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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL NÚCLEO DE ESTUDOS DA AMAZÔNIA INDÍGENA Relatório Final Expedição Purus 2012 Realização: Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEAI/PPGAS/UFAM) Apoio: Instituto Nacional de Pesquisa Brasil Plural (IBP) (FAPEAM/CNPq) Pronex - Condições de Vida e Saúde de Populações Indígenas na Amazônia (FAPEAM) Pró-Reitoria de Extensão e Interiorização (PROEXTI/UFAM) Manaus, 2013

Relatório Final Expedição Purus 2012 · ainda, um pequeno projeto de extensão (Purus Indígena II – Saberes e territorialidades), com apoio da Pró-Reitoria de Extensão e Interiorização

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

NÚCLEO DE ESTUDOS DA AMAZÔNIA INDÍGENA

Relatório Final

Expedição Purus 2012

Realização:

Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEAI/PPGAS/UFAM)

Apoio:

Instituto Nacional de Pesquisa Brasil Plural (IBP) (FAPEAM/CNPq)

Pronex - Condições de Vida e Saúde de Populações Indígenas na Amazônia (FAPEAM)

Pró-Reitoria de Extensão e Interiorização (PROEXTI/UFAM)

Manaus, 2013

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Relatório Final

Expedição Purus 2012

Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEAI/PPGAS/UFAM)

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SUMÁRIO

SUMÁRIO ................................................................................. 3

LISTA DE FIGURAS .................................................................. 8

LISTA DE TABELAS ................................................................ 10

APRESENTAÇÃO ..................................................................... 12

HISTÓRIA E MEMÓRIA NO PURUS ......................................... 17

INTRODUÇÃO .............................................................................. 17

O Barco ...................................................................................... 21

Tapauá ....................................................................................... 27

Canutama ................................................................................... 34

Lábrea ........................................................................................ 46

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 57

NARRATIVAS DO PURUS ........................................................ 60

INTRODUÇÃO .............................................................................. 60

A vida no barco: o avesso do tempo/espaço e a convivência íntima com

o “outro estranho” ........................................................................ 61

Tapauá, a cidade de nordestinos que sobem, e de índios que descem o

rio Purus ..................................................................................... 63

Os nordestinos falam: as trajetórias de vida, andanças e anseios ....... 66

Raimundo Nival descendente de nordestinos e ‘filho’ do Purus ........... 70

Família paumari e vivência entre dois mundos: brancos/índios -

cidade/aldeia ............................................................................... 73

Maraza cacique mamori relembra o “ajuntamento” de seu povo aos

paumari ...................................................................................... 76

Canutama a cidade de Manoel Urbano, Karipuna Maué e coronel

Botinelly ..................................................................................... 78

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Lista de documentos do arquivo público de Canutama ...................... 81

A fala de Sebastião Banawa, trajetos e andanças de um povo em

contato com os brancos ................................................................ 84

João Cícero fala dos coronéis de barranco ....................................... 86

Raimundo Gomes cearense seringalista .......................................... 87

Marcelino Apurinã: feirante, agricultor e cacique na cidade de Lábrea . 88

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 94

O SISTEMA DE PRODUÇÃO DA FARINHA EM CANUTAMA,

MÉDIO PURUS (PARTE I) ....................................................... 96

INTRODUCCIÓN ........................................................................... 96

Carácterísticas del contexto donde se realizó la investigación............. 97

Importancia de la mandioca con respecto a las otras especies vegetales

en la cosmovisión canutamense ..................................................... 98

Proceso de la elaboración de la farinha ........................................... 99

Articulación y funcionamiento de las unidades productivas para la

obtención de la farinha de mandioca ............................................. 103

De la unidad familiar a la unidad productiva. Proceso de formación y

organización .............................................................................. 106

Estrategias adaptativas de las unidades productivas para garantizar la

producción en situaciones extremas ............................................. 110

Forma de repartir la farinha ......................................................... 112

Aspectos simbólicos entorno al proceso productivo ......................... 113

La casa de farinha como espacio físico y simbólico ......................... 114

O SISTEMA DE PRODUÇÃO DA FARINHA EM CANUTAMA,

MÉDIO PURUS (PARTE II) ................................................... 118

INTRODUÇÃO ............................................................................ 118

Várzea ...................................................................................... 129

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Praia ........................................................................................ 129

Área do Seringueiro (composta pela área de cultivo da Beira do Lago do

Seringueiro e área da Baixa Grande) ............................................ 132

Organização do Sistema Produtivo na Várzea: a área da Baixa Grande

............................................................................................... 135

Variedades de Mandioca e Macaxeiras ........................................... 150

Mandioca .................................................................................. 150

Macaxeira ................................................................................. 151

Casa de Farinha ......................................................................... 154

Aquisição das sementes pelos agricultores da várzea ...................... 158

ROÇADOS E MANDIOCAS JAMAMADI ................................... 165

INTRODUÇÃO ............................................................................ 165

Meu retorno a Lábrea ................................................................. 165

A chegada à TI Jarawara/Jamamadi/Kanamati ............................... 169

Aldeia Carapanazal ..................................................................... 174

ETNOGRAFIA E SISTEMAS PRODUTIVOS DOS PAUMARI DO RIO

TAPAUÁ ............................................................................... 190

INTRODUÇÃO ............................................................................ 190

Notas sobre a Leishmaniose no Município de Tapauá ...................... 191

FOZ DE TAPAUÁ: ADENTRANDO O UNIVERSO PAUMARI .................. 192

Breve caracterização dos Paumari ................................................ 192

O contexto da Aldeia .................................................................. 196

Tipo de Moradia ......................................................................... 199

Os Mamori e Juberi ..................................................................... 202

ATIVIDADES ECONÔMICAS E EXTRATIVISTAS ......................... 206

Agricultura ................................................................................ 206

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Caça ......................................................................................... 206

Pesca ........................................................................................ 207

Coleta de Castanha .................................................................... 207

Notas sobre Leishmaniose nos Paumari do Rio Tapauá .................... 208

ETNOGRAFIA DA QUEBRA DA CASTANHA JUNTO AOS PAUMARI

DO RIO TAPAUÁ: PRIMEIRAS IDEIAS E APROXIMAÇÕES ..... 210

INTRODUÇÃO ............................................................................ 210

Métodos utilizados ...................................................................... 212

O desenrolar do campo ............................................................... 213

O TEMPO NA CIDADE .................................................................. 216

A cidade de Tapauá .................................................................... 216

“Índios urbanos” ........................................................................ 218

Conversa com um Paumari .......................................................... 219

Entrevista com um ex-seringueiro que quase virou Pajé .................. 220

A “ferida braba”: notas em relação à Leishmaniose ........................ 221

Notas sobre a farinha de mandioca em Tapauá .............................. 223

Notas sobre o esquema da castanha em Tapauá ............................ 225

O TEMPO NAS ALDEIAS .............................................................. 231

A Relação com os Paumari .......................................................... 231

Atividades produtivas ................................................................. 233

Pesca ........................................................................................ 233

Caça ......................................................................................... 238

Roças ....................................................................................... 239

Coleta ....................................................................................... 241

A Castanha ................................................................................ 242

“Comercialização das relações” .................................................... 242

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As relações comerciais ................................................................ 243

Ações e relações sociais .............................................................. 245

O transporte .............................................................................. 246

As distâncias ............................................................................. 246

As expedições de coleta .............................................................. 247

Regime de trabalho .................................................................... 249

Uso e territorialidade dos castanhais ............................................. 249

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................ 252

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1. Barco Vovô Osvaldo II no rio Solimões. Foto: Alexandre Isidio. . 21

Figura 2 – Encontro rio Ipixuna/rio Purus. Foto: Alexandre Isidio. ........... 27

Figura 3 – Cidade de Canutama. Foto: Alexandre Isidio. ........................ 34

Figura 4 – Decote de las manivas. Foto: Alba Garcia. .......................... 100

Figura 5 – Tubérculos en remojo. Foto: Alba Garcia. ........................... 100

Figura 6 – Prensa de la masa de la mandioca. Foto: Alba Garcia. ......... 101

Figura 7 – Família penerando farinha. Foto: Alba Garcia. ..................... 102

Figura 8 – Varones torrando la farinha. Foto: Alba Garcia. ................... 102

Figura 9 – Una casa de farinha. Foto: Alba Garcia. ............................. 114

Figura 10 - Croqui de uma área de produção de farinha. Autora: Thayná

Ferraz da Cunha. ............................................................................. 123

Figura 12 - Casa de Farinha e depósito na beira do rio Purus. Foto: Thayná

Ferraz da Cunha .............................................................................. 130

Figura 13 - Beira do Lago do Seringueiro. Foto: Thayná Ferraz da Cunha.

..................................................................................................... 134

Figura 14 – Retirada das partes aéreas e decotagem das manivas. Foto:

Thayná Ferraz da Cunha. .................................................................. 141

Figura 15 - Demolhagem nas áreas baixas. Foto: Thayná Ferraz da Cunha.

..................................................................................................... 142

Figura 16 - Retirando as mandiocas d’água. Foto: Thayná Ferraz da Cunha

..................................................................................................... 144

Figura 17 - Massa puba na gareira. Foto: Thayná Ferraz da Cunha ....... 145

Figura 18 – Prensagem. Foto: Thayná Ferraz da Cunha. ...................... 146

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Figura 19 – Peneiragem. Foto: Thayná Ferraz da Cunha. ..................... 147

Figura 20 – Macaxeira sendo lavada na área baixa; macaxeiras assadas no

forno. Foto: Thayná Ferraz da Cunha. ................................................ 153

Figura 21 – Estacas de mandioca. Foto: Thayná Ferraz da Cunha. ........ 163

Figura 22 - Cobrança de Pênaltis, aldeia “Casa Nova” dos Jarawara. Foto:

Ingrid Daiane. ................................................................................. 170

Figura 23 - Campo de Futebol visto da casa onde estava (I e II Jamamadi

sentados na “varanda)”, III (campo onde jogavam futebol). Foto: Ingrid

Daiane. .......................................................................................... 171

Figura 24 - Aniversariantes na festa Jarawara. Foto: Ingrid Daiane. ..... 173

Figura 25 – A banda arrumando os instrumentos. Foto: Ingrid Daiane. . 174

Figura 26 - Varadouro próximo à comunidade Carapanazal. Foto: Ingrid

Daiane. .......................................................................................... 175

Figura 27 - Chico Inácio em um de seus roçados, Comunidade

Carapanazal. Foto: Ingrid Daiane. ...................................................... 176

Figura 28 - Vane chegando à comunidade Carapanzal. Foto: Ingrid Daiane.

..................................................................................................... 179

Figura 29 - Casa de Farinha do Carapanazal. Foto: Ingrid Daiane. ........ 186

Figura 30 - Prensa, localizada na Casa de Farinha do Carapanazal. Foto:

Ingrid Daiane. ................................................................................. 187

Figura 31 - Mapa de Localização das Terras Indígenas Paumari. Fonte:

Instituto Socioambiental - ISA ........................................................... 193

Figura 32 – Genealogia de algumas famílias Paumari. ......................... 205

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Livro de Actas.Arquivo Municipal de Canutama. Livro de

actas das sessões da Intendência Municipal de Canutama. Segunda

Reunião Ordinária da Legislatura – Presidente Monteiro Pantoja, 31 de

outubro de 1927.* ............................................................................. 39

Tabela 2 - Notas dos baptisados e casamentos effectuados na freguesia de

Lábrea, Estado do Amazonas nos anos de 1878 a 1908. ......................... 51

Tabela 3 – Calendário agrícola. Autora: Thayná Ferraz da Cunha. ......... 124

Tabela 4 - Mandiocas levantadas no São Francisco. ............................ 167

Tabela 5 – Divisão de atividades agrícolas por gênero. ........................ 168

Tabela 6 - Distribuição das casas Jamamadi - aldeia Carapanazal. ........ 180

Tabela 7 - Levantamento demográfico das aldeias. Fonte: Vieira, 2012. 198

Tabela 8 - Distribuição espacial e habitação dos Paumari. Fonte: Vieira,

2012. ............................................................................................. 201

Tabela 9 - Motivações que levam os Paumari a quebrar castanha. Fonte:

Caderno de campo, 2012. ................................................................. 245

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A partida para o Alto Purus é ainda o meu maior, o meu

mais belo e arrojado ideal. Estou pronto à primeira voz.

Partirei sem temores; e nada absolutamente (a não ser

um desastre de ordem física, que me invalide), nada

absolutamente me demoverá de um tal propósito.

Euclides da Cunha

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APRESENTAÇÃO

A Expedição Purus teve sua motivação a partir dos preparativos para o

trabalho de campo das pesquisas de mestrado em Antropologia Social

(PPGAS/UFAM) de Ingrid Pedrosa e Angélica Vieira entre os Jamamadi e

Paumari, respectivamente. No contexto dessas pesquisas acadêmicas

estavam em início dois projetos coletivos com participação de

pesquisadores do NEAI: “Sistemas Produtivos no Médio Purus”, integrante

da rede de pesquisa intitulada (Política e redes) x (Heterogêneas e

comparadas), coordenado pelo Professor Gilton Mendes dos Santos e

desenvolvido no âmbito do Instituto Brasil Plural (IBP), com financiamento

da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) e

CNPq; e o projeto “Natureza, Cultura, Saúde e Doença no Médio Purus -

Condições de Vida e Saúde de Populações Indígenas na Amazônia,

vinculada ao PRONEX e também financiado pela FAPEAM, com a

coordenação de Luiza Garnelo, pesquisadora da Fiocruz. Soma-se a isso,

ainda, um pequeno projeto de extensão (Purus Indígena II – Saberes e

territorialidades), com apoio da Pró-Reitoria de Extensão e Interiorização da

UFAM, que financiou algumas passagens fluviais e diárias.

A somatória de todos estes interesses de estudos e pesquisas sobre os

povos indígenas do Purus, levados adiante pelo NEAI, estimulou a formação

de uma viagem mais abrangente (expedição) de cunho exploratório, de

modo a envolver outros jovens pesquisadores, abordando diferentes temas

de interesses do núcleo, sendo todos tributários dos referidos projetos

coletivos. A expedição envolveu objetivos que se cruzaram e se

complementaram - indo dos sistemas produtivos, como a coleta de

castanha e os roçados de mandioca, passando pelo estudo das

especificidades da vivência de algumas populações indígenas do rio, até um

levantamento sobre a documentação histórica com vistas ao entendimento

do avanço das frentes extrativistas na região.

A palavra expedição, já muito utilizada em outros momentos, nessa

nova empreitada tomou uma fundamentação distante do significado

associado aos “pioneiros” do século XIX ou mesmo dos arrazoados de

homens de “ciência” do início do século XX, que traduziram o território

como uma terra sem história, inculta, sonhando com sua incorporação à

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“civilização”. Bem diferente de outros tempos, não foi nosso objetivo

traduzir o rio através de uma leitura preestabelecida, e sim tentar entender

e aprender com quem vive e viveu a realidade do Purus.

Os preparativos para a expedição começaram bem antes da viagem,

compreendendo reuniões periódicas no NEAI para troca de informações

sobre a região, como: seus povos, as cidades, o regime das águas, as

atividades desenvolvidas nesse período do ano, etc; divisão das tarefas

práticas (tomar vacinas contra a Hepatite, a compra de material básico e

alimentos, etc) e sessões de estudos e leituras dos trabalhos produzidos

sobre os temas de interesse do grupo e os povos do Purus. Nesses

encontros preparativos no NEAI também se definiu a organização da equipe

para o trabalho de campo propriamente dito. A equipe se dividiu em duplas

que de acordo com a familiaridade e interesse nos temas de pesquisa

tomaria diferentes destinos a partir de Tapauá.

