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Revolução na Música- As Vanguardas de 1200 e 2000 Relação entre Vanguarda Política e Musical Günter Mayer Tradução do alemão: Marcos Branda Lacerda. Observação , O tempo disponível para a discussão e apresentação de idéias não corresponde à grande abrangência do tema deste seminário, tomando necessária a reflexão sobre profun- das transformações em música e sociedade apenas em grandes dimensões, e possfvel a elaboração do presente trabalho apenas na forma abreviada de teses. Argumentação dife- renciada tanto histérica como teoricamente foi omitida, possibilitando, no entanto, que nos concentrássemos sobre o. essencial, buscando uma compreensão genérica do fenômeno ex- posto. Primeira tese: Revolução na música No período histórico compreendido entre 1200 e 2000 ocorreram duas revoluções na música: 1.1 A primeira deu-se através do proces- so de visualização da música nos séculos 11 e 12, ou seja, com a introdução e consolidação da notação musical como novo tipo de fixação artesanal e transmemorial e o decorrente exercfcio da composição em função de novos recursos oferecidos por esta mesma notação (quantificação dos sons, nova complexidade e flexibilidade das estruturas musicais em seus aspectos sonoros e melódicos). A notação pos- sibilitou. o desenvolvimento da polifonia, fez surgir" a divisão funcional do trabalho de com- posição.e interpretação e provocou a mistura de duas esferas da prática musical rigorosa- mente separadas em uma "estilfstica inter-so- cialmente sintética" (penetração da música profana no setor religioso, enriquecimento do modelo litúrgico com elementos lingüfsticos e musicais populares).(l) Tudo isso representou uma súbita trans- formação qualitativa nas estruturas profundas de pensamento e vivência musicais, na com- preensão da tradição, na expansão do poten- cial criativo (técnico e expressivo), nas funções sociais da música, nas formas de sua aquisição "Inter-social", historicamente no- va.(2) O que se manifestou na música em for- ma de revolução foi simultaneamente reflexo e agente da profunda transformação social gera- da pela mudança do modo de produção agrá- ria, pela crise do sistema feudal clássico, pelo florescimento 90 comércio e de formas artesa- nais de produção, pela emergente força de uma nova classe social urbana e pela urbani- zação em geral através da proliferação das ci- dades.(3) Esta foi uma época caracterizada pe- lo revolucionamento de todas as formas de vi- da e produção, assim como do pensamento, que veio a converter-se em revoluções polfti- cas consideravelmente mais tarde, como supe- ração das ultrapassadas relações de poder do feudalismo em favor da/força econômica de- terminante representada pela burguesia, do de- senvolvimento do sistema capitalista de re- lações sociais expresso através de diferentes formas de organização política (Estados, par- tidos). A contradição entre nobreza feudal e burguesia começou li se manifestar na estrutu- ra social durante os séculos 11 e 12 e, como hoje sabemos, veio a determinar a lógica sub- seqüente do desenvolvimento social. 1.2. A segunda revolução vem aconte- cendo com o processo de eletrificação da mú- sica no século 20: com a introdução e consoli- dação da gravação eletroacústica como novo tipo de fixação transmemorial mediada tecni- camente e como meio de produção e repro- dução do som. Isto significa uma profunda transformação do exercício da composição através do aparato eletroacústico no estúdio de gravação. O processo de eletrificação margem a uma transformação comparável àquela que fora deflagrada pela forma escrita de fixação e levara a uma nova forma da pro- dução musical e composição em função dos novos recursos notacionais. Ela poderia ser in- terpretada como a negação da negação. A

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Page 1: Relação entre Vanguarda Política e Musical

Revolução na Música-As Vanguardas de 1200 e 2000Relação entre Vanguarda Política e Musical

Günter Mayer

Tradução do alemão: Marcos Branda Lacerda.

Observação ,O tempo disponível para a discussão e

apresentação de idéias não corresponde àgrande abrangência do tema deste seminário,tomando necessária a reflexão sobre profun-das transformações em música e sociedadeapenas em grandes dimensões, e possfvel aelaboração do presente trabalho apenas naforma abreviada de teses. Argumentação dife-renciada tanto histérica como teoricamente foiomitida, possibilitando, no entanto, que nosconcentrássemos sobre o. essencial, buscandouma compreensão genérica do fenômeno ex-posto.

Primeira tese: Revolução na músicaNo período histórico compreendido entre

1200 e 2000 ocorreram duas revoluções namúsica:

1.1 A primeira deu-se através do proces-so de visualização da música nos séculos 11 e12, ou seja, com a introdução e consolidaçãoda notação musical como novo tipo de fixaçãoartesanal e transmemorial e o decorrenteexercfcio da composição em função de novosrecursos oferecidos por esta mesma notação(quantificação dos sons, nova complexidade eflexibilidade das estruturas musicais em seusaspectos sonoros e melódicos). A notação pos-sibilitou. o desenvolvimento da polifonia, fezsurgir" a divisão funcional do trabalho de com-posição.e interpretação e provocou a misturade duas esferas da prática musical rigorosa-mente separadas em uma "estilfstica inter-so-cialmente sintética" (penetração da músicaprofana no setor religioso, enriquecimento domodelo litúrgico com elementos lingüfsticos emusicais populares).(l)

Tudo isso representou uma súbita trans-formação qualitativa nas estruturas profundasde pensamento e vivência musicais, na com-preensão da tradição, na expansão do poten-cial criativo (técnico e expressivo), nas

funções sociais da música, nas formas de suaaquisição "Inter-social", historicamente no-va.(2) O que se manifestou na música em for-ma de revolução foi simultaneamente reflexo eagente da profunda transformação social gera-da pela mudança do modo de produção agrá-ria, pela crise do sistema feudal clássico, peloflorescimento 90 comércio e de formas artesa-nais de produção, pela emergente força deuma nova classe social urbana e pela urbani-zação em geral através da proliferação das ci-dades.(3) Esta foi uma época caracterizada pe-lo revolucionamento de todas as formas de vi-da e produção, assim como do pensamento,que veio a converter-se em revoluções polfti-cas consideravelmente mais tarde, como supe-ração das ultrapassadas relações de poder dofeudalismo em favor da/força econômica de-terminante representada pela burguesia, do de-senvolvimento do sistema capitalista de re-lações sociais expresso através de diferentesformas de organização política (Estados, par-tidos). A contradição entre nobreza feudal eburguesia começou li se manifestar na estrutu-ra social durante os séculos 11 e 12 e, comohoje sabemos, veio a determinar a lógica sub-seqüente do desenvolvimento social.

