RELATOS ORAIS E O IMIGRANTE ALEMÃO DO SUL DO BRASIL

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    Oficina do Historiador, Porto Alegre, EDIPUCRS, v.2, n.1,dezembro-2010 66

    Rodrigo TrespachAcadmico do curso de Histria da UNIASSELVI (SC)

    E-mail:[email protected]

    RESUMO: O presente artigo analisa a imigrao alem sob a tica da histria oral no caso especfico da colnia de TrsForquilhas, localizada no sul do Brasil e fundada em 1826. Nosso objetivo compreender como uma famlia deimigrantes alemes narrou suas histrias e como elas foram repassadas aos seus descendentes. Essa narrativa pode serrelativizada a partir do confronto das suas informaes com outros documentos. Nesse trabalho utilizaremos umdocumento escrito produzido algumas geraes aps os eventos histricos narrados.

    Palavras-chave: Memria; Histria Oral; imigrantes alemes.

    ABSTRACT:The present article analyzes the German immigration from the perspective of Oral History on the specificcase of Trs Forquilhas colony, which is located on southern Brazil and was founded in 1826. Our objective is tounderstand how a German immigrant family narrated their story and how it was transmittedto generations to come. Thisaccount could be relativized from the confrontation of its information with other documents. In this work we are going touse a written document that was produced a few generations after the historical facts narrated.

    Keywords: Memory; Oral History; German immigrants.

    Supor que certo tipo de comportamento faz sentido segundo certas suposiesno o mesmo que alegar que sensato, isto , racionalmente justificvel. Omaior perigo desse procedimento e ao qual sucumbiu grande nmero deantroplogos de campo consiste em considerar todos os tipos decomportamento como igualmente racionais. Ora, apenas parte deles .

    Eric Hobsbawm

    As questes relativas memria e suas imbricaes com a histria so relativamente recentes. A

    prpria noo de documento histrico s foi ampliada no ltimo meio sculo, sendo considerado

    como documento histrico, segundo Le Goff (1996:540), o documento escrito, transmitido pelo som,

    MEMRIA E HISTRIA ORAL ENTRE OIMIGRANTES ALEMES NO SUL DO

    BRASIL: O CASO DA FAMLIA SCHMIT

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    pela imagem, ou qualquer outra forma. As reflexes sobre memria e histria oral, enquanto

    documento, devem muito escola francesa de Marc Bloch, Michael Pollak, Maurice Halbwachs,

    Jacques Le Goff e outros. Mas inegvel a contribuio dos diversos ncleos de pesquisadores

    oralistas espalhados pela Inglaterra, Estados Unidos e no Brasil, principalmente o NEHO-USP, nas

    ltimas duas dcadas. No entanto, ainda h no meio acadmico receio quanto utilizao da

    oralidade como documento. Isso se deve, sobretudo, em funo dos debates acerca das tcnicas,

    metodologias e tica de pesquisa.

    MEMRIAS E RELATOS ORAIS

    O relato oral est ligado memria e s suas formas de produzir e recordar lembranas de fatos do

    passado. O historiador ingls Alistair Thomson escreveu que,

    ao narrar uma histria, identificamos o que pensamos que ramos no passado,quem pensamos que somos no presente e o que gostaramos de ser. As histriasque relembramos no so representaes exatas do nosso passado, mas trazemaspectos desse passado e os moldam para que se ajustem s nossas identidades easpiraes atuais (1997:57)

    Ao comparar suas entrevistas sobre a lenda dos Anzacs, um grupo de ex-combatentes australianos

    sobreviventes da Primeira Guerra Mundial, em duas pocas distintas, Thomson conseguiu demonstrar

    que a investigao e a anlise das histrias e silncios do testemunho oral podem revelar, de forma

    ampla, a natureza e os significados da experincia e as maneiras como retrabalhamos nossasreminiscncias sobre o passado durante nossa vida (THOMSON, 1997:67).

    necessrio considerar que a memria do indivduo est imbricada com a memria do coletivo. Para

    Maurice Halbwachs (1990), assim como para Ecla Bosi (1994), o trabalho da memria efetiva-se a

    partir de um movimento articulador entre referncias individuais e sociais. Para o historiador francs

