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1 RELAÇÕES SOCIAIS NAS VACARIAS SULINAS DE MATO GROSSO: Considerações sobre a Guerra do Paraguai (1864-1870) Drª Maria Teresa Garritano Dourado Resultado de uma soma de fatores, entre eles, políticos, territoriais e econômicos a eclosão da Guerra do Paraguai até hoje gera acirradas polêmicas e controvérsias entre os quatro países envolvidos, quais sejam, Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, como, entre outros, se pode observar em um artigo paraguaio: "...na Villa Real de Concepcion salieron las tropas del coronel Vicente Barrios y Dias de Bedoya, el mayor Francisco Isidoro Resquín y el capitán Martín Urbieta, para emprender, por río e por tierra, respectivamente, la recuperación del antiguo Jerez Ñu paraguayo, en donde los portugueses y brasileños habian levantado las poblaciones, puertos y fuertes de Coimbra, Albuquerque, Cuyabá, Corumbá, Cojín (o Coxim), Ñuay (o Nioay), Aquidavana, Dourados, Miranda (sobre nuestro Mbotetey, en donde estuvo la ciudad paraguaya de Santiago de Jeréz). Toda esta inmensa región regada por sangre paraguaya, era llamada por los brasileños como el Mato Grosso y por ello la campaña con que se iniciaba la guerra con el Brasil, luego descubierta con su fatal dimensión de Triple Alianza, fue llamada en la historiografia como campaña de Mato Grosso" (CABALLERO, 1999, p. 50-51). Todos os governantes paraguaios, após o bandeirantismo paulista, aspiraram à ocupação do sul do antigo estado de Mato Grosso; para os paraguaios o Brasil era imperialista e usurpador. De governo a governo, o velho sonho e desejo de expansão para o norte era bastante disseminada onde a versão das riquezas encontradas na Serra de Maracajú, nas vizinhanças da antiga Santiago de Xerez tomavam vulto com as notícias do descobrimento dos ricos garimpos de Cuiabá e do Guaporé. De fato, o governo paraguaio questionava a ocupação e instalação ilegal de redutos militares imperiais e povoamento em área em disputa, mas não é objeto desse artigo desenvolver argumentos elaborados pela historiografia que se ocupa do tema. A tarefa proposta é revelar as ações bélicas da coluna paraguaia por ocasião da sua penetração e ocupação do sul de Mato Grosso, mais precisamente no cenário do espaço geográfico que englobava as vilas de Miranda, Nioaque (antigamente Santa Rita de Levergeria) e das famílias moradoras das cercanias, as afazendadas que ocupavam uma extensa região ao redor das vilas, conhecida naquela época como Campos da Vacaria.

RELAÇÕES SOCIAIS NAS VACARIAS SULINAS DE MATO … · Por ocasião do início da guerra, o Exército Brasileiro estava em estado deplorável, mal armado, mal equipado e com efetivos

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RELAÇÕES SOCIAIS NAS VACARIAS SULINAS DE MATO GROSSO:

Considerações sobre a Guerra do Paraguai (1864-1870)

Drª Maria Teresa Garritano Dourado

Resultado de uma soma de fatores, entre eles, políticos, territoriais e econômicos a

eclosão da Guerra do Paraguai até hoje gera acirradas polêmicas e controvérsias entre os

quatro países envolvidos, quais sejam, Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, como, entre

outros, se pode observar em um artigo paraguaio:

"...na Villa Real de Concepcion salieron las tropas del coronel Vicente Barrios y

Dias de Bedoya, el mayor Francisco Isidoro Resquín y el capitán Martín Urbieta,

para emprender, por río e por tierra, respectivamente, la recuperación del antiguo

Jerez Ñu paraguayo, en donde los portugueses y brasileños habian levantado las

poblaciones, puertos y fuertes de Coimbra, Albuquerque, Cuyabá, Corumbá, Cojín

(o Coxim), Ñuay (o Nioay), Aquidavana, Dourados, Miranda (sobre nuestro

Mbotetey, en donde estuvo la ciudad paraguaya de Santiago de Jeréz). Toda esta

inmensa región regada por sangre paraguaya, era llamada por los brasileños como el

Mato Grosso y por ello la campaña con que se iniciaba la guerra con el Brasil, luego

descubierta con su fatal dimensión de Triple Alianza, fue llamada en la

historiografia como campaña de Mato Grosso" (CABALLERO, 1999, p. 50-51).