1.2. A segunda revolução vem aconte-cendo com o processo de eletrificação da mú-sica no século 20: com a introdução e consoli-dação da gravação eletroacústica como novotipo de fixação transmemorial mediada tecni-camente e como meio de produção e repro-dução do som. Isto significa uma profundatransformação do exercício da composiçãoatravés do aparato eletroacústico no estúdiode gravação. O processo de eletrificação dámargem a uma transformação comparávelàquela que fora deflagrada pela forma escritade fixação e levara a uma nova forma da pro-dução musical e composição em função dosnovos recursos notacionais. Ela poderia ser in-terpretada como a negação da negação. A

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quantificação das sonoridades, da mesma for-ma como a complexidade e flexibilidade dasestruturas musicais, atinge uma qualidade no-va e diluidora da aparência de naturalidade,fora do âmbito dos parãmetros tradicionais demelodia, harmonia e ritmo, e sem o distancia-mento técnico imposto pela notação. A inter-ferência visual produtiva não é mais necessá-ria e é neutralizada dialeticamente com a ele-trificação do som. O mesmo vale para a neu-tralização da divisão funcional entre compo-sição e interpretação. A produção musicalocorre novamente através da audição e sub-seqüentes decisões (como nas formas antigasde transmissão oral anteriores aos séculos 11 e12, mas em um nfvel superior distinto, atravésda mediação técnica).

A coleção e/ou a sintetização de sons eruídos, sua construção e combinação atravésde mistura, podem ocorrer concreta ou empiri-camente. Na configuração de variantes imedia-tamente verificáveis, utilizáveis ou rejeitáveis,que são crescentemente oferecidas pelos apa-relhos, toma-se ilimitado o potencial de ge-ração do "inusitado" e de fixação de sonori-dades dadas (música e não-música de todo ti-po, inclusive a "fotografia acústica" no senti-do de autenticidade documentária e comuni-cação direta da experimentação auditiva darealidade). O novo meio estimula a criativida-de coletiva. Formas improvisadas de execuçãomusical (surgidas também no jazz e sem a me-diação técnica dos aparelhos) tomam-se, emestágio superior, novamente essenciais ao pro-cesso de composição. Dissipa-se eventualmen-te a fronteira entre improvisação e compo-sição.(4)

A aparelhagem destinada à produção eelaboração do som vem se tomando acentua-damente menor e mais barata - e com issomais acessfvel individualmente - através deinovações constantes, com o objetivo de cor-responder à orientação de lucro da indústriamusical. Desta maneira, delineia-se aqui aformação de um enorme potencial de imanên-cia polftica não apenas de "democratização"dos processos de recepção, mas também deprodução musical, relativamente independentedos estúdios das grandes instituições - o quese manifesta claramente há anos no setor damúsica popular.(5)

A "estilfstica intersocialmente sintética"abrange música de todas as espécies do passa-do e presente: "a coexistência de fenômenosacústicos distintos, surgidos em épocas dife-rentes, constitui a inovação musical e uma pe-culiaridade deste século".(6) Através da eletri-·ficação e da fixação e reprodução mediadastecnicamente, toma-se disponível em' di-

mensões globais toda a música composta, in-terpretada e devidamente anotada desde os sé-culos 11 e 12. O mesmo acontece com tudoaquilo pertencente a tradição e transmissãooral, desde que ainda acessfvel e passfvel dereconstrução. Da mesma forma como, naqueletempo, a música profana, de origem popular ebastante limitada territorialmente, penetrou naesfera sagrada, a música popular do século 20vem tomando lugar mundialmente no setorquase sagrado da música "artística" (Kunst-musik). Em um primeiro momento, a sepa-ração entre música "séria" e "de entreteni-mento" toma-se aguda, mas acaba sendo neu-tralizada através da eletrificação desta últimaem extensão a um processo iniciado na primei-ra.(7)

Tudo isso se constitui novamente emuma súbita transformação qualitativa nas es-truturas profundas do pensamento e vivênciamusicais, na compreensão da tradição, na ex-pansão do potencial criativo (técnico e expres-sivo), nas funções sociais da música, nas for-mas de organização de sua aquisição "interso-cial " e historicamente nova. Toma-se deter-minante a coletivização da experiência e dacriatividade musicais sem limitá-Ias a estratossociais e nacionais ou sistemas sociais opos-tos.

O que aqui Se manifesta na música emforma de revolução é simultaneamente reflexoe agente das profundas transformações sociaisdesde o infcio do século 20 com as mudançasda forma de produção industrial, com a crisedo sistema social capitalista clássico na era doimperialismo, com a emergência da força so-cial do proletariado como força social nova,politicamente organizada, participante na de-terminação do futuro, com a Revolução deOutubro e o início da construção de um tipode sociedade de orientação socialista após aPrimeira e a Segunda guerras mundiais, com odesenvolvimento tempestuoso da revoluçãotécnico-cientffica (que abrange inclusive atransformação recente das tecnologias de co-municação e informática), em suma: com aevolução dos processos de socialização capita-lista ou socialista. .

A era industrial.caracteriza-se pela eletri-ficação da transmissão e desenvolvimento daexperiência auditiva da realidade e de si mes-ma, desde os anos 20, ainda de forma tenden-cial (por exemplo, na utopia da música ra-diogênica, ou na arte do ruído de Luigi Russo-10),(8) e Da segunda metade de nosso século,de forma determinante, a partir dos grandesestúdios da música "séria" e da indústria damúsica pop para se estender .à totalidade dacultura musical mundial.(9) Isso significa para

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a música o desligamento relativamente tardioda produção artesanal individual, da relaçãodireta sensual e táctil entre o homem e a fer-ramenta (instrumento), através do aparato téc-nico eletro-acüstico e seu modo tecnificado deexistência e produção, cada vez mais domi-nante na vivência quotidiana.

O processo geral de revolucionamentosocial de todas as formas de produção e de vi-da, da "orientação" da realidade em direçãoàs massas e das massas em direção à realidade,é um processo de importância ilimitada, tantopara o pensamento quanto para a intuição.(lO)Com certeza, isso aconteceu e acontece sobcondições de alienação exagerada, dominantee própria à essência do capitalismo ou de suatransposição modificada às relações socialistasestagnadas nos esforços político-revolucioná-rios extremamente demor ados e complicadosde superar as raízes e formas de manifestaçãodesta alienação através de uma prática genui-namente socialista. Isso aconteceu e acontecesob a iminência do progresso técnico-científi-co, em suas formas essencialmente determina-das pelo capitalismo, conduzir até o limite deum possível extermínio da humanidade, tor-nando necessária uma resposta à questão dapossibilidade e sentido da vida humana nossistemas sociais vigentes no interesse da so-brevivência coletiva e humanamente digna,ainda que sob a preservação da paz. Natural-mente isso tem conseqüências para a determi-nação da relação entre vanguarda política emusical.