    Michael Pollak (1992:200-212), a memria deve ser entendida, sobretudo como um fenmeno

    coletivo e social construdo coletivamente e submetido s flutuaes, transformaes e mudanas

    constantes.Essa flexibilidade permite que o indivduo seja capaz de lembrar eventos coletivos, ou vivncias de

    outros, como se fizessem parte de sua prpria experincia pessoal. importante considerar que essa

    busca na memria coletiva para a reconstruo do passado tambm est associada impossibilidade

    humana de reter todas as experincias vividas. Conforme Edison Saturnino resumiu,

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    o trabalho da memria constitui-se pelos atos de lembrar e esquecer a um stempo. A lgica da memria encontra o seu correlato na configurao doesquecimento, justamente pelo fato de que a conservao e evocao da totalidadede nosso passado inviabilizariam novas aes e experincias no presente(2005:112).

    Assim, esquecemos determinados eventos de nossas vidas justamente para que outros possam tornar-

    se proeminentes, e tambm para que novas experincias possam ser vivenciadas e integradas s

    aventuras de nosso pensamento. Dessa forma, tornamos a memria um agente seletivo, passivo de

    nossas intenes e desejos nem sempre declarados. Para Pollak, a construo da memria est sempre

    associada a trs fatores determinantes: acontecimentos, personagens e lugares. Eles podem ser

    conhecidos direta ou indiretamente, estar relacionados a fatos concretos, ou se tratar da projeo ou

    identificao com outros eventos.

    J dissemos que existe por parte de alguns historiadores receio quanto utilizao da oralidade comodocumento, principalmente devido s discusses acerca das tcnicas, metodologias e tica na

    transcrio das entrevistas. preciso ressaltar aqui, antes de qualquer coisa, que o texto de nossa

    anlise no foi uma entrevista realizada com as tcnicas e mtodos utilizados por historiadores

    modernos. Nesse caso especfico, o relato oral foi registrado por indivduos que estavam interessados

    na preservao da identidade de um grupo uma colnia de descendentes de imigrantes alemes e

    que tiveram a preocupao de criar uma fonte histrica, ela mesma sujeita s flutuaes e

    transformaes do entrevistador/historiador/escritor.

    RELATOS ORAIS E O IMIGRANTE ALEMO DO SUL DO BRASIL

    A memria do imigrante alemo do sculo XIX, na colnia de Trs Forquilhas, que fica distante 200

    km da capital do estado, no litoral norte do Rio Grande do Sul, s foi escrita na segunda metade do

    sculo XX, aps a Segunda Grande Guerra Mundial. Trs Forquilhas foi a segunda colnia alem

    criada na regio sul do Brasil, mas, ao contrrio das colnias do Vale dos Sinos e do Vale do Ca,

    nunca atingiu uma situao econmica prspera permanecendo, de certa forma, isolada do restante

    dos centros de cultura alem.Com exceo dos relatrios oficiais, realizado por pastores, pelo governo imperial ou mesmo por

    viajantes, na colnia de Trs Forquilhas no h nenhuma carta, dirio ou qualquer documento pessoal

    dos primeiros imigrantes chegados em 1826. Nem mesmo uma narrativa cronolgica apareceu antes

    da dcada de 1950. Entretanto, uma crnica no publicada escrita pelo Pastor Augusto Ernesto

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    Kunert entre 1949 e 1953, foi a primeira tentativa de apresentar um histrico da colnia. A Chronik

    der Evangelischen Gemeinde von Tres Forquilhas*, de Kunert, baseada, como quase todas s que se

    seguiram, nas suas observaes ao ter contato com a populao durante o trabalho pastoral.

