu vestígio.

Nas imagens, tento recriar as memórias compartilhadas e narradas por outros, retra-

tando os próprios colaboradores com as roupas e outros objetos simples, que reme-

tam-me a elementos contidos nas histórias. Cada trabalho é constituído de duas fo-

tografias tratadas em laboratório digital, através dos procedimentos de seleção e

apagamento de partes da imagem (Figura 01). A impressão é feita em tecido trans-

lúcido, o voil, sendo as imagens suspensas por ambas as extremidades e sobrepos-

tas, com espaçamento entre elas, no espaço expositivo.

Nessa série de fotografias, memórias e ficções se misturam, pois, no processo de

produção das imagens do outro, ao tentar recriar suas micronarrativas e dirigir as

cenas para a fotografia, meu imaginário a respeito dessas recordações narradas

acaba por refletir-se nos retratos. Assim, o sujeito que retrata e o sujeito retratado se

confundem na concepção de realidades criadas em função da câmera,

evidenciando-se processos de projeções e espelhamentos intersubjetivos nas

imagens.

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Cobertura final (série Micronarrativas Veladas), 2014 Fotografia digital impressa em voil, 164 x 62 cm

“Vestidos de Memórias”

A segunda série em processo, denominada "Vestidos de Memórias", parte de um

fato ocorrido ao fotografar os mesmos sujeitos da série anterior. Notei que, ao contar

as histórias rememoradas pelas roupas, os colaboradores mostravam fotografias ou

objetos relacionados às histórias, como se fossem espécies de documentos com-

probatórios da veracidade da narrativa. Essas imagens preexistentes, pertencentes

a arquivos pessoais dos colaboradores, despertaram-me a atenção e comecei a so-

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licitá-las, passando a “refotografá-las” nas mãos daqueles que compartilhavam co-

migo suas narrativas e memórias. (Figura 02).

Proteção (série Vestidos de Memória), 2014 Fotografia digital sobre papel, 19 x 12 cm

A série é composta por fotografias em pequena escala, dialogando com as imagens

de álbuns de família. Contudo, os traços fisionômicos dos retratados permanecem

ocultos, com intuito de manter preservados os dados identitários de cada um, atra-

vés da estratégia de “corte”. Assim, as cabeças dos sujeitos permanecem “fora” do

campo da composição.

Apesar da compreensão inicial da fotografia como uma espécie de “atestado” da

memória passada, as ficcionalizações evidenciam-se nas narrativas compartilhadas,

pois, constantemente, as roupas e/ou os sujeitos retratados nas fotografias familia-

res eram outros, os quais não se encontravam fisicamente e espacialmente presen-

tes no momento da tomada fotográfica. Isso demonstra que nem sempre correspon-

dem ao mesmo acontecimento narrado, mas se tornam presentes no trabalho, atra-

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vés de imagens mostradas por outros. Mesmo assim, as fotos e as roupas usadas

remetiam os sujeitos a lembranças que estavam associadas umas às outras.

Além disso, na série “Vestidos de memórias”, variadas sobreposições de camadas

espaço-temporais se cruzam, à medida que fotografias e objetos do passado se so-

brepõem à temporalidade presente do ato fotográfico. Logo, realidades diversas

convivem na imagem. É como se, por um instante, passado e presente dialogassem.

Isso evidencia o caráter construído e ficcional da realidade, muitas vezes alicerçada

em memórias moldadas pelas imagens.

A necessidade de “retenção”: afetividade e indicialidade no mito de Dibutades

Diante da condição transitória da vida humana, em que as lembranças de fatos pas-

sados são voláteis, a produção de “duplos” parece satisfazer, momentaneamente, o

desejo de reter o efêmero e refrear a ação do tempo. Se pensarmos a imagem foto-

gráfica como um “duplo” de seu referente e tomarmos como válida a compreensão

cotidiana da fotografia, que a encara como um meio de reter as memórias vividas e

de testemunhar/atestar a realidade passada, percebe-se que a fotografia vai ao en-

contro desse desejo humano, parecendo manter o seu referencial aprisionado numa

espécie de suspensão temporal. Basta nos atermos às páginas dos estimados ál-

buns de família: neles, o importante é a “presença” das pessoas amadas, captura-

das em rituais que marcam momentos significativos, simbólicos e felizes da vida.

