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PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA FEDERAL SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE PASSOS - MINAS GERAIS Av. Arlindo Figueiredo, 128, Bairro São Francisco, Passos/MG - CEP: 37902-026 Fone/Fax: (35) 3211-1153 E-mait: [email protected] Processo n°. : 2754-56.2015.4.01.3804 RELATÓRIO Trata-se de Ação Civil Pública proposta pela DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO - DPU em face do INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE - ICMBIO, com fundamento na ''defesa do património cultural nacional, e vocalizando os interesses das comunidades tradicionais da Região da Serra da Canastra", pedindo a suspensão liminar de todas as ações tendentes a retirar, da Nascente do Rio São Francisco, a imagem de São Francisco, e a promover o desmonte do altar ali edificado. Relata que as medidas combatidas estão previstas no item 3 da página 449 do Plano de Manejo de 2005 do Parque Nacional da Serra da Canastra e no cronograma do quadro 32 da página 564 do documento. Afirma, em síntese, que "a meta administrativa de se retirar a imagem de São Francisco da área onde se encontra a nascente do rio de mesmo nome, e de se promover o desmanche do pequeno altar ali erigido, fere os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, sendo contraditória com a caracterização desses bens feita pelo próprio Plano de Manejo, que os considerou como sendo históricos e culturais, carregados de simbolismo regional e nacional", além de "representar uma afronta aos arts. 215 e 216 da Constituição, pois o altar e a imagem de São Francisco, além do seu significado religioso, são edificação/objeto que representam a manifestação de uma cultura popular de referência para todo o Brasil." Processo 2754-56.2015-4.01.3804

RELATÓRIO - Defensoria Pública da União · Estátua de São Francisco - PNSC Processo n° 2754-56.2015.4.01.3804. ... item 3 da página 449 do Plano de Manejo de 2005 do Parque

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PODER JUDICIÁRIOJUSTIÇA FEDERAL

SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE PASSOS - MINAS GERAIS

Av. Arlindo Figueiredo, n° 128, Bairro São Francisco, Passos/MG - CEP: 37902-026

Fone/Fax: (35) 3211-1153 E-mait: [email protected]

Processo n°. : 2754-56.2015.4.01.3804

RELATÓRIO

Trata-se de Ação Civil Pública proposta pela DEFENSORIA PÚBLICA DA

UNIÃO - DPU em face do INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA

BIODIVERSIDADE - ICMBIO, com fundamento na ''defesa do património cultural

nacional, e vocalizando os interesses das comunidades tradicionais da Região da

Serra da Canastra", pedindo a suspensão liminar de todas as ações tendentes a

retirar, da Nascente do Rio São Francisco, a imagem de São Francisco, e a

promover o desmonte do altar ali edificado.

Relata que as medidas combatidas estão previstas no item 3 da

página 449 do Plano de Manejo de 2005 do Parque Nacional da Serra da

Canastra e no cronograma do quadro 32 da página 564 do documento.

Afirma, em síntese, que "a meta administrativa de se retirar a

imagem de São Francisco da área onde se encontra a nascente do rio de mesmo

nome, e de se promover o desmanche do pequeno altar ali erigido, fere os

princípios da razoabilidade e proporcionalidade, sendo contraditória com a

caracterização desses bens feita pelo próprio Plano de Manejo, que os

considerou como sendo históricos e culturais, carregados de simbolismo

regional e nacional", além de "representar uma afronta aos arts. 215 e 216 da

Constituição, pois o altar e a imagem de São Francisco, além do seu significado

religioso, são edificação/objeto que representam a manifestação de uma

cultura popular de referência para todo o Brasil."

Processo n° 2754-56.2015-4.01.3804

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Destacando que os referidos símbolos não representam nenhuma

ameaça ao meio ambiente, e que se encontram na área desde 1975, pediuliminar para suspender a retirada da imagem e de seu altar.

Intimados Ordem dos Advogados do Brasil e o Ministério Público

Federal (fls.449/450).

O réu, INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA

BIODIVERSIDADE - ICMBIO, devidamente intimado para manifestação sobre o

pedido de liminar e sobre a possibilidade de acordo, manifestou-se às fls.453/465, alegando, preliminarmente, falta de interesse de agir e ilegitimidadeativa da DPU. Em síntese, afirmou que agiu dentro de sua competência eobjetivos institucionais, e que já fez uma realocação interna da estátua pormotivos ambientais, razão pela qual o Plano de Manejo teria sido cumprido noque tange aos dispositivos combatidos. Pediu a extinção do processo e oindeferimento da liminar.

O Parquet se manifestou às fls. 467/478, afirmando a legitimidadeativa da Defensoria e a existência do interesse de agir, sob o fundamento de

que "A realocação da estátua no interior da própria unidade de conservaçãonão esvazia o comando emergente do plano de manejo, que determina aefetiva remoção da estátua e o desmonte do palco", sendo evidente que"subsiste o risco de que a estátua seja retirada do Parque Nacional da Serra da

Canastra", Com base em esmerada análise da questão fática à luz dos princípiosde regência dos direitos culturais e da laicidade do Estado, afirmou que "Alémde se colocar contra os valores religiosos e culturais da comunidade, a violência

da supressão da imagem do local revela absoluta falta de neutralidade e a fortepostura de hostilidade" e pediu a concessão da liminar, nos termos do item 3.1(fl.478-v).

É, em síntese, o relatório. Passo a decidir.

Processo n° 2754-56.2015.4.01.3804

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FUNDAMENTAÇÃO

PRELIMINAR

LEGITIMIDADE ATIVA DA DEFENSORIA PUBLICA FEDERAL

A questão se liga intimamente com o exame do mérito e, por esse

motivo, será apreciada após contestação e réplica.

FALTA DE INTERESSE DE AGIR

A natureza da ligação dos fatos narrados na inicial com os

fundamentos da alegação de falta de interesse de agir exige que a questão seja

ultrapassada já no exame da liminar.

Alega o ICMBio que não há o que decidir, pois as medidas

administrativas combatidas já teriam sido efetivadas, já que "a imagem em

questão já foi retirada, há muito, do referido local, tendo sido realocada ainda

dentro do Parque, em um local que causa menor impacto à unidade de

conservação, "(fl. 455). Dessa forma, defende que "a açao que a Autora visa a

evitar com a presente demanda, repita-se, já foi, há muito, executada peloICMBio."

Sob esse fundamento, alega falta de interesse de agir.

A alegação não procede, como se verá a seguir.

A hermenêutica é definida por ZACCAÍ-REYNERS como a "arte dainterpretação visando a render não problemática a distância espacial ou

temporal que entrava a relação entre locutor e intérprete"1. Tratando-se de

uma redução de distâncias, a interpretação de determinado texto jamais poderá

se desprender tanto de seus termos a ponto de perder todo contato com a

fonte de sentido. E foi exatamente isso que ocorreu no caso sob exame.

' ZACCAÍ-REYNERS, Notholie. Lê Monde de La V/e. Paris: Lês Éditions du Cerf, 1995, p. 24.

Processo n° 2754-50.2015.4.01.3804

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Veja-se a redação dos dispositivos em tela, com os objetivos do Plano

de Manejo:

3 - Retirar a imagem de São Francisco, e promover o desmonte do altar,quando oportuno.• A imagem deverá ser doada à Igreja Matriz de São Roque de Minas, casohaja interesse da mesma.• Divulgar a ação de retirada da imagem, explicando os motivos para esseprocedimento.