Todos os governantes paraguaios, após o bandeirantismo paulista, aspiraram à

ocupação do sul do antigo estado de Mato Grosso; para os paraguaios o Brasil era imperialista

e usurpador. De governo a governo, o velho sonho e desejo de expansão para o norte era

bastante disseminada onde a versão das riquezas encontradas na Serra de Maracajú, nas

vizinhanças da antiga Santiago de Xerez tomavam vulto com as notícias do descobrimento

dos ricos garimpos de Cuiabá e do Guaporé. De fato, o governo paraguaio questionava a

ocupação e instalação ilegal de redutos militares imperiais e povoamento em área em disputa,

mas não é objeto desse artigo desenvolver argumentos elaborados pela historiografia que se

ocupa do tema. A tarefa proposta é revelar as ações bélicas da coluna paraguaia por ocasião

da sua penetração e ocupação do sul de Mato Grosso, mais precisamente no cenário do espaço

geográfico que englobava as vilas de Miranda, Nioaque (antigamente Santa Rita de

Levergeria) e das famílias moradoras das cercanias, as afazendadas que ocupavam uma

extensa região ao redor das vilas, conhecida naquela época como Campos da Vacaria.

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Existiam por parte do governo paraguaio, indícios evidentes de preparo para uma guerra,

devido ao quadro de tensão na região da bacia do Rio de la Prata.1

Essa ocupação foi bem preparada, precedida do levantamento de informações por

espiões, indivíduos escolhidos e escalados que desde o ano de 1862 percorriam o vasto

território, em busca de dados, organização, pontos fracos e fortes da região fronteiriça. O

General Raul Silveira de Mello alertava que “os governos paraguaios procediam, como

quaisquer outros governantes, à espionagem e à busca de informações além das fronteiras”

(MELLO, 2014, p. 98-104). Em um antigo tratado militar, um estrategista militar chinês

aconselhava que "manterás espiões por toda parte. Deves supor que o inimigo fará o mesmo.

Se chegas a descobri-los, evita condená-los a morte. Seus dias devem ser-te infinitamente

preciosos " (SUN, 2006, p. 12). De fato, a preparação paraguaia para a guerra se iniciou com

bastante antecedência, informantes paraguaios, entre eles, desertores, índios andarilhos,

refugiados ou em incursões circulavam livremente por toda a província mato-grossense que

era muito extensa, não existindo naquela época mapas confiáveis de todo o território. Uns

diziam estarem a passeio, outros, comerciantes de animais cavalares, interessados em

fazendas para criação de gado. Buscaram e obtiveram informações preciosas e precisas sobre

o número de soldados em cada localidade, como e por quem era exercido o comando, vários

pormenores da situação econômica e militar. Em alguns casos os relatórios apresentados ao

dirigente paraguaio Solano Lopez eram bastante detalhados e fundamental para a ocupação

que se seguiu e principalmente se motivaram nos problemas de limites entre a República

paraguaia e o Império do Brasil, que se arrastavam havia muitos anos e que nunca se

resolviam. Dentre eles estavam os paraguaios: Germano Serrano, Francisco Isidoro Resquin,

André Herreros e Pedro Pereyra que levaram para Solano Lopez valiosas informações que

possibilitaram ao governante paraguaio organizar a ocupação que se seguiu.