A expedição durou cerca de 45 dias - entre 7 de janeiro a 18 de

fevereiro de 2012 - partindo de Manaus com destino a Lábrea, passando e

parando nas cidades de Tapauá e Canutama. Ao todo foram envolvidos sete

pesquisadores de áreas diversas, que foram distribuídos de acordo com as

temáticas investigadas. Angélica Maia e Ingrid Daiane, mestrandas do

Programa de Pós-graduação em Antropologia Social – PPGAS/UFAM foram

incumbidas de pesquisar a dinâmica de vida dos povos indígenas,

especialmente dos Paumari e Jamamadi, que contemplavam não só os

objetivos da expedição, mas também suas respectivas pesquisas de

mestrado; Alba Garcia, Antropóloga pela Universidad Complutense de

Madrid e Thayná Ferraz da Cunha, aluna da graduação em Biologia pela

UFRJ, ficaram responsáveis pela observação dos sistemas produtivos dos

roçados de mandioca e de produção de farinha no perímetro urbano de

Canutama; Mario Rique, ecólogo e mestre em Desenvolvimento

Sustentável pela Universidade de Brasília (CDS/UnB), ficou encarregado

pelo acompanhamento das atividades de coleta da castanha do Brasil entre

os índios Paumari; Admilton Freitas, licenciado em História pela

Universidade Federal do Amazonas e graduando em Ciências Sociais pela

mesma universidade e Alexandre Cardoso, mestre em História Social pela

Universidade Federal do Ceará, tiveram a tarefa de compulsar o material

histórico sobre o Purus, buscando documentos, arquivos e testemunhos

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orais, de modo a dar vazão a possibilidade do estudo da historicidade das

relações humanas e suas dinâmicas na região. (FALTA THAYNA)

Diante do exposto, é possível observar um panorama de interesses de

pesquisa e de áreas de estudo diversas, que embora distintas, atuaram de

maneira convergente, de modo a somar e agregar ao debate sobre o rio

Purus, cruzando informações e formas de ver o mundo.

O relatório a seguir é uma espécie de súmula, contendo informações,

descrições, impressões e análises pessoais sobre a experiência e o tema

que cada um se ocupou ao longo da viagem.

O relatório é composto por sete textos, organizados em três blocos. O

primeiro versa sobre a história e a memória oral do Purus (Alexandre e

Admilton). O segundo trata dos sistemas produtivos com destaque aos

sistemas de cultivo de mandioca em Canutama (Alba, Thayná) e em Lábrea

entre os índios Jamamadi (Ingrid). O terceiro bloco traz os relatos

etnográficos de Angélica e Mario entre os índios Paumari do rio Tapauá,

destacando-se as atividades produtivas praticadas pelo grupo.

É preciso salientar que tal divisão foi pensada com uma intenção

organizativa, e não como uma arbitrária separação ou recorte das vivências

da expedição. Estas devem ser vistas em conjunto, pois todos os

pesquisadores interagiram e contribuíram uns com os outros. Cada relato

traz sua interpretação, e cada autor discorre sobre suas experiências de

campo.

~

Francisco, Maraza, Raimunda, Barrai, Brígida, Silvino, Feliciano, Iva,

Diva, Geraldo, Damazia, Lauro, José, Francisco, Eládio, Titicurari, Feitosa,

Chicó, Angélica, Juracy, Edilson, Luzia, Maria, Sebastião, Macacari, Dave,

Pedro, João, Robson, Marcos, Nival, Moacir, Miguel, Ana, Regina, Maquiry,

Normando, Bida, Vânia, Roberto, Zé, Jorge, Catarruri, Cícero, Marcelino,

entre tantos outros, merecem destaque por serem os verdadeiros

expedicionários do rio Purus.

Todos foram interlocutores dos relatórios que seguem, fazendo parte

das experiências de campo dos pesquisados. Seus relatos guardam os

ritmos da natureza, das relações sociais, da cultura e da história

multifacetada que permeia as meandrosas voltas do rio. Indígenas e não

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indígenas, que podem ser enxergados como parte do estrato das trajetórias

de vida historicamente constituídas em território amazônico. Eles e elas

carregam experiências significativas, não sendo simplesmente “fontes” ou

“objetos” de estudo, mas legítimos detentores do saber local e construtores

de seus cotidianos e da vida no Purus.

Desse modo, entendemos que os significados dos meandros de um rio,

a exemplo da vida das pessoas, ultrapassam simples deduções sobre seu

curso. Além de transportarem sedimentos, de abrigarem várias espécies de

animais e vegetais, sua corrente também carrega a fluidez de

acontecimentos humanos, que muitas vezes compartilham e constroem no

espaço aquático referencias de vida e leituras de mundo. O território

amazônico, atravessado por muitos rios, teve e continua tendo seu

cotidiano e sua história erigidos através das vários povos que singram suas

águas barrentas, pretas, esverdeadas... As cores dos rios são plurais, assim

como a diversidade cultural de sua gente que atribuem sentidos à natureza,

influenciando e sendo influenciados pela torrente que entrecorta a floresta.

Portanto, é preciso muito critério para pensar a vida desses sujeitos, de

modo a entender seus movimentos e trajetórias, acompanhar suas batalhas

pela sobrevivência, compreender suas experiências.

Esta foi à intenção do grupo de pesquisadores que vivenciou a

Expedição Purus, que ao invés de simplesmente enquadrar e classificar o rio

e seus habitantes buscou ouvir e aprender. Para tanto, foi necessário

bastante planejamento e clareza em nossos objetivos, levando a “viagem” a

ter início muito antes da travessia em si.

Para além das narrativas e relatórios aqui apresentados, a Expedição

Purus rendeu outros frutos. Dentre eles, vale destacar o envolvimento dos

pesquisadores e seus interlocutores na região. Por um lado, os moradores e

atores locais sentiram-se personagens ativos, narrando suas histórias e

contando suas experiências na região com muita confiança e familiaridade

com a equipe do NEAI; por outro lado, a maioria dos membros da equipe

desdobrou essa experiência em futuros projetos de pesquisa, trazendo à

tona impressionantes histórias e achados antropológicos, apontando para

futuras pesquisas etnográficas na região: Alexandre ingressou no doutorado

em História na USP com um projeto sobre a influência de Manoel Urbano da

Encarnação na Bacia do Purus; Mario Rique foi aprovado no doutorado do

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PPGAS/UFAM com um projeto sobre o conhecimento e uso da castanheira

no contexto do povos do Médio Purus; Thayná e Admilton estão elaborando

suas monografias de final de curso de graduação com temas derivados

desse levantamento exploratório; Ingrid e Angélica, a partir da expedição,

negociaram e aprofundaram suas pesquisas de campo de mestrado junto

aos Jamamadi e Paumari.

Por fim, vale lembrar que muito do material recolhido durante a

Expedição carece de sistematização e análise, a exemplo da documentação

compulsada e do acervo audio-visual. Importante dizer ainda que boa parte

dos dados etnográficos encontra-se presente nos textos monográficos em

elaboração, programados para virem à luz em breve.

Gilton Mendes

Angélica Vieira

Antonio Alexandre Cardoso

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HISTÓRIA E MEMÓRIA NO PURUS

Antonio Alexandre Isidio Cardoso

INTRODUÇÃO

A Expedição Purus foi concebida a partir de um viés interdisciplinar e

pensada coletivamente, composta pelas experiências de pesquisa de várias

pessoas, de áreas diversas, como a História, campo de atuação do qual me

ocupei durante os 45 dias de trabalho. A palavra expedição, já muito

utilizada em outros momentos, nessa nova empreitada tomou uma

fundamentação distante do significado associado aos “pioneiros” do século

XIX ou mesmo dos arrazoados de homens de “ciência” do início do século

XX (Euclides da Cunha, por exemplo), que traduziram o território como uma

terra sem história, inculta, sonhando com sua incorporação à “civilização”.

Bem diferente de outros tempos, não foi nosso objetivo enquadrar,

adequar, classificar, traduzir o rio através de uma leitura preestabelecida, e

sim ouvir, tentar entender e aprender com quem vive e viveu o Purus. O

cerne da questão que moveu a atividade de pesquisa foi o estudo dos

arquivos do médio Purus, nas cidades de Tapauá, Canutama e Lábrea,

juntamente com as possibilidades de entrevistas, mobilizadas através da

história oral, que também foram importantes componentes no processo.

Partindo com tais objetivos o trabalho foi tomando forma,contudo, a

pesquisa em si, no sentido da vivência e fruição da viagem, começou muito

antes da chegada as cidades ou com as entrevistas de seus habitantes. Já

no barco, nas expectativas de cada dia, no contato com a errância dos

sujeitos, que há tantos séculos constroem sua história no território

amazônico, foi possível começar a sentir o trabalho de campo, sensação que

ajudaria a esquentar o trato com as fontes, geralmente pensadas de

maneira fria e distanciadas. Houve vários momentos nos quais ao ver as

faces do Purus tornou-se possível enxergar alguns lampejos da história do

rio. As idas e vindas diante da grande floresta, os encontros e desencontros

entre povos, as conversas sobre castanha, sorva, pau rosa, seringais,

empreendidas no barco (e que se repetiriam em várias outras ocasiões),

ditaram o tom dos diálogos sobre os chamados “outros tempos”. Tendo em

vista tais especificidades, o conteúdo dessas temporalidades não foi

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pensado através de um viés estático, rígido, alheio ao presente, como se o

passado fosse refém de si mesmo, masao contrário, a cada passo tornava-

se perceptível a historicidade dos testemunhos, como fragmentos do

passado que não respeitam barreiras, que cruzam as fronteiras do tempo, e

que ajudam a atribuir sentidos a vivência das pessoas no presente.

Foi assim, a cada ponto de parada e de partida, regado de conversas e

muitas expectativas. Essa dinâmica acompanhou a chegada às cidades,

espécies de entrepostos diante das atividades empreendidas pelos rios e

florestas. A primeira foi Tapauá, após mais de três dias de viagem, cidade

que em sua história administrativa já pertencera ao território de Canutama

e também de Lábrea, mas que desde os anos 50 adquiriu autonomia

política. Esse indicativo foi feito por alguns dos habitantes da cidade, e que

ajudaram a pensar os passos da pesquisa, posto que, tendo tal referencia,

certamente haveria pouca documentação na cidade, devido a seu caráter de

subordinação administrativa no passado. Foram visitados o Cartório e a

Igreja, onde foram encontradas algumas referências. Contudo, foi no campo

das entrevistas que a cidade mais se destacou no âmbito da investigação.

Foram ouvidas várias pessoas, que tocaram em questões muito

interessantes, como o processo migratório até a cidade, as problemáticas

do contato indígena-não indígena, circuitos produtivos, tensões agrárias,

dentre outros temas.

Cenário semelhante foi encontrado em Canutama, embora tenha

havido uma incursão muito fecunda no âmbito do levantamento

documental, já que foi aberta a possibilidade de pesquisar no Arquivo

Público Municipal da cidade. Em tal local existe um grande acervo de fontes,

onde consta uma periodicidade que abarca desde o final do século XIX até o

tempo presente. Foi feita uma triagem do material, devido a sua grande

quantidade, que guarda uma larga tipologia, que basicamente corresponde

à documentação de caráter oficial. Na cidade também foram compulsadas

fontes no Cartório, que diferente do Arquivo Municipal, tinha um acervo

bem restrito. O funcionário do Cartório relatou que grande parte das fontes

antigas existentes no espaço foramdestruídas numa enchente ocorrida no

ano de 1997, restando somente uma pequena parte do material.

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Já no que diz respeito às entrevistas o cenário foi mais promissor,

foram encontrados um ex-soldado da borracha, o Sr. João Silvino dos

Santos, além de Ana Banawá, liderança indígena na cidade e o Snr. Juraci

Nogueira, antigo habitante que chegara do Rio de Janeiro acompanhado de

seu pai à época da chamada Batalha da Borracha nos anos 1940. Além de

outros, que foram consultados, mas que optaram por não registrar seus

relatos. Mas que guardam, assim como os outros, a atualidade de suas

memórias, seleções do passado, caras ao entendimento da história do

Purus.

Assim a viagem continuou, e o próximo destino foi Lábrea, a maior

cidade em população da bacia do rio. Lá foi encontrado o maior contingente

de documentação, presentes na Casa do Bispo (da ordem dos Agostinianos

Recoletos) e no Cartório Judicial, onde existe uma grande quantidade de

fontes, em condições bastante precárias. Basicamente foram compulsadas

Escrituras de terras, Inventários, livros de batizamento (sic) e livros de

tombo, que guardam ricas referências sobre a história da região. Sujeitos

como o padre Francisco Leite, um dos primeiros religiosos a fazer incursões

pelo Purus na segunda metade do século XIX, Manoel Urbano da

Encarnação, homem ligado aos interesses do Estado que guiou muitas

expedições ao rio, Antonio Rodrigues Pereira Labre, considerado fundador

da cidade de Lábrea, dentre outros nomes, apareceram na documentação.

Essas pessoas, no entanto, não devem aparecer solitárias, devem ser

observadas como chaves de análise, como espécies de janelas que

proporcionam vislumbrar experiências de outros tantos sujeitos, atentando

a noções do contexto histórico. Até porque, almeja-se escrever algo sobre a

região do médio Purus e seus habitantes guardando proximidade com a

vivência e a história de seus povos, em sua pluralidade, e não somente

reservando lugar especial a nomes que já aparecem contemplados na

historiografia, muitas vezes até como tributários de uma versão da história

que exclui a maior parte das pessoas.

Mais uma vez, semelhante às experiências de Tapauá e Canutama, fica

explícita a importância dos testemunhos orais, que ajudam a desanuviar

esse cenário muitas vezes tolhido pelo discurso e interesses eminentemente

elitistas. Ciente da importância desses testemunhos, no decorrer do

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percurso da Expedição foi sendo trabalhado o indicativo de cruzamento das

fontes levantadas, tendo o indicativo que documentação “primária” e

entrevistas devem encontrar-se, dialogar entre si, mas não de maneira

arbitrária. Cada uma dessas fontes guarda índices analíticos, rastros do

passado que o tempo ainda não teve a capacidade de apagar, e que podem

ser potencializados se cruzados com outros indícios, atribuindo uma

complexidade maior ao entendimento da História.

Escrever sobre o passado através de fontes oficiais, portanto, não

necessariamente quer dizer fazer um trabalho sobre o Estado, assim como

escrever através de relatos pessoaise de entrevistas, não prescinde uma

escrita de caráter biográfico. Os sujeitos e suas vivências podem aparecer

mesmo na documentação administrativa mais sisuda, assim como as

“estruturas” econômicas e políticas, estão presentes nas falas cotidianas das

pessoas comuns. Logo, a história não pode ser vista através de uma

indumentária monocausal, atada a um assentado tipo de fonte, e sim em

sua pluralidade, fugindo de determinismos e estreitamentos analíticos, daí o

saudável exercício de cruzamento de fontes. Esse encontro nem sempre é

harmônico e plausível, assim como não o são os encontros entre pessoas e

sua produção material e discursiva. As maneiras de dizer e fazer o mundo

entram em choque em todo momento, assim como as formas de ver, sentir

e escrever história. A historiografia configura-se como um campo de

disputas e de poder.

Diante disso é necessário posicionar-se. O viés analítico concebido na

Expedição afina-se com uma “história vista de baixo”, que busca farejar o

cotidiano, o rotineiro, o vulgar, a luta pela sobrevivência, e a construção da

história das pessoas que não tem suas vidas registradas nos Anaes dos

grandes nomes. Tudo isso afinado a uma perspectiva da História Social que

nutre por tal demanda um especial apreço. Com isso, por fim, é importante

salientar, que não se tem o objetivo de obliterar qualquer referência sobre

outros sujeitos sociais, ou sobre questões gerais do âmbito político ou

econômico, e sim entender suas interconexões e posicionamentos, sem

delegar as rédeas da história a um lado em detrimento do outro.

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O Barco

Seria de grande presunção tentar auscultar e entender todos os

olhares que já foram voltados ao Purus a partir de embarcações. Muitos

foram os que navegaram e viveram a experiência de conhecer os tortuosos

meandros do rio, mas poucos ficaram registrados, a maioria composto pela

roupagem do mundo letrado, principalmente no século XIX. São falas1

preocupadas com rotas comerciais, questões políticas e territoriais, conflitos

com povos indígenas, produtos da floresta, dentre outros temas,

produzidas, em seu maior contingente, por órgãos oficiais e também por

casas comerciais. Para além desses registros, também ficaram para a

posteridade as impressões de estrangeiros, viajantes2 que buscavam

corresponder às expectativas do velho mundo, onde havia pessoas que

ansiavam pelos relatos de exotismos regados por potenciais riquezas. Esse

cenário longe de impedir a análise de outros sujeitos (que mesmo

silenciados teimam em aparecer) traduz-se num desafio do ponto de vista

metodológico para o pesquisador da História. Afinal, como enxergar entre

1 Relatórios de Presidentes de Província (Império), Relatórios de Presidentes de Estado

(República), documentos comerciais (Casa de Visconde de Santo Elias, Casa de J.G. Araújo,

dentre outros).

2 Cristóbal de Acunhã, William Chandless, entre outros.

Figura 1. Barco Vovô Osvaldo II no rio Solimões. Foto: Alexandre Isidio.

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as malhas das fontes, entre as tramas do tempo embutidas na produção

documental ecos de vozes que emudeceram?