Esta necessidade humana de “reter” o efêmero e criar “duplos”, através da imagem,

não remonta apenas ao tempo atual, podendo ser visualizada nas mais diversas cul-

turas, inclusive muito anteriormente ao advento fotográfico. Por exemplo, na valori-

zação das máscaras mortuárias.

A própria origem mítica da representação, na fábula de Plínio, o Velho, citada por

Dubois (2006), aponta para essa necessidade de “retenção”. Trata-se de uma histó-

ria, cuja personagem é a filha do Oleiro Dibutades, de Sícion. A jovem, ao ver a

sombra do rosto de seu amado projetada numa parede, por intermédio de uma fonte

luminosa, contornou-a com carvão na parede (Figura 03), para guardar-lhe a ima-

gem, antes que ele partisse para uma longa viagem. Como se isto não bastasse,

posteriormente, seu pai modelou o relevo humano em argila, preenchendo aquele

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contorno vazio da sombra e queimando-o junto com outros vasos de barro, para posterior

conservação.

A fábula aponta para uma origem da representação relacionada à afetividade, à pre-

sença/ausência do referente e à memória. A partir da fábula, Dubois (1993, p. 116)

constata que “a representação nasceu por contato.” Sendo assim, o que importa não

é necessariamente que a imagem se pareça com o referente, mas que guarde um

traço de sua presença física.

Representação iconográfica do mito de Dibutades

Eduard Daege Die Erfindung der Malerei, 1832

Óleo sobre tela, 176,5 x 135,5 cm Nationalgalerie, Berlin

A presença da ausência e a ausência da presença

Estas propriedades indicial1 e mnemônica, contidas na fábula originária da represen-

tação, aproximam-se da fotografia, pois se encontram implícitas na concepção onto-

lógica do meio fotográfico, incessantemente pensada por autores como Barthes

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(1984), Krauss (2002) e Dubois (2006), os quais vislumbram que a essência da foto-

grafia está na sua característica de rastro de seu referente físico.

Estas questões que envolvem o referente fotográfico foram trabalhadas pelo teórico

Francês Roland Barthes, o qual enfatiza uma “teimosia do referente em estar sem-

pre presente” (BARTHES, 1984, p.15-16), pois, segundo ele, a fotografia envolve a

tautologia, traz consigo seu referencial, atingido por uma imobilidade. Essa imobili-

dade é amorosa e fúnebre, por não fazer parte do mundo em constante movimento,

o qual o fotografado vivencia. Barthes alerta para a invisibilidade da fotografia em si,

pois o que vemos, ao olhá-la, é um duplo da corporeidade daquele que esteve dian-

te da objetiva, principalmente quando se trata da imagem de um ser amado. Assim,

o autor detecta que a fotografia é constituída por um “isso foi”, indicando que tudo o

que é visto numa imagem fotográfica encontrou-se diante da câmera, sendo posteri-

ormente separado dela. Nas palavras do autor:

A foto é literalmente uma emanação do referente. De um corpo real, que estava lá, partiram radiações que vêm me atingir, a mim, que es-tou aqui; pouco importa a duração da transmissão; a foto do ser de-saparecido vem me tocar como os raios retardados de uma estrela. Uma espécie de vínculo umbilical liga a meu olhar o corpo da coisa fotografada: a luz, embora impalpável, é aqui um meio carnal, uma pele que partilho com aquele ou aquela que foi fotografado. (BARTHES, 1984, p.121)

Nesse sentido, para ele, a foto produz o efeito de atestar que o que vejo nela de fato

existiu, atuando como se fosse um certificado da presença do outro em estado pas-

sado. Esse fato, de encarar a foto como atestado de que o referente esteve ali, fren-

te à câmera, não significa que a considere cópia do real, mas sim uma emanação do

real passado. Deste modo, o autor detecta que numa fotografia a presença do refe-

rente não é metafórica, como numa pintura. É por essa razão que tomo a fotografia

como o procedimento inicial de minha investigação, pois me interessa este vínculo

físico que ela estabelece com os sujeitos retratados; é essa emanação que possibili-

ta sentir a presença do referente, através do uso da imagem como “substituta” da

presença dos sujeitos.