Em comparação à profundidade e ex-tensão desta revolução na música, outras ino-vações essenciais no contexto da hist6ria damúsica recebidas em sua época como revolta eruptura, determinando fundamentalmente o de-senvolvimento posterior, desempenham umpapel secundário. Nesta definição se inseretambém a "revolução de material" de Schoen-berg, que se localiza de certo modo ainda nocontexto da primeira revolução, marcando seufinal e a emergência de novas categorias nointerior das antigas.

Segunda tese: Vanguar-da musicalO estímulo inovador que gera a revo-

lução parte de atuações individuais extraor-dinárias que neutralizam o sistema de valoresmusicais prevalecente em uma determinadaépoca, e não de "vanguardas" musicais."Mesmo uma apreciação superficial das reali-dades musicais presentes coloca em questãose o conceito de vanguarda, definido habi-tualmente apenas como um conglomerado derevoluções de material individuais no setor dachamada música "séria"; "nova" ou "con-

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temporânea", possui validade como categoriahistoriográfica com pretensão de centrali-zação." (11)

Esse conceito surgiu na esfera polftica emilitar sobretudo do século 19, alheia ao de-senvolvimento das artes. Ao ser aplicado aosrevolucionários musicais, pensou-se apenas noque haveria de "avant" em suas atitudes, es-quecendo-se de que o conceito em suaacepção original fazia também menção à "gar-de". O "avanço" destes revolucionários e suaevolução a despeito do sistema de valores mu-sicais convencionalizados - ocorridos parale-lamente ao progresso hist6rico e refutado comveemência sob a alegação de ""destruição damúsica" pelos burocratas musicais e grandeparte dos ouvintes a partir da ideologia musi-cal preponderante da maioria dos tradicionalis-tas e epígonos - não os faz de maneirane-nhuma "vanguardístas"; O que falta à sua ati-vidade significante, heterogênea e criativa (in-clusive àquela exercida pela segunda escola deViena, da qual Eisler ainda hoje é excluídojêexatamente aquilo que caracteriza a vanguardaem sua concepção militar e polftica: organi ..zação, disciplina e a orientação de conduzir aações vitoriosas as massas (soldados, militan-tes, participantes da classe não organizados, opovo) - mediante a construção e funcionamen-to de organismos, instituições e aparelhos.

Com certeza, existiram no círculo do CIt-

bismo, dadafsmo, futurismo russo, surrealisrme construtivismo em outras artes, durante 05

primeiros 30 anos deste século, tendências derevolta e ruptura, assim como uma crítica radi-cal e suspeição das relações culturais e artísti-cas burguesas. Tais tendências se caracteriza-vam pelo "ataque à estética da autonomia ... ";pela "funcionalização da arte"; pela tentativade extrair conteúdo social e novos caracteresformais do relacionamento entre arte e técnica-de maneira geral: por um grau elevado de ino-vação dos meios artísticos e, finalmente, "poeum grau elevado de capacidade de organi-zação, formação de grupo e intemacionali-zação", assim como uma orientação socÜIIprogressiva explícita ou implícita pelos i~resses e necessidades das massas (pensemosna ""Bauhaus").(12)

Na música avançada, seja no expressio-nismo ou em seu oposto, na nova objetividade.ou ainda em outros movimentos, não impor-tando quais tenham sido os seus nomes, nãosurgiu nada de comparável, apesar de algumascaracterísticas em comum com estes focosvanguardistas em outras artes.(13) E os atoresnão sinalizaram a disposição de se autodene-minarem ou de se deixarem chamar de revele-cionários ou "vanguardistas", Esta conste-

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lação não existiu nos séculos 11 e 12. A trans-formação revolucionária daquele tempo deveser interpretada em categorias distintas daque-las relacionadas ao conceito de vanguardahistórica como meio de compreensão do de-senvolvimento musical nos três primeirosdecênios deste século ou, ainda, em signifi-cação mais geral, no período posterior à Se-gunda Guerra através de suas manifestaçõesserialistas, aleatórias ou de música eletrônica.As afirmações feitas na primeira tese deste ar-tigo sobre a segunda revolução, na qual aindanos encontramos, leva a conseqüências, a par-tir das quais o conceito de "vanguarda" musi-cal torna-se efetivamente problemático - adespeito da crítica nostálgica da "vanguarda"empreendida pela nova objetividade detendências neo-românticas, a despeito tambémda passagem para o chamado pós-modernismo.As realizações revolucionárias devem ser en-tendidas, individual e objetivamente, de formamais abrangente do que se vem fazendo habi-tualmente.

2.1 Esta revolução não deve ser definidaapenas a partir da cultura musical elevada,centrando-se nos célebres estúdios de músicaeletrônica de Colônia, Milão, etc. ou nos maismodernos e avançados com suas apresentaçõesem concertos, festivais ou eventos especiaiscomo o auditório esférico na exposição mun-dial de Osaka de Karlheinz Stockhausen.(14)

. Esta revolução se realiza igualmente no setorda música popular (no jazz e no rock avança-dos, nas produções de intérpretes ligados àmfdia). E, ao contrário do "mainstream" dospadrões da atividade composicional vanguar-dista e eletroacústica no setor sério, a música"popular"; com suas formas avançadas, atingeum número muito maior de ouvintes, sobre-tudo jovens, criando igualmente seu "rnains-tream" de inovações do rock convencionaliza-das e absorvidas pela indústria musical (comopor exemplo a música de discotecas), para cu-jo público de massa a música eletroacústicatornou-se uma experiência diária de diversashoras.(15)

2.2 Esta revolução não se deixa definirapenas através da atuação dos produtores pro-fissionais de música que passaram por um lon-go período de formação. Considerando-sea música popular, o profissionalismo deve serentendido mais extensivamente, envolvendoaspectos essenciais de coletividade em con-traste com a atividade dos individualistas deorientação burguesa ou socialista nos estúdioseletrônicos "sérios". Desta forma, muitas ino-vações decorrentes da revolução eletroacústi-

ca fluem para uma larga corrente de "amado-res" - de "diletantes geniais" - que se locali-za sobretudo nas camadas jovens do públicode massa e se utiliza crescentemente da técni-ca "profissional", ascendendo em razão do es-treito relacionamento com sua pr6pria realida-de de vida ao esquema profissional de pro-dução musical.(l6)

2.3 Esta revolução não pode ser igual-mente definida do ponto de vista exclusiva-mente técnico-composicional ou em função dacriação de obras musicais. Ela não vem sendorealizada apenas por compositores, mas tambémpela atividade criativa de inúmeros inovado-res, sem a qual os novos produtos, a revoluçãodas relações musicais ou da cultura musicalcomo um todo, não pode ser interpretada.Mesmo a produção musical considerada isola-damente já está mais adiantada do que o pro-cesso composicional tradicional. Dela fazemparte ativamente intérpretes, técnicos de estú-dio, produtores, funcionários musicais em am-plo sentido, assim como cientistas, inventorese construtores de aparelhos.