Em dezembro de 1864 duas expedições militares paraguaias penetraram e ocuparam o

sul da província do Mato Grosso, segundo dois decretos de nomeação dos comandantes de

divisão que deveriam agir na frente norte e na frente sul contra o Brasil. A primeira,

denominada Divisão de operações do Alto Paraguai, fluvial, comandada pelo coronel Vicente

Drª Maria Teresa Garritano Dourado. Bolsista DCR/FUNDECT/SEPROTUR/CNPQ/UFGD (Universidade

Federal da Grande Dourados) Mato Grosso do Sul. 1 Estuário atlântico da América do Sul, formado pelos rios Paraná e Uruguai, que separa a Argentina do Uruguai

e em cujas margens ficam Buenos Aires e Montevidéu.

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Barrios e segundada pelo tenente-coronel Francisco Gonzalez tendo como objetivo inicial

tomar o Forte de Coimbra. A segunda expedição, terrestre, se subdividiu em duas colunas,

constituídas principalmente por cavalarianos, sendo a principal, Coluna de operações sobre a

Vila de Miranda e Rio Mbotetey ou Miranda, e comandada pelo coronel Francisco Isidoro

Resquín, tendo como segundo capitão Blas Rojas e a secundária, Dourados e Rio Brilhante

pelo capitão Martín Urbieta, que devastou as vizinhanças dos rios Dourados, Brilhante e

Vacaria, (MELLO, 2014, p. 110).

Por ocasião do início da guerra, o Exército Brasileiro estava em estado deplorável, mal

armado, mal equipado e com efetivos insignificantes para enfrentar um ataque surpresa e que

se tornou o maior conflito bélico da história da América do Sul: a Guerra da Tríplice Aliança

contra o Paraguai. O Império do Brasil foi envolvido por uma guerra inesperada, apesar de

vozes isoladas alertarem para uma possível agressão do lado paraguaio, dos constantes alertas

enviados pela correspondência diplomática em Assunção e pelo Palácio do Governo da

Província de Mato Grosso ao Governo Imperial (CARVALHO, 1864, p. 6). Nessa época, a

distante província de Mato Grosso, a mais isolada e esquecida pelo governo monárquico, foi

abandonada a própria sorte devido, entre outros motivos, a impossibilitada de socorro

imediato. Contava apenas com um efetivo de 875 homens, distribuídos em pequenos

destacamentos divididos em quatro Distritos Militares: Distrito Militar da Cidade de Mato

Grosso, Distrito Militar de Vila Maria, Distrito Militar do Baixo Paraguai e Distrito Militar de

Vila de Miranda. Desses homens apenas 600 poderiam ser considerados prontos para o

combate, portanto, não houve condições para uma atuação marcante já que era uma força

combativa muito pequena para a extensão da província e pequena em relação a tropa inimiga.

Não havia elementos de defesa para enfrentar um contingente tão grande de soldados

preparados e armados, que efetuaram um ataque surpresa, avançando em diversas frentes com

pequenos pelotões, deixando um rastro arrasador de destruição e sangue por onde passaram.

Sem nenhuma autoridade militar que os defendessem, morando em um sertão desguarnecido,

só restaram aos fazendeiros e moradores dessa região a fuga precipitada para o norte, nas

encostas da Serra de Maracajú, ainda não alcançada pelo conflito, deixando para trás todos

pertences incluindo propriedades, moradias, gado e lavoura que foram sistematicamente

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saqueadas e destruídas pelos paraguaios que tinham interesse principalmente no gado para

atender suas necessidades alimentares.