    Em nosso trabalho utilizaremos como exemplo da Histria Oral da colnia os relatos orais

    transmitidos pela famlia Schmitt, uma das mais importantes no cenrio poltico da regio. O primeiro

    a escrever sobre a famlia Schmitt foi o pastor luterano Ernesto Fischer, que atendeu a parquia

    evanglica** de Trs Forquilhas entre os anos de 1959 e 1969. Fischer escreveu, sob o pseudnimo de

    Piscator, noJahrweiserde 1966 (p.51-57), uma crnica intitulada Erinnerungen aus dem Anfang der

    Kolonie Tres Forquilhas (Lembrana dos primrdios da Colnia de Trs Forquilhas). Trata-se de

    uma narrativa com poucos dados precisos, produzida com informaes de relatos baseados na

    tradio oral que circulava entre os colonos, netos de imigrantes, na dcada de 1960 em Itati e Trs

    Forquilhas, regio que compreendia a rea da antiga colnia. Fischer ainda escreveu noJahrweiserde1974 (p.51-57), desta vez com seu nome verdadeiro, o texto Ein Altes Kirchenbuch, com

    informaes sobre o antigo livro da igreja evanglica por ele recuperado.***

    No artigo de 1966, sob pseudnimo de Piscator, Fischer transcreveu uma suposta carta de Philipp

    Peter Schmitt, imigrante de 1826, endereado ao seu irmo na Alemanha. A carta tinha por finalidade

    arranjar um casamento para a filha de Philipp, Barbara Schmitt, com seu primo Wilhelm Schmitt. Eis

    um trecho da suposta carta:

    Wir haben immer darauf geachtet, dass unsere Kinder nicht zum gewhnlichenVolk kommen. In Brasilien, wo wir jetzt Tres Forquilhas-Tal wohnen, gibt eswenige Leute von guten Blut. Unsere Barbara ist jetzt in heiratsfhig Sie kriegtzwei Kolonielose, das sind vierhundert Morgen Land, auch das Haus undGeschft soll sie erben. Lieber Bruder, ich habe es mir recht bedacht, schicke

    *Chronik der Evangelischen Gemeinde von Tres Forquilhas (Crnica da Comunidade Evanglica de Trs Forquilhas).Texto manuscrito mantido pelo pastor entre 1949 e 1953. Arquivo da Comunidade Evanglica do Vale das TrsForquilhasIECLB, Itati, RS. Kunert foi o primeiro pastor luterano nascido e formado no Brasil a prestar assistncia colnia de Trs Forquilhas. O Pastor Schreiner, o predecessor de Kunert, foi preso em 1942, e a comunidade evanglicaficou at 1949 sem assistncia pastoral.** O termo evanglico aqui deve ser entendido como sinnimo de protestante, ou seja, ligado s correntes religiosas

    oriundas da Reforma Protestante desencadeada por Martin Luther, em 1517, e sem qualquer ligao com o usual, e atual,termo evanglico associado s igrejas pentecostais surgidas principalmente durante o sculo XX. Na colnia de TrsForquilhas reuniram-se em torno do Pastor Carl Leopold Voges (1801-1893) colonos ligados s duas correntesprotestantes: os luteranos e os calvinistas ou reformados. S aps a criao do Snodo Rio-Grandense, em 1886, que acolnia ligou-se oficialmente a uma corrente de orientao luterana.***Ein Altes Kirchenbuch (Um antigo livro [de registros] de igreja). Os livros de igreja da colnia de Trs Forquilhas,escritos em lngua alem, foram parcialmente destrudos em 1942 durante a Segunda Guerra Mundial. O livro decasamentos, entre os anos de 1826 e 1850, e o de bitos, entre os anos de 1826 e 1890, foram incinerados pelo delegadolocal Tcito Fernandes.

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    Deinen Sohn Konrad, bers Wasser. Ich mchte ihm das alles abgeben, und dannnoch die Hochzeit mit der Barbara richten (PISCATOR, 1966:56).

    [Uma traduo livre: Ns sempre cuidamos para que os nossos filhos noparticipem de famlias insignificantes. No Vale do Trs Forquilhas, no Brasil,onde ns agora moramos, existem poucas pessoas de bom sangue. A nossa

    Barbara est em idade de casar. Ela receber duas colnias de herana, isto , emtorno de quatrocentos Morgen [ca. de 100 hectares] de terras, e herdar a casa etambm a venda. Querido irmo, eu refleti sobre isso, manda teu filho Konradatravs do Oceano. Eu gostaria de passar tudo isso para ele, assim como cuidardas despesas do casamento].