As experiências do passado não se perdem em sua totalidade com a

fruição e a passagem do tempo, encarnando-se na fala dos vivos, como um

substrato que atribui sentido e dialoga com o presente. Um importante

vetor desse processo é a memória, que articula lembranças,

acontecimentos, visões e sensações. Foi através de conversas com pessoas

no barco, entrando em contato com suas reminiscências, que a concretude

dessa reflexão veio à tona. Foram ouvidas histórias de décadas de trabalho

em seringais, de aventuras na mata, de encontro com onças, de viagens

pelos rios, de companheiros de trabalho, de festejos, de lugares visitados,

tudo isso acompanhado do olhar sobre o Purus, debruçado no parapeito do

barco, onde entre um assunto e outro, abria-se um parênteses para o

reconhecimento de uma praia, de um estirão, de uma boca de igarapé.

Um desses interlocutores foi o Sr. Francisco, que estava também no

barco Vovô Osvaldo II, quando a Expedição Purus destinava-se a Tapauá.

Meu contato com ele começou numa madrugada de lua cheia, quando a

embarcação começou a fazer movimentos incomuns, singrando o rio como

se estivesse desviando de alguma coisa, com movimentos um pouco

bruscos. Nesse momento algumas pessoas levantaram, e as redes

interligadas, encostadas umas nas outras, começaram a balançar, num

movimento que atingia praticamente todos que estavam deitados, e me fez

despertar do sono. Foi nessa ocasião que avistei o Sr. Francisco debruçado

sobre o parapeito do barco, fumando um cigarro de palha, e olhando

fixamente para o rio, que estava com suas águas espelhando a luz da lua,

que reinava plena no céu. Sua figura naquela circunstância, diante da

penumbra que se movimentava, tinha uma aura de fantasmagoria, como

algo que bruxuleava como a chama de uma vela, ou como o reflexo da luz

da lua nas águas do Purus. Aquilo definitivamente chamou minha atenção, e

resolvi levantar e me dirigir até ele para puxar assunto.

Começando pelos tratamentos triviais, depois de um silencioso “boa

noite”, respondido por uma grave réplica de conteúdo homônimo, perguntei

como ele se chamava, e depois de sanada a dúvida, questionei sobre a

trajetória incongruente do barco. Ele prontamente me respondeu,

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argumentando que já fazia algumas horas que nossa embarcação navegava

“emparelhada” com outra, e esta por ser de menor porte, ficava alternando

as margens do rio. Essas manobras eram feitas para evitar a correnteza,

que é menor nas margens. Enquanto conversávamos por várias vezes a tal

embarcação cruzou muita próxima a nossa, e ao longe se podia ouvir um

som vindo de cima, da cabine do Comandante do Barco, o Sr. Manoel, que

esbravejava: “Esse leso deve tá é bebo!”. 3

Durante o diálogo descobri que o Sr. Francisco destinava-se à Lábrea,

onde residia, e que naquela ocasião estava retornando de Manaus, onde

fora fazer um tratamento de saúde, situação compartilhada por muitos dos

tripulantes do Vovô Osvaldo II. Entrando mais na conversa, perguntei se ele

já havia viajado muitas vezes pelo Purus, o que já tinha visto em suas

andanças, em quê trabalhara, coisas do tipo. Foi então que ele começou a

nomear algumas praias, a me explicar que em cada “volta” do rio existe um

barranco e uma praia, sempre um oposto ao outro nas margens, falando

ainda que o rio, em sua opinião, ainda iria encher muito e que as águas

iriam crescer. Certamente tal vocabulário e conhecimento não adviriam de

quem olha o Purus não apenas como passante, mas de quem somente

transpõe todos aqueles lugares. Ficava claro que o Sr. Francisco era um

interlocutor que vivenciara aquele conhecimento.

Sua vida enquanto trabalhador fora atravessada pelo corte da seringa,

pela retirada da sorva, e posteriormente do pau rosa, ofícios que foram

descritos sem uma organização temporal precisa. Um ponto interessante da

nossa conversa foi quando ele ficou sabendo que eu era cearense, momento

em que ele começou a narrar várias histórias de antigos companheiros de

trabalho naturais do Ceará. Segundo sua fala, no passado havia uma

grande quantidade de cearenses no Purus, mas que hoje estes estão já

misturados, tornados amazonenses. Mas antes dessa espécie de

“adaptação”, ele discorreu sobre um processo nasquais estavam inseridos

não só cearenses, mas todos os adventícios que chegavam a terras

3 Ouvindo essas palavras também, Admilton, um dos companheiros de expedição, que já

dormia com o colete salva-vida na rede, revirava-se, abraçando-o, como sua tábua de

salvação.

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amazônicas, e que se destinavam a labuta na floresta. Ele nomeou-os de

“brabos”, que não sabiam manobrar a canoa, que desconheciam o manejo

do corte das seringueiras, que não entendiam os modos de pescar ou caçar

da terra, que não conheciam os animais, nem as plantas, nem as doenças,

que estranhavam o clima, o calor, as chuvas, e até o regime de trabalho.

Estes sujeitos passavam por uma espécie de escola, da qual o Sr. Francisco

fora muitas vezes professor. Após alguns meses de “aulas”, quando os

recém-egressos eram tutorados pelos já afeiçoados aos ritmos do trabalho

da floresta, aos poucos, os “brabos” tornavam-se “mansos”, ou seja,

começavam a andar “com as próprias pernas” definitivamente, entendendo

pelo menos algumas feições superficiais da vida nas paragens amazônicas.

A fala do Sr. Francisco sobre as categorias, “brabo” e “manso” guarda

uma estreita relação com o processo histórico relacionado aos contingentes

de migrantes que chegaram ao Purus, especialmente a partir da segunda

metade do século XIX, em sua maioria, vindos de outras províncias no

Norte4, como o Ceará, de onde vinham sujeitos alheios ao modo de vida na

floresta, ambientados a outro tipo de trabalho, de lida com o mundo.

Portanto, o relato do velho tripulante do Vovô Osvaldo II imprime sentidos

ao passado, articulados através da memória. É interessante perceber a

sutileza dessas composições, cuja base está em arranjos, em seleções de

experiências passadas, que se materializam no presente através das

lembranças, que podem ser analisadas, ajudando a entender as tintas do

vivido. O processo de “amansamento” descrito pelo Sr. Francisco pode ser

encontrado em vários trabalhos, que dão vazão a argumentos semelhantes,

como no texto de Eurípedes Funes, que utilizou algumas entrevistas

coletadas nos anos 1940 por Samuel Benchimol. 5 Entre os interlocutores

havia um cearense que definiu seus sentimentos, suas sensações, numa

4 A ideia de Nordeste, assim como sua atribuição de sentidos ao território, somente se

articula a partir da República Velha. Antes disso, a nomenclatura e seus significados não

tinham ligação com a noção de região que existe no presente. O território do Brasil era

dividido, grosso modo, apenas em Norte e Sul. Ver. JUNIOR, Durval Muniz de Albuquerque.

A invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN, Ed. Massaranga, 2001.

5 BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: um pouco antes e além depois. Manaus: Ed. Umberto

Calderaro, 1977.

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frase bastante significativa, que serviu de mote para o trabalho de autor.

“Quem vive no inferno se acostuma com os cães”. 6

Funes discute as noções de Eldorado e Inferno Verde historicamente

através de experiências migratórias, que, segundo sua argumentação,

também ajudaram a atribuir sentido a composição do que conhecemos

como Amazônia. Tais referências comungam de conotações antípodas, que

ora estabelece relação com uma ideia benfazeja, paradisíaca e enredada em

riquezas, e ora mostra uma face maléfica, penosa, de uma vida de

dificuldades. Tudo leva a crer que as experiências de deslocamento, do

olhar a partir do barco, dos mundos do trabalho, dos estranhamentos e

adaptações, foram ajudando a compor essas representações. “Ao levar em

consideração este postulado, é necessário frisar que as lutas de

representação são tão importantes quanto às lutas econômicas e políticas,

envolvendo dinâmicas de confronto muitas vezes negligenciadas nos

processos históricos”. 7

Todas essas facetas de atribuição de sentidos ao longo do tempo foram

iniciadas com o deslocamento em embarcações, seja nas sumacas, que

faziam navegação de cabotagem no período colonial, ou nos vapores que

passaram a singrar águas amazônicas no século XIX, ou ainda nos navios

com casco de ferro, que nos anos 1940 transportaram os chamados

Soldados da Borracha. Essas embarcações não carregavam apenas pessoas

e mercadorias, mas também notícias, ideias, visões de mundo, impressões

e experiências que eram transmitidas a muitos outros sujeitos através do

seu incessante movimento, de porto em porto. Pode-se dizer que essas

travessias ajudaram a compor uma larga base conceitual que empresta

sentidos ao que hoje entendemos como Amazônia.

6 FUNES, Eurípedes. El Dorado no Inferno Verde – Quem vive no inferno se acostuma com os

cães. In: GONÇALVES, Adelaide; EYMAR, Pedro (orgs). Mais borracha para a Vitória.

Fortaleza: MAUC;NUDOC; Brasília: Ideal Gráfico, 2008.

7 CARDOSO, Antônio Alexandre Isidio. Nem sina, Nem acaso: a tessitura das migrações

entre a Província do Ceará e o território amazônico. (1847-1877). Fortaleza, dissertação de

mestrado em História Social – Universidade Federal do Ceará, 2011.p.165

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O olhar dos migrantes, em sua pluralidade, que se deslocavam rumo à

floresta por diversas razões8, ajudaram a definir os significados, a

emprestar cores ao mundo amazônico. É interessante lembrar que essa

articulação de sentidos, assim como os olhares que o conformaram ao longo

do tempo, não épassível de uma só definição, de modo atemporal e rígido.

Essa reflexão torna-se válida em sua argumentação quando se entende que

“os conceitos dos quais participamos não são conceitos, mas problemas, e

não problemas analíticos, mas movimentos históricos ainda não definidos.”

Falar em “brabo” e “manso”, “eldorado” e “inferno verde”, é discorrer

também sobre um movimento similar ao de um barco, pois esses conceitos

se movimentam nos meandros do tempo, mudam e permanecem a cada

parada, como passageiros que embarcam e desembarcam, ajudando a

compor elementos da memória das pessoas que vivem nas florestas e

cidades amazônicas.

O testemunho do Sr. Francisco pode ser inserido dentro desse grande

movimento. Seu olhar fixo voltado ao rio, suas falas e memórias, seu

conhecimento sobre cada praia, cada barranco, sobre cada volta do Purus,

carrega grandes fardos de historicidade. Ao detectar essa composição e

refletir sobre tais questões percebe-se que a travessia do barco não se faz

somente através das águas de um rio, também se vive uma viagem no

tempo.

Debruçado sobre o parapeito do barco, o velho falava palavras e

baforadas de fumaça. Nada se dissolvia no ar, misturava-se nele, etéreo e

concreto ao mesmo tempo. Seu testemunho carregava ecos de vozes que

emudeceram, revelando o rendez-vous incessante entre passado e

presente. Amostra das marcas que o tempo deixa em tudo.

8 Ver. CARDOSO, Ibid.

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Tapauá

Era por volta de 14 horas quando chegamos a Tapauá. Depois de três

dias de viagem, após muitas conversas e expectativas, descemos no nosso

primeiro destino em terra. A partir dessa ocasião a cidade começou a tomar

forma. Situada em terra firme, no alto de um extenso beiradão, Tapauá se

espraia em ruas asfaltadas, que serpenteiam ignorando qualquer precisão

cartesiana. De cima é possível contemplar as inúmeras habitações

flutuantes que emolduram a orla, principalmente na parte que corresponde

ao rio Ipixuna, que se encontra com o Purus bem em frente da cidade,

formando um encontro de águas pretas e brancas que seguem brevemente

lado a lado, até se misturarem, acontecimento peculiar em terras

amazônicas.

Os primeiros passos na cidade incidiram sobre um levantamento das

possibilidades de pesquisa, tanto no campo dos acervos documentais

quanto diante de possíveis entrevistas. Em conversas com as pessoas que

nos viam chegar à cidade, sempre entre uma pergunta trivial e outra (como

uma orientação na rua, etc) questionava-se sobre a história da cidade,

sobre possíveis locais de guarda de fontes, sobre moradores antigos, e

outros possíveis interlocutores. Muitos apontaram locais e pessoas que se

repetiam a cada fala, sendo este um indicativo para começar o caminho de

Figura 2 – Encontro rio Ipixuna/rio Purus. Foto: Alexandre Isidio.

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pesquisa em Tapauá. Um nome apontado pela maioria das pessoas foi

Daniel Albuquerque, pertencente a uma família com grande influência

política no município. Infelizmente, este não se encontrava em Tapauá,

restando-nos continuar o caminho, sem seu contato, devido à exiguidade do

tempo. Então, seguimos para os locais de pesquisa mais citados, o primeiro

foi o cartório da cidade, onde segundo sua Tabeliã (que recebeu nossa

proposta com certa surpresa), certamente havia pouco material histórico,

tendo em vista a história administrativa de o município estar vinculada em

sua produção documental à Canutama e Lábrea. Somente a partir da

segunda metade do século XX que Tapauá foi adquirindo autonomia política.

Mesmo assim, foi encontrado no cartório livros de registro de casamento de

uma localidade chamada Itatuba, correspondente aos anos da década de

1900. Certamente, trata-se de uma espécie de distrito, do que a época era

o território de Canutama.

Através da leitura de tal tipologia de fonte, é possível examinar alguns

índices analíticos, como a “naturalidade” dos pais e dos próprios noivos e a

faixa etária dos que casavam, sendo possível observar através da

ancestralidade e da idade, os locais de nascimento dos envolvido (pais e

filhos). Essas informações podem ser levantadas no sentido de examinar os

fluxos de pessoas pelo Purus e alguns de seus arranjos matrimoniais. Lendo

tais índices fica claro que a maioria das pessoas presentes na

documentação não é de Itatuba, aparecendo alguns como “naturais” do

estado do Amazonas, mas nascidos em outras localidades, sendo que a

maioria figura como “filho” do Ceará (aparecendo ainda alguns de outros

estados do que hoje chamamos de Nordeste).

Não há um indicativo direto sobre as presenças indígenas nessas

ocasiões, embora a fonte permita uma análise do significado do “natural” do

Amazonas, seria ingênuo afirmar de maneira direta que essa classificação

fosse necessariamente relacionada a algum povo indígena. Contudo,

cumpre notar que, sendo a maioria dos registrados “filhos” de outros

estados, percebe-se que a composição das uniões civis e as migrações de

pessoas para o Purus apresentavam uma estreita relação. Observando a

origem masculina percebe-se que a maioria advem de outros lugares para o

Purus, principalmente do Ceará, não sendo possível afirmar o mesmo para

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as mulheres, pois muitas afiguram como “naturais” do Amazonas. Isto

demonstra uma das facetas do fluxo migratório que se conformava desde

longa data, mas que engrossou suas fileiras nas três últimas décadas do

século XIX, onde a maioria dos que empreendiam a travessia eram homens.

O caráter eminentemente masculino dessas migrações permite denotar

que nos casamentos ocorridos em Itatuba muitas das mulheres certamente

já viviam na localidade, restando questionar sua origem. Algumas já eram

filhas de migrantes, como a própria fonte indica numa breve observação da

naturalidade de seus pais, mas algumas outras não, o que permite inferir a

possibilidade de sua origem ser indígena. Resta investigar, diante dessa

informação, as composições matrimoniais desses possíveis arranjos, que

certamente uniram muitos migrantes e indígenas. Esse raciocínio pode ser

estendido aos outros livros de registro de casamento levantados durante a

expedição que apresentam compleição bastante semelhante.

A materialidade desses arrazoados pode ser cruzada com os relatos

coletados através das entrevistas, que igualmente revelaram através do

índice analítico “união” ou “casamento” possibilidades para o entendimento

da história do Purus, principalmente no que tange as características dos

“contatos”. Do ponto de vista histórico, esse é um eixo bastante

significativo, pois ao analisarmos a composição social da população do rio,

percebe-se que existiu (e continua existindo) um forte processo de

associação entre pessoas de origens e culturas diversas, indígenas e não

indígenas, em sua heterogeneidade, que foi acelerado desde o vertiginoso

avanço das frentes pioneiras oitocentistas. Essa referência não pode ser

obliterada, posto que, faz parte da historicidade do povo que vive no rio,

devendo ser analisada respeitando sua complexidade.