Barthes (1984), ao observar variadas fotos de sua mãe, após a morte dela, depara-

va-se com imagens “parcialmente verdadeiras”. Essas imagens pareciam-lhe ser

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quase ela, o que lhe soava decepcionante e doloroso, por encontrá-la nessas ima-

gens vestindo trajes e realizando ações que não condiziam com o modo com que o

autor a reconhecia. A partir dessa experiência, bem como da de ser fotografado e

muitas vezes não se reconhecer, nem lembrar-se do momento em que foi apreendi-

da sua imagem, Barthes aponta que há algo de terrível em toda a fotografia: o que

denomina “o retorno do morto”.

Assim, alerta para o fato de que o sujeito fotografado, quando tem a consciência de

estar sendo observado, tende a posar, “(re)fabricando-se” o tempo inteiro e se me-

tamorfoseando em imagem. É por isso que a fotografia tem o poder de criar ou re-

criar um corpo, mas também de mortificá-lo pela imobilidade da pose e da imagem

bidimensional. O autor afirma:

a Fotografia é o advento de mim mesmo como outro: uma dissocia-ção astuciosa da consciência de identidade. [...] a Fotografia (aquela de que tenho a intenção) representa esse momento muito sutil em que, [...], não sou nem um sujeito nem um objeto, mas antes um su-jeito que se sente tornar-se objeto: vivo então uma microexperiência da morte [...]: torno-me verdadeiramente espectro. (BARTHES, 1984, p.25;27)

Apoiada nas palavras desse autor, e identificando-me com suas narrativas, percebo

que em meu projeto artístico, ao transmutar os sujeitos fotografados em imagem, é

como se vivenciasse esta experiência mortífera, de aprisionamento de corpos em

representações bidimensionais, por vivenciar momentos encenados e fabricados

para a tomada fotográfica, os quais denotam um “afastamento” do referente.

Por outro lado, também experimento a sensação de inventar-me a mim e aos outros

durante os experimentos, pois é como se os retratados estivessem presentificados

na cena, mas de um modo diverso de como se apresentam na vida cotidiana. Já que

memórias da realidade e ficção convivem lado a lado nas imagens, a presença do

referente é preservada, por meio da fotografia, mas paradoxalmente mortificada.

Isso vai ao encontro das idéias de Crimp (2005), o qual considera que o próprio con-

ceito de representação envolve um tipo de presença que só é possível através da

ausência do referente.

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Sobre a questão da presença, Crimp (2005) explica que existe um conceito frequen-

temente relacionado ao “estar ali”, “estar diante de”. Entretanto, acrescenta outra

noção, usada nas histórias de fantasmas de Henry James, a qual é cara a esta pes-

quisa: a ideia de presença que é um fantasma, que não está ali, que é uma ausên-

cia, envolvendo seu aspecto fantasmagórico. Este tipo de presença fantasmática é

percebida por Crimp nas fotografias refotografadas de Richard Prince, o qual isola,

amplia e justapõe fragmentos de imagens comerciais, onde os referenciais humanos

apresentados não encontraram-se diante da câmera, mas sim suas imagens (Figura

04). Isso aponta para uma ausência do sujeito de carne e osso, como origem de su-

as fotografias, permanecendo como referente a imagem bidimensional, encarada por

Crimp como “ausência do referente”. Ou, quem sabe, sua presença seja compreen-

dida como uma espécie de fantasma, de retorno e recodificação do morto?