2.4 Esta revolução leva a uma diluiçãodas fronteiras entre música "séria" e "de en-tretenimento" e entre gêneros musicais; ela le-va à combinação e slfntese, à colagem, à mon-tagem e, desde os anos 80, à "bricolage" dosmúsicos da mídia.(l7) Dá-se também a di-luição das fronteiras entre a música e outrasartes através da criação de formas "rnulti-mí-dia". Em relação a tendências do "p6s-moder-no" ou da "transvanguarda" registradas na"recorded musíc"; nas quais a eletrificação damúsica desempenha também um papel, se po-deria imaginar a inadequação da questão sobreatividades avançadas. Pior ainda seria tentarresponder a esta questão com base neste tipoespecffico de produção musical. Novamente,aqui não cabe referir-se à "avant-garde": Poroutro lado, existem, é claro, revoltas, mas con-tra o "avanço", contra o moderno, ou seja,contra a ·"avant-garde". E a orientação atualdos "revolucionários" musicais pela moderni-dade, pela novidade no sentido do progressomusical e social, é questionada; suas possibili-dades exclufdas da pauta de discussão; e acontinuidade e obrigatoriedade de valores ou,ainda mais, uma transformação significante devalores, irooizada ou negada. Parece que te-dos .os valores nos supermercados e hotéis deluxo soantes são abandonados e conduzidos àbeira do abismo.

A quem serve tudo isso?, uma perguntaque não deve ser esquecida, evitando-se, aomesmo tempo, julgamentos generalizantes. É

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necessário que se verifique seriamente o quese esconde neste múltiplo pós-moderno, no ba-lanço da extrema complexidade e máximasimplicidade, no eéletismo demonstrativo ena banalidade, em profundas decepções e naauto-ironia, em temores e premonições, possi-velmente também em idéias construtivas epossibilidades de desenvolvimento.(18) Os re-sultados de uma tal verificação serão mais ex-pressivos se ela for efetuada a partir de um in-teresse determinado: trata-se da questão fun-damental do sentido e perspectiva da existên-cia humana e, ao mesmo tempo, de uma admi-nistração pertinente e soberana, o que signifi-ca também polarização e, em decorrência dis-so, limitação de possibilidades ilimitadas. Tra-ta-se, portanto, da qUl1stãodas funções sociaissignificantes de músicas em sociedades que nãoestão "se divertindo às baldas"(19) ou que,"perplexas e bem-humoradas" ,(20) naufragamno barbarismo. E isso nos levará a resultadosmais úteis, caso, neste interesse, se perguntediferenciadamente quais posições filosóficasfundamentais - também contrariamente àque-las já assumidas conscientemente ou não - es-tariam contidas na multiplicidade de eventossonoros e naquilo que é comum a eles, bemcomo de que maneira tais eventos se compor-tam em relação às necessidades e interesses deminorias poderosas econômica e politicamenteou da grande e oposta maioria dos" seres hu-.manos deste planeta ameaçado. Isto pressupõeuma análise exaustiva, um esforço na busca deconceitos e da racionalização em relação à fi-losofia e às teorias da arte, sociedade e perso-nalidade para se chegar às causas desta crisede fim de época nos países capitalistas desen-volvidos, mas também às causas da crise domovimento comunista e sindical e do atualconceito de progresso em vigência nos paísessocialistas. Além disso, é preciso que se che-gue a conclusões plausíveis sobre a realidadeatual e se proceda a elaborações das possibili-dades para o futuro, que - "consciente masinfeliz" - conduzam a ações significantes,competentes e cooperativas e modificaçõesreais.

Terceira tese: Vanguarda políticaPara a definição do conceito de vanguar-

da polftica necessita-se recorrer à história.Vanguardas políticas pertencem ao passado,ao presente e se tomarão possíveis no futuro,desde que venham a ser diferentes do que fo-ram até hoje. Sem organização, sem generali-zação programãtica de experiências polfticasprogressivas e sem ações de massas coordena-das, não poderão ser encontradas as alternati-vas necessárias do desenvolvimento social.

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Vanguardas polfticas são um tipo deter-minado de partidos polfticos: não os conserva-dores e liberais, e, muito menos, os fascistas.O conceito de vanguarda política de meadosdo século passado e, principalmente, do séculoatual relaciona-se ao tipo de partidos comunis-tas e trabalhistas que se definem como uma"associação de luta de correligionários", co-mo "partido de cúpula", cujo objetivo consis-te em conduzir as massas da classe trabalhado-ra e todo o povo à revolução socialista, à su-peração da supremacia do capital e decorren-tes antagonismos da alienação, à fundação deuma nova sociedade, primeiramente socialistapara então, gradualmente, transformá-Ia emcomunista, na qual seriam extintas as classessociais e abolida qualquer política ou van-guarda política. Fatores essenciais para o fun-cionamento destas vanguardas políticas são:disciplina revolucionária através da tomada deconsciência, centralisrnó democrático, propa-ganda e agitação de" massa, ação coletiva co-ordenada, solidariedade nacional e internacio-nal, crítica e autocrítica.

Estas vanguardas eram politicamenteavançadas', desde que tratassem de analisarmais profundamente que outros partidos ascontradições sociais dadas e elaborar progra-mas gerais em estratégia e tática e conceitosde ação que se encontrassem objetivamente nonível do historicamente necessário e possível.Estas vanguardas eram "avançadas" desdeque soubessem atingir as massas populares e aclasse, desencadear e generalizar iniciativas,realizar as alianças necessárias e, por ocasiãode ações reais contra a exploração e opressão,fomentar o difícil processo da emancipaçãoreal da massa no sentido do acréscimo de so-berania em face das condições naturais e sociaisde vida. Esta vanguarda agia e age com basenos interesses da classe trabalhadora e, em suaessência, ao mesmo tempo, com base no inte-resse da humanidade. Não se trata de assegu-rar o interesse especial de uma classe domi-nante privilegiada, mas sim da neutralizaçãoda sociedade de classe. Com isso se justifica aconseqüência em seu combate contra a guerraimperialista, contra todas as formas de racismoe fascismo, contra a escalada armamentista e afavor de uma transformação da ordem políticamundial.