Um testemunho bastante interessante e que corrobora com a

argumentação acima foi a do Sr. Feliciano Reis, filho de maranhenses, que

viveu a maior parte de sua vida nos rio Piranha, pertencente à bacia do rio

Tapauá.9 Hoje o Sr. Feliciano reside no município e trabalha no Hotel Aline,

onde os membros da expedição ficaram hospedados. Desde criança

acompanhava seu pai nos trabalhos na floresta, principalmente nos coleta

9 O rio Tapauá é afluente do Purus, sua foz localiza-se no curso acima da cidade de Tapauá.

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da sorva e a castanha, característica das feições da economia após o forte

declínio da borracha, após os anos 1940. Além disso, em seu relato existem

várias pistas da relação de “contato” entre indígenas e migrantes, sendo o

pai do Sr. Feliciano um interlocutor, responsável pela tentativa de

arregimentar indígenas Iafi (etnia que hoje é associada aos Banawá) para o

trabalho de coleta.

Diante dessa empreitada, havia trocas culturais muito significativas.

Primeiramente, os agentes “brancos” aproximavam-se oferecendo “rancho”,

contendo desde alimentos até ferramentas de trabalho diversas (terçados,

facas, etc). Ocasião muitas vezes atravessada por diversos conflitos, mas

que segundo Sr. Feliciano, também guardava espaço para anuência por

parte de alguns indígenas, que passaram paulatinamente a coletar os

produtos das matas em troca dos ranchos. Configurava-se, assim, uma

relação de trocas, entre mercadorias e produtos extrativos, cuja base tinha

no secular sistema de aviamento seu eixo principal. Esse processo de trocas

e arregimentação para o trabalho compreendia a presença de diversos

sujeitos, inclusive, com o passar do tempo, os próprios indígenas, que

também foram abrindo novas frentes para exploração, conseguindo fontes

de trabalhadores (também indígenas). Era uma tentativa de

“amansamento”, palavra que é utilizada pelo Sr. Feliciano para definir a

incorporação de novos valores e costumes através da vivencia no mundo do

trabalho, entendido como disciplinador, como meio de transformar os que

eram chamados de “brabos” em “mansos”, semelhante ao processo que

atingia os migrantes adventícios. Tudo leva a crer que a labuta em troca

das mercadorias, a relação patronal, o aprendizado da língua do outro

(tanto por parte dos “brancos” como pelo lado dos indígenas) os

intercâmbios culturais diversos, tudo isso transformava de maneira decisiva

os ritmos do cotidiano e do trabalho.

Entretanto, tal cenário não deve ser concebido como uma via de mão

única, pois não era só o “mundo do trabalho branco” do extrativismo que

influía na vida dos diversos povos que já habitavam a floresta. Estes

também tinham um papel ativo nessa interlocução cultural. Foi nesse

sentido que o Sr. Feliciano narrou algumas de suas experiências, que

podem exemplificar a atmosfera de vivido, configuradas em ricas memórias.

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Uma em especial chamou atenção pela tom grave, quando Sr. Feliciano

narrou à ocasião da perda de seu pai. Na hora da conversa, que ocorreu a

noite, um acontecimento em especial acrescentou ainda mais ingredientes à

entrevista, pois houve uma interrupção no fornecimento de energia elétrica.

Começamos a conversa a claras, e logo em seguida ficamos as escuras.

Nessa hora percebi que o Sr. Feliciano ficou mais desenvolto, articulado,

pois ele era muito tímido, falando sempre baixo e pouco, aguardando

nossas perguntas (na ocasião estavam presentes Angélica e Mario). A

escuridão trouxe para suas palavras um timbre diferente, ele falava sem

nos ver, sem divisar nossas presenças, somente as vozes, ou melhor, nessa

ocasião em especial a única voz emitida é a do entrevistado, que narrou o

episódio da morte de seu pai.

A memória narrada se passa numa trilha na mata, quando o Sr.

Feliciano, à época com seis anos de idade, acompanhava seu pai no

trabalho. Segundo seu testemunho numa certa altura da caminhada, de

surpresa, “na passagem de um pau”, camuflada entre as folhagens, estava

uma cobra “surucucu pico de jaca”, que surpreendida pela presença dos

passantes, mordeu a perna do pai do entrevistado. Os dois estavam muito

distantes da base das trilhas, e sem conseguir caminhar por muito tempo,

“arrastando-se”, o pai do Sr. Feliciano o pediu para que fosse a frente o

mais rápido possível para pedir ajuda. Foi nessa ocasião que, muito

assustado, o menino de seis anos se perdeu, passando seis dias vagando

sozinho na floresta. O maior medo do menino, além de recear a morte do

pai, foi expresso através dos bichos da mata, e não somente das possíveis

onças, grupos de queixadas, ou serpentes, mas dos muitos entes

encantados. O menino ouvia pios, rangidos, barulhos estranhos, dormia nas

árvores e passava os dias caminhando tentando encontrar sua trilha,

alimentando-se dos frutos da mata que conhecia e bebendo água. Temia

muito encontrar o mapinguari, descrito como um gigante em forma humana

que comia gente e que possuía uma pele praticamente impermeável a

ataques (salvo por um ponto fraco, que aparecia quando ele abria a boca -

que fica à altura do umbigo - para emitir seus gritos, podendo ser atingido

em cheio). Os traçados do desenho do “monstro” que povoava os medos do

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Sr. Feliciano fazem parte de falas do mundo indígena, que atribuíam sentido

a cada som estranho, a cada sombra movediça nos recantos da floresta.

Durante o tempo em que passou perdido, o entrevistado não sabia o

que se passava com o pai, que havia, com grandes dificuldades, conseguido

chegar até o local habitado mais próximo. Infelizmente, após pedir socorro

e chamar um grupo de pessoas para tentar localizar seu filho, o pai do Sr.

Feliciano veio a falecer. Foram empreendidos vários dias de busca, onde

estavam empregadas muitas pessoas, inclusive indígenas, que deixavam

“mensagens” nos caminhos, ou gritavam chamando pela criança, mas seus

sons eram confundidos com os emitidos pelo mapinguari, acarretando um

efeito inverso ao esperado. O menino ao invés de seguir os sons se

escondia receoso. E somente depois de muito tempo, combalido pelos

vários dias de alimentação escassa, ele passou responder aos chamados e

foi encontrado. Após esse fatídico acontecimento Sr. Feliciano passou a

viver com o irmão mais velho e com a mãe (sobre ela não foram feitas

referências de origem, se também era originária do Maranhão, ou não), que

assumiram os encargos da sobrevivência da família. A faina extrativa

continuou sendo a base do cotidiano da labuta, vivenciada não só pelos

parentes, mas também por outros “brancos” e também por indígenas, que

compartilhavam referenciais de sobrevivência e leituras de mundo.

Sr. Feliciano, além de narrar o episódio da morte de seu pai, também

falou sobre sua amizade com os indígenas (principalmente os que hoje se

afirmam como Banawá). Ele explicou detalhes da divisão de suas tarefas

com os “caboclos” (designação utilizada em seu relato quando fazia

referência aos indígenas) e testemunhou ocasiões de encontro na mata com

outros povos, com etnias “brabas”, quando estas tentavam fazer contatos

diversos, buscando comunicar-se, fazendo perguntas, apontando caminhos,

barganhando, empreendendo trocas de produtos, etc. Uma imagem muito

distante do estereótipo do indígena arredio e esgueirado pelas matas.

Portanto, é difícil falar num processo de “amansamento”, principalmente se

este for entendido no singular, visto somente a partir de um lado, sem

incluir a tentativa de comunicação dos costumes e códigos por parte dos

indígenas, que experimentavam entrar em contato com os “brancos” talvez

almejando transformar o “branco brabo”, que era “o estranho”, em

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“manso”. O estudo do significado desses eventos pode abrir uma brecha

para o entendimento da complexidade desses contatos, virando “de ponta

cabeça” o que é tratado muitas vezes como consensual. Arrisco afirmar que

tal relacionamento e troca de experiências teve grande transito nos mundos

do trabalho, embora seus desdobramentos não tenham respeitado

fronteiras. Os formatos desses encontros extrapolam os conceitos

preestabelecidos. Certamente as categorias, “manso” e “brabo”, “conflito” e

“aliança”, não dão conta de explicitar a complexidade dessas situações,

principalmente se forem observadas a partir de viés rígido, tentando

enquadrar comportamentos e experiências. Esses conceitos devem ser

percebidos como problemas históricos, distantes das generalizações de uma

intransigência teórica que tente moldar a vivência dos sujeitos. Ao

contrário, o importante seria perseguirmos a fluidez da memória dos

interlocutores em sua historicidade.

Em Tapauá foram encontrados muitos personagens que reforçam a

complexidade afirmada diante dessas dimensões históricas, que atropelam

pressuposições generalizantes. No entanto, mesmo diante de tal

complexidade, podem-se apontar características que atravessam as

trajetórias da maioria dos sujeitos não índios e índios, como as memórias

de suas experiências migratórias e de seus antepassados, os

estranhamentos no contato com “outros”, onde figuram os desafios da

alteridade e da sedimentação do mundo do trabalho amazônico.

Esses são índices analíticos importantíssimos, na medida em que

entram em questão as várias dimensões da territorialidade e suas

mudanças no tempo, assim como as novas configurações das trocas

culturais, com a chegada dos migrantes ante a presença dos povos

indígenas (e destes com outros indígenas). Ao analisar esse quadro

historicamente, deve-se levar em conta os dois lados desse cenário (seriam

somente dois lados?), em sua pluralidade, atentando as mudanças e

permanências estabelecidas desde o século XIX, período no qual se

estabeleceu uma massificação das explorações do Purus. Portanto, é salutar

enxergar as experiências relatadas e demais informações em sintonia com a

atribuição de sentidos emprestada pela historicidade do processo de

contato, evitando o risco de um danoso isolamento temporal ou

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presentismo. A memória, apesar de configurar-se como uma seleção de

lembranças feita no presente, é embebida de vivências passadas que

sempre remetem há outros tempos. Afinal, considera-se que o presente e o

passado sempre andam de mãos dadas, mesmo que, por vezes, essa

relação seja um tanto atribulada.

Canutama

A cidade de Canutama está situada numa área de várzea, apenas com

pequenos pontos de terra firme. No século XIX foi um importante

entreposto de exploração do Purus, base para incursões que buscavam

gêneros na floresta. Foi local de “pouso” no percurso das incursões de

Manoel Urbano da Encarnação, homem que tinha fortes ligações com o

Estado à época da Província do Amazonas, como informante, prático de

embarcações e Diretor de índios. Invariavelmente, a história de Canutama

vem se confundindo com os processos de expansão da economia extrativa,

destacando-se suas feições eminentemente econômicas, jungidas aos

“feitos” dos homens de Estado.

Temos uma proposta diferente. Cremos que é possível enxergar outros

sujeitos, outras experiências históricas, outras culturas e modos de vida.

Isto, sem excluir a produção historiográfica já estabelecida, ou melhor,

usando-a como “janela” para contemplar novos vieses, outras versões do

Figura 3 – Cidade de Canutama. Foto: Alexandre Isidio.

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processo. Assim também podem ser entendidas as fontes de natureza

oficial, que apesar de sinalizarem para aspectos a primeira vista somente

ligados ao nível do Estado, deixam entrever em suas linhas outros sujeitos,

que muitas vezes não tiveram suas experiências registradas diretamente.

Foram com essa intenção metodológica que se buscou os arquivos do Purus

(não só os de Canutama), de modo a arriscar uma escrita em sintonia com

demandas esgueiradas dos que não tem seus nomes registrados nos anais

da História. Busca-se, portanto, os migrantes, os indígenas, os regatões, as

rusgas cotidianas, os conflitos, os acordos, os espaços de entendimento e

outras dimensões do político. Foi com esses indicativos que os arquivos e as

falas dos entrevistados foram analisados.

Chegando a Canutama, logo nos primeiros passos da pesquisa, tornou-

se perceptível que a cidade guardava mais fontes documentais (oficiais) do

que Tapauá. Nas primeiras investidas descobrimos o Arquivo Municipal,

sediado no prédio da Prefeitura, onde existe um volume bastante

significativo de documentos. Foram listados documentos da Intendência e

da Prefeitura (de anos diversos a partir de 1906), ofícios, circulares, folhas

de pagamento, atas, receitas do município, impostos municipais e alvarás,

regulamentos para o serviço público e registros de impostos, com

periodicidades diversas, de maneira geral situada entre a partir final do

século XIX adentrando no século XX. Esses fragmentos do passado têm sua

produção ligada aos desígnios do poder, do Estado, dos olhares

governamentais, que, ao contrário do que se poderia considerar

apressadamente, não falam somente do palco decisório.

Por exemplo, no ano de 1911, na mensagem dirigida à Intendência

Municipal de Canutama, existe a oficialização de uma reclamação

relacionada aos locais de moradia da maior parte da população da cidade,

feita pelo então Superintendente Coronel Theodoro dos Reis Botinelly. De

acordo com o Coronel Botinelly, os munícipes não estavam a par dos

interesses das leis, construindo suas casas em áreas não permitidas, como

as áreas de várzea. Portanto, era urgente a definição de meios para

equacionar o problema diante dos “abusos” da população, pois todos

deveriam habitar a área de terra firme como rezava os desígnios legais.

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Um ponto Srs. Intendentes que reclama a atenção dos poderes

competentes e que já é tempo de tratar-se delle, é o cumprimento

da lei n. 22 de 10 de outubro de 1891 que creou o Município de

Canutama.

Diz essa lei que a sede da Villa é na terra firme e que na várzea

apenas haverão armazéns e o porto de embarque e desembarque.

Ora, por um abuso, a população tem-se concentrado toda na

várzea, deixando a terra firme em quase completo abandono.

É do cumprimento da minha administração o convergir as minhas

vistas para a terra firme, empregando todos os meios e esforços

para que aquella lei seja cumprida. 10

Percebe-se diante da fala oficial um posicionamento contrário aos

habitantes da cidade, que insistiam no “abuso” de construíam suas

habitações nas áreas de várzeas. Acompanhando a tessitura da fonte, é

importante destacar que no contexto da virada do século XIX e início do

século XX havia uma preocupação generalizada dos poderes públicos com o

ordenamento urbano, que consistia também numa tentativa de

ordenamento social, desdobrando-se, desse modo, não somente nas ruas,

mas também nos hábitos e na vida dos cidadãos. Havia uma tentativa de

“reformar” os costumes, incutir hábitos burgueses, impondo padrões de

sociabilidade trazidos do Velho Mundo. Ora, as moradias da várzea, com

habitações cobertas de palha, distantes dos padrões de arruamento ou

higienização, apresentavam-se inadequadas diante do modelo almejado

pelo Superintende. Além disso, a terra firme, situada a uma distancia

significativa das margens do Purus, talvez tornasse a presença desses

habitantes “menos” incômoda, distantes dos olhares de quem contemplasse

Canutama de sua orla, onde somente deveriam ser avistados somente

armazéns e o porto.

10 Arquivo Municipal de Canutama. Livro de Registros de Decretos, Mensagens e

Resoluções da Superintendência (1909 – 1917) - Mensagem apresentada a Intendência

Municipal de Canutama, em sua primeira reunião de 1911 pelo Superintendente Coronel

Theodoro dos Reis Botinelly.

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O almejado deslocamento dos habitantes para a terra firma

certamente não era desejável para muitos dos moradores da várzea, que

muitas vezes, como até hoje acontece, retiravam seus sustentos desses

locais, sintonizados ao regime de cheias e vazantes do Purus, pescando e

plantando seus roçados. Esse cenário traduz uma atmosfera de tensão, que

seguramente não era uma novidade no ano de 1911. Os hábitos herdados

das populações indígenas, como as construções erigidas na várzea (como

era de costume dos Paumari), ou mesmo o material utilizado na edificação

das casas (principalmente dos mais pobres), que eram cobertas de palha,

não entravam em acordo com os valores da administração pública de

Canutama (e também da maioria dos Municípios).

Ainda tratando do mesmo conjunto de fontes, mas com referência ao

ano de 1904, é possível analisar atraves da mensagem do Superintendente

Raymundo Carlos de Moraes, intenções bastante semelhantes às traçados

pelo Coronel Botinelly em 1911. Dirigindo-se à Intendência Municipal, no

que diz respeito ao item “Construções”, existe a intenção de proibir a

construção de casas de palha na área da várzea, anuindo tais edificações

somente na área de terra firme.

Construções

A lei d’esta Intendência de 1⁰ de novembro de 1904 prohibe a

edificação e reedificação na rua da Instalação e na av. Botinelly,

que não recebão cobertura com telhas de barro. Acho que essa lei

deve ser ampliada e que a prohibição deve ser mais lacta (sic). Não

se devem consentir mais construções de palha e pacheuba a não

ser na terra firme. (...)