Uma leitura superficial já evidencia que as providências ali elencadas

não guardam qualquer relação com a alegada "mudança de local" da estátua.

De fato, "promover o desmonte do altar" é medida muito diferente da alegada

realocação - principalmente em se tratando de um altar de concreto e pedra,

cujo "desmonte" implicaria, na prática, a demolição. E não há previsão de

reconstrução em outro local. A propósito, vale apresentar uma fotografia do

conjunto:

Processo n° 2754-56.2015.4.01.3804

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Estátua de São Francisco - PNSC

Processo n° 2754-56.2015.4.01.3804

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Seguindo adiante, pelo comando do Plano de Manejo, uma vezretirada, a imagem deverá ser "doada à Igreja Matriz de São Roque de Minas" -que não fica, obviamente, ao lado da nascente, em lugar próximo, ou sequerdentro do Parque Nacional. Fica no centro do Município de São Roque de Minas

- MG, em área urbana.

Igreja Matriz Centro de São Roque de Minas MGhttp://www.panoramio.com/photo/74905743

Por fim, uma simples realocação de poucos metros não justificaria ocuidado de "divulgar a ação de retirada da imagem, explicando os motivos paraesse procedimento".

Não há esforço hermenêutico que sustente uma versão tãoradicalmente dissociada das dimensões semântica e pragmática do texto comoa que foi apresentada pela Autarquia. Se em algum momento houve realocaçãointerna do monumento (e os motivos para tanto certamente serão esclarecidosna instrução do processo, à medida que for realizada uma investigação acercada genética do item 3 da página 449 do Plano de Manejo do Parque Nacional daSerra da Canastra), é certo que a previsão de retirada da estátua, demolição doaltar e doação da estátua para a Igreja Matriz situada no centro do Município de

Processo n" 2754-56.20)5.4.01.3804 ~~ 6

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São Roque de Minas se encontra no texto de maneira explícita e imperativa o

suficiente para motivar, induzir e justificar a atuação de qualquer agenteadministrativo que decida por sua execução.

Acrescente-se que a intenção de retirada da estátua dos limites do

Parque, ou de ao menos assegurar sua possibilidade administrativa, emergecom bastante nitidez de uma leitura sistemática dos fundamentos e termos da

petição:

1. O ICMBio "... não se encontra disposto a revogar as disposiçõesdirigidas ao objeto/edificação formalmente consagradas no Plano de

Manejo do Parque" (fl.454);

2. "... o Parque Nacional é um bem da União, um estado laico e nãoum local de culto de qualquer que seja a religião, devendo asconstruções em seu interior ser vinculadas a razões de manejo eproteçao da área e diante da revisão do Plano de Manejo do Parque

Nacional, publicado em 2005, foi recomendada a remoção daimagem do local e o desmonte do altar, quando oportuno" (fl.460-v);

4. "compete legalmente ao ICMBio gerenciar as unidades deconservação da natureza, sendo exclusivamente dele a decisão demanter ou retirar a citada imagem.", que teria sido instalada"clandestinamente" no ano de 1975, pelo primeiro diretor do ParqueNacional, "sem que se saiba da existência de qualquer planejamentoprévio ou autorização." (fl.459-v);2

5. "... se trata apenas e tão somente de mudança de artefatohumano, colocado no local inapropriado e de forma improvisada, ema autorização da administração do Parque, que causou danosambientais por longo período de tempo , não, pois, de destruição deimagem sagrada ou monumento histórico, como quer fazer parecer a

Autora." (fl.455);

2 Clandestinidade aparentemente refulada pelos termos do próprio Plano de Manejo, fl. 230, que indicaaceitação e referendada tacitamente pela norma de regência.

Processo n° 2754-56.20 í 5.4.01.3804

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6. "... ainda que se tratasse de monumento histórico, o que não éverdade3, haja vista que a imagem e altar não têm reconhecidos oseu valor artístico e ou histórico pelo Património Histórico Nacional, a

sua mudança de local não encontra óbices legais, conforme asnecessidades administrativas, ambientais e até mesmo de proteção

das próprias obras." (fl.455).

A Administração Pública é vinculada aos termos das normas vigentes,e a interpretação lassa de dispositivos como o Plano de Manejo gerainadmissível situação de insegurança jurídica. Respaldadas as razões invocadaspelo ICMBío, estar-se-ia diante de verdadeira anomia: da mesma maneira queum determinado administrador teria um dia entendido por "rea locarinternamente" o monumento, no futuro uma nova "interpretação livre" danorma pode ser adotada como a mais adequada, culminando com a retirada daestátua - dia em que a população e o pároco da Igreja Matriz de São Roque deMinas acordarão com emissários do Parque Nacional chamando-os para assinarum recibo da estátua de São Francisco, "caso haja interesse", nos termos do

item 3 da página 449 do Plano de Manejo de 2005 do Parque Nacional da Serrada Canastra e do cronograma do quadro 32 da página 564 do documento.

Não há dúvida, portanto, quanto ao interesse de agir. Rejeito apreliminar.

É preciso avançar no exame do pedido da Defensoria Pública daUnião, notadamente quanto à presença do fumus boni iuris e do periculum inmora (esse último já bastante evidente no exame da preliminar em questão).

3 O Plano de Manejo insere expressamente o monumento em seu item 3.3, "Património CulturalImaterial", p. 230.

Processo n° 2754-56.20! 5.4.01.3804

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MÉRITO

A presente Ação Civil Pública submete à apreciação da Justiça Federal

uma questão que se encontra entre as mais intrincadas da atualidade: o

problema dos símbolos religiosos em espaços públicos à luz dos princípios

estruturais das democracias liberais.

A solução para taís questões passa por reflexões bastante densas, e

apenas em ocasiões recentes as cortes brasileiras foram chamadas a realizá-las

- e, mesmo assim, em raras oportunidades.

À falta de doutrina e jurisprudência sedimentadas sobre o tema, a

proposta é buscar um resultado justo e razoável à luz da Constituição Federal

por meio de um exame em três etapas, a seguir expostas.

Em primeiro lugar, é imperativo lançar luz sobre os fundamentos

históricos e pragmáticos, bem como sobre as diferenças entre os fenómenos da

secularização política, ou laicização, e secularização social - ou secularização

propriamente dita. Para tanto, nos apoiaremos nas lições de TAYLOR e

MACLURE (2010). Com base nessa reflexão, poder-se-á verificar desde logo que

se está diante de um manifesto caso chamado pelo filósofo canadense de

"Fetichismo dos Meios".

Feitos os esclarecimentos preliminares, será possível avançar para o

exame acerca da constitucionalidade da presença da estátua de São Francisco

na nascente do rio de mesmo nome. Para tanto, nos serviremos da larga

experiência das cortes americanas no exame da questão - notadamente nos

casos Lemon v. Kurtzman, 403 U.S. 602 (1971), Lynch v. Donnelly, 465 U.S. 668

(1984) e Vá n Orden v. Perry, 545 U.S. 677 (2005). A partir da utilização dos

instrumentos hermenêuticos fornecidos pela jurisprudência norte-americana,

com as naturais adaptações a nosso sistema jurídico, será possível evidenciar a

constitucionalidade da presença do monumento no interior do Parque Nacional

da Serra da Canastra.

A seguir, uma situação bastante inusitada nas democracias ocidentais

impelirá o exame adiante: não encontramos, em nossas pesquisas,

antecedentes históricos em que a própria Administração Pública tenha se

movimentado no sentido da retirada de um símbolo de conteúdo religioso.