    E Piscator segue com o relato:

    Als Wilhelm den Brief bekam er war er auch schon ein alter Mann , rief erseinen Bub Konrad. Es war doch einer schner Junge gross, blondharig undblauugug. So sagt ihm: Der ltest bekommt unsere Haus. Es ist nicht gut, wennDu immer bei ihm bleibst. Ich tt Dir raten: gehe nach Brasilien und tu Deine

    Base ehelichen. Wir schreiben gleich nach Hamburg an den Schiffsmakler, damiter Dir einen Platz freihlt (PISCATOR, 1966:56).

    [Uma traduo livre: Quando Wilhelm recebeu a carta ele tambm j era de idade,ento logo chamou o seu filho Konrad. Tratava-se de um jovem bonito, grande,loiro e de olhos azuis. E Wilhelm disse para o filho: o [teu irmo] mais velhoherdar nossa casa, no bom que voc fique aqui para morar sempre com ele.Quero, portanto, te dar um conselho: v para o Brasil e case com a tua prima[Barbara]. Escreverei para a Empresa de Navegao de Hamburgo e farei areserva da passagem para voc].

    O sucessor de Fischer na parquia foi o pastor Elio Eugenio Mller. Esse pastor tambm escreveu

    sobre os Schmitt, de quem sua esposa descendente, em dois livros sobre a colnia de Trs

    Forquilhas publicados em 1992 e 1993. A obra de Mller tambm baseada na tradio oral da

    colnia. Ao realizar sua pesquisa na dcada de 1970, tal qual Fischer, Mller teve contato com

    bisnetos, e at com netos, de alguns imigrantes chegados em 1826. Entre os seus principais

    colaboradores estava o escrivo municipal Alberto Schmitt (1886-1971), neto do imigrante Wilhelm

    Schmitt. Mais criterioso do que Fischer o ento jovem pastor comparou os dados da tradio oral com

    a documentao que vinha sido levantada por historiadores, principalmente Carlos Henrique

    Hunsche. Ao problematizar as informaes que ainda circulavam na antiga colnia, Mller corrigiu

    erros de Fischer como, por exemplo, quando informou ser na verdade Konrad o imigrante de 1853, e

    no Wilhelm Schmitt como sustentava Fischer. Contudo, Mller repassou a histria do casamento

    entre primos e da nobreza prussiana:

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    Comandante Schmitt [Philipp Peter Schmitt] costumava apresentar-se comomembro da nobreza prussiana. Ele no admitia que suas filhas pudessem vir acasar com algum simples colono. Preocupado em manter seu sobrenome, mandouvir da Alemanha seu sobrinho Guilherme Schmitt para casar com sua filha mais

    jovem Brbara. [] a tradio oral transmitiu que Guilherme Schmitt fora oficial

    do exrcito Imperial da Prssia, entrando em Trs Forquilhas por volta de 1855

    para atender ao pedido do tio, casando com a prima-irm Brbara em 1856(MLLER, 1992:60).

    Havia ento trs fatos marcantes na histria dos Schmitt que chamaram a ateno tanto de Fischer

    quanto de Mller: o casamento entre primos; o fato de um membro da famlia ter pertencido ao

    oficialato prussiano; e questo da suposta ascendncia nobre. O primeiro passo para entendermos a

    histria dos Schmitt e como se processou na memria dessa famlia foi encontrar dados sobre o

    imigrante no Brasil. O segundo foi encontrar informaes de seus ancestrais na Alemanha. S assim

    conseguimos juntar uma base documental suficiente para compreender o que havia relatado a histriaoral.

    Philipp Peter Schmitt, o Comandante Schmitt, chegou a So Leopoldo em 15 de janeiro de 1826

    como lavrador evanglico. Realizou a viagem Rio de Janeiro-Porto Alegre no bergantim Carolina, o

    barco costeiro rondado pela fome e pela morte, em que figurava como chefe de famlia nmero 27.