Será mesmo conveniente marcar-se um prazo para que os

proprietários de cazas na quellas (sic) condicções existentes na

várzea as reformem ou mudem-se para terra firme. 11

11 Arquivo Municipal de Canutama. Livro de Registros de Decretos, Mensagens e

Resoluções da Superintendência (1909 – 1917) - Mensagem apresentada a Intendência

Municipal de Canutama, em sua primeira reunião de 1909 pelo Superintendente Raymundo

Carlos de Moraes.

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Fica claro que existia um posicionamento contrário às edificações na

área de várzea. Além disso, outro aspecto de destaque trata da orientação

das construções das habitações, que não deveriam receber cobertura de

palha, e sim de telhas de barro. Esse posicionamento atingia diretamente os

que não tinham meio econômicos para adquirir telhas de barro, objeto de

distinção, e que simbolizava um modo de vida ligado a padrões

arquitetônicos alheios a população local. A palha que era o material de uso

costumeiro na cobertura dos tapiris, das casas de farinha, das habitações

da maioria dos habitantes, não se afinava com o ideal de cidade que o

Superintendente Raymundo Carlos de Moraes almejava. Observando o

contexto desses arrazoados, é possível enxergar também uma preocupação

com a transitoriedade das habitações de palha, que figuravam distantes de

um padrão sedentário rígido, posto que seus moradores deslocavam-se

paulatinamente construindo novas casas (em semelhança a muitos povos

indígenas), dificultando o “papel” do Estado de fiscalização e cobrança de

impostos.

Apesar de não terem sido encontradas entre as fontes informações

sobre a composição étnica da população de Canutama de 1911, não seria

inócuo apontar a possibilidade da presença de indígenas nesse contingente

de moradores atingidos pelas ordenações legais. Assim, é interessante

analisar as ações do Superintendente em cruzamento com o plano maior

das ações do Estado, que em sintonia com o avanço das frentes pioneiras

pelo Purus desde meados do século XIX atingia de modo significativo o

modo de vida das populações indígenas. Portanto, no plano urbano (assim

como no plano das atividades rurais)12 havia um interesse em reformar os

costumes, tentando disseminar um ideal de cidadão, que seria cumpridor de

seus deveres, disciplinado, pagador de seus impostos. Esse plano ideal,

seguramente, não era entendido, nem obedecido por todos.

Diante dessa problemática, ainda tratando dos desígnios “legais”, foi

encontrada no percurso da pesquisa uma tabela contendo informações

12 Contudo, com outras configurações, já que a presença do Estado era mais fluída nas

atividades empreendidas na floresta. Ou melhor, as relações de poder tinham mais peso

diante dos mandos dos “senhores” donos dos locais de exploração.

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sobre as cobranças de impostos para o ano de 1927, que pode ser

verificado no livro de atas da Intendência Municipal de Canutama. Em tal

documento estão contidas ainda algumas discussões sobre a composição

urbana da época, nomeações de cargos, exonerações, definições do

funcionamento do mercado público, folhas de pagamento, entre outros

índices, que podem trazer a lume muitos e interessantes fragmentos do

passado da cidade. No que tange a cobrança dos impostos, chama atenção

a variedade de tipos de taxação, que além de incidirem nos

empreendimentos comerciais, como botequins, também tributam, por

exemplo, pessoas empregadas na quebra de castanha, além de outras

atividades. O documento foi elaborado na segunda reunião ordinária da

legislatura do Presidente da Intendência Monteiro Pantoja, em 31 de

outubro de 1927.

Tabela 1 - Livro de Actas. Arquivo Municipal de Canutama. Livro de actas das

sessões da Intendência Municipal de Canutama. Segunda Reunião Ordinária da

Legislatura – Presidente Monteiro Pantoja, 31 de outubro de 1927.*

Registros

Alvará de licença para casa comercial que,

no Município vender todos os gêneros

excepto bebidas alcoólicas, fumos, cigarros e

tabaco, que tem sua tributação especial;

Tributo Primeira Classe 150$000

Segunda Classe 100$000

Terceira Classe 80$000

Alvará de licença para vender bebidas

alcoólicas, fumos, cigarros e tabaco;

Tributo 100$000

Advogado diplomado; Tributo 100$000

Advogado não diplomado, por cada causa

que patrocinar;

Tributo 50$000

Botequim; Tributo 100$000

Barbeiro e Cabeleireiro; Tributo 30$000

Bilhar; Tributo 10$000

Carpintaria; Tributo 30$000

Dentista com consultório; Tributo 100$000

Dentista sem consultório; Tributo 50$000

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Estaleiro de construção de embarcação de

madeira;

Tributo 80$000

Engenho de tracção animal ou a motor

fabricando cachaça e assucar (sic);

Tributo 200$000

Engenho a vapor fabricando cachaça e

assucar;

Tributo 300$000

Joalheiro fixo ou ambulante; Tributo 50$000

Licenças para jogos lícitos em festas

públicas;

Tributo 10$000

Licença para ter cão solto ou que transite

nas ruas da Villa;

Tributo 2$000

Marchante – talhador de gado vacum; Tributo 50$000

Marchante – talhador de gado suíno, lavigno

(sic) ou caprino.

Tributo 20$000

Marceneiro com oficina Tributo 20$000

Negociante ou comerciante que no Município

vender mercadorias em vapor ou lancha

Tributo 300$000

Ourives com officina Tributo 50$000

Officina outra de qualquer arte Tributo 20$000

Padaria Tributo 30$000

Pessoa empregada na quebra de castanha Tributo 20$000

Quitanda Tributo 10$000

Regatão no Município Tributo Em vapor 800$000

Em lancha 400$000

Em lancha indo ao território

do Acre

250$000

Em batelão 400$000

Em canoa 150$000

Obs. A palavra tributo figura como um grifo meu.

No conjunto do documento ainda constam as tabelas B, referente às

taxações voltadas aos portos de lenha; C, referente aos tributos sobre o

gado de corte e leiteiro e sobre o aluguel de animais; D, atinente aos

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impostos do cemitério público; E, concernente aos valores cobrados para a

aquisição de licenças para construção ou demolição de muros, averbações e

transferências de terras; F, relativo a cobranças de “décimas” e foros

urbanos e taxação sobre os preços de alugueis e G, atinente aos

emolumentos da intendência municipal (cobranças por petições, certidões,

averbações, etc). Uma mostra da variedade das cobranças feitas pela

prefeitura, que tentava regular a vida urbana e seus mecanismos de

funcionamento.

Além da enumeração dos impostos, existe em anexo à fonte uma série

de observações sobre interdições, portarias sobre os horários de

funcionamento dos estabelecimentos e observações sobre a regularidade de

construções, produtos e serviços. Pode-se inferir, nesse sentido, que existia

uma tentativa concreta de controle e disciplinarização de um largo conjunto

de relações sociais estabelecidas no espaço urbano, composto atraves das

taxações e ordenações estipuladas para as mais diversas atividades. Desta

feita, a prefeitura de Canutama no final dos anos 1920 queria ter o controle

e enviar suas cobranças de impostos para todos os citadinos, desde os

donos de botequins e barbearias, passando pelos profissionais liberais,

como dentistas e advogados, até os proprietários de cachorros vadios, pois

todos deveriam obedecer às regras e contribuir com o erário público.

Um aspecto interessante a ser observado, indo além da leitura das

taxações acima esboçadas, consiste num exame dos diversos ramos de

trabalho e sistemas produtivos, pois é possível entrever uma significativa

variedade de atividades empreendidas pela população (ou pelo menos ter

uma ideia das suas possibilidades). Canutama, olhando por esse lado,

aparece como um cenário urbano com atividades e serviços bastante

variados, com engenhos a vapor e a tração animal que fabricavam açúcar e

cachaça, estaleiros para construção de embarcações de madeira,

marchantes responsáveis pelo corte de distribuição de carne, coletores de

castanha, além de quitandas, padarias, marcenarias, e até oficinas de

ourivesaria. A variedade de serviços pode denotar a força dos fluxos

econômicos da época, que por sua vez permitem vislumbrar algumas das

características de uma sociedade de consumo monetarizada, que detinha ou

mesmo buscava acompanhar os valores traçados no plano das grandes

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aglomerações urbanas. Embora estejamos analisando a cidade no contexto

de 1927, não seria inócuo inferir que tais facetas seja ainda eco do período

áureo da borracha, quando o Purus, até a década de 1910, fora o maior

produtor da bacia amazônica. Entretanto, nos idos da legislatura do

Presidente Monteiro Pantoja não havia seguramente mais a força econômica

de décadas anteriores, mas é importante não deixar de apontar certa

efervescência em Canutama, principalmente no que diz respeito à

pluralidade do seu contexto urbano e de suas atividades econômicas.

Por outro lado, tudo leva a crer que diante desse cenário multifacetado

da economia alguns sujeitos eram empurrados para as “margens” do social,

tendo suas casas de palha, seus hábitos locais de moradia, e certamente

também suas atividades produtivas afetadas, comprometidas perante as

novas demandas de impostos e demais regulações públicas. Pode-se

considerar que o lócus do urbano trazia também desafios para muitos dos

habitantes do Purus no início do século XX, desdobrando-se em desacordos

e conflitos, em intervenções diretas nas mais diversas esferas do cotidiano.

Os desdobramentos das frentes pioneiras incidiam diretamente nesse

cenário. As cidades passavam a serem bases para as explorações,

entrepostos para os produtos destinados ao comercio, recebendo

rotineiramente fluxos de mercadorias e pessoas envolvidas na labuta. Esses

movimentos ajudavam a compor muitos dos desafios de alteridade,

firmados através dos encontros entre modos de vida diversos. A própria

noção de urbanidade, definida através de códigos de conduta, cobrança de

impostos e demais regras, deve ser posicionada diante desse quadro

conflituoso da alteridade, pois havia intenções impositivas de intervenção

na vivência dos outros, tentativas de adequação, entre outras medidas.

Apesar de todos seus mecanismos de “controle”, nos idos dos anos

1920 ainda eram relativamente novas as experiências urbanas no rio, que

somente foram ganhando fôlego no final do século XIX, quando já

figuravam as cidades de Lábrea e Canutama, que mesmo recém-nascidas já

contribuíam com o devassamento das matas, assistiam a chegada de

migrantes, colaboravam como bases para abertura de novas fontes de

exploração, participavam comercialmente do deslocamento de mercadorias

e gêneros extrativos, etc. No entanto, apesar de todo esse aparato, é certo

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que as cidades do Purus não eram centros aglutinadores de um significativo

contingente populacional, e nem dos sistemas produtivos, se comparadas

ao mundo rural (se é que havia uma fronteira bem definida entre o rural e o

urbano).

A maior parte dos habitantes continuava vivendo na floresta, ou

melhor, nas localidades espalhadas pelas margens do rio que sediavam

pontos de exploração. Essa dimensão, apesar de conter uma configuração

diferente da urbana, também gerava uma série de problemáticas,

assentadas no avanço do sistema de aviamento e na entrada de muitos

adventícios, trabalhadores que passavam a lidar com o sistema de

aviamento e os demais códigos de sobrevivência das matas. Porém, esses

homens e mulheres migrantes não eram os únicos que vivenciavam tal

processo, posto que ao seu lado estivessemoutros que conheciam de

maneira muito mais detida os rios e a floresta, mas que também eram

afetados pelas empreitadas do extrativismo.

Os povos indígenas dividiam com os migrantes, experiências nos

mundos do trabalho na floresta, e desse interrelacionamento eram tecidas

redes de sociabilidade, evidenciando tanto conflitos, quanto ocasiões de

entendimento. A feição desses contatos foi sendo erigida através das

dinâmicas do avanço do regime de trabalho extrativista, firmado em

consonância com as relações do sistema de aviamento. É interessante notar

que as várias facetas dessas relações ajudaram a atribuir sentidos aos

papeis dos sujeitos da história do Purus. Como podem ser analisado atraves

das memórias do Srs. Moacir e Sebastião (o primeiro morador de Tapauá e

o segundo residente em Canutama), ambos indígenas da etnia Banawá com

mais de 60 anos. Filhos de mãe cearense e pai indígena, eles vivenciaram

os contornos da alteridade, guardando ricos relatos sobre suas trajetórias.

De início é importante salientar um ponto de intercessão de memórias

entre os irmãos, pois ambos narraram os percursos da mãe, Dona Diva,

filha do “patrão” que aviava a família do avô índio dos Srs. Moacir e

Sebastião. Segundo o relato, havia uma relação de aviamento firmada entre

os índios e um patrão, na região do Piranhã, rio pertencente à bacia do

Tapauá (que por sua vez é afluente do Purus). A família cearense tinha

certa proximidade com os indígenas, empreendendo trocas de produtos

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extrativos, como castanha, sorva, copaíba, por aviamentos, como café,

açúcar, farinha e instrumentos de trabalho. A relação, segundo os

interlocutores, acontecia sem grandes atribulações, inclusive porque a avó

“branca” dos Banawá, esposa do patrão, que era conhecida como índia

“Ceará” tinha uma proximidade ainda maior com os indígenas, pois

dominava o idioma, costurava, cozinhava e trocava amabilidades com os

habitantes da floresta. A Sra “Ceará” vivia com o marido e suas duas filhas

pequenas, Iva e Diva, na sede das explorações, próximo ao armazém onde

eram guardados os gêneros do aviamento.

A mistura entre esses mundos, que em princípio parecia harmônica,

entrou em choque de forma decisiva quando dois indígenas insatisfeitos

com suas recompensas de trabalho, e desafiando a autoridade do Cacique

(que não pregava, segundo os Srs. Moacir e Sebastião, o conflito com os

patrões), atacaram a residência dos exploradores. A “Ceará” estava sozinha

com suas duas filhas e foi morta na incursão, e as crianças foram levadas

juntamente com o material pilhado do armazém pelos indígenas. No

caminho de volta, uma das meninas, Iva, a mais nova, começou a chorar

copiosamente e a relutar em continuar a jornada de fuga. Então, enquanto

um dos índios foi procurar uma fonte de água para matar a sede do grupo,

o outro “arpoou” Iva, matando-a, sendo resolutamente reprovado

posteriormente pelo seu companheiro de viagem, que não permitiu que ele

fizesse o mesmo com outra menina, Diva. Ao chegar à maloca, houve uma

séria consternação ante do ocorrido, tendo em vista tanto a quebra das

regras estipuladas pela liderança, quanto diante do temor das represálias

que certamente ocorreriam em virtude da morte da esposa e da filha do

patrão.

Assim, ao tomar conhecimento do cenário de conflito que se

avizinhava o Cacique não deu guarida aos salteadores, pelo contrário, puniu

os dois indígenas com a morte. Mas, temendo maiores perigos, resolveu

deslocar-se juntamente com todos os membros da comunidade para

refugiar-se de possíveis conflitos, levando consigo Diva, a filha do antigo

patrão. A comunidade indígena, após incorrer na fuga, situou-se próximo ao

Igarapé Banawá, a uma distância considerada segura de possíveis

expedições em retaliação ao grupo. Nesse local Diva cresceu e constituiu

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família, casando-se com um indígena, e dessa união nasceram Moacir e

Sebastião. Diva, que faleceu no início dos anos 2000, permaneceu por toda

vida com o grupo, educando seus filhos na cultura indígena, mas sem

esquecer do mundo “branco”, nem obliterar sua trajetória, que foi passada

oralmente para seus familiares. Várias versões desse relato são contadas

por outros habitantes de Canutama, passando de geração para geração,

inclusive por outros familiares de Diva, como sua neta Ana Banawá (filha do

Sr. Sebastião), liderança indígena que vive na cidade.

Percebem-se, diante dessas memórias, algumas das dimensões das

experiências de contato, que envolvia um rol de relações multifacetado.

Desde o século XIX, quando foi iniciada de modo mais incisivo a exploração

econômica na bacia do Purus, esse cenário foi se desenhando,

acrescentando outros atores e novas interações sociais. Não é possível,

diante do exposto, pensar esses papeis e ocasiões de maneira estanque e

rígida, principalmente quando levamos em conta os relatos dos Srs. Moacir

e Sebastião, que tratam de memórias de conflitos, mas também de relações

de proximidade, de situações de entendimento. Tais aspectos foram

vislumbrados pelos interlocutores como fundamentais na seleção de suas

lembranças, que também fazem parte de um processo de afirmação de

identidade, tecida através de suas experiências. Certamente esses são

apenas pequenos indícios da complexidade das relações dos habitantes do

Purus em sua historicidade. Todavia, diante desses arrazoados alguns

“varadouros” podem ser abertos nos debates sobre a temática em questão

(a do contato) que muitas vezes é tratada a partir de uma ótica

demasiadamente rígida, colocando, de modo compartimentado, indígenas

de um lado, e os demais sujeitos, de outro.