Richard Prince Untitled (Cowboy), 1989

Fotografia Ektacolor, 127 x 190,5 cm

Este tipo de “presença-ausente”, ou presença como fantasma, que está e não está

ali, relaciona-se com minha proposta artística em ambas as séries apresentadas. Na

série “Micronarrativas Veladas” esta “presença-ausente” ocorre por tentar dar visibi-

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lidade a memórias de atos ocorridos com outras pessoas, os quais conheço somen-

te por meio de suas narrativas que foram compartilhadas comigo. Além disso, a tota-

lidade da representação figurativa do sujeito não é alcançada na imagem em silhu-

eta, pois cada trabalho ao apresentar-se em pares, que parcialmente se complemen-

tam, mostra-se com detalhes fisionômicos “ocultados” ou “apagados”.

Já em “Vestidos de Memórias”, esta fantasmagoria da presença se dá por refotogra-

far imagens preexistentes supostamente “comprobatórias” das situações narradas

pelos sujeitos. As histórias contadas e imagens mostradas pelos participantes, cons-

tantemente, envolvem outras pessoas que não se encontram fisicamente e espaci-

almente presentes no momento em que realizo as fotografias. Essas pessoas “pre-

sentificam-se” no trabalho por meio dessas imagens mostradas por outros. Portanto,

em “Vestidos de memórias” os sujeitos fotografados convertem-se em imagens que,

por sua vez, inserem outras imagens, do passado, no contexto do trabalho, o que o

aproxima, nesse único aspecto, da obra de Richard Prince, já que se apropria de

imagens alheias, de segunda geração.2

Contudo, meu processo afasta-se do de Prince, pois ele refotografa inteiramente ima-

gens midiáticas preexistentes de sujeitos que jamais estiveram diante da câmera,

descontextualizando-as pela retirada dos textos que originalmente as acompanhavam.

Já em “Vestidos de memórias”, transito entre imagens de segunda e de primeira gera-

ção, pois refotografo retratos preexistentes, pertencentes aos álbuns de família dos

sujeitos. Mas, ao refotografá-los nas mãos daqueles que compartilham comigo suas

narrativas, apresentando, ainda, na composição as roupas responsáveis pela reme-

moração das histórias, opero a criação de uma nova imagem inexistente, detentora de

variadas camadas espaço-temporais que se articulam no trabalho.

Portanto, diferentemente de Prince, que ao fotografar coloca-se diante de imagens

preexistentes, em ambas as séries coloco-me diante da presença daqueles que me

pungem e me afetam, capturando a emanação física desses sujeitos. Contudo, rete-

nho apenas seus indícios fotográficos, “mortos-vivos” que atenuam e encurtam o

distanciamento que o tempo impinge aos sujeitos, na vida cotidiana.

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O emprego da fotografia, como um dos procedimentos da pesquisa, acontece em

razão de querer utilizá-la como uma tentativa de preservar os vestígios de pessoas

importantes para mim e de transpassar seu esquecimento, buscando eternizar suas

memórias e revelando uma vontade de reter o efêmero. Tenho a intenção de mos-

trar algo passado, referindo-me a um sujeito que deixa na imagem apenas os seus

indícios, representado por suas memórias e objetos pessoas. Deste modo, refugio-

me nos pequenos relatos, no íntimo e familiar, na tentativa de dar lugar às memórias

narradas por meus “entes queridos”, tendo a consciência de que a ficção está pre-

sente nas memórias narradas por eles e no ato fotográfico em si, o qual envolve a

encenação e a produção de imagens para a fotografia.

As relações entre fotografia, memória e ficção

Quando encaramos a fotografia como um material equivalente à memória, estamos

tratando do seu já mencionado atributo indicial, que a vincula à presença física de

seu referente. Ao pensar as relações entre fotografia e memória, Flores (2011, p.