    Com ele estavam esposa Elisabeth G. Justin e os trs filhos Christoph, Elisabeth e Appolonia. Havia

    ainda o pequeno Valentin, que no consta nos registros de chegada de imigrantes porque veio a

    falecer logo aps a chegada*. Aps se estabelecer na colnia o casal teve ainda mais trs filhas: Maria

    Madalena, Brbara e Felipina Rosina. Por sua vez, Wilhelm Schmitt chegou solteiro So Leopoldo

    em 6 de setembro de 1853. Conforme o registro de chegada de imigrantes (C-333: 239), como

    sapateiro. Segundo Mller, como Oficial do Imprio da Prssia (MLLER, 1992:60).

    Entre 1851 e 1852 o Imprio Brasileiro contratou cerca de 2 mil alemes, a maioria da regio do

    Schleswig-Holstein, para a Guerra contra Oribe e Rosas (Argentina e Uruguai), no extremo sul do

    pas. Aps o fim da guerra uma boa parte deste contingente, que foi chamado no Brasil de

    Brummer, foi destinado colnia alem de So Leopoldo. Alguns migraram para Trs Forquilhas,

    * O C-333, Registro Geral dos colonos chegados So Leopoldo entre 1824-1853, de Johannes Daniel Hillebrand, foiescrito algum tempo depois da chegada dos imigrantes. provvel que Hillebrand, ao escrever o documento, no tenhamencionado Valentin Schmitt porque o mesmo havia falecido em 21.02.1826 (DREHER, 2004, reg. n. 28), pouco mais deum ms aps a famlia ter chegado So Leopoldo, ou mesmo por omisso da famlia. Sobre o costeiro Carolina,Hunsche refere-se ao barco como rondado pela fome e pela morte (HUNSCHE, 1977:252) devido aos maus tratossofridos pelos imigrantes, pois dezenas morreram durante a viagem ou logo aps a chegada So Leopoldo. Foi um casonico na imigrao alem no sul do Brasil.

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    como Christian Tietbhl, Ludwig Stahlbaum e Friedrich Dicksen entre outros (MLLER, 1996:94-

    99). Wilhelm Schmitt chegou ao Rio Grande do Sul e Trs Forquilhas na mesma poca, no entanto

    no h documentos provando que ele tenha vindo ao Brasil junto com os Brummer, e que fosse de

    fato um oficial do Exrcito Prussiano. Em verdade o registro de chegada de imigrantes (o C-333)

    informa que os 36 colonos vindos de Bremen na escuna Tellvieram de sua prpria vontade procurar

    estabelecer-se no pas.

    Inicialmente poder-se-ia pensar que a histria oral havia cometido um erro ao informar que o Schmitt

    pertencente nobreza prussiana fosse ento Wilhelm Schmitt (o imigrante de 1853) e no Philipp

    Peter Schmitt (o imigrante de 1826). Porm, o pesquisador Marcos Antnio Witt encontrou um

    documento de 1834 em que Philipp Peter Schmitt, ainda antes da chegada do sobrinho, j se

    apresenta como Dom Fellipe Pedro Xemite (2008:89), prova do sentimento de superioridade que

    movia os Schmitt e fora relatado j nos trabalhos de Fischer (1966) e Mller (1992 e 1993).Pouco se sabia dos Schmitt na Alemanha, salvo a indicao pouco precisa de que eram do Hessen-

    Darmstadt. Os dados sobre os filhos dos imigrantes nascidos no Brasil eram conhecidos graas aos

    livros da igreja evanglica da colnia. O acervo do Arquivo Histrico do Estado do Rio Grande do

    Sul, em Porto Alegre, disponibilizou informaes sobre como esses imigrantes chegaram ao estado.

    Restava encontrar dados na Alemanha que ajudassem a esclarecer o que a histria oral havia contado.

    S em 2007, com a divulgao de um trabalho que realizamos em parceria com o pesquisador alemo

    Gerd Braun em um simpsio sobre a imigrao em D. Pedro de Alcntara, foi possvel juntar dados

    suficientes para uma anlise sobre as memrias da famlia (TRESPACH, 2010b:53-57). Os dados so

    deveras esclarecedores*.