Processo n° 2754-56.2015.4.01.3804

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Dessa forma, se há alguma referência quanto à constitucionalidade da

permanência da estátua e altar, ficam bastante reduzidos os pontos de apoio

para examinar a mconstitucionalidade da retirada deles.

Dessa forma, será preciso realizar um exame acerca dos efeitos de tal

retirada sobre a sociedade brasileira, notadamente no horizonte de significaçãosocioambiental, à luz da Constituição da República. Para tanto, tomaremos por

fundamento as reflexões de ERNST CASSIRER acerca da natureza simbólica dohomem e de seu meio, bem como do conceito de bom senso e horizonte éticosocial a partir de DILTHEY. Conjugados e articulados com a explicitação dadimensão do "símbolo São Francisco" na atualidade nacional e mundial,deixarão claro que a demolição da estátua situada na nascente do rio São

Francisco, ou "Rio da Integração Nacional", é radicalmente inconstitucional, namedida em que provocará uma erosão e enfraquecimento nacionais do discursoe do horizonte ético social e ambiental, dificultando sua concretização.

l- Laicídade e Secularização

"... o Parque Nacional é um bem da União, um estado

laico e não um local de culto de qualquer que seja a

religião, devendo as construções em seu interior servinculadas a razões de manejo e proteção da área ediante da revisão do Plano de Manejo do Parque

Nacional, publicado em 2005, foi recomendada aremoção da imagem do local e o desmonte do altar,

quando oportuno." (ICMBio, defesa preliminar, fl.460-v)

Processo n° 2754-56.2015.4.01.3804

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O tema dos símbolos de origem ou conteúdo religioso em locais

públicos é bastante complexo e, como tal, divide opiniões. Contudo, após um

detido estudo sobre o tema é possível afirmar com segurança que grande parte

da polémica decorre mais de uma leitura superficial, e mesmo

desconhecimento, dos reais fundamentos e essência da laicidade, do que de

aspectos centrais desse fenómeno, que é a secularização em sua vertente

política.

O produto dessa falta de profundidade é a eclosão, em nossa

sociedade, do indesejável fenómeno denominado por TAYLOR de "Fetichismo

dos Meios", que ocorre quando os instrumentos e medidas concebidos para

alcançar determinados fins acabam por desconsiderar aqueles objetivos,

tornando-se fins em si mesmos.

A complexidade da questão exige que se desobstrua o caminho de

concepções equivocadas, para só então avançar em direçao ao exame do caso

concreto -- no caso, a constitucionalidade do Plano de Manejo do Parque

Nacional da Serra da Canastra na parte em que determina a remoção da estátua

de São Francisco que existe na nascente do Rio São Francisco, A reflexão se

apoiará nas considerações tecidas pelo filósofo canadense Charles Taylor em

sua obra "Laicité et Liberte de Conscience." (Laicidade e Liberdade de

Consciência).

O primeiro passo nessa senda é demarcar a distinção entre

secularização política (laicização) e secularização social {secularização). De

acordo com TAYLOR, a laicização, ou secularização política, é o "processo pelo

qual o estado afirma sua independência em face da religião", ao passo que a

secularização social é um fenómeno sociológico materializado sob a forma de

uma erosão da influência da religião nas práticas sociais e na conduta e visão de

mundo dos indivíduos .

Para o autor, é vital ter noção dessa distinção quando se busca

fundamentar qualquer análise sobre a necessidade de neutralidade do estado

em relação às concepções de vida e convicções dos cidadãos - valor básico e

* TAYLOR, Charles; MACLURE, Jocelyn. Laicité & liberte de conscience. Paris: La Découverte,

2010, p.24.

Processo n° 2754 56.2015.4.01.3804

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* •*< -iSirS •• '*•,-

constitutivo das democracias liberais. E, a partir de uma concepção adequadade neutralidade, "o estado deve buscar se tornar politicamente secular, massem promover uma secularização social"5. Concretamente falando, num estado

neutro em relação aos sistemas de valores de seus cidadãos, "tanto crentesquanto ateus têm o direito de viver de acordo com suas convicções, mas não

podem impor suas concepções de mundo aos outros." .

Fica claro que a laicidade, que é geralmente invocada para justificar aexclusão de símbolos de origem ou conteúdo religioso de espaços públicos, sópode servir a esse propósito se entendida em seu sentido real de secularizaçãopolítica - e, dessa forma, vincula-se aos fundamentos e fins da constituição do

estado laico.

Retirados os ruídos causados pela desinformação, revela-se que adefinição da questão passará necessariamente pela investigação dos reaisobjetivos e fundamentos do estado laico - o que deverá ser feito a partir desuas raízes históricas.

1.1 Estado laico: raízes, fundamentos e objetivos

De acordo com RAWLS, podemos identificar o nascimento do estadolaico com as próprias origens do liberalismo político, que o autor situa na

Reforma e seus desdobramentos, com "as longas controvérsias sobre tolerânciareligiosa nos séculos XV e XVI. Algo como as modernas noções de liberdade deconsciência e de pensamento começaram ali." Da prática da tolerânciadependia a possibilidade de uma sociedade pluralista razoavelmente estável e

harmoniosa7.

5 TAYLOR, Charles; MACLURE, Jocelyn. Laicité & liberte de consdence. Paris: La Découverte,

2010, p.24.

6 Id., p. 25.

7 RAWLS, John. Política! Liberalism. New York: Columbia Universíty Press, 1996, p. xxvi-xxvii.

Processo n° 2754-56.2015.4.01.3804

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50ò

TAYLOR leciona que, historicamente, no mundo ocidental,

secularismo político e tolerância religiosa foram resultado de uma busca por"assegurar paz e estabilidades marcadas pela fragmentação da igreja Cristã. Oobjetivo era que membros de diferentes credos religiosos gozassem deliberdade de consciência em igualdade de condições, o que exigia uma

o

separação entre o Estado e as Igrejas" .

O argumento é sólido: a história da humanidade, em todas suas

etapas, é repleta de episódios de conflitos desastrosos gerados e nutridos pelaintolerância religiosa, que geralmente se pode associar à falta de separação,

formal ou simplesmente fática, entre estado e religião.

Dessa visão histórica, associada à recognição da igualdade de todosos cidadãos diante da lei como princípio básico dos sistemas políticos

democráticos, TAYLOR identifica, como fundamento da laicidade, dois princípiosmáximos9:

1) Igualdade de respeito aos valores morais; e

2) Liberdade de consciência.

Na busca pela concretização desses dois princípios, as sociedades

construíram historicamente dois instrumentos ou, nos dizeres de TAYLOR,modos de operação: separação de igreja e estado e neutralidade do estado emrelação às religiões10.

TAYLOR, Charles; MACLURE, Jocelyn. Laicité & liberte de conscience. Paris: La Découverte,

2010, p.110.

9 Id., p. 30.10 Id.

Processo n° 2754-56.2015.4.01.3804

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O resultado de sua análise pode ser sintetizado no seguinte

diagrama:

LAICIDADE fSECULARISMO POLÍTICO)

A) PRINCÍPIOS

-> Igualdade de respeito aos valores morais

-> Liberdade de consciência

B) MODOS OPERATIVOS

-> Separação de igreja e estado

-> Neutralidade do estado em relação às religiões

O traçado esquemático do tema evidencia de maneira singela e claraa raiz de grande parte dos mal entendidos em relação ao tema, que ocorre

quando se sobrepõe os modos operativos (B) aos princípios e fundamentos (A).