De maneira geral, isso tem validade parasuas funções polfticas de, sob a predominânciade condições capitalistas, ou após a revoluçãovitoriosa, assumir plena responsabilidade peloperfilamento socialista de todos os setores dodesenvolvimento social.

Como se sabe, este "tipo ideal" de van-guarda polftica se realizou no decorrer do sé-

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culo 20 em um processo nacional e internacio-nal muito complicado, isto é, ele não se reali-zou de forma ideal, em razão de condições di-ferenciadamente difíceis (regiões subdesen-volvidas cultural e economicamente; experiên-cia polftica das massas populares pouco de-senvolvida; força e flexibilidade de uma bur-guesia nacional ainda dominante ou inter-ferência da burguesia internacional na dis-cussão sobre capitalismo e socialismo).

Por outro lado, foram registrados êxitose períodos de grandes transformações e entu-siasmo, nos quais as massas puderam viven-ciar mudanças reais, como a Revolução deOutubro e os famosos anos 20 na jovem UniãoSoviética (que, apesar de seu atraso econômi-co, era, naquele tempo, pelo menos em seuscentros, uma "sociedade avançada" política,cultural e artisticamente); as tendências sociaisna Alemanha da República de Weirnar sobinspiração do Partido Comunista Alemão(KPD) e a influência dos acontecimentos naUnião Soviética (o que perdurou até a vitóriada contra-revolução fascista); os anos 30 naEspanha, igualmente neutralizados pelo fas-cismo; o surgimento dos países socialistas eu-ropeus após a Segunda Guerra Mundial (coma vitória da União Soviética contra o fascismoalemão e sem a realização de revoluções na-cionais próprias); e, através de revoluções vi-toriosas, a transformação polftica na China,Coréia, Cuba e em alguns países africanos; osacontecimentos polfticos na França e na Itálianos anos 60 e 70, ainda que sem revoluçõesvitoriosas; parcialmente também os aconteci-mentos em Portugal, Chile, Nicarágua, etc.Registraram-se, portanto, grandes derrotas naluta contra o fascismo, o que tange não apenasàs vanguardas políticas, mas sim à grandemaioria do povo.

Registraram-se também, como se sabe,grandes derrotas dentro das vanguardas políti-cas: as conseqüências devastadoras do stali-nismo na União Soviética e seus efeitos nospaíses socialistas e no movimento comunistainternacional - ou seja, deformidades polfticasque após 1956 não podiam ser superadas ime-diatamente, permanecendo até o início destadécada e que vem sendo combatidas energi-camente pela direção do partido comunista so-viético. Mesmo com sua "guarda" destruídapelos fascistas, os comunistas souberam man-ter sua posição de "avanço". Com as derrotasem sua estrutura interna, isto é, a incapacidadede superar conseqüentemente as deformaçõesnão reconhecidas em profundidade, ou de im-por um pensamento e um corpo de atitudespolíticas realistas, as vanguardas políticas per-deram parcialmente a função histórica pro-

gressista que requeriam para si. E elas se en-contram ainda hoje em uma posição complica-da e contraditória, pois o desenvolvimento docapitalismo possui "uma estabilidade maior doque se supunha anteriormente!!!" "O socia-lismo ainda não forneceu nenhum exemploconvincente para as massas nos países ociden-tais de uma profunda democratização da so-ciedade e de uma solução mais rápida de pro-blemas econômicos. Acrescente-se a isso osprocessos negativos no desenvolvimento emuma série de países socialistas ... ", que condu-ziram a estagnações e situações de crise. Fi-nalmente: .os comunistas estão "nitidamenteatrasados na dimensão da cooperação interna-cional em comparação com as atividades in-ternacionalistas de outras correntes polfticas(social-democratas, "verdes", cristãos, con-servadores e liberais)". Eles se "atrasaram noreconhecimento das novas realidades no finaldo século 20", assumindo uma posição de "ar-riêre-gardev.râ l) Isto foi reconhecido, o quevem a mostrar diversas iniciativas do PartidoComunista da União Soviética que vêm seconstituindo em um novo "avanço" da políticanacional e internacional. Este avanço tem co-mo pré-requisito e conseqüência a recons-trução de novas "guardas" e uma abrangentereforma da totalidade das relações políticas,que precisa chegar à qualidade de uma revo-lução para o êxito de suas propostas.

Esta mudança radical revolucionária serevela internacionalmente em uma política darazão e do diálogo, voltada para a coexistên-cia, cooperação e evolução conjunta de am-bos os sistemas existentes de orientaçõesopostas e para uma nova amplitude de aliançascom maior tolerância em relação a indivíduosde outra orientação política, manifesta nacio-nalmente em uma democratização socialistaconseqüente.(22) Tudo isso se constitui emprocessos intrincados da discussão com as for-ças reacionárias ou conservadoras da burgue-sia ou com .as forças conservadoras no movi-mento comunista e nos países socialistas.

Quarta tese: Vanguarda política - van-guarda musical?

Das reflexões e da conceituação históricade vanguarda política precedentes resultamconseqüências para a consideração de suas re-lações com a música moderna, nova ou avan-çada (e da revolucão musical desencadeadapela eletrificação). O problema da relação en-tre vanguardas política e musical existe apenasa partir da Revolução de Outubro.

4.1 As vanguardas políticas inspiraram efomentaram o desenvolvimento da música

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avançada nos períodos em que estavam emcondições de desencadear processos de amplarenovação social, e também de conduzi-lo emrelação de reciprocidade com as massas popu-lares e de trabalhadores: na jovem União So-viética, a vanguarda política e a música avan-çada estavam objetivamente em um mesmo ní-vel, assim como o engajamento político dos(escassos) músicos progressistas era quase ób-vio e a polarização das partes politizadas daclasse trabalhadora não significava um entravepara inovações e experimentações, mas, aocontrário, tornava-se uma razão para a partici-pação destas partes com o mesmo espírito ino-vador através da ampliação de novas formasde recepção das artes para fora da esferaacadêmica.(23) As pessoas relevantes em ter-mos de política mus'ical eram relativamente to-lerantes apesar de possuírem um comporta-mento fundamentalmente c1assista. Este pro-cesso teve conseqüências nos países capitalis-tas na década de 20, como, por exemplo, naAlemanha. Pela primeira vez na hist6ria domovimento sindical, músicos profissionais al-tamente especializados - e exatamente detendências progressistas - se aproximaram dosfundamentos políticos vanguardistas e se en-gajaram por seus objetivos revolucionários,colocando sua alta qualificação a serviço daprática política, cultural e musical do movi-mento, da nova coletividade de correligioná-rios das outras artes (Scherchen, o grupo denovembro, Eisler, "Kampfmusik", Liga dosEscritores do Proletariado Revolucionário,etc.).