Nos mundos do trabalho do rio Purus, em suas florestas e cidades, em

seus locais de exploração nas matas, barracões, armazéns e seringais,

havia além de povos indígenas, muitas outras pessoas, que se deslocavam

e que interagiam entre si (como pode ser verificado numa pesquisa

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realizada13 em outras fontes que foram cruzadas às informações aqui

trabalhadas). Por isso, essas categorias de sujeitos, mesmo sendo

heterogêneas, não podem ser entendidas de modo separado. Esses atores

ao longo do tempo dividiram/disputaram os mesmos espaços, muitas vezes

entrando em conflito, mas também compartilhando experiências de

trabalho, contraindo matrimônio, tecendo relações de parentesco, em suma,

elaborando sociabilidades que passavam a permear seus modos de vida.

Essas facetas são pouco exploradas, e se tornam inviáveis para a pesquisa

se pensadas de modo estanque. É preciso entendê-las também em suas

sincronias e diacronias, em seus intercruzamentos, situando o papel das

pessoas que viveram o processo na pele, buscando entender suas

experiências historicamente.

Lábrea

A última cidade que a Expedição Purus visitou foi Lábrea, atualmente o

município com a maior população do Purus. Sua história, semelhante às

demais urbes, foi atravessada em seus alvores por incursões de

exploradores da economia gumífera e por membros de expedições de

reconhecimento encabeçadas pelo Estado e por viajantes estrangeiros. Os

registros dessas viagens conformam a maior parte do que foi escrito até

hoje sobre Lábrea. Nomes como o do Coronel Antônio Rodrigues Pereira

Labre (tido como fundador da cidade), assim como o de Coronel Luis da

Silva Gomes (conhecido como Rei do Ituxi, por ter estalebecido nesse rio

uma grande exploração) e o do Padre Francisco Leite Barbosa (primeiro

sacerdote a se estabelecer na cidade), são os mais citados nas narrativas

sobre o passado da localidade.

Vê-se, portanto, que a documentação que trata da cidade, vide os

nomes e posições dos sujeitos arrolados acima, têm sido orientada através

13 Essa reflexão faz parte do conjunto de problemas da minha pesquisa pessoal que está em

andamento, cujo projeto tem como título: Nos meandros da história do rio Purus:

mundos do trabalho, migrações e fronteiras (1852-1877).

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de grandes “vultos”, sobremaneira relacionadas a pessoas ligadas ao poder.

Estes personagens são importantes para o entendimento da configuração

dos acontecimentos, mas não deveriam figurar solitários. Esse quadro deve

ser repensado. Existem muitos relatos sobre a opulência de Lábrea na

época do surto gumífero, que falam em grandes fortunas, da construção da

suntuosa Igreja matriz, cuja cúpula de metal fora importada de Hamburgo,

entre outros empreendimentos. Mas, diante desses detalhes algumas

questões ficam sem respostas, aliás, muitas problemáticas são emudecidas,

juntamente com os outros sujeitos anônimos que participaram de um modo

ou de outro em todos esses episódios. Urge, nesse sentido, repetir alguns

dos questionamentos levantados por Berthold Brecht em suas “Perguntas

de um trabalhador que lê”:

Quem construiu Tebas, a cidade das sete portas?

Nos livros estão nomes de reis; os reis carregaram pedras?

E Babilônia, tantas vezes destruída, quem a reconstruía sempre?

Em que casas da dourada Lima viviam aqueles que a edificaram?

No dia em que a Muralha da China ficou pronta, para onde foram os pedreiros?A

grande Roma está cheia de arcos-do-triunfo: quem os erigiu? Quem eram aqueles

que foram vencidos pelos césares?

Bizâncio, tão famosa, tinha somente palácios para seus moradores?

Na legendária Atlântida, quando o mar a engoliu, os afogados continuaram a dar

ordens a seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou a Índia. Sozinho?

César ocupou a Gália. Não estava com ele nem mesmo um cozinheiro? Felipe da

Espanha chorou quando sua frota naufragou. Foi o único a chorar?Frederico

Segundo venceu a guerra dos sete anos. Quem partilhou da vitória?A cada página

uma vitória.

Quem preparava os banquetes comemorativos?

A cada dez anos um grande homem.

Quem pagava as despesas?

Tantas informações.Tantas questões. 14

14 Disponível em http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/1568771. Ultimo acesso:

15/05/2012

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Brecht chama atenção para algumas pessoas para quem não são

dirigidas loas, para os que não produziram material escrito sobre suas

experiências (mas, que também viveram e fizeram sua história). As

perguntas elencadas pelo teatrólogo e dramaturgo alemão são dirigidas aos

historiadores, de modo a provocá-los a atravessar os discursos do poder, a

examiná-los de modo mais detido, burlando e evitando as danosas

homogeneizações de uma escrita permeada por heróis e acontecimentos

monocausais. Tal desafio toma forma a partir da leitura das fontes,

principalmente da documentação dita “primária”, em cuja superfície podem

aparecer imagens inteiriças, como um “reflexo” diante do espelho, como se

o passado fosse auto-evidente, uma imagem fiel. Resta ao historiador,

diante das provocações de Brecht, quebrar esses espelhos, estilhaçá-los, de

modo a desmontar a fonte, e contemplá-la em suas especificidades,

juntando cada pedaço quebrado, mas sem incorrer na pretensão

inalcançável de reabilitar um passado tal como ocorreu. O reflexo, assim

como o passado, não será mais o mesmo depois de estilhaçado o espelho,

depois do exame de sua feição multifacetada. A riqueza desse exercício de

quebra das fontes está na leitura de suas fissuras, no diálogo com os que

não aparecem em sua superfície, que não figurariam numa imagem de um

espelho inteiriço.

Não é preciso para tanto descredibilizar por completo a produção

historiográfica que se ocupou em citar apenas nomes e datas de modo

linear, reproduzindo as tessituras de um passado comprometido com a

conservação das imagens do poder. Um caminho interessante é utilizar

essas referências sem reproduzir seu conteúdo uniformizador e retilíneo,

mas através desses, enxergar outros caminhos para a análise das fontes.

Existe ainda a possibilidade de empreender reflexões através da memória,

examinada através das falas do presente, que guardam referências muitas

vezes inexistentes na documentação oficial escrita. Esses dois caminhos de

análise podem caminhar de modo independente, mas são grandemente

enriquecidos quando cruzados, quando o historiador os põe em diálogo,

possibilitando contrapô-los, mostrando suas fissuras e suas junções.

Em Lábrea, assim como nas outras cidades, houve uma tentativa de

tornar esse cruzamento possível. Foram buscados interlocutores que

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contassem suas experiências, como o Sr. Zé Catuquina de 70 anos, filho de

pais indígenas, mas que fora “criado” por um cearense seringueiro,

trabalhando na maior parte de sua vida seguindo a profissão do seu tutor,

assim como Dona Brígida, de 88 anos, neta de sujeitos emigrados no final

do século XIX que trabalharam, segundo seus relatos, para o Coronel Labre

nos primeiros tempos de Lábrea, ou ainda Dona Maria Júlia de 99 anos, que

viera do Ceará com 14 anos acompanhando a família, e que falou com

lucidez sobre a composição da cidade nas primeiras décadas do século XX,

tratando do seu cotidiano de trabalhadora ao lado do marido, coletando

castanha, borracha, pescando, e cuidando da família. Suas vidas não estão

pormenorizadas em relatos de fontes oficiais, seus nomes não figuram entre

no rol dos “grandes” de Lábrea, mas isto não implica na anulação da

possibilidade de suas memórias ajudarem a pensar a história do Purus.

Além dos relatos orais ao chegar ao município também foram buscados

locais de pesquisa “oficiais”, como a prefeitura, o cartório eleitoral, a casa

do bispo e o cartório judicial. Foram vistas muitas fontes, porém, salvo as

eclesiásticas, guardadas em péssimas condições, amontoadas e sem

nenhuma organização. Esse quadro é muito preocupante, pois foi

encontrada uma extensa lista de tipologias (principalmente no cartório

judicial), onde constam Inventários, documentos do Juizado de Órfãos,

processos diversos, atas de reuniões, dentre outros fragmentos do passado

completamente desordenados, a maior parte centrada entre as ultimas

décadas do século XIX e as primeiras do XX. Esse é um recorte “clássico”,

fortalecido pelo apelo que o surto da borracha, ocorrido nesses tempos,

sempre teve entre a historiografia amazônica preocupada em narrar sua

faustosa ilusão. Para Lábrea, contudo, ficou claro que certamente não

devem existir fontes anteriores a essa temporalidade, até porque a

produção documental foi iniciada somente com a elevação da Vila no final

do século XIX.

Um grupo muito interessante entre os documentos levantados foi o

eclesiástico, onde constam entre livros de tombo e livros de batizamento, os

relatos do Padre Francisco Leite Barbosa. O religioso chegou a Lábrea em

1878, tendo sido recém-ordenado no seminário da prainha situado em

Fortaleza. Começou seu sacerdócio ainda jovem no Purus, ante um

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território que estranhava, com seus rios e florestas e sua população

disseminada pelos locais de exploração e malocas indígenas. No início do

século XX, quando já era conhecido e possuía bastante prestígio na cidade e

na Igreja (nesses tempos ele já detinha o título de Monsenhor), o padre

escreveu o que chamou de “Resumo Histórico da Paróchia”, contando sua

trajetória e seus enfrentamentos diários, arrolando informações sobre

casamentos e batizados, além de listar os beneméritos que doavam

recursos para a Igreja. Nesse testemunho, Francisco Leite confidencia que

nos idos de 1878, tempos de sua chegada, “era então a Lábrea uma feitoria

de seringueiros, e um dos mais atrazados logares do rio Purus, não tendo

barracão, nem logar especial onde podesse celebrar o Santo Sacrifício da

missa”. 15

Sua preocupação nesses primeiros tempos consistia em sedimentar um

local para as celebrações religiosas, buscando angariar com as elites locais

recursos para construir um templo. Além disso, esteve por muitas vezes

singrando o rio Purus e seus afluentes buscando os seus “parochianos”,

fazendo suas desobrigas, ou seja, indo aos mais recônditos locais ministrar

sacramentos, como batismos e casamentos. Os números desses trabalhos

foram também arrolados como anexo em sua súmula sobre a história de

Lábrea, discriminando os sacramentos, as datas e o sexo de seus

catecúmenos. É possível vislumbrar através dos números a significativa

atuação de Francisco Leite pelo rio, com um crescimento das atividades com

o avançar dos anos.

O padre foi tecendo seus espaços de atuação relacionando-se com os

chamados “coronéis”, como Luís da Silva Gomes, o maior contribuinte nas

doações que propiciaram a construção da Igreja de Nossa Senhora de

Nazaré em Lábrea, disponibilizando uma quantia de mais de dezessete

contos de réis (uma pequena fortuna para a época) como consta no mesmo

relatório de cunho histórico. É possível inferir, nesse sentido, que as

preocupações do religioso estavam estreitamente ligadas com os desígnios

do poder local.

15 Casa do bispo de Lábrea. Livro de Tombo da Freguesia de Nossa Senhora de Nazareh

da Lábrea – 1902/1909.

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Essa reflexão torna-se ainda mais plausível com a leitura dos números

das desobrigas, que aparecem listados em linear ascensão, uma mostra do

alcance das pregações do padre que alcançavam lugares cada vez mais

distantes. Não por acaso, nessa mesma época, é possível também ver um

avanço paulatino dos empreendimentos dos “grandes homens”, que

levavam adiante as explorações pelo Purus através do regime de trabalho

com base no sistema de aviamento (que no final do século XIX já alcançava

pela calha do rio Acre). Portanto, o crescimento da atuação do religioso

pode ser entendido em sua relação com avanço do extrativismo, que tinha

na figura de Francisco Leite um evangelizador, não só no sentido católico,

mas também na acepção dos interesses de homens como Luis da Silva

Gomes.

Tabela 2 - Notas dos baptisados e casamentos effectuados na freguesia de

Lábrea, Estado do Amazonas nos anos de 1878 a 1908.

BAPTISADOS

CASAMENTOS

Anno Sexo masculino

Sexo feminino

Legítimos

Ilegítimos

Total

1878 58 67 63 62 125 45

1879 110 195 201 104 305 53

1880 162 239 290 111 401 68

1881 197 187 274 170 384 89

1882 215 190 280 125 405 103

1883 236 221 263 184 457 104

1884 251 270 365 156 521 99

1885 237 321 490 168 658 145

1886 243 239 360 122 482 152

1887 277 378 501 154 655 90

1888 378 353 434 297 731 119

1889 377 341 504 194 698 130

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1890 420 509 639 290 929 160

1891 374 513 304 283 887 135

1892 425 407 674 158 832 165

1893 377 441 304 114 818 129

1894 413 290 596 110 706 154

1895 375 474 694 155 849 172

1896 317 391 593 115 798 103

1897 466 536 498 204 1002 242

1898 479 460 604 285 889 182

1899 331 331 544 108 662 71

1900 504 547 997 54 1051 158

1901 680 501 974 157 1131 199

1902 490 571 970 81 1051 211

1903 480 559 889 150 1039 142

1904 403 311 587 127 714 147

1905 840 532 934 438 1372 107

1906 428 352 408 372 780 258

1907 798 398 804 392 1196 177

1908 350 391 521 190 711 68

Total 11721 11428 17499 5650 23149 4117

Ao analisar os números dos 31 anos de atuação do padre no Purus

listados acima, percebe-se que no primeiro decênio foram feitos uma média

de aproximadamente 439 batizados por ano, nos dez anos subsequentes a

média sobe para 825 batizados anuais, e nos dez anos restantes a média

dos sacramentos ainda alcança, sem contar com ano de 1908,

aproximadamente 988 pessoas por ano. No que diz respeito aos

casamentos o grau de crescimento também é significativo, pois nos

primeiros dez anos chegam a uma média anual de 94 uniões, no decênio

seguinte sobem para uma média de 150 matrimônios a cada 12 meses, e

nos últimos anos (também sem contar 1908) alcançam uma média por ano

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de 165 uniões aproximadamente. Outro aspecto que chama atenção que é a

quantificação dos números de ilegítimos (pessoas nascidas a partir de

uniões não endossadas pelos ritos católicos), que alcançam em detrimento

dos esforços do padre, ao final das mais de três décadas de sacerdócio, um

total de quase 25% dos sujeitos no total.

Desses números pode-se pensar pelo menos dois aspectos da

historicidade do período. O primeiro dialoga com a ordem crescente dos

números de batizados e casamentos, tendo relação (além do avanço do

poderio e influencia de Francisco Leite) com a escalada igualmente

ascendente do fluxo migratório de trabalhadores que se dirigiam para o

Purus em todos os anos listado acima. Já o segundo aspecto a ser

considerado está relacionado à significativa quantidade de batismos de

filhos ilegítimos, que seguramente também tem ligação com o contingente

de migrantes, mais especificamente em seus contatos com a população

indígena, que não eram somente eram vivenciados em ocasiões de conflito,

ou nos sentidos formais do cotidiano de trabalho.

A questão da migração, nesse sentido, estava na ordem do dia

naqueles tempos, tendo inclusive o próprio padre, na ocasião em que

estava empreendendo a construção do primeiro templo de Lábrea, ido

pessoalmente ao Ceará arregimentar trabalhadores, de modo a empregá-

los como pedreiros na edificação da igreja. Esse tipo de ação era um dos

vetores que vinha impulsionando as travessias rumo ao amazonas, pois

muitos outros sujeitos, a exemplo do religioso, faziam esse tipo de

percurso. Tal empresa era dirigida grandemente para o Ceará porque os

contratadores de mão-de-obra em sua grande maioria também eram

cearenses (como o próprio Francisco Leite e muitos outros exploradores e

seringalistas), que acionavam redes de contato, semeando ideias de

possíveis melhorias entre seus patrícios. Eram, no final das contas e para

todos os efeitos, também agentes da cadeia de aviamento, que

necessitavam de trabalhadores em quantidade suficiente para multiplicar

seus dividendos.

O pároco de Lábrea também teve seu papel nessa empreitada, embora

não diretamente ligado à empresa aviadora, como ele mesmo esboça em

seu relato histórico sobre a cidade escrito no início século XX.

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Em 1880, com o producto das esmolas e mais uma verba de quatro

contos de réis, votada por lei provincial, fui ao Ceará d’onde trouxe

vinte famílias, ao todo oitenta pessoas, entre os quaes os operários

necessários para os trabalhos da matriz. (...)