Com base na necessidade, historicamente apreendida, de preservar otecido social, os estados liberais adotaram como princípios a garantia às visões

de mundo e valores dos cidadãos e sua liberdade de consciência. A separaçãoigreja-estado e a neutralidade estatal quanto à religião foram os principaismeios encontrados para tornar possível a realização desses princípios. Contudo,frequentemente - como evidentemente ocorreu no caso do Plano de Manejoora questionado - dá-se mais importância aos modos de operação, que acabam,equivocadamente, elevados à categoria de valores em si. Os resultados sãograves, podendo chegar à própria anulação dos bens que estão destinados aproteger:

Processo n° 2754-56.2015.4.01.3804

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A plena separação entre igrejas e estado, ou a

neutralidade religiosa do estado, então assume uma

importância maior do que o respeito pela liberdade deconsciência do indivíduo. Os debates públicos sobre a

laicidade se tornam , doravante, mais frequentementefocados nos modos operativos da laicidade do que nos

seus fins

A essa inversão TAYLOR deu nome de "Fetichismo dos Meios". Para o

filósofo, essa distorção é historicamente compreensível em razão da forma

tomada pelos conflitos religiosos na Idade Média e pelo fato de que a separação

igreja-estado não se materializou realmente até o século XX. Contudo, já não

mais se justifica.

A análise detida da questão acabará revelando os dispositivos

questionados no Plano de Manejo do Parque Nacional da Serra da Canastra

como um típico caso de "Fetichismo dos Meios". Contudo, esse aspecto será

mais desenvolvido no tempo próprio.

É preciso alçar algumas questões cruciais lançadas por TAYLOR,

relativas à questão do legado religioso dos povos:

[Mas] a laicidade exige o sacrifício do património históricoreligioso de uma sociedade? Em particular, instituições elugares públicos devem ser purgados de qualquer traçode religião, e, especialmente, daquela abraçada pelamaioria? Isso não acabaria por fazer tabula rasa do

passado, a cortar os laços entre o passado e o

presente?12.

1 TAYLOR, Charles; MACLURE, Jocelyn. Loicité & liberte de conscience. Paris: La Découverte,

2010, p.40.

1?ld., p. 64.

Processo n°2754 56.201 5.4.01.3804

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Uma resposta direta é apresentada pelo filósofo logo em seguida:

Uma concepção adequada da laicidade deve buscar

distinguir o que constitui uma forma de estabelecimentode uma religião daquilo que emana do património

histórico religioso de uma sociedade1 .

Chega-se a um grau mínimo de esclarecimento necessário para

permitir o tratamento responsável da questão. Nesse estágio, TAYLORapresenta um termo chave na história das empreitadas para decidir casos comoo presente: establishment, que pode ser traduzido livremente por

instituição/estabelecimento.

É possível, finalmente, partir para o exame concreto da questão - oque será feito com o auxílio do Direito Comparado, mais especificamente das

reflexões jurisdicionalmente construídas sobre o sentido, alcance einterpretação da Establishment Clause da Primeira Emenda da ConstituiçãoNorte Americana.

2. Análise da questão com apoio no Direito Comparado

Como já apontado, a questão da relação estado-religiões nasdemocracias é extremamente complexa, e sua discussão no Brasil érelativamente recente, havendo poucas referências para observação e reflexão.

Diante de tal lacuna, o Direito Comparado pode e deve ser vistocomo uma fonte e válida e importante para amparar e orientar as ponderações

- notadamente o Direito Norte-Americano, historicamente reconhecido comofonte para a jurisdição federal, como se pode ver do art. 386 do Decreto n- 848,que criou a Justiça Federal em 11 de outubro de 1890, que somente teria sidorevogado em 1991ld:

3 TAYLOR, Charles; MACLURE, Jocelyn. Laicité & liberte de conscience. Paris: La Découverte,

2010, p.65.

" Revogação controvertida, tendo em vista que o decreto de 1890 tinha status de lei federal.

Processo n° 2754-56.20i5.4.01.3804 16

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510

Art. 386. Constituirão legislação subsidiária em casos

omissos as antigas leis do processo criminal, civil e

commercial, não sendo contrárias às disposições eespírito do presente decreto.

Os estatutos dos povos cultos e especialmente os que

regem as relações jurídicas na República dos EstadosUnidos da América do Norte, os casos de common Law eequity, serão também subsidiários da jurisprudência e

processo federal, (grifo nosso)

O tratamento dado pelo direito norte-americano pode se mostrar

imensamente fecundo - em primeiro lugar, por se desenvolver num estado queguarda fortes paralelos com o nosso no que tange à questão da laicidade; emsegundo lugar, pelo longo tempo que vem se voltando ao tratamento dessaquestão: mais de dois séculos. Dessarte, as reflexões fundamentais e osinstrumentos analíticos desenvolvidos pela Suprema Corte Norte Americanapodem ser bastante úteis para a apreciação da querela acerca das imagensreligiosas, e particularmente da imagem de São Francisco, que se encontra nanascente do rio de mesmo nome.

2.1. Establishment Clause: evolução da questão daseparação igreja-estado segundo a Suprema Corte dosEstados Unidos

Adotada no ano de 1791 como a primeira das dez emendas àConstituição dos Estados Unidos (conjunto denominado BUÍ of Rights), aPrimeira Emenda estatui que:

O Congresso não editará lei tratando do estabelecimentode religião, ou proibindo o seu livre exercício; ou limitandoa liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direitodas pessoas se reunirem pacificamente, e de peticionar

Processo n° 2754-56.2015.4.01 -3804

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ao governo buscando a reparação de queixas. (U.S. Const.

Amend. I.) —tradução nossa

A primeira parte daquela emenda (em itálico) recebeu o nome de

Establishment Clouse, e desde então vem sendo interpretada e construída pelas

cortes americanas. Como as diferenças no tratamento dado à questão pelaConstituição dos Estados Unidos e a Constituição da República do Brasil não sãofundamentais, as reflexões sedimentadas em mais de dois séculos no direitoamericano apontaram caminhos e critérios que, mutatis mutandi, podem ser

utilizados para auxiliar na aferição da constitucionalidade do dispositivocombatido nesta ação civil pública da Defensoria Pública Federal.

Nessa linha, um ponto já assentado pela Suprema Corte Norte

Americana é o de que a Establishment Clouse obriga a "neutralidadegovernamental entre religião e religião, e entre religião e não-religião"(Epperson v. Arkansas, 393 U.S. 97), e sua aplicação vem sendo feita com apoio

em um teste construído nos casos Lemon v. Kurtman, 403 U.S. 602 (1971) eaprimorado pela Ministra 0'Connor em Lynch v. Donnely, 465 U.S. 668 (1984).

2.1.1 O "Teste Lemon" - Lemon v. Kurtzman, 403 U.S.602 (1971)

No final dos anos 1960, diante de uma crise financeira de escolasparticulares do ensino primário e secundário em razão do aumento de custos,os estados de Rhodes e Pennsylvania editaram leis instituindo auxílio financeiro

para aquelas instituições, buscando ajustar seus parâmetros aos das escolas darede pública.

Muitas das escolas beneficiadas pelas novas leis eram vinculadas àIgreja Católica, e, em 1969, Alton Lemon, pai de uma criança matriculada nosistema público da Pennsylvania, juntamente com outros cidadãos, questionoua constitucionalidade das referidas normas à luz da Establishment Clause.