    Philipp Peter Schmitt nasceu em 5 de dezembro de 1797 em Bornheim, prximo a Alzey, no

    Rheinland-Pfalz. Filho de Christoph Schmitt (1758-1828) e sua segunda mulher Johanna Magdalena

    Barth (?-1814). Philipp Peter era 11 anos mais novo que o irmo Johann Konrad Schmitt, para quem

    supostamente escreveu a carta na dcada de 1850. Johann Konrad, nascido em 5 de junho de 1786,

    era filho de Chistoph Schmitt e sua primeira esposa Maria Catharina Schmahl (?-1795). Ou seja, os

    irmos Schmitt, que teriam arranjado o casamento entre os filhos, eram na verdade meio-irmos. E

    Wilhelm Schmitt, o noivo arranjado de Barbara, nasceu em Bornheim em 17 de outubro de 1822.

    * A transcrio paleogrfica dos documentos do Archiv der Verbandsgemeinde Alzey-Landforam realizados por GerdBraun, de Heimersheim, e gentilmente cedidos para apresentao e publicao no Brasil. O artigo que apresentamos em2007 com os dados de Braun foi publicado em nosso livro (2010) e igualmente nos anais do V Simpsio de Imigrao eColonizao Alem no Litoral Norte/RS (2010).

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    Filho de Johann Konrad Schmitt (1786-1861) e Sibila Christina Halberstadt (1785-1846). E um dado

    importante que Wilhelm era o oitavo filho de Konrad, sendo que todos os anteriores eram mulheres,

    com exceo de dois meninos que no chegaram idade adulta. Os dois filhos homens do imigrante

    Philipp Peter Schmitt tambm faleceram ainda jovens, e ele prprio faleceu no Brasil em 1855. O

    irmo que permaneceu na Alemanha, Johann Konrad Schmitt, faleceu em 1861. Wilhelm Schmitt, o

    imigrante de 1853, faleceu em alguma data antes de 1887.

    CONSIDERAES SOBRE A TRADIO ORAL DOS SCHMITT

    Os dados genealgicos da famlia so importantes, pois esclarecem dvidas quanto profisso dos

    Schmitt na Alemanha e a confirmao de que Wilhelm era o nico responsvel pela manuteno do

    sobrenome Schmitt tanto na Alemanha quanto no Brasil (a Stammhaus). Dessa forma, se explica a

    importncia dada ao seu casamento com Barbara, sendo ele agora herdeiro dos bens da famlia.Confirma tambm que Fischer provavelmente nunca teve acesso a carta enviada por Philipp ao irmo

    na Alemanha, j que o autor trocou os nomes (Wilhelm por Konrad, que na verdade era o nome do

    irmo para quem Philipp escrevia), o que seria inadmissvel se ele tivesse oportunidade de ler a carta.

    No h nos registros da administrao da cidade de Alzey, ou nos registros da igreja evanglica,

    qualquer indicao de nobreza. Em trs geraes anteriores a emigrao os Schmitt so mencionados

    como lavradores* ou sapateiros** (TRESPACH, 2010a:55). As famlias com ligaes de parentesco

    aos Schmitt na Alemanha (Barth, Halberstadt e Schmahl) so igualmente lavradores, simples

    camponeses. A nica famlia que poderia angariar para si um status maior que a de simples campons

    era a famlia Justin, tambm emigrada para o Brasil, que tinha na Alemanha forte ligao com a

    Igreja Reformada. Entre os Justin havia um Kichenltester*, colocao na sociedade alde com maior

    notoriedade que a de lavrador ou sapateiro. E mesmo assim, tanto o imigrante Valentin Justin quanto

    a irm Elisabetha Gertruda Justin, esposa de Philipp Peter Schmitt, eram filhos do segundo casamento

    de Johann Wilhelm Justin, ou seja, de acordo com a tradio na Alemanha sem nenhum direito sobre

    a herdade paterna, que caberia ao primognito do primeiro matrimnio. Como provam os registros

    * Ackermann. Standesregister Trauungen Bornhein. Reg. Blatt 2 de 02.08.1819. Archiv der Verbandsgemeinde Alzey-Land, Alzey.** Schuhmacher. Standesregister Sterbeflle Bornhein. Reg. Blatt 5 de 17.10.1822. Archiv der Verbandsgemeinde Alzey-Land, Alzey. Ver TRESPACH (2010a:55).***Kichenltester o nome dado a um membro da aldeia nomeado para o conselho paroquial, normalmente um ancioquer ser o representante da igreja local.