Escrever sobre uma guerra é tratar dos medos, dos traumas, é lembrar as atrocidades,

estupros, misérias, mortes, doenças, epidemias e fome que matam, das rupturas, das

separações de famílias e da orfandade. “Um pesadelo na história da América do Sul que

indelevelmente marcou a vida do ponto de vista material e emocional de várias gerações: das

que dela participaram e das gerações futuras” (PERARO, 2006, p.106-107). É preocupante

que, a despeito da farta documentação existente sobre Mato Grosso do século XIX, parte dela

inédita, ainda existam graves problemas na realização da investigação histórica, sobretudo na

área da História Social, sendo que os mais graves são: a descontinuidade de informações e a

falta de disposição para a pesquisa em arquivos que, para muitos, são entediantes,

empoeirados, vazios, alguns escuros e distantes de casa. Contudo, a História precisa, muitas

vezes, penetrar nesse mundo e dar vozes ao passado. Estudiosos, brasileiros e estrangeiros, no

exercício da pesquisa, dedicaram-se em enumerar fatos ocorridos durante os sete anos que a

guerra durou. O percurso escolhido para esta pesquisa abandonará os caminhos tradicionais

que privilegiaram a história militar, política, econômica e diplomática tão comuns nos séculos

passados, para descobrir e trazer à luz fatos ainda desconhecidos do grande público e até do

contingente militar da atualidade. De fato, durante as últimas décadas, vários historiadores em

uma ampla variedade de períodos, países e tipos de história, conscientizaram-se do potencial

para explorar novas perspectivas do passado proporcionadas por fontes como os relatórios

militares de viagens e diários, do ponto de vista do soldado e não do grande comandante2.

As fontes principais utilizadas são relatos encontrados no Memorial do Tribunal de

Justiça em Campo Grande (MS), que revelam material privilegiado na tarefa de fazer vir a

tona uma parte importante do cotidiano dos afazendados. Os inventários post-mortem são

testemunhos da cultura material, dos costumes, crenças e valores da sociedade. A produção de

escritos estão organizadas em dezenas de caixas, que contém Documentos Históricos, como

processos de Inventários e Partilhas (civis e criminais) relacionados principalmente no que diz

respeito as Comarcas de Nioaque e Miranda, entre os anos de 1873 a 1899, e concentrados em

famílias pioneiras da região recortada. É preciso ressaltar que documentos cartorários e

2Ver a esse respeito, entre outros, o Diário da Campanha do Paraguai, de Francisco Pereira da Silva Barbosa.

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particulares foram destruídos em 1865 durante a ocupação paraguaia, que arrasaram as vilas

de Miranda e Nioaque, ficando uma grave lacuna na história de Mato Grosso do Sul. Esse

trabalho é bastante dificultado pelas fontes disponíveis em que constatamos, com

pouquíssimas exceções, que apenas os mais ricos deixaram registrados e dividiam os seus

bens. Portanto, a maioria de homens livres e pobres não deixaram registros e pistas para uma

análise da história social, mas uma das possibilidades é tentar cruzar os dados disponíveis, e

que em alguns casos se tornam bastante promissores.

Fonte: Acyr Vaz Guimarães

Pesquisando e analisando documentos, observa-se a importância da História Social da

guerra que traz à luz episódios desconhecidos da maioria dos brasileiros. Nas fontes

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analisadas, entre elas, listas de famílias brasileiras prisioneiras que foram levadas de Miranda

e região para o Paraguai, processos, inventários e partilhas, cartas de liberdade, hipotecas,

escrituras de compras e venda de escravos, bem como nos relatos memorialistas há elementos

suficientes que permitem compreender como a guerra contra o Paraguai influenciou

despovoando e desarticulando totalmente o cotidiano dos habitantes do sul de Mato Grosso.

Nos arquivos estrangeiros, nacionais e regionais vão surgindo proprietários de terra, donos de

gado, trabalhadores escravizados, vaqueiros e camaradas, índios, instrumentos de trabalho

usados na lavoura (enxó, formão, foice, machado, serra, enxada, cavadeira, etc.)

medicamentos usados nos animais (glicerina, ácido fênico, mercúrio doce, etc.), culturas de

subsistência, como pomares (café, cana, laranja, jabuticaba, etc,) meios de transporte

(batelões, carros e carretões de boi) engenhos, alambiques, paiol, moinhos e monjolos. A

existência de alambiques, de engenhos e tachos indicam a prática de moagem de cana-de-

açúcar e a preparação de seus subprodutos como aguardente e rapadura, entre outros. Revelam

detalhes preciosos para a história regional e permitem uma visão do sistema agrário, do uso

do solo, das técnicas de cultivo, dos produtos cultivados que ajudam a entender a região e o

modo de viver das famílias vacarianas dos oitocentos.