Processo n° 2754-56.2015.4.01.3804

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5 U

Destacando tratar-se de uma região extraordinariamente sensível eturva do Direito Constitucional, a Suprema Corte dos Estados Unidos considerouas leis inconstitucionais. Para chegar a esse resultado, aquela corte concebeuum teste triplo extraído de uma síntese dos critérios cumulativamenteassentados com o passar dos anos. Em razão do nome do caso, esse método

recebeu o nome de Lemon Test. Segundo essa ferramenta de análise, para serconsiderada constitucional a lei que trata de religião:

l5. Deve ter um objetivo legiferante secular;

2Ç. Seu efeito primário não pode nem estimular, nem inibir a religião;

35. Não pode promover um envolvimento excessivo do Estado comreligião.

Ao final, com base nesse teste, a Corte entendeu que as leis em

questão não denotavam a intenção legislativa de estimular religião, e que élegítimo o interesse estatal em manter padrões mínimos de qualidade nasescolas. Entretanto, a formatação dos programas fez com que a Corteentendesse que havia ocorrido um envolvimento excessivo entre governo e

religião: a quantidade de cláusulas estabelecidas para direcionar os recursossomente para os conteúdos educacionais seculares, evitando seutransbordamento para os objetivos religiosos, bem como a necessidade de

constante supervisão posterior, foram vistos como evidência de uma inter-relação entre estado e igreja indesejável do ponto de vista constitucional.

O critério adotado, contudo, não esvaneceu a cautela da SupremaCorte no trato da questão: o voto vencedor registrou que "a linha de separação,longe de ser um 'muro', é uma barreira fugidia, indistinta e variada quedependerá de todas circunstâncias de uma relação particular." Lemon v.Kurtman,4Q3(J.S.6Q2 (1971).

Processo n° 2754-56.2015,4.01.3804 N£, 19

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51*)

2.1.2 O "Teste Endorsement" - Lynch v. Donneíly, 465 U.S.668 (1984)

Treze anos após a decisão de Lemon v. Kurtzman, a MinistraO'Connor; aperfeiçoando o Teste Lemon, apresentou novo critério, que veio aser chamado de Endorsement Test. Isso ocorreu no julgamento do caso Lynch v.Donnely, 465 U.S. 668 (1984).

No referido caso, a Suprema Corte dos Estados Unidos examinou se aEstablishment Clause proibiria um município de montar um presépio em suaapresentação de natal.

O município em questão, Pawtucket - R.I., montava todo ano, hámais de quarenta anos, num parque de uma organização sem fins lucrativos, umpresépio, ao custo de montagem de vinte dólares por ano.

Lynch, um cidadão afiliado à Associação das Liberdades CivisAmericanas, aliado a outros afiliados e residentes, entrou com uma açãoafirmando que a montagem de um presépio pelo município era vedada pelaConstituição, por força da Establishment Clause.

Reformando as decisões de l5 e 29 graus, a Suprema Corteconsiderou constitucional a conduta do município. O resultado foi alcançado novoto do relator, Chief Justice Burger; contudo, foi o voto da Ministra O'Connor

que se tornou a principal referência, pois, propondo uma clarificação para adoutrina historicamente adotada, refinou o até então prevalente Teste Lemon,estabelecendo um critério que veio a se chamar Endorsement Test. Em suaspalavras, "esclarecendo o Lemon Test como um dispositivo de análise para

focar, em última instância, no caráter da atividade governamental, maisespecificamente verificando seus propósitos e seus efeitos." (destacamos).

Sob essa ótica, isso implicaria o exame dos aspectos subjetivo eobjetivo da atuação governamental, ou seja:

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S14

19. SUBJETIVO: O que a prefeitura intentou comunicar com a

montagem do presépio;

25. OBJETIVO: Que mensagem efetivamente foi passada com a

montagem do presépio.

Do ponto de vista subjetivo, O'Connor não vislumbrou a intenção deavalizar uma religião, mas apenas a celebração de um feriado através de seussímbolos tradicionais, num propósito secular legítimo. Quanto ao aspectoobjetivo, entendeu que o presépio não gerou a percepção de que o Estadoestaria intentando estimular o cristianismo (ponto em que equiparou o presépio

aos feriados religiosos, à frase In God we trust - Em Deus Acreditamos gravadanas moedas, ou ao "Deus Salve os Estados Unidos da América e essa honorávelCorte", expressão utilizada na abertura das sessões de julgamento). Dessarte,

não endossou, e nem teve o efeito, de endossar o cristianismo.

Chegou-se, então, à formulação do Endorsement Test:

O Governo indevidamente endossa uma religião se sua

conduta tem (1) o propósito ou (2) o efeito de transmitira mensagem de que a religião ou uma crença religiosa

particular é favorecida ou preferida. Lynch v. Donnely,465 U.S. 668 (1984).

2.1.3 Van Orden v. Perry (2005): a supremacia darealidade fática

Após mais de três décadas utilizando as ferramentas analíticas dostestes Lemon e Endorsement, ao ser chamada a decidir a questão de ummonumento com conteúdo religioso em terreno público no caso Van Orden v.Perry, 545 U.S. 677 (2005), a Suprema Corte Norte Americana deu uma guinadaem sua linha metodológica, deixando a tradicional análise formal para adotaruma visada pautada pela questão de fundo e pelo escrutínio meticuloso da

situação de fato.

Processo n° 2754-56.2015.4.01.3804

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Isso porque, de acordo com o novo entendimento, o Teste Lemon

não seria capaz de lidar com um caso de monumento passivo; ao invés de

examinar a lide sob a ótica estrita da separação estado-igreja, seria preciso

refletir à luz dos fundamentos históricos e teleológicos dessa separação.

Trata-se de uma visão bastante próxima à postulada por TAYLOR, que

concebe a separação estado-igreja como um meio destinado a alcançar uma

finalidade bem clara: a neutralidade do estado em relação às concepções de

mundo de seus cidadãos (TAYLOR, 2010). E, conforme registrou a Suprema

Corte dos Estados Unidos por ocasião do julgamento em Von Orden v. Perry, o

escrutínio sobre a afronta, ou não, à neutralidade deve ser guiado "tanto pela

natureza do monumento quanto pela história da nação".

Nos termos do voto do relator,

Reconciliar o forte papel encenado pela religião e pelas

tradições religiosas através da história de nossa Nação

com o princípio de que a intervenção governamental em

assuntos religiosos pode ela própria ameaçar a liberdade

de religião exige que a Corte nem abdique de sua

responsabilidade de manter a divisão entre igreja e

estado, nem justifique hostilidade à religião. ... O simples

fato de ter conteúdo religioso ou promover uma

mensagem consistente com alguma doutrina religiosa

não ofende a Establishment Clause. Van Orden v. Perry,

545 U.S. 677(2005}

Para compreender como a Suprema Corte chegou a essa conclusão, é

importante delinear com um pouco mais de detalhe as circunstâncias fáticas:

Von Orden, um advogado que passava às vezes em frente à Assembleia

Legislativa do Estado do Texas, questionou a constitucionalidade da presença,

naquele local, de um monolito com a inscrição dos dez mandamentos.