Apenas a partir desta época pode-se falarem uma relação de reciprocidade entre van-guarda política e musical. Nela existia um es-paço relativamente grande para experimen-tação, para a descoberta de novos conteúdossociais e a busca de uma síntese nova e origi-nal entre qualidade artística e simplicidade,para a junção da revolução musical de materialcom a revolução técnica e polftica representa-da, por exemplo, pelo conceito eisleriano de"música aplicada". E, naturalmente, isso nãoocorria' livre de contradições, embora nãohouvesse nenhum tipo de regulamentação.

Tendências semelhantes em períodoscomparáveis após a Segunda Guerra Mundialpodem ser vistas, por exemplo, na Itália dosanos 60 e 70. O PCI com sua força política degrande tradição, autoridade e poder de amplaatuação desenvolveu uma política musicalaberta para o novo sem recair nas vulgaridadesdecorrentes das idéias de Shdanow e segundoa qual nem todas as formas da criatividademusical eram medidas segundo os critérios deadequação à tradição e penetração nas massas.

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O PCI tinha politicamente a seu lado grandeparte dos músicos progressistas (Nono, Man-zoni, Gentilucci, Liberovici, Lombardi, o mo-vimento e a revista "MusicalRealtá").

4.2 No entanto, existiram também perío-dos nos quais o stalinismo continuava exer-cendo influências sobre a polftica musical comsuas duradouras conseqüências sobre as cultu-ras musicais. Estes períodos foram o início dosanos 30 na União Soviética, e, ainda maisacentuadamente, o período ap6s 1948 nomesmo país e, nos países socialistas, o perío-do que durou até a década de 60 e o início dosanos 70. Neles se estimulou e se impôs admi-nistrativamente uma interpretação c1assista ebaseada em princípios de uma sociologia davulgaridade de adequação à tradição e orien-tação pelos preceitos de uma sociedade demassas (refletida na supervalorização da he-rança clássica e da música popular). Ao mes-mo tempo exagerou-se na limitação de in-fluências ideol6gicas "inimigas" da música"burguesa" ,c/ "decadente", não compreendi-das em sua contraditoriedade interna. Para issoutilizaratn-se os meios de uma ditadura pa-ternalista que agia em nome do povo musical-mente pouco qualificado e deformado e exer-cida por funcionários igualmente pouco quali-ficados e de escassa formação musical.

As conhecidas lutas contra o "formalís-mo" e o "modernismo" na música foram em-preendidas não apenas em relação aos músicosda vanguarda histórica propriamente dita mas,após 1948, atingiu também obras de Shosta-kovich, Prokofiev, Bartok, Hindemith oumesmo Eisler.(24) E esta política prejudicial àtotalidade das relações musicais foi ativamentepraticada e representada por músicos de orien-tação socialista e ideõlogos musicais, paraquem a música nova e progressista nada tinhaa oferecer e que em sua argumentação vulgarforam obrigados a lançar mão direta ou indire-tamente da crítica vulgar dos ideõlogos musi-cais do conservadorismo burguês à vanguarda,aproximando-se fatalmente da ideologia musi-cal fascista. E já que para os funcionáriospolíticos valia como especialista qualquer umque refutasse a "vanguarda" e aceitasse sem oexercício da crítica a reação negativa do pú-blico de massa a qualquer tipo de música m0-derna, tudo aquilo que fizessem os músicosprogressistas em direção à renovação hist6ricanão teria chance de penetração e atuação s0-cial. Mesmo os músicos progressistas de con-vicção socialista não foram compreendidosnaqueles anos em suas próprias áreas deatuação, encontrando grandes dificuldades emsuperar conflitos.(25)

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Esta situação fatal não pôde conter oempenho pela música progressista por partedaqueles realmente interessados. No entanto,ela teve conseqüências bastante negativas, jáque os "modernos" moderados de tendênciasconservadoras e epigonais puderam determinardespreocupadamente o panorama musical daépoca. Apesar disso, registraram-se grandesatuações no sentido de preservação da herançaclássica. Se, por um lado, as "vanguardas"políticas realizaram nos tempos da recons-trução grandes obras econômicas e sociais, poroutro lado, elas se comportaram em relação àmúsica progressista de maneira conservadora ereacionária, ou mesmo iludente em face a seusobjetivos populístas.

Desde os anos 70 não existe mais estarivalidade com a vanguarda na política musi-cal oficial. Os estímulos mecanicistas a umaorientação musical realista e socialista foramrelativizados, assim como foram suprimidas asvulgaridades do passado e cada vez mais re-conhecidas a potencialidade e eficiência das"vanguardas" artísticas com suas contradiçõesinternas. A tolerância em relação à músicatomou-se maior. A orientação socialista e rea-lista é vista hoje implicitamente como carac-terística específica e programática de uma mú-sica progressista. Mesmo alguns anos antes daintrodução de reformas na política exterior, in-terior e cultural por parte de Gorbatchev exis-tia na União Soviética um espaço relativamen-te grande para a música progressista nacionale internacional, ainda que em poucos centros eatravés de formas extraordinárias de apresen-tação e apesar da predominância da maneiraantiga de pensar. O mesmo se aplica aos ou-tros países socialistas.

Mas isto não significa de maneira ne-nhuma que os músicos progressistas tenham seorientado, ou se orientem conscientemente pe-las respectivas políticas da atualidade ou peloengajamento no sentido socialista. No entanto,existiram e existem ainda músicos progressis-tas que não abandonaram os ideais socialistasou os conceitos progressistas também em umsentido político. A maioria, no entanto, teveum comportamento cético em relação às van-guardas políticas, ou mesmo um desinteresseimplícito por polftica em face às experiênciashistóricas e verdadeiras no período da estag-nação, mesmo porque este período coincidecom a crise geral de valor de uma situação no-va na qual se encontra a humanidade.

Uma política do "Iaissez faire" não ga-rante uma relação de reciprocidade produtivaentre vanguarda política e progressividademusical, que, por sua vez, não pode ser defi-nida globalmente como apolftica, destituída de

função e significado e difícil de ser compreen-dida. E, finalmente, a música progressistapermitida ainda que, dentro deste quadro, for-malmente não engajada e individualista atuouem relação aos ativos e inativos politicamente,e aos musicalmente sensíveis e insensíveiscomo fator de perturbação; como instância deintranqüilidade, de vaga objeção contra a con-firmação representativa do status quo, ou desua harmonizante continuidade no futuro re-querida pelos músicos conservadores, modera-damente modernos ou epigonais.