125) afirma que: “no nível ontológico, a memória e a fotografia funcionam de manei-

ra parecida, trazendo ao presente as imagens do passado de um modo visual. Uma,

a memória, faz isso de modo mental, enquanto a outra, a foto, o faz de modo mate-

rial”. Contudo, a autora critica a concepção comum e dominante de memória enten-

dida como neutra, transparente e mecânica, pois as emoções modificam a percep-

ção. Flores se apega, então, ao caráter seletivo e transitório da memória. Esclarece

que somente permanecem arquivadas as experiências significativas, apagando-se

as vivências que não são úteis. Assim, concebe a memória como processo ativo e

criativo em constante reciclagem de perceptos e conceitos.

Nesse mesmo sentido, Fontcuberta (2012, p. 43) assegura: “Recordar quiere decir

seleccionar ciertos capítulos de nuestra experiencia y olvidar el resto. No hay nada

tan doloroso como el recuerdo exhaustivo e indiscriminado de cada uno de los deta-

lles de nuestra vida”. Este atributo seletivo da memória é explicado pelo autor atra-

vés do relato da novela The man who never forgot (1957), de Robert Silverberg. Ne-

la, é elucidado o aspecto negativo de se ter uma memória extraordinária, já que o

personagem Tom Niles, dotado de uma memória sobrehumana, não consegue es-

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quecer-se de nada, tornando-se incapaz de perdoar erros e superar traumas, por

não apagar das lembranças aspectos negativos da vida. Isso torna sua relação com

os outros uma catástrofe, insinuando Silverberg que é o esquecimento que nos per-

mite sermos felizes.

Por isso, Fontcuberta afirma que fotografamos para esquecer. Explica que, em foto-

grafias pessoais, aparentemente só se incluem situações agradáveis, como ritos,

celebrações, viagens e férias.

Fotografiamos para reforzar la felicidad de estos momentos. Para afirmar aquello que nos complace, para cubrir ausencias, para dete-ner el tiempo y, al menos ilusoriamente, posponer la ineludibilidad de la muerte”. (…) seguimos condenados a fotografiar para olvidar: re-saltamos unos hechos para postergar los intervalos anodinos y te-diosos que fatigan el espíritu. (FONTCUBERTA, 2012, p.44)

Dentro dessa concepção, percebe-se que a fotografia possibilita a retenção de mo-

mentos que queremos lembrar futuramente, mas também a supressão daquilo que

não queremos recordar. Fotografamos determinadas ocasiões em detrimento de

outras que preferimos esquecer, para que se apaguem nos entremeios de uma foto-

grafia e outra, restando intervalos de tempo, lapsos entre as imagens.

Tal qual a memória, a fotografia é maleável, falível e seletiva. Portanto, ambas sem-

pre envolvem um caráter ficcional: as memórias, quando narradas, podem incorporar

ocultações e reinvenções criadas pela imaginação; já a fotografia admite esses ele-

mentos, por decisão autoral, ao escolher o que mostrar ou não e de que maneira.

Considerações finais

Minha pesquisa artística, em Poéticas Visuais, relaciona-se com estas questões

apontadas acerca da fotografia e da memória, encaradas como ficção, já que de-

senvolvo imagens embasadas em narrativas de outras pessoas, rememoradas atra-

vés de suas roupas. O que me motivou inicialmente a trabalhar a fotografia, como

um dos procedimentos da pesquisa, é a sua já mencionada característica indicial.

Isso em razão de querer utilizá-la como uma tentativa de preservar a subjetividade

de pessoas importantes para mim e de transpassar seu esquecimento. Destarte,

busco eternizar suas memórias e revelo uma vontade de reter o efêmero, tal qual

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citado na fábula de Dibutades, em que a protagonista captura e “retém” um traço da

presença física do ser amado.