Numa análise dos fatos realizada não a partir de um ponto de vista

formal, ou considerando a separação igreja-estado um fim em si mesmo, mas

visando os propósitos que justificaram a promulgação das Cláusulas Religiosas

da Primeira Emenda - quais sejam, "assegurar a maior amplitude possível de

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516

liberdade religiosa e tolerância para todos, evitar a intransigência religiosa quepromove o conflito social, e manter a separação entre igreja e estado" -, a

Suprema Corte Americana entendeu que: a) o monumento continha umamensagem moral secular sobre padrões de conduta, além de evidenciar umarelação histórica entre aqueles padrões e o Direito; b) o fato do monumento terficado por mais de quarenta anos naquele lugar sem ser questionado denota

que poucos indivíduos vislumbraram nele qualquer ameaça à liberdade dereligião ou mesmo um esforço do governo em estabelecer alguma religião; c) osaspectos religiosos do monolito constituíam parte de uma mensagem moral ehistórica mais ampla, expressão de um legado cultural.

Sob esses fundamentos, o monolito foi mantido em seu lugar.

Por fim, importante registrar que os casos precedentes (Lemon eLynch) não foram revogados, podendo-se afirmar que os testes Lemon eEndorsement ainda pautarão julgados ulteriores sobre essa matéria.

2.1.3 A Constitucionalidade da permanência da estátua deSão Francisco na nascente do Rio São Francisco

A investigação histórica, como se pode ver das lições de TAYLOR eRAWLS, permite afirmar que Brasil e Estados Unidos, como democracias liberais,compartilham as mesmas raízes, fundamentos e objetivos no que tange àsecularização política: o imperativo de neutralidade estatal visando assegurar aigualdade entre visões morais e a liberdade de consciência.

Essa conexão radical entre os dois sistemas autoriza (e atérecomenda, tendo em vista a possibilidade de haurir ricas referências nos maisde dois séculos de reflexões e debates) a utilização, no exame do presente caso,das ferramentas analíticas construídas pelo Direito IMorte-americano.

Um dos maiores avanços recentes da Suprema Corte dos EstadosUnidos foi reconhecer que querelas envolvendo o tema da secularização sãogeralmente limítrofes e de alta densidade factual - ou seja, sobrepujam a

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capacidade de soluções genéricas e abstraías, passando a exigir do julgador

uma apreciação do contexto fático.

Sob esse ponto de vista, uma análise do contexto demonstra que a

permanência da estátua de São Francisco no interior do Parque Nacional da

Serra da Canastra em nada viola a ordem constitucional brasileira.

Iniciando pela investigação de sua origem: conforme destacado pela

Defensoria Pública da União, o rio São Francisco recebeu esse nome no ano de

1501, quando Américo Vespúcio chegou à sua foz no dia de São Francisco. O

Parque Nacional da Serra da Canastra foi criado principalmente para preservar a

nascente do rio São Francisco, "sendo que, na época, havia um 'sentimento

cívico de salvação do rio', considerado o Rio da Unidade Nacional". E a estátua

com a imagem de São Francisco foi erigida para demarcar a nascente do rio de

mesmo nome: o rio São Francisco.

Nesse aspecto, a questão muito se assemelha à enfrentada pela

Corte de Apelação Federal Americana do IO9 Circuito no caso Weinbaum v. City

ofLas Cruces, 541 F.3d 1017 (lOth Cir.2008): Paul Weibaum, residente da região

de Lãs Cruces, entrou com ações judiciais questionando a presença de cruzes

em símbolos da cidade (bandeiras, viaturas, prédios). Investigando as origens do

nome da cidade (que foi erigida sobre o território onde antes existia um

memorial espontâneo chamado na região de "floresta de cruzes"), bem como

seu significado (Los Cruces, em espanhol, significa As Cruzes), o uso das cruzes

no símbolo foi julgado constitucional.

A mesma lógica pode ser aplicada ao caso sob apreciação: o Rio São

Francisco recebeu esse nome em referência à data de seu descobrimento por

Américo Vespúcio, em 04 de outubro de 1501 - data em que é festejado o santo

católico São Francisco de Assis. A estátua em questão simplesmente reflete onome do rio cuja nascente demarca.

O fator da temporalidade, tal qual considerado em Van Orden,

também é relevante e denota a constitucionalidade da presença da estátua: o

marco se encontra no local há 40 (quarenta) anos, e até hoje não se tem notícia

de qualquer celeuma ou ação judicial com o intento de retirá-la daquele local,

sendo que o próprio Plano de Manejo apenas veio a ser editado quando ali já se

encontrava há três décadas. Dessarte, é razoável afirmar que a presença da

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51?

estátua naquele local não despertou, na grande maioria dos milhares devisitantes que passam pelo Parque Nacional da Serra da Canastra todos os anos,

a impressão de violação da laicidade do Estado Brasileiro.

Avançando no julgamento, e partindo da premissa de que asferramentas analíticas dos testes Lemon e Endorsement são úteis e válidas como

elementos de construção de raciocínio, passamos a utilizá-las para aprofundar a

reflexão sobre o caso.

Utilizando-se, no que cabível, o Teste Lemon, fica claro que, sob aótica de um observador razoável e minimamente informado acerca do contextohistórico, uma estátua da figura com nome do rio de mesmo nome,demarcando sua nascente, não tem por efeito estimular ou inibir qualquer

religião. Além disso, a simples presença de um monumento estático não podeser considerada como um envolvimento excessivo do estado com a religião.

Já sob a índole analítica do Teste Endorsement, a presença da estátuatambém é plenamente compatível com a laicidade do Estado Brasileiro: foi

doada por uma escultora há quarenta anos, e o Estado simplesmente aceitoutacitamente a doação. Não há qualquer indício histórico ou motivo para suporque sua posição tenha partido do propósito estatal de favorecer qualquerreligião. E, do contexto descrito, também não é razoável concluir que tenha oefeito de transmitir a mensagem de preferência estatal em relação a uma

religião específica.

Conclui-se que a presença da estátua de São Francisco na nascentedo rio São Francisco não viola, sob qualquer ótica, o princípio da laicidade do

Estado Brasileiro.

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3. A inconstitucionalidade da demolição do monumentoEstátua de São Francisco

Chegando a reflexão a este ponto, é interessante notar que as cortes

norte-americanas têm sido provocadas quase que exclusivamente paraexaminar casos em que particulares litigavam contra o poder público, buscandocompelir este último à retirada de um monumento com conteúdo religioso.

Na verdade, não é preciso enveredar em profundas ilações paraentender as razões desse perfil de demanda: efetivamente, é bastante inusitado

que o poder público de qualquer democracia atue com o objetivo de retirar umdeterminado símbolo ou marco em virtude de seu conteúdo religioso. Comefeito, na pesquisa realizada durante o exame do pedido inicial, o únicoprecedente que se logrou identificar na história recente foi o caso da

destruição, em 2001, dos Budas de Bamiyan pelo Governo Talibã do Afeganistão-já que, a priori, não é possível considerar a destruição dos templos da cidadede Nimrod, no Iraque, como atuação estatal, posto que o Estado Islâmico, ou

ISIS, não é reconhecido como "poder público" pela comunidade internacional.

Dessa forma, se até o momento as lições do Direito Comparadoforam suficientes para se concluir pela constitucionalidade da presença daestátua de São Francisco na nascente do rio São Francisco, sendo até mesmobastantes para evidenciar a inconstitucionalidade de sua retirada, o caráterinusitado de se tratar de uma determinação do próprio poder públicorecomenda que se avance na análise do caso, para agregar novos elementos e

fundamentos à decisão.