Infelizmente, ainda não se pode dizerque a revolução musical do século 20, ou seja,a eletrificação da música, tenha sido abordadana política musical dos países socialistas e nospartidos trabalhistas e comunistas dos paísescapitalistas e do Terceiro Mundo de forma cor-respondente à dimensão que ela assumiu.(26)Esta inércia em relação ao reconhecimento ge-ral e à consolidação fática do novo, não ape-nas na música, é normal para qualquer organi-zação voltada para as massas, mesmo parauma organização politicamente progressista ede orientação socialista.

Considerando-se o necessário revolucio-namento geral em todos os setores da vida nosdois sistemas sociais predominantes, obrigadosà coexistência e à evolução conjunta para so-breviverem, as relações entre vanguardas polí-ticas e progressividade musical podem ser sin-tetizadas da seguinte maneira:

As vanguardas políticas necessitam serpensadas mais amplamente, fora dos limites dacentralização socialista tradicional e revolu-cionária, para que possa entrar em atividadeuma grande "frente unitária" de seres comidéias conflitantes com o fim de enfrentar asquestões fundamentais da preservação da vidae da paz, assumindo todas as conseqüênciasdecorrentes de uma nova prática de tolerânciana discussão espiritual e filosófica. Por suavez, a progressividade musical, extrapolando aconcepção de uma lógica de desenvolvimentomusical relativamente autônomo, deveria seravaliada em primeira "linha segundo um con-texto musical idealizado integral, de configu-rações sonoras e conteúdos relacionados a es-forços diferenciados para a construção de umfuturo da humanidade no sentido da emanci-pação real e potencial das massas: no sentidoda libertação das conseqüências incontroláveisdos processos de socialização.

É óbvio que músicos deste século, enga-jados neste sentido nos países capitalistas, so-cialistas e do Terceiro Mundo, têma prestar co-laborações decisivas a partir de suas tradiçõese experiências (incluindo-se as experiências

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amargas). E igualmente 6bvia a necessidadede ainda maior paciência e resistência que navida polftica para que possa surgir uma coa-lizão da razão entre músicos progressistas detendências distintas (engajados politicamenteou "apolíticos") e todos os outros músicos.

Isto pode parecer ut6pico, mas é absolu-

I~

Notas e referências(I) V. Kaden, Christian, 1984. "Die Anfângc der Komposi-tion." ln Beítrâge zur MusiJ..wissenschaft 1. p.3-34; ou ido1984. In Musiksoziologie, Berlim. p.334--447.(2) V. Georg Knepler, 1982. Geschichte ais Weg zum Musik-versulndnL..l...cipzlg. p.226ff, 233ff.(3) V. Christian Kaden, op. cit.; e Aaron J. Gurjewitseh,1978. Das Weltbüd des mittelalteríichen Menschen, Dresden.(4) Estas idéias foram formuladas por Chris Cuttler em umacomunicação sobre otema "What ISpopular music?"; publi-cada ín Popular music perspectives 2, papers frorn lhe secondinternatíorial conference on popular mU51C srudíes, ReggioEmilia, setembro, 19-24, \"983, IASPM, Gõteborg, etc.,

1~8v.p~,I,~m In 'Aslhetik der Kunst, Berlim 1987, Seção1.3.1"Von Musik in den Medien zu Musik für die Medien. Ge-danken zu einer Asthetik "radiogener" Musik," p.82-101.O potencial aqui mencionado foi avaliado politicamente porChris Cuttler. Em seu livro File under popular. Theoreticaland critical writings on muslc, Londres. 1985, ele escreve osegutnte: Já se pode prever que a luta pelo futuro da música serealizará através dos meios de gravação. As qualidades destemeio, que são úteis à burguesia, já chegaram ti. um ótimo ní-veI de desenvolvimento. Elas se transformaram na realidadepredominante da "cultura de massa", veiculada em forma demercadoria. O fator decisivo é que para a burguesia a !!lerca-doria não é avaliada segundo critérios culturais, mas SIm co-merciais. Por este motivo, as eo<?rmes possibi lidades de de-senvolvimento de valores culturais e estéticos oferecidas pe-tos meios de gravação e reprodução pernl.aD.ecem estagnadas.E indiscutível que ao processo de "jccording" c de eletrifi-cação são imanentes potenciais revolucionários que ... apenasem uma sociedade igualitária c destituída de classes sociaispoderiam progredir.Estas contradições já estão sendo reconhecidas e passaram aexercer pressão sobre todo o setor musical. p.142. V. a esserespeito também Günter Mayer, 1987. "Meôíen - Massen-Kúnste, Rückgriff auf Ausspcüehe und Anspcüche.auf Vor-griffe." In Brecht 88, Anregungen zum Dialog über Yemunftam Jahrtausende, Berlim. p.27o--Z85. .(6) V. Frank Schneider, 1984. "Vorwãrts und {nicht) VCl:ges-sen. Einige vor-Iãufige Anregungen, über musikalischeAvantgardcn heutc wieder nacfi-zúdenkcn." In Musik undGeseuschatt 8, p.398-403; "Aooiihrungsvcrsuchc". id.,p.404-411;c id., 1979. Künstlerischs Avantgarde - Annã-hru~gen an ein unabgeschlossenes Kapitel. Berlím.(7) V. GUSIde Meyer, "Minima! and rcpetitive aspects in Po-pular music" e Paolo Prato, "Close encounters between popsand classics". ln Popular music perspectives 2, v. nota 2.p.387-396,375--386.(8) V. Stefan Amzoll 1987/1988. Musik im Rundpnk derWeimarer Repub/ik - Studien 'DJF Entstehungsgeschichte me-dienspezifischer Kunstproduktion und =vermiitiung, Disser-tação Humboldt Universitât.(9) V. Krister MalmlRoger Wallis, 1984. Big sounds tromsmallpeqples. The music industry in S111J2llcountries. Londres.·(10) V. Waller Benjamin, 1970. "Das Kunstwerk im Zeital-ter seiner technisctien Reproduzierbarkeit'". In Lesezeíchen,Leifzig. p.381.(11 Frank Sehneider, op.cit., p. 399. .. .(12 V. FranJI. Schneider, Op.CIt., p.204--243; Karin Hirdina,1981. Pathos de Sachlichkeii, Berlim.(13) Isso também acontece porque a "revolução de material"se realizou no âmbito da instituição tradicional do concerto eda ópera sem a preocupação de questioná-Ia. Os artistas pro-gressistas das outras artes foram mais radicais, assumindo nãoapenas formas alternativas de trabalho mas também de vida.V. Friedbert Strcljer, 1988. Revolte und Aufbruch, Musikhis-torische Studien zum Expressionismus ín Deutschland, Disser-taçâo, Martin Luther Universitãt. Halle, para uma exposiçãosobre as atividades musicais progressistas nos três primeirosdecênios deste século e suas categorias históricas e gerais.(14) V. Karlheinz Stockhausen, 197\. "Osaka-Pfojekt." InTexte zur Musík 1963-1970. Vol.3. Colônia. p.153--158;Georg Katzer, 1983. "Entwicklungen und Perspektivenelektfcakustischer Musik.' ln Musík und Gesellschaft 6.(15) V. Peter Wicke 1987, "Alltâglicher Lebensprozess undMusikanaignung." ..ln Musik und Gesellsclwft 9; e id., 1987