OS BARBOSAS. VACARIA

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Fonte: Álbum Gráfico do Estado de Mato Grosso

O mundo rural mato-grossense no século XIX era um ambiente envolto pelas florestas,

animais bravios, peçonhentos e entrecortado por vários cursos de água. O cotidiano dos

afazendados era enfrentar pestes, doenças, ferimentos de guerra utilizando elementos da flora,

fauna e alguns produtos químicos, saberes práticos como benzedeiras e superstições religiosas

que evidenciam a aproximação entre fé, medicina e conhecimento popular. Na maioria das

vezes não eram saberes científicos mas conhecimentos de alguma forma popularizados sobre

possibilidades de cura para moléstias físicas. Desprovidos dos recursos da medicina, o sertão

mato-grossense se valia de táticas e estratégicas desenvolvidas cotidianamente pelos

habitantes como por exemplo o curandeirismo, um mal provocado pela necessidade, um tipo

de medicina praticada na base de conhecimentos vulgarizados, popularizados, adquiridos

através do empirismo. De fato, a medicina praticada pelos brancos, índios e negros da região

estudada era uma mistura de crendices, orações católicas e hábitos de cura provenientes em

sua maior parte, da convivência com as populações indígenas. Diante da penetração

paraguaias e dos conseqüentes ferimentos provocados por ela o sofrimento da população

indefesa se torna muito maior contando apenas com recursos próprios.

Naquela época muitas doenças eram desconhecidas e encontramos várias vezes fontes

indicando "moléstia incurável", outras apesar de conhecidas não tinham tratamento adequado

como relata Paulo Coelho Machado:

Firmino contraiu a tísica, nome que se preferia dar a tuberculose, e foi levado a

Conceição, em busca de recursos médicos. Todavia, a moléstia mostrava-se

avançada demais para ceder aos efeitos do processo de cura da época, que consistia

especialmente em dolorosas aplicações de ferro incandescente nos pulmões. Uma

terapêutica terrível e crudelíssima, a que raros pacientes sobreviviam. Quem não

morria da doença sucumbia ao tratamento. Foi o que aconteceu com Firmino Novais

na triste viagem de volta. Faleceu a um solavanco mais forte da carreta que o

transportava." (MACHADO, 1990:148/149).

Nas Derrotas de Joaquim Francisco Lopes encontramos profusas informações sobre as

formas de tratamento, de saúde e de alimentação daquela época, como por exemplo, "...

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crescia a criança quatro meses a mingau de raspa de mandioca, farinha de milho e mel " "...em

fins do dito outubro fiz um banguê para a doente..." (LOPES, 1943).

No Arquivo Nacional de Assunção, no Paraguai, por meio da análise da documentação

elaborada pela Guardia en la Excolonia de Miranda Marzo 15 de 1865 durante a ocupação

paraguaia e assinada por Jose Alvarenga, é possível cruzar os dados e verificar através de

outros documentos as famílias de Miranda, no Mato Grosso, que foram aprisionadas e levadas

para a Vila de Conceição, no Paraguai. Esses documentos, permitem esclarecer muitas

dúvidas a respeito dos moradores da fronteira mato-grossense. São listas, em número de duas,

contendo cada uma 6 e 4 páginas, com 137 e 130 nomes, respectivamente, que mencionam os

brasileiros prisioneiros, suas idades, estado civil, filhos (muitos deles menores de idade),

escravos e suas origens. Importante ressaltar que nessa documentação consta a presença de

trabalhadores escravizados, que no cruel mundo da escravidão eram levados junto aos seus

senhores.