Sob esse aspecto, importante destacar alguns perspicazesargumentos da Defensoria Pública da União:

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O simbolismo e o valor religioso-cultural da imagem e deseu altar estão intrinsecamente ligados ao local em que

se encontram. Tal simbolismo e valor serãocompletamente esvaziados se o objeto/edificação forem

retirados das imediações da nascente do rio SãoFrancisco.

Reitere-se que esse curso d'água tem importânciareligiosa e cultural para todo o Brasil, constituindo-se em"alma" de algumas regiões distantes como, por exemplo,

o Sertão Nordestino. Para muitos sertanejos, a retiradada imagem da nascente do rio teria não somente um

efeito simbólico, mas também "espiritual".

Acrescente-se que Francisco é um santo da tradição cristãque está profundamente ligado às causas ambientais,sendo ainda uma referência mundial atual pelo fato de

ter sido escolhido como nome de Sua Santidade o Papa.

O argumento é bastante pertinente, e seus fundamentos implícitos

podem ser ancorados em lições de pensadores importantes como Ernst

Cassirer, Wilhelm Dilthey, Charles Taylor, John Rawls e Jurgen Habermas.

Nesse aspecto, é possível iniciar essa ancoragem pela definição,

cunhada por CASSIRER, do homem como animal symbolicum, animal simbólico.

Para o pensador alemão, a definição aristotélica do homem como animal social

não é suficientemente compreensiva, pois "nos dá um conceito genérico mas

não uma diferença específica"15. Linguagem, mito, arte e religião são os meios

através dos quais o homem vê o mundo e estrutura a consciência social. A partir

do desenvolvimento da racionalidade e da linguagem,

15 CASSIRER, Ernst. An Essay on Man: an introduction to a philosophy of human culture. New

Haven: Yale University Press, 1944, p.223.

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Sai

Não mais num universo meramente físico, o homem vivenum universo simbólico. Linguagem, mito, arte e religião

são partes desse universo. Eles são os vários fios quetecem a rede simbólica, a teia emaranhada da

experiência humana. ... Ele se envolveu tanto em formaslinguísticas, em imagens artísticas, em símbolos míticos

ou ritos religiosos que já não pode mais ver ou conhecernada a não ser pela interposição desse meio artificial16.

(CASSIRER, 1944, p. 25, tradução nossa).

Dessa forma,

Na linguagem, na religião, na arte, na ciência, ao homem

nada mais resta do que construir seu próprio universo —

um universo simbólico que lhe possibilita compreender e

interpretar, articular e organizar, sintetizar e universalizar

sua experiência humana. ... O mundo da cultura humana

não é um mero agregado de fatos soltos e desconexos.

Ele busca compreender esses fatos como um sistema,como um todo orgânico17. (CASSIRER, 1944, PP.221-222,tradução nossa).

A relevância dessa concepção do homem para a análise do presente

caso se torna mais clara se agregamos a essa visão do universo simbólico de

Cassirer a concepção de Dilthey a propósito do horizonte de significação

individual e coletivo, da formação do senso comum, e da sensibilidade e

mutabilidade dessas realidades.

16 CASSIRER, Ernst. An Essay on Man: on introduction to a philosophy of human culture. New

Haven: Yale University Press, 1944, p.25.

17 kl., p .221-222.

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Na lição de ZACCAÍ-REYNERS, DILTHEY vislumbrava nas sociedades

humanas a existência de um universo simbólico compartilhado, de um "senso

comum social":

Se referindo a figura clássica do círculo hermenêutico, acompreensão é, segundo Dilthey, caracterizada por uma

duplo relação de dependência recíproca.De uma parte, as experiências vividas singulares e

idiossincráticas, que alimentam o processo decompreensão, formam a base daquilo que, no movimento

da compreensão, se ligando de forma sempre mais

estreita, autoriza a formação de generalizações deexperiências.

De outra parte, a colocação em relação e a confrontaçãodas experiências vividas singulares implica o recurso a

enunciados de forma ou conteúdo já generalizados. ...A apreensão do singular pressupõe então o geral; mas a

formação do geral repousa sobre a apreensão dosingular18.

Existe, portanto, um senso comum social e uma totalidade de

significação (Dilthey) que, para Cassirer, são articulados e configurados através

dos símbolos como arte, mito e religião. Esse horizonte de significação não é

imutável: no modelo diltheyano, cada nova afecção do indivíduo poderá

motivar uma nova organização da identidade19, que poderá refletir

exponencialmente na configuração do horizonte de significação de toda a

comunidade afetada.

Carregado de um significado, um objeto - como a estátua de São

Francisco presente na nascente do rio São Francisco -, uma imagem, uma figura

histórica, se torna um símbolo. Quando associado essencialmente a um lugar,

sua retirada desse lugar equivale à sua destruição simbólica. E é razoável

18 ZACCAÍ-REYNERS, Nathalie. Lê Monde de La Vie: 1. Dilthey et Husserl. Paris: Lês Éditions du

Cerf, 1995, p.66.

19 Id., p.40.

Processo n° 2754-56.2015.4.01.3804 29

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afirmar que a destruição desse símbolo afetará o indivíduo e a comunidade comforça suficiente para prejudicar a visão de mundo associada àquele símbolo.

A proposta, então, é essa: o homem é um animal simbólico, e

organiza sua visão de mundo, tanto individual quanto social, através de

símbolos. A destruição de um símbolo, portanto, tem o potencial de afetar aprópria visão de mundo a ele associada. E, em se tratando de interesses e

direitos de base eminentemente ética, como é o caso dos interessessodoambientais, a erosão do discurso afeta de maneira substancial o próprio

caminho e viabilidade de concretização desses interesses.

Examinando o caso concreto à luz dessas premissas, impõe-se ao

julgador uma dupla tarefa:

l5. Examinar o símbolo em questão, notadamente seu conteúdo e odiscurso nele incorporado;

2^. Descobrir qual horizonte ético seria afetado com suademolição/retirada do lugar ao qual é essencialmente associado.

Nessa senda, como um historiador, o juiz deve, "...em primeiro lugar,

aprender a ler" esse símbolo20. Monumentos não são simples coisas físicas, mastêm que ser "(idos como símbolos"... "Por outro lado... cada símbolo - umprédio, uma obra de arte, um rito religioso - tem seu aspecto material." Paracompreender seu universo simbólico, "devemos ter constantemente em vista [a

•j -i

influência de seus arredores físicos]" .

O símbolo em questão - i.e., a imagem de São Francisco -, estáfortemente associado aos discursos social e ambiental, e de maneira universal.

20 CASSIRER, Ernst. An Essay on Man: an introduction to a philosophy of human culture. New

Haven: Yale University Press, 1944, p.175.

21 Id., p. 201.Processo n° 2754-56.2015.4.01.3804 30

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Em sua obra Fifty Key Thinkers on the Environment (Cinquenta

Pensadores-Chave do Meio Ambiente), PALMER (2001) aponta São Francisco de

Assis, juntamente com figuras como Buda e Gandhi, entre aqueles que

[...] indiscutivelmente tiveram a maior influência globalno pensamento e ação ambiental; mas mais importante,

todos os elencados no livro promoveram contribuiçõessubstanciais ao pensamento ambiental de uma forma ou

de outra. ... influenciaram o pensamento sobre as inter-

relações que existem entre pessoas, outras espécies, e omundo natural22. (PALMER, 2001, posição 281, tradução

nossa).

"Santo Patrono da Ecologia" e portador de um apelo ecológico

universal forjou uma "teologia ecológica" baseada na simplicidade, parentesco

com outras criaturas e generosidade baseada num vínculo ontológico entre

todos os seres viventes23.