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tamente necessário. Quanto mais seres huma-nos permanecerem indiferentes ou contrários ànecessidade de um comportamento geral pro-gressista tanto politicamente quanto musical-mente - em face às dificuldades de sua for-mação - tanto mais prováveis e certos se tor-nam a decadência e o barbarismo.(27)

Rockmusik - - zÜr Asthetik UM Sotiologie eínes Massenme-diums. Leipzig.(16) V. as excelentes análises de Simon Frith, 1981. "The so-ciology of rock: notes from Britain" ln Popular music pcrs-pectives, papCTS from lhe first íruernational confcrencc onpopular mUS1C research, Amsterdã, David Hom c Philip Ta.EE.(ed.), Gôteborg & Exeter, 198Z, ~. 142-154; e id., 1981."The magic that can ser you frce' . In Middleton, R. & D.Hom (eds.) Popular MUSlC 1, Fo/k. or popular? Dtsttnctions,Influcnces, Coruinuities, (Cambridge Universiry Press).p.159-l68(17) V. Peter Kemper, 1988. "Flucht nach vom oder Sieg desVertrauten?;" In Postmodeme, Peter Kemper (ed.), Frank-furt 3. M. p.313-328. Para o tema DÓs-modernismo na müsi-ca v. também Frank Schncider, 1988.•• Postmoderne, neuesteMusik und wir? Zehn Stich--Punkte in ein buntes Gewebe".In Musik und Gesellschaft 8. p.384-400; e Eberhardt Klemm,"Níchts Neues unter der Sonne." id., p.400-403.(18) Wolfganll wetsch prestou 'uma excelente colaboraçãopara a superaçao de julgamentOs superficiais em" "Postmo-derne" - Genealogiê und B.eâeutung eines umstrittenen Be-griffs." In " "Postinoderne" oder der Kampf um die Zukun-fI." V.nota(l7),p_9--36 ..(19) V. Neil Postrnanc 1985. Wir amiisieren uns zu Tode, Ur-leilsbild'!'!g ;111. Zeítaíter der Unterhultungsindustrie . Frankfurta.M.. '(ZO) Esta formulação tomei de empréstimo a Bernd Guggen-berger, citado por Peter Kernper, v. nota (17), p.325. Origi-nalmente escreveu o autor: .•E melhor estar perplexo mas debom humor, do que consciente mas infeliz."(21) V. Anatoli Dobrynin, "Zur Verteidigung des Leninis-rnus." In Ncues Deutschland, 15.04.1988, p.Z.

.(22) V. Michail Gorbatschow, 1988. Umgestaltung und nellesDenkenjür WLSer La.nd und für die ganze 1Ve/t. Befhm.(23) V., entre outros, Sigrid Neef, 1986. "Alexander Mosso-low, zwischen Phantastik und Realitiitsbezug." In Musik undGesellschaft 10. p. 532-534.(24) V. os documentos da reunião com representantes da rnü-sica soviética DO Comitê Central do Partido Comunista So-viético de janeiro de 1948 e sua avaliação na Associação deCompositores Soviéticos de fevereiro de 1948 in A. Shda-now, 1951. "Uber Kunst und Wissenschaft." Berlim.p.46ff.; e a crítica a Eisler ín "Sowjetskaya Musyka",5/1948, ou in Hanns Eisler, 1982, Musik und Poluík, Schriften194R - 1062. edição critica de Günter Mayer, Leipaig, co-mentário p.22-24.(25) V. a crítica a ópera de Paul Dessau •'O interrogatório deLukullu", baseada em texto de Bertolt Brecht, que foi inte-grada às decisões do 5" plenário do Comitê Central do Parti-do Socialista Unificado da Alemanha (SED).(26) Isto se expressa também nitidamente em um documentocolocado à discussão pública conjuntamente pelo Ministérioda Cultura da RDA e a Associação de Compositores e Mu-sícõlogos deste país. sob o título "Positionen und Uberlegun-gcn zur weiteren Entwicklung der sozialistischen Musikkul-tur in der DOR," publicado in Musik und Gesellschaft6 (1987). Isto é compreensível, já que estas relações não fa-zem parte também das reflexões musicol6gicas sobre as con-tradições atuais e essenciais do desenvolvimento das culturasmusicais. V. "Traditionen in den Musikkulturen - Heute undMorgen." Conferencia científica do Conselho Internacionalde Música, Berlim, RDA, 1985, publicado em Leipz.ig 1987,ou as colaborações ao 89 Seminário de musicólogos marxistasde países socialistas sobre o tema "a cultura musical socialistada atualidade" , in Beitrâge zur Musikwissenschaft, 2( 1987).(27) Já em 1951, Hanns Eisler apontava para esta situaçãohistoricamente nova. No texto "An meine Kollegen in West-deutschland (A meus colegas na Alemanha Ocidental) Eislcr~~eM~JfE~in~e~t~~ .7Muj~~;d~~6~~ea~~~~Eles passaram por um mar de sangue e Iãgrimas e quase quenão sujaram seus sapatos. Assim eles esperam ter sorte maisuma Ve-L~quando vierem as pr6ximas catástrofes. Mas a arteda bomba atômica torna isso impossível. Nenhum de nós de-verã ter sorte desta vez. Este é um dos motivos. e. segura-mente não o mais nobre, porque nenhum de n6s não pode sedar ao luxo de ficar alheio ao movimento pacifista ou sim-plesmente ignorâ-Io por fraqueza, arrogância ou negligên-cia", in Hanns Eisler, "Musik und Politik, Schriften194<1-1962, v. nom(24), p.I46.