Na medida que as forças paraguaias iam avançando de forma inesperada, rápida,

avassaladora:

nas fazendas de Antonio Candido de Oliveira, sua esposa Maria Rosa de Jesus Barbosa, os

filhos, 4 genros, e 4 escravos entre eles o criolo de nome Luiz. Francisco Félix, Francelino

Rodrigues Soares, Nicolau Tolentino dos Santos, Hipólito José Machado, Inácio Gonçalves

Barbosa Sobrinho, Manoel Francisco Machado, Gabriel Antonio Ferreira, Joaquim

Felizardo Correa, João Ferreira Ribeiro ((fazenda localizada em Areias e naqueles vales ao

sul da vila de Nioaque), entre muitos outros, foram assaltadas, as casas queimadas,

aprisionadas as famílias e remarcado o gado com a marca "La Patria" (LP) que era levado

para suprir as tropas invasoras. (ALMEIDA, 1951, p. 342).

Isabel Camilo de Camargo, em sua dissertação de Mestrado em História O Sertão de

Paranaíba: um perfil da sociedade pastoril-escravista do sul do antigo Mato Grosso (1838-

1888) coloca que conforme observação de Francisco Antonio Pimenta Bueno (1879)": “No

distrito de Miranda há nos campos da Vacaria excelentes pastagens para a criação de gado.

Com a Guerra do Paraguai foram devastadas as fazendas de criar, que aí existiam as quais

agora vão se restabelecendo”. (CAMARGO, 2010, p. 134).

A vila de Nioaque, era constituída, ao tempo da invasão paraguaia, de 130 casas

compondo um quadrado irregular, edificadas aos lados de uma praça ampla. Dessas casas,

cerca de 30 eram menos imperfeitamente construídas, e muito poucas, entre estas, cobertas de

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telhas. Em sua generalidade, eram ranchos de palhas. Havia um quartel e uma modesta capela.

Na vila, o comandante paraguaio Francisco Isidoro Resquin ainda conseguiu aprisionar o

negociante Ladislau Marcondes de Oliveira Campos, genro de João Ferreira Ribeiro com a

respectiva família, esta era composta, então de 46 pessoas, todas as quais foram levadas ao

interior do Paraguai, conforme a lista de famílias aprisionadas (ANA). Apenas uma fazenda

respeitaram, deixando-a intacta, a de João Barbosa Bronzique, em Bonito, o que gerou

suspeita entre os brasileiros. Resquin pôs-se em marcha para Miranda, palmilhando a estrada

aberta, entre as duas vilas. Essa ofensiva planejada contava com o elemento surpresa e

permitiram aos paraguaios tomar todos os pontos importantes daquela região fronteiriça.

Mesmo depois do final da guerra, a população dessa região continuou sofrendo suas

conseqüências, assim é que, em 28 de junho de 1898, na vila de Miranda, Francisco Ferreira

Ribeiro, filho de João Ferreira Ribeiro e Anna Zeferina de Souza e combatente na Guerra do

Paraguai entrou com um pedido na justiça requerendo como herdeiro na herança de seus pais

já falecidos, uma parte da Fazenda Santa Gertrudes, prática comum na documentação

estudada. Em geral, é impossível pelos processos mapear o tamanho das propriedades, sempre

constando termos genéricos como uma parte da fazenda, tudo leva a crer que eram grandes

propriedades. No inventário feito em 1874, constou que "ausente desde 1866, época da

invasão paraguaia, desapareceu sem nunca mais do mesmo haver notícia e sem se saber que é

morto" sendo considerado desaparecido devido a sua prolongada ausência. Os tramites na

justiça perduraram até 1914, ou seja, atravessaram o século constando a documentação em

duas vilas Miranda e Nioaque. Não foi possível conhecer a conclusão desse processo devido a

ausência das folhas finais (MTJ/MS 170/14).