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    em Alzey, a quase totalidade dos que emigraram desta regio eram filhos sem herdade, ou seja, no

    primognitos (WILLEMS, 1941 e WOORTMANN, 1995) **.

    A pesquisadora Ellen Woortmann (1995:130), em uma anlise sobre como os colonos e os

    genealogistas trabalham suas memrias e rvores genealgicas de maneiras distintas, considerou que

    os ltimos tendem a reconstruir suas origens na Alemanha, onde o objetivo dessa elite legitimar

    uma nova situao de classe, de 'novos ricos', atravs de uma antiga situao de status. Dada boa

    situao econmica de Philipp Peter Schmitt (WITT, 2008:90 et. seq.) *** aps alguns anos no Brasil,

    podemos supor que tal esforo para legitimar uma nova situao na esfera social fosse seu principal

    objetivo, e a utilizao do Dom antes do nome fosse apenas mais uma artimanha para consolidar tal

    projeto. Algo semelhante ao que os genealogistas fazem nos dias de hoje, ao a reconstruir um

    passado glorioso para seus ancestrais na Alemanha, mesmo que seus antepassados fossem simples

    camponeses que emigraram devido enorme misria em que viviam.O fato de Wilhelm Schmitt ter chegado ao Rio Grande do Sul no momento em que desembarcavam

    tambm vrios soldados prussianos, fez com que os Schmitt se apropriassem de histrias coletivas na

    colnia de Trs Forquilhas para compor a memria da famlia. O que nos remete ao que relatou

    Pollak sobre a memria ser um fenmeno coletivo e social, submetido a transformaes constantes,

    permitindo que um determinado indivduo possa lembrar-se de eventos de outros como se fosse parte

    da prpria experincia. Se recordarmos Thomson, os Schmitt, ao transmitir oralmente suas histrias,

    estavam repassando aos demais aquilo que gostariam de ser, criando a ideia de que realmente

    pertenciam a nobreza e legitimando o status social que tinham adquirido no Brasil.

    O exemplo da histria oral da famlia Schmitt ilustra a ideia da pesquisadora brasileira Janana

    Amado, quando escreve que a dimenso simblica dos relatos orais no lana luz diretamente aos

    fatos, mas permite aos historiadores rastrear as trajetrias inconscientes das lembranas e associaes

    de lembranas; permite, portanto, compreender os diversos significados que indivduos e grupos

    sociais conferem s experincias que tm (AMADO, 1995:135).

    *Identificamos seis famlias emigradas para o Brasil da localidade de Heimersheim/Alzey, prximo a Bornheim elocalidade de origem da esposa de Philipp Peter Schmitt, onde os emigrantes no eram primognitos, ou seja, eramexcludos da herdade paterna. No caso das famlias oriundas dessa rea cabe ressaltar que muitas viviam em completoestado de misria. A me do imigrante Borger, por exemplo, acabou morrendo em uma casa para mendigos aps aemigrao do filho (ver: TRESPACH, 2010a:30).**Uma anlise da situao econmica de Schmitt est na tese de doutorado de Marcos Witt, que situou esta famliaentre os exponenciais da colnia. O inventrio do imigrante, no Arquivo Pblico do Rio Grande do Sul, informa queele era proprietrio de uma considervel quantidade de terras, uma casa de moradia, engenho, um escravo e uma somaem dinheiro.

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    As tradies orais das colnias alems assim como as memrias dos imigrantes, principalmente do

    sculo XIX, podem se utilizadas por historiadores como fontes de informao, desde que tratadas

    como qualquer outro documento histrico sendo submetidas a contraprovas e anlises.

    ______________________

    Referncias Bibliogrficas

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