Contudo, mesmo instigando-me esse caráter indicial e mnemônico da fotografia,

meu trabalho vem apontando possibilidades que não necessariamente consistem na

“fixação” das memórias narradas pelos sujeitos, pois em “Micronarrativas Veladas” o

que capturo não é o momento em que as ações foram vivenciadas, mas interpreta-

ções minhas dessas memórias narradas por outros, remontadas para a cena foto-

gráfica. Nesse sentido, interessa-me a dimensão relacional contida no encontro com

as pessoas durante o processo, envolvendo o compartilhamento de suas histórias

comigo e o ato de fotografá-las em seus ambientes domésticos. Cabe enfatizar que

não tenho uma relação “indicial” com as histórias narradas, pois não as testemunho.

Somente as imagino, interpreto e busco remontá-las para a cena fotográfica.

No momento em que os sujeitos se encontram diante da câmera, são desafiados a

reviver ações passadas, recorrendo à seletividade mnemônica, teorizada por Flores

(2011) e Fontcuberta (2012). Em razão da emotividade percebida na fala e nos ges-

tos de cada um, ao rememorar suas histórias, é perceptível que enquanto as recor-

dações são ativadas e narradas são, também, revividas, mesmo que apenas através

das lembranças. O período de trabalho parece funcionar como um momento de pau-

sa, de suspensão, nas atividades diárias, permitindo-lhes um tempo destinado às

reminiscências. Contudo, ocorre uma tensão nessas imagens, pois caso sejam fixa-

das como memória, esta corresponde à ocasião em que os retratados me confiaram

suas histórias, não à objetividade das vivências narradas por eles. Isso porque, as

seleções e criações, operadas ao longo do processo, apontam para a dimensão fic-

cional presente nas imagens fotográficas e nas memórias narradas. Indago-me, por-

tanto, sobre quais detalhes das micronarrativas foram ocultados ou esquecidos por

seus protagonistas. Também tento imaginar como a mesma história seria contada

por outras pessoas que a vivenciassem, sendo possível que agregariam outras in-

terpretações e olhares sobre uma mesma realidade.

Nesse sentido, as imagens fotográficas produzidas distanciam-se das lembranças

arquivadas pelos sujeitos, pois quando as narrativas são ouvidas, imaginadas e re-

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criadas por mim, ocorre sua descontextualização e reconstrução. Mais do que regis-

trar episódios vividos, busco ressignificar memórias e (re)construir fatos passados,

produzindo novas realidades para a tomada fotográfica. Desse modo, ao mesmo

tempo em que “retenho” os trejeitos de cada um, parecendo buscar reconstituir “fa-

tos” relacionados às memórias narradas, atribuo-lhes novas significações. Assim, a

organização dos elementos fotografados obedece às leis da imaginação e não à ob-

jetividade do acontecido, admitindo uma dimensão ficcional e encenada que permeia

o trabalho.

Notas

1 Referente à “Índice”, termo desenvolvido por Krauss (2002), na publicação francesa “Le photographique”, de

1990. Pautada nas teorias de Charles S. Peirce e Roland Barthes, a obra de Krauss aponta para a condição de traço fotoquímico da fotografia, a qual só pode existir a partir de vínculo inicial com um referente material, depen-dendo do contato físico entre dois corpos presentes no mesmo lugar. 2 “Imagens de segunda geração” é um termo usado por Chiarelli (2002). Diz respeito a operações em que o

artista, apropria-se de imagens que não são de sua autoria, podendo originar-se de um contexto artístico, massi-ficado ou mesmo pessoal.

Referências

BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

1984.

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RELAÇÕES ENTRE FOTOGRAFIA, MEMÓRIA E FICÇÃO Karine Perez / PPGAV – Universidade Federal do Rio Grande do Sul Comitê de Poéticas Artísticas

Karine Perez

Doutoranda em Poéticas Visuais PPGAV–UFRGS. Mestre em Artes Visuais PPGART–UFSM (2010). Graduada em Desenho e Plástica Bacharelado (2005) e Licenciatura Plena (2007) UFSM. Participa do Grupo de Pesquisa Processos Hibridos na Arte Contemporanea /CNPQ – UFRGS.