Outro processo, em que se pede indenização ao governo brasileiro, foi o de João José

Monteiro, que relatou, com dramaticidade, os pormenores de seus padecimentos e perdas com

a ocupação paraguaia, o aprisionamento de sua família e prisão no Paraguai, com informações

detalhadas:

Illmo. Sr. Cônsul

Dis João José Monteiro, natural de Cuiabá, commerciante e proprietaário em

Corumbá, que tendo a desgraça de cahir prisioneiro em poder do inimigo que

invadio sua Província, bem como, sua mulher, dous filhos e duas escravas, foram

todas conduzidas com o supllicante para esta Cidade. Aqui lhe forão tomadas as

escravas para darem as famílias dos invasores (em cujo poder ellas ainda se achão) e

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sendo o supllicante enviado com sua família para diversos pontos do interior, foi

depois mandado para Peribebuy, onde foi resgatado depois do combate do dia 12,

cheio de miséria e gravemente enfermo, como V. Il. Não ignora, nem o Exmo. Sr.

Conselheiro Paranhos, pois que ambos, por effeito de bondade, já tem honrado o

supllicante com suas [ilegível] no leito da dor em que se acha com sua família.

Em tal estado, recorre o Supllicante a V. Sª para pedir-lhe o abono de trinta libras

esterlinas por conta do Estado.

Assumpção, 4 de outubro de 1869. (Arquivo Histórico do Itamarati)

No inventário de José Francisco Lopes, o famoso Guia Lopes, da Retirada da Laguna,

aberto na Comarca de Santa Cruz de Corumbá, composto de 102 páginas, tendo como

inventariante sua esposa, Senhorinha Maria da Conceição Barbosa Lopes demorou longos

anos para ser finalizado porque muitos herdeiros estavam ausentes, morreram durante a guerra

ou tinham destino ignorado (MTJ/MS 156/04). A família do Guia Lopes, entre muitas outras,

desarticulada totalmente durante a guerra, presa e resgatada pelo Exército Brasileiro em

Conceição, no Paraguai, após 5 anos, encontravam-se doentes, desnudas e descalças. É um

exemplo, de como a guerra afetou drasticamente o cotidiano da população daquela região,

(DOURADO, 2005, p. 63-64).

Como consequência o sul ficou devastado, com um grande vazio populacional, com os

destacamentos militares da Colônia Militar dos Dourados, Miranda e Nioaque queimados e

arrasados, defensores mortos, sua frágil economia desarticulada, essencialmente apoiada em

uma agricultura rudimentar, pequeno extrativismo e com uma pecuária em estado inicial.

Formas de solidariedade desenvolveram-se entre as famílias, principalmente os Barbosas e

Lopes na difícil reconstrução do pós guerra, onde era necessário uma nova ocupação e

fixação. A desestruturação da região, em vários aspectos, continuou em muitos anos mesmo

depois de concluída a luta, mas dois novos grupos influíram de modo fundamental para a

fixação na região devastada: a dos brasileiros desmobilizados e a dos paraguaios guaranis

também desmobilizados. Tudo leva a crer que os nomes de militares que aparecem

freqüentemente na documentação analisada são de ex combatentes que se fixaram na região,

como, por exemplo, entre outros, o Capitão Feliciano Ramos Nazareth (MTJ/MS).

Terminada a guerra as famílias lentamente puderam retornar para suas posses e retomar o

árduo trabalho, mas sem nenhuma ajuda governamental, somente as famílias se apoiando,

novamente se fixaram e plantaram. As fontes analisadas permitiram descobrir, através de um

novo olhar, questões como a história social agrária retomando estudos realizados pela

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historiografia regional e entrever agentes anônimos, ou não, práticas costumeiras. Oferece,

enfim, visibilidade aos indivíduos não privilegiados no discurso historiográfico tradicional,

como nativos, mulheres e crianças escravizadas ou não, pobres livres, especialmente

camaradas, guias e roceiros.

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