Ao pessoal trazido por mim do Ceará dei collocação e trabalho

mandando fazer grandes derrubadas no perímetro da freguesia, que

ainda estava coberta por matta virgem, montando olarias, oficinas

de carpintaria e dando começo aos trabalhos da matriz, que com o

auxílio de mais dezesseis contos de réis, dados pelo governo

provincial e esmolas arrecadadas, foi concluída e inaugurada em

1882. 16

Esses “operários”, como se vê, tiveram um papel decisivo na

constituição dos primeiros rastros da composição urbana de Lábrea,

conformando uma parcela considerável da ainda pequena população da

cidade. Contudo, apesar de figurarem como um contingente significativo, os

migrantes não eram os únicos a habitarem a cidade, que também tinha

outros sujeitos em sua composição populacional. Ao chegarem ao território

amazônico os adventícios passaram a dividir espaço com os outros

habitantes do Purus, em sua maioria povos indígenas, que não estavam no

rol dos trabalhadores desejados por Francisco Leite (vide sua ação de busca

de migrantes no Ceará). Esse encontro (que também pode ser entendido

como desencontro) tinha variados desencadeamentos, sendo um deles

provavelmente refletido na incidência significativa de filhos “ilegítimos”,

como pode ser observado na tabela das desobrigas do padre, onde alcança

25% do total.

Os rebentos dessas uniões eram batizados e descritos nos livros de

registros na maioria das vezes apenas com o nome da mãe, constando um

primeiro nome em língua portuguesa e um segundo alusivo a “tribo”, como

pode ser lido nos registros dos livros de “batisamento” do padre17 (que

também foram arrolados no percurso da expedição). Apesar de ministrar o

16 Idem

17 Esse tipo de prática remonta aos artifícios da catequese jesuítica levada a cabo por vários

séculos no período colonial.

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sacramento também aos “ilegítimos”, é patente o tom de reprovação

utilizado pelo religioso ao descrever as referidas práticas, que são

relacionadas com muito mais ênfase aos costumes indígenas.

Ao fazer alusão aos índios que viviam na floresta, principalmente aos

que relutavam em aceitar a fé católica, Francisco Leite é bastante taxativo

em relacioná-los a um ideário de barbárie e vadiagem. Para ele urgia uma

ação mais firme de catequese dos indígenas, que poderia facilitar o trabalho

de cristianização e defesa dos “maus” costumes. Essas intenções podem ser

analisadas também a partir do relato de cunho histórico que o padre deixou

registrado:

Existem n’esse rio e em muitos de seus affluentes muitos índios

rudes e pagãos, que precisão dos recursos da religião os quaes só

poderão chegar até eles por intermédio de missionários, que os

chamem e os aggremiem, afim de catechisal-os e instruil-os nos

sãos princípios da fé christã.

Em 1888 foi estabelecida uma missão no rio Ituxy, affluente do rio

Purus, pertencente a esta paróchia, por Frei Jesualdo Macheti,

superior dos franciscanos menores residentes naquela epocha em

Manáos e dirigida por Frei Matheus, porém os resultados foram

improfícuos por falta de recursos necessários a sua manutenção.18

O trabalho de evangelização dos indígenas tinha um duplo objetivo. O

primeiro vinculado a tarefa de arrebanhar almas para a fé cristã, e os

segundo, que pode ser entendido como uma extensão do primeiro, de

torná-los aptos a singrarem as águas da celebrada civilização e seus

costumes. Era preciso, para tanto, fortalecer o trabalho de catequese, ao

passo que os frutos dessa ação seriam colhidos à medida que os indígenas

deixassem ou mesmo relegassem a um segundo plano seus referenciais

culturais. Desta feita, seria mais simples torná-los aptos a um regime de

trabalho em bases disciplinadas, congregando códigos e mensagens do

mundo capitalista. Tendo em vista todos esses aspectos, não torna-se

possível enxergar a relação de Francisco Leite com os “coronéis” através de

18 Idem

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uma ótica de isenção de interesses. Tudo leva a crer que havia uma relação

de proximidade e cumplicidade entre ambos.

Entretanto, para o desapontamento geral, nem tudo saia como o

planejado. Os indígenas não correspondiam às expectativas a contento.

Havia muitos episódios de dissensões e conflitos, não só no Purus, mas em

todo o território amazônico. Muitos não aceitando a condição servil diante

do avanço sobre seus territórios e entraram em conflito com os objetivos

gerais dos invasores, havendo muitas vezes luta direta, com grande número

de mortos de ambos os lados da disputa. Nessas contendas muitos

indígenas refugiavam-se em locais distantes dos seus originários, ganhando

uma injusta alcunha de indolentes, que fugiam do trabalho. É possível

afirmar que “os seringais invadiram as terras indígenas, e aos índios restou

emigrar para o centro da mata ou vaguear de um lugar para outro. Esta

nova situação fez com que fossem conhecidos como preguiçosos, malandros

e mendigos, enfim, atrapalhando o progresso”. 19-20

Os sentidos desse progresso devem ser entendidos em seu

desencadeamento multiforme, distante da apregoada idéia de linearidade.

Seu formato não deve ser entendido como generalizado e único, posto que

seu significado, olhando para o passado, não servia para os “rudes e

pagãos”. Sem esse entendimento, não é possível, através da analise das

fontes, falar sobre aqueles que não entraram em sintonia com os adágios

da mensagem progressista da dita civilização, como no caso dos povos

indígenas, classificados por muitos como avessos aos seus valores.

Contudo, empreender esse trabalho de observação das minúcias e

sentidos do progresso não figura como uma tarefa fácil para o historiador.

Por muito tempo houve a ideia, inclusive bastante arraigada entre os

estudiosos das humanidades, que a historiografia acompanhava os sentidos

da linearidade positiva da ideia de progresso, apagando de sua escrita, ou

mesmo relegando a um plano secundário suas dissensões. Mas, ao contrário

dessas prerrogativas, atualmente muitos historiadores tentam escrever uma

19 KROEMER, Gunter. Cuxiuara: O Purus dos indígenas - ensaio étnico-histórico e

etnográfico sobre os índios do médio Purus. São Paulo: Edições Loyola, 1985.p. 89.

20 CARDOSO, ibid. p. 119-120

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historia a contrapelo, seguindo os arrazoados de Walter Benjamin,

buscando os sentidos contrários, as características consideradas incomuns

ou desviantes. Os significados do passado entendidos através dessa ótica

também podem ser analisados através de uma reflexão de Benjamin sobre

a pintura Ângelus Novus de Paul Klee, que retrata um anjo de olhos

arregalados e asas abertas, vislumbrando algo, que seria o passado e sua

fluidez irreparável. É diante desse quadro que tentamos escrever Historia.

Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas

abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está

dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de

acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula

incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele

gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos.

Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas

com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade

o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas,

enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade

é o que chamamos progresso.21

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente relatório não foi escrito como um relato uniforme. Ele foi

tecido na tentativa de traduzir as experiências dissonantes da pesquisa.

Aqui foram esboçados muitos indicativos de reflexão sem nenhuma

pretensão conclusiva sobre os temas abordados. Na verdade, diante da

grande quantidade de fontes coletadas na Expedição Purus, trata-se

somente de um vôo rasante sobre a documentação e os relatos, uma

piscadela fugidia. Ainda há muito trabalho a ser feito, principalmente no que

diz respeito à inventariação e sumarização da documentação coletada. Uma

empreitada necessária para facilitar o recurso à pesquisa, possibilitando um

entendimento mais pormenorizado das fontes.

21 BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de Historia: ensaios sobre literatura e

história da cultura. São Paulo, Brasiliense, 1994.

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Na medida do possível a escrita desse relatório tentou parecer

inteligível, mas hora ou outra, devido ao gosto por um antiacademicismo

narrativo do seu autor, certamente houve desvios dos caminhos da norma

(que não considero tão culta assim). Foram ensaiadas questões sobre

historiografia e teoria da história, acopladas a análise das fontes e das

vivências de pesquisa empreendida no campo. Tentou-se captar através

desse exercício centelhas de vida, como muito bem aconselhou um dos

maiores, Marc Bloch, em busca de sentir e farejar carne humana em meio

aos papeis empoeirados. Entendo que o tempo deixa suas marcas de

maneira bem mais profundas do que o tom amarelado dos documentos

velhos. Considero que ele está impresso nos gestos, nos gritos e na mudez,

no que é belo e no que é feio, no que é considerado vivo e no que é

decretado como morto. O passado é presente, ou melhor, está sendo

presente, pelo menos desde que o tempo e a História se encontraram, num

rendez-vous tão íntimo que muitos confundem um com o outro.

Portanto, ao pensar a história do Purus no geral, e de Tapauá,

Canutama e Lábrea, em particular, não estive numa posição distanciada,

pois semelhante à relação entre passado e presente, me “encontrei” com

esses lugares, participei de suas historicidades, e ao mesmo tentei entendê-

los. Esse foi um primeiro exercício, um primário ensaio sobre a leitura das

fontes e da experiência de campo, que merecem uma atenção muito maior

do que a que foi dada neste relatório. É preciso ainda esmiuçar muitas

questões, refletir sobre suas conexões.

Tenho uma queda pelos estudos dos mundos do trabalho, e por isso

talvez essa categoria tenha aparecido por vezes em demasia. Outro ponto

que considero importante, mas que pelo vicio do olhar também pode ter

aparecido de modo repetitivo, trata das dimensões do contato entre os

sujeitos envolvidos nesses mundos, que no caso do Purus, eram compostos

por uma cartela de cores grandemente heterogênea. Gostaria de ter

avançado mais sobre as fronteiras, ou melhor, de ter colocado em questões

de modo mais enfático o relacionamento entre História e Antropologia, pois

nutro por esses terrenos especial predileção. Falta ainda neste relatório um

diagnóstico mais “fechado” sobre as fontes, um arrolamento minucioso de

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tudo que foi pesquisado. Esse trabalho está sendo feito, mas infelizmente

não foi contemplado aqui.

Tentei na medida do possível cruzar fontes orais e escritas, que em

minha opinião enriquecem de maneira significativa a construção do texto,

atribuindo uma complexidade maior a tessitura da narrativa histórica,

principalmente quando se busca se fazer entender, fugindo dos vazios

“teoréticos” e “enroléticos”.

Gostaria de agradecer as conversas, as bagunças, a cumplicidade, a

atenção, ao carinho, a amizade, as discordâncias, aos debates acalorados,

as experiências compartilhas com todos os membros da Expedição Purus,

Alba, Angélica, Admilton, Ingrid, Mario e Thayná. Sem eles e elas nada teria

tido o mesmo gosto. Sem a turma da Expedição eu não teria pensado a

maior parte das questões elencadas aqui. Mas, os equívocos e fragilidades,

que seguramente fazem parte do corpo deste relatório, são de minha inteira

responsabilidade. Por fim, mas sem nenhum somenos, agradeço ao Gilton

pelo apoio, pelas palavras francas de entusiasmo, e por ter ajudado a levar

adiante a ideia da Expedição.

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NARRATIVAS DO PURUS

Admilton Freitas das Chagas Filho

INTRODUÇÃO

Seguimos o roteiro da viagem descrevendo no barco as impressões e

relatando as características das cidades do médio Purus. Iniciando o

desembarque da equipe em Tapauá, localizada na entrada do rio Ipixuna, e

em seguida em Canutama, e por fim em Lábrea. Ao todo o período de

viagem durou 42 dias.

Visitamos várias instituições e casas de moradores com intuito de

conversar com os mais variados grupos sociais possíveis, entre cearense e

índios encontramos seringalistas, ex-prefeitos, seringueiros, comerciantes e

muitos outros tipos sociais. Na cidade de Tapauá, há uma constante

presença indígena atuante no movimento e falante da língua, mantendo

laços de proximidade com a aldeia.

Saindo de Tapauá após dois dias de viagem de barco, chegamos a

Canutama situada a margem direita de quem sobe o rio Purus, terra baixa

marcada por constantes alagações descritas pela população como algo

corriqueiro, é parte integrante da identidade da cidade. Quanto aos povos

indígenas parecem não apresentar vínculos tão próximos com as aldeias,

com exceção dos índios Banawa que mantem um constante fluxo entre

cidade/aldeia e aldeia/cidade.

Lábrea é a maior cidade do Médio Purus, é cercada por extensas terras

indígenas demarcadas e com uma área urbana excessivamente povoada por

brancos, estando quase sempre os indígenas de passagem ou residindo,

temporariamente, em áreas menos valorizadas e ocupando cargos

subalternos de emprego informal. Há expectativa de um avanço social nas

comunidades indígenas por meios de implementações de programas, como

Piraraura e Pedagogia Indígenas, voltado para a formação de professores,

buscando reverter o quadro atual de baixo acesso a educação que se

encontram os povos indígenas.

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A vida no barco: o avesso do tempo/espaço e a convivência íntima

com o “outro estranho”

A expedição Purus teve inicio no dia 07 de janeiro de 2012, com saída

da cidade de Manaus no barco de recreio Vovô Osvaldo II, traçamos a

principio o panorama de conhecer as pessoas comuns que viajavam para o

Purus no período de férias e de sua ligação com as cidades de Tapauá,

Canutama e Lábrea. Pelas conversas, descobrimos as diversas relações

familiares que envolvem a rota Purus/Manaus, filhos que visitariam os pais,

idosos que moravam há muito tempo em Manaus indo visitar os filhos,

netos, irmãos e amigos, e que trabalharam a vida inteira no Purus na coleta

de borracha, castanha, roçados, extração de madeira, pescando peixe,

tartaruga, peixe boi e jacaré.

A viagem perdurou três dias até a chegada em Tapauá, durante o

percurso atravessamos o Solimões em sua longa extensão bastante

povoada, em suas margens apresentavam comunidades e embarcações

escolares, em comparação ao Purus às comunidades "ribeirinhas" são

distantes umas das outras, e as terras indígenas demarcadas e conhecidas

pela tripulação e passageiros como "terra vermelha", não apresentavam a

“cara” dos povos indígenas, porque uma de suas características é habitar

áreas de terras firme e/ou igarapés distante do rio Purus.

Adentramos o rio Purus no domingo as 17h00 da tarde, localizado a

margem esquerda do Solimões, avistamos alguns poucos flutuantes, sem

dúvida o Purus se mostrou mais estreito e de muitas curvas. O capitão da

embarcação manobrava com destreza cortando o rio em busca de pequenos

atalhos se desviando das praias que concentrava bancos de areias, o que

poderia encalhar ou segundo eles até mesmo virar a embarcação.

Conversando com um passageiro, o Sr. Raimundo Jr. falava da vida

em Manaus e de como estava disposto a recomeçar a vida em Canutama,

tendo ajuda de parentes moradores da cidade, onde trabalharia com vendas

de mercadorias trazidas de Manaus. Após quinze dias ao chegarmos a

Canutama, ele já se encontravainstalado trabalhando na praça com a

venda, entretenimento e também na distribuição de merenda das escolas

públicas na zona rural.

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Maria, cobradora de ônibus em Manaus levava o pai a Tapauá para

ficar com a irmã, ele tinha sofrido um derrame e trabalhara a vida inteira no

Purus, comentou sobre uma pequena propriedade de castanhal, empolgada

porque a época coincidia com a coleta da castanha e esperava participar de

alguma forma da atividade, e falava que aquele era o momento de

encontrar velhos amigos que participavam todos os anos da coleta. O que

nos deixa perceber que a coleta da castanha vai além dos valores

econômicos, mas também como um espaço de sociabilidade entre as

comunidades.

Dona Luzia uma senhora que vinha de Manaus e que acabara de

perder o filho de 30 anos, a morte segundo ela foi causada por hepatite e

seguidas malárias malcuradas. Essa moradora de Lábrea contou do gosto

pelo terreno no ramal do km 26, e descreveu o roçado destacando em sua

fala a produção da "farinhada". Perguntei sobre o tucumã e ela afirmou que

tinha bastante, e que plantou abacaxi mais "com o tempo o "bicho" (o

abacaxi) fica pequeno a terra não é boa para esse tipo de plantação" ainda

na conversa ela contou que não comercializa a produção, deixando a

entender que era somente para subsistência da familia.

Chegando às cidades ficou mais claro entender a agricultura familiar,

os moradores em geral confirmaram a situação "não valorizam nossa

produção, ninguém quer pagar o preço por causo que só querem dar

migalha, tá todo mundo produzindo as merma coisas, então o produto fica

desvalorizado, nem vale a pena a gente trabalhar pra vender” – um

exemplo claro pode ser visto na produção da farinha, que é basicamente

para estocar na casa das famílias para o consumo anual.