É possível afirmar que as lições de Palmer encontram eco em todas

as instâncias, sendo uma perfeita síntese do papel simbólico de São Francisco na

atualidade.

Com base em todos esses aspectos, razoável asseverar que a imagem

e o símbolo de São Francisco de Assis fazem parte do horizonte significativo

contemporâneo de forma indiscutivelmente associada aos discursos ambiental

e social, e numa extensão que ultrapassa as fronteiras dos vínculos religiosos

estritos. E que, efetívamente, dada a representação nacional do rio e da

imagem, a retirada da estátua de São Francisco da nascente do rio com o

mesmo nome afetaria de forma extremamente negativa, em diferentes graus,

mas de maneira generalizada, não apenas o discurso socioambiental, mas toda

uma visão de mundo e posturas individuais e coletivas tendentes à consecução

dos objetivos socioambientais traçados pela Constituição da República.

11 PALMER, Joy A., EDITOR. Fifty Key Thinkers on the Environment. New York: Routledge, 2001,

posição 281,

23 Id., p. 22-24.Processo n° 2754-56.2015.4.01.3804 31

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Ainda nessa senda, vale agregar à reflexão algumas lições de TAYLOR

(2005), que têm alguma luz à lançar sobre a questão:

Cada vez mais, os indivíduos reinterpretam suas próprias

tradições religiosas à luz de sua experiência pessoal ouaté retiram de uma diversidade de tradições religiosas,

espirituais e seculares os elementos que os permitirão

estruturar sua visão de mundo .

É interessante que os dois filósofos contemporâneos

associados mais de perto com a ressurreição da filosofia

prática de Kant, John Rawls e Jiirgen Habermas, que jádefenderam visões mais restritivas, chegaram ambos à

conclusão de que perspectivas religiosas são fontes éticasimportantes que podem contribuir de maneira

significativa para a promoção da cultura democrática25.

Por fim, cabe destacar a ostensiva contradição performativa em queincorre o ICMBio em sua defesa preliminar, quando alega que "... ainda que se

tratasse de monumento histórico, o que não é verdade, haja vista que aimagem e altar não têm reconhecidos o seu valor artístico e ou histórico peloPatrimónio Histórico Nacional, a sua mudança de local não encontra óbiceslegais, conforme as necessidades administrativas, ambientais e até mesmo deproteção das próprias obras." (fl.455, grifamos).

O próprio Plano de Manejo insere o monumento em seu item 3.3,intitulado "Património cultural material e imaterial" (páginas 229-230):

í4 TAYLOR, Charles; MACLURE, Jocelyn. Laicite & liberte de conscience. Paris: La Decouverte,

2010, p.105.

25 Id., p. 138-139Processo n° 2754-56.2015.4.01.3804 ~&? 32

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3.3 Património cultural material e imaterial

No que se refere ao património imaterial, podemos citaro espaço simbolicamente decretado pela população local,como área da nascente do rio São Francisco, apresentado

na foto 65, lugar utilizado para práticas religiosas e

manifestações culturais de baixa escala.

As nascentes deste rio sempre exerceram fascínio,

inicialmente pelo mistério de suas origens e, ao longo dotempo, por estarem associadas à sobrevivência de uma

grande via de comunicação e de abastecimento de água

para muitos estados brasileiros.

Data deste século [XIX] também a denominação do rioSão Francisco como o Rio da Unidade Nacional, aquele

que poderia integrar, pela sua extensão edirecionamento, o Norte e o Sul do país ... .

Como o rio surge de diversos pequenos nascedouros, umdestes pontos foi escolhido para demarcação simbólica e

ali foi construído um pequeno monumento em 1975,após a criação do Parque. Como iniciativa do primeiro

diretor da Unidade, Pr. Hélio Lasmar. foi colocada umaimagem de São Francisco, doada por sua irmã. Helena

Ruy Lasmar. O rústico monumentcié muito visitado, masnão apenas pelo seu carater religioso, como também pelacuriosidade dos visitantes de ver a água brotando.

Mesmo após a criação do Parque, manifestaçõesreligiosas e culturais são realizadas no local, levandodezenas de pessoas à área. (Plano de Manejo do ParqueNacional da Serra da Canastra, PP. 229/230, grifo nosso)

Ou seja: à guisa de defender a integridade do Plano de Manejo,afronta expressamente comandos claros do documento.

Aí\

Processo n° 2754-56.2015.4.01.3804 33

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Fica evidente, nesse ponto, que a postura do ICMBio ofende a

coerência interna do Plano de Manejo e subverte princípios básicos da

Administração Pública, pois avoca poderes ilimitados para dispor, de maneira

livre e ilimitada, de monumento reconhecido expressamente como património

cultural pela legislação ambiental, em clara afronta não apenas aos artigos 215

e 216 da Constituição Federal, mas ao próprio sistema normativo como um

todo.

Resta clara, dessarte, a presença dofumus boni iuris.

Quanto ao periculum in mora, já se mostrava evidente desde o

princípio da reflexão, quando do exame da preliminar de falta de interesse de

agir, ocasião em que ficou bastante evidente a intenção firme da Autarquia em

se reservar o direito de demolir o monumento, de acordo com alegada

autonomia interpretattva ampla e irrestrita do dispositivo normativo em

questão - o que poderá ser feito a qualquer momento, dada a

autoexecutoriedade dos administrativos. Uma vez desmontado o altar e

entregue a estátua à Igreja Matriz de São Roque de Minas, estar-se-ia diante de

situação irreversível. Nesse ponto, convergem Defensoria e Parquet.

DISPOSITIVO

Pelo exposto, presentes o fumus boni iuris e o periculum in mora,

DEFIRO A LIMINAR para DETERMINAR A ABSTENÇÃO de toda e qualquer ação

administrativa tendente a retirar, reposicionar, demolir, desmontar, remover

ou destruir, ainda que parcialmente, a imagem de São Francisco da Nascente

do Rio São Francisco, incluindo o altar ali edificado.

Publique-se. Intimem-se, inclusive com a advertência do artigo 63 da

Lei n^ 9.605/9826. Oficie-se, com urgência.

25 Art. 63. Alterar o aspecto ou estrutura de edificação ou local especialmente protegido por lei, ato

administrativo ou decisão judicial, em razão de seu valor paisagístico, ecológico, turístico, artístico,histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental, sem autorização da autoridade

competente ou em desacordo com a concedida:Processo n° 2754-56.2015.4.01.3804

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Tendo em vista a existência de ressalvas no posicionamento do

Ministério Público Federal, à Defensoria Pública Federal sobre o requerimento

de do item 3.1, fl. 478-v.

Retornando os autos da Defensoria Pública, defiro a nova vista

requerida pelo Parquet.

Defiro a intimação do MPF de todos os atos do processo.

Cite-se.

Passos (MG), 5 de outubro de 2015.

Bruno Augusto Santos OliveiraJUIZ FEDERAL

Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.

Processo n° 2754-56-2015.4.01.3804 35

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PODER JUDICIÁRIOJUSTIÇA FIÍDIiRAL

SEÇÀO JUDICIÁRIA DE MINAS GliRAISSUBSIÍÇÃO JUDICIÁRIA DE PASSOS/MG

RECEBIMENTOi^esta date, os presentes autos foram recebidosem Secretaria procedenteís) do(a)

Per. 508»

E.TAcrtM

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