Conheci Jaysse de aproximadamente 25 anos, que voltava de

Manaus, após alguns meses de tratamento e exames feitos em um hospital

particular, por conta da família, estava voltando para casa em busca de

mais recursos financeiros para dar continuidade ao procedimento cirúrgico.

O motivo das consultas seria o sangramento do seu seio esquerdo, após

cinco anos saindo uma secreção que se transformou em sangramento, a

jovem falou "achava que era normal não me preocupava depois as dores

foram aumentando aí busquei um médico na capital indicado por uma

amiga da família".

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Depois teria de retornar a capital para dar continuidade ao tratamento,

comentou que o médico a informou da probabilidade de passar por uma

cirurgia de retirada do seio. Seu pai é um pequeno produtor rural do

município de Canutama, dono de uma propriedade descrita por ela com

muitas plantações, na qual a venda de hortifrútis garante parte do sustento

da família, juntamente com a criação de animais, agora parte deste dinheiro

arrecadado será destinada ao tratamento, o pai já havia vendido algumas

cabeças de gado para manter a primeira parte do tratamento em Manaus.

Conversei também com Dave, um vendedor representante de duas

grandes empresas, a primeira de medicamentos e a segunda voltada para o

ramo de motores, baterias e equipamentos náuticos. Como filho da terra e

viajante constate conhece muito bem as estradas e rios que conectam o

abastecimento das cidades do médio Purus, segundo ele os produtos

abastecidos provêm de Manaus e Rondônia, passando por Humaitá e

chegando aos municípios através de embarcações, por uma rota terrestre e

de trechos hidroviários.

Estas são as impressões resgatadas nas falas das pessoas que se

deslocavam no barco subindo o Purus, as histórias individuais de pessoas

comuns que aos poucos se cruzavam no cenário e no modo de ser da

"gente" que iriamos encontrar nas cidades. O barco naquele momento era o

primeiro contato com pessoas da região, os conhecedores da realidade local

e que poderiam falar horas e horas da fauna, da flora, do uso e dos

costumes tapauenses, canutamenses e lábreanos.

Tapauá, a cidade de nordestinos que sobem, e de índios que descem o rio Purus

A chegada em Tapauá foi às 13hs; avistamos os flutuantes; o

encontro entre o Ipixuna de água preta e o Purus de água barrenta

destacava na paisagem; a entrada do rio Ituxi apresentava o modo de vida

da população branca e indígena, peculiaridades dentro de uma relação

social imbricada e cercada de contextos que envolvem cada cidade: crianças

brincavam e nadavam, adultos compravam gelo, outros trabalhavam na

casa de farinha flutuante da prefeitura; nas entradas dos igarapés os

pescadores estavam em canoas, ou melhor "rabetas" e malhadeiras. O

barco atracou na fábrica de gelo e depois seguiu para o porto flutuante,

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onde a equipe teve de se dividir pela primeira vez. Ficamos em Tapauá um

grupo de quatro pessoas, Admilton, Alexandre, Angélica e Mario, enquanto

outra parte da equipe seguiu viagem para Canutama: Alba, Ingrid e Thayná

indo estudar o circuito da produção familiar da farinha.

Ao atracarmos no porto flutuante encontramos o senhor Pedro

“frentista”, que nos levou até o hotel, nos contou de sua farinhada, da

quantidade de pessoas que trabalham com ele em sua propriedade, e que

no outro dia subiria para o local procurando saber como estava sua

produção, contou também que estava envolvido na coleta da castanha. Os

dois eventos ocorrem ao mesmo tempo, a farinhada para muitos vai até a

metade do mês de fevereiro, enquanto a coleta da castanha dura um pouco

além, estendendo-se ao mês de março. Outro negociante forte nos negócios

na coleta da castanha é conhecido como Louro, é um forte negociante de

castanha do Abufari uma reserva de proteção permanente, onde está

proibida a exploração dos recursos naturais, parece haver uma continua

atividade econômica da castanha.

O circuito envolve inúmeras famílias, algumas dezenas de ribeirinhos e

indígenas identificados como parentes distantes, primos e compadres,

assim o sistema de produção familiar atende a demanda de escala

industrial, a coleta se faz diariamente e algumas famílias viajam para terras

distantes de suas residências,montando acampamento e fixando-se no

castanhal por todos os meses de coleta, retornando após o termino da

temporada de extração da castanha. A relação dono do castanhal e

coletores se mistura aos valores da amizade, em ambos os discursos patrão

e empregado remetem sua função como a parte essencial para o

andamento do negócio, e que se não o fizesse o outro não daria conta do

trabalho. Na realidade o negocio da castanha monta toda uma engrenagem

dos agentes envolvidos, e há uma dependência do conjunto envolvido para

dar conta da cadeia extrativista.

Juntam-se coletores, donos de propriedades e atravessadores –

responsáveis pela venda da castanha no mercado – apontam a parte do seu

trabalho como a mais importante para o funcionamento do negócio. Todo o

sistema integra uma parte importante do circuito da coleta, compra e

venda. As relações sociais e familiares são regidas pelo grau de parentesco

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entre consanguíneos, pais e filhos e não consanguíneos cunhados, sogros,

esposos e outros laços que determinam a castanha para além da mera

atividade econômica.

Em Tapauá ficou definido desenvolver a primeira parte da pesquisa no

qual a proposta de campo era realizar o levantamento dos documentos

oficiais resguardados em arquivos públicos dos cartórios, da igreja o CIMI –

Conselho Indigenista Missionário, da prefeitura e secretarias de educação e

saúde, em um segundo momento, com mesmo valor e importância. Ao

conversar com os moradores antigos que vivenciaram os acontecimentos

históricos, são capazes de dar respostas abertas as lacunas que os

documentos históricos não dão conta de esclarecer, é importante ressaltar,

que o encontro destas fontes possibilitará correlacionar à reconstrução

histórica dos acontecimentos, os pontos entre documentos escritos e

memorias se complementam e elucidam a história das cidades do médio

Purus.

Na prelazia da Igreja católica da cidade de Tapauá, conseguimos com

frei Miguel alguns livros antigos e conhecemos o seminarista Robson e o

radialista Marcos, no mesmo dia conhecemos Raimundo Nival um pároco

que presta serviço à igreja. Essas pessoas nos encaminharam a conversar

com muitos moradores e o próprio Nival nos concedeu uma entrevista

contando sua vida de trabalho, também nos levou para conversar com o

padrasto, a mãe e a avó, moradores que viveram grande parte de sua vida

ou nasceram na região do Purus.

A conversa não registrada com Frei Miguel narrou a história dos Jumas

e como eles foram massacrados pela população Tapauense incitada por um

grande proprietário de terras e político insatisfeito com o ataque dos jumas

a seus empregados que invadiam constantemente a terra indígena. A

população “encolerizada” por Daniel Albuquerque o promotor da cidade e

prefeito, organizou um ataque armado com espingardas, matando homens,

mulheres e crianças, sobrevivendo apenas dois velhos e duas crianças,

deixando reprodução humana e sociocultural do povo Juma comprometida.

Ana Clara responsável pelo cartório civil contou que o processo de

autonomia da cidade de Tapauá que se tornou Comarca a partir de 1970,

antes disso a comarca oficial era Canutama, a instalação do cartório só

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consta no CNJ - Conselho Nacional de Justiça no ano de 1988. Portanto,

poucos documentos estariam arquivados naquele cartório, mas informou

que o grosso mesmo dos documentos estariam no arquivo público de

Canutama. Fotografamos somente dois livros um de 1909 e outro de

1970/9 registro de casamento e imóveis.

Marcos e Raimundo Nival nos conduziram a casa de Feitosa, de

Raimundo Januário, de Regina Belmiro e de Normando padrasto de

Raimundo Nival todos contaram muitas histórias do povo nordestino que

migraram para viver no Purus. Os pais e a avós de Nival passaram o

conhecimento do trabalho na região, a retirada de madeira, o corte de

seringa, o caucho, a castanha e muitas outras atividades produtivas foram

ensinadas e herdadas pela técnica familiar.

Os nordestinos falam: as trajetórias de vida, andanças e anseios

Raimundo Feitosa veio do Ceará com amigos em busca de trabalho, no

decorrer da viagem poucos ficaram. Após dias longe de casa, ficava cada

vez mais difícil e faltava emprego. Por intermédio de alguém conseguiu

emprego na polícia militar do Amazonas o que garantiu a residência

definitiva. Com o tempo foi transferido para o “interior” do Amazonas,

município de Boca do Acre, anos depois chegou a Tapauá, onde constituiu

família. A história desse cearense é como de muitas outras pessoas

representante de um ciclo social de nordestinos na Amazônia, reproduzindo

um sincretismo de festas, trabalhos, rezas, remédios e crenças que permeia

o Médio Purus.

Um andarilho nascido em Fortaleza, conta as andanças na época da

ditadura militar e descreve o pai como um comunista contra o governo,

morador da rua Parque Junior Bela Vista, serviu o exército em Itapipoca e

quando deu baixa foi morar no Rio de Janeiro, trabalhou na Petrobras

1972/73/74 “aí deu saudade dos coroas – os pais” decidiu regressar ao

Ceará, trabalhou em uma empresa de calculadoras como vendedor.Certo

dia juntando-se com três colegas na beira do bar, decidiram viajar para o

Amazonas em busca de emprego, foram de ônibus até Belém, residindo na

rodoviária até o dia de pegar o barco de saída a Manaus.

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Após três dias de viagem atracaram às duas horas da madrugada na

escadaria dos remédios e subiram o barranco que seguia diretamente em

direção à igreja. A experiência de barco foi diferente, chegando à cidade no

ano de 1977, eles ouviram falar do bairro de Educandos, o local dos

cearenses, conheceram um conterrâneo e foram vender redes nos bairros e

pelo centro, o dinheiro mal dava para se alimentar comendo somente pão e

mortadela, depois de um tempo já sozinho se mudou para o bairro da raiz.

A primeira oportunidade de emprego surgiu em uma seleção na empresa

Andrade Gutierrez na área de datilografia, a vaga era para trabalhar na

Arábia e ganhar em dólar, mas não conseguiu e saiu pensando “o que é que

eu vou fazer” saiu sem direção, próximo à bola da Suframa a pé, triste com

as dificuldades de desemprego avistou na Avenida Tefé um caminhão com a

placa de são Paulo decidiu conversar com o motorista e perguntou se

poderia ir trabalhar como ajudante acertando a viagem para aquela

semana.

Um vizinho próximo da casa recebeu a informação de que a polícia

estaria recrutando soldados, Raimundo foi ao comando geral atrás de

informações e para grata surpresa falou com o comandante que estava

procurando emprego. Em uma curta conversa recebeu a noticia “você já

está na polícia, amanhã você compareça em Petrópolis no 1º batalhão”,

chegando lá, chamaram Raimundo Feitosa, “será que eu sou da polícia

mesmo, não porque a gente não acredita” entregaram a farda “aí eu já

fiquei no quartel, casa, comida roupa lavada eu fiquei logo no quartel,

depois de uma semana voltei ao quarto para buscar minhas coisas, passou

quatro meses quando me formei fui lotado no aeroporto, em quase um ano

de trabalho veio o dia D”. Multou um tenente do exército às dez horas,

multou um capitão da aeronáutica e a tarde o carro do advogado Simonete,

à noite o carro do coronel da Polícia Militar, o comandante geral.

Devido o acontecimento no dia seguinte o major o transferiu para a

Boca do Acre, no mesmo dia, pegou o fuzil e de ônibus pela BR 319,

seguindo até Porto Velho, Rio Branco e Boca do Acre. Feitosa disse que os

conflitos eram resolvidos a bala e que os estrangeiros eram bons de tiro, na

cidade havia muitos índios Apurinã em busca de bebida alcoólica, mais que

não eram de confusão, segundo ele os outros índios embriagados ficavam

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brabos e violentos pelo efeito da cachaça. Descontente com delegado que

sempre dobrava seu turno de serviço retornou a Manaus se apresentando

no comando geral.

Informado que tinha vaga no município de Tapauá e sabendo que o

prefeito ajudava com casa e rancho, ligou para Daniel Albuquerque que

disponibilizou a vaga de um avião saindo no mesmo dia as 12h00 e

chegando a Tapauá as 14h00. A pista relembra ele, era de barro batido no

ano de 1979 e no dia dois de março Feitosa foi lotado em Tapauá. Conta

que do aeroporto para o triangulo próximo de sua casa era um

caminhozinho, e do triangulo da praça até a delegacia havia uma estrada de

pedras, e que a energia era apagada as 23h00 e a cidade ficava em

silencio.

Algum tempo depois conheceu uma moça na missa diz “acertamos

tudo e com oito meses de namoro a pedi em casamento, o pai consentiu

casei com o paletó emprestado para dar sorte, meti logo um fiado, depois

que casa o cara sai logo metendo fiado, aí essa casa apareceu à venda por

140,00 cruzeiros aí comecei a vida”. Uma transferência repentina o ano de

1980 para Santa Izabel do Rio Negro, onde passou apenas um mês, o

motivo “escute o que aconteceu pra eu saí de lá um homem bêbado entrou

na igreja e rasgou a roupa da irmã e eu prendi ele.

“Passei um rádio pra Manaus comunicando o ocorrido, no dia seguinte

chegou o comunicado pra eu soltar o cara, eu e o juiz pegamo o barco e

fumo pra Manaus lá chagando o capitão me lotou na companhia de choque,

trabalhei um bom tempo, aí à mulher chegou com o menino e fui pegar ela

no centro ela ficou um tempo comigo e depois foi embora, falei com o

comandante Câmara ele deu minha transferência para Tapauá”.

“Quando cheguei aqui em 1979 não tinha índio, não tinha sim, vieram

de Pauini, uns quatro ou cinco, não trabalhavam não, até hoje eles andam

por aqui, vendendo as coisas da natureza, eles não tiveram o costume de

plantar, tiram as coisas da natureza. Aqui tem Apurinã, o Paumari só tem

no cuniuá, aqui não tem Paumari”. Em contra partida ao reconhecimento de

Feitosa a cidade de Tapauá está repleta de famílias paumari ao descreve o

modo de ser do índio como povo coletores dependentes do meio natural

fornecedor por excelência dos recursos indígenas.

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Feitosa conta que um índio matou o rapaz que vendia as coisas –

regatão – porque se negou a vender cachaça ao índio, isso ocorreu numa

festa da comunidade do jacaré e diz indignando “mais não ficou preso não,

agora ele mora aí pra dentro desse rio Ipixuna de água preta com uma

família grande”. Feitosa detém informação do período que trabalhou na

secretaria de educação e comenta sobre a zona rural e da relação da

merenda escolar, conhece muito bem a quantidade de índios, relatando

mais ou menos umas 22 “tribos” segundo ele “nunca vi um índio vender

uma fruta, abacaxi, banana, uma plantação que você cultiva, ele só vende o

que dá na natureza”. A sua fala expõe a ideia de que o índio ao terminar o

ensino fundamental deixa de ser índio.

Esta fala remonta à capacidade de adaptação e de movimento que

fizeram dos nordestinos um povo bem sucedido na Amazônia. A trajetória

deles firma uma identidade social inacabada, sempre em processo de

reconstrução inserindo-se ao sentido cultural amazônico. Feitosa expressa o

pensamento coletivo carregado dos valores de sua terra e arraigado aos

costumes dos povos indígenas tornando-se um perfeito caboclo conhecedor

da floresta e do rio Purus.

O discurso incomum da população delineia quem pode ser e quem

deixou de ser índio a partir dos valores do branco, o indígena ao partilhar

do espaço urbano e usufruir dos mesmos direitos são tachados assim “rapaz

não são índio não, esse povo quer é o dinheiro do governo” citando os

povos indígenas como cheios de regalias e em outro instante a mesma

pessoa diz “esses índios são mermo é um bando de preguiçoso não trabalha

só sabe pedir, não plantam nada”.

As afirmativas levantadas acima refletem uma sociedade permeada

por valores do branco e a tradição indígena imbricadas no cotidiano e

estabelecem regras de ralação social. A entrevista possibilitou entender

como o indígena é descrito na fala do branco, uma parte nega à existência

contestando os direitos do índio e em outra fala o reconhece pelo modo de

vida tradicional e sua característica coletora da natureza.

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Raimundo Nival descendente de nordestinos e ‘filho’ do Purus

Nasceu na comunidade Linda Vista, o pai faleceu e o avô o pegou para

criar, começou a jornada de trabalho aos 07 anos “eu me lembro naquela

época é muito triste a convivência pra hoje tá muito mais melhor um dia o

vô me chamou e disse rapaz agora você vai trabalhar, aí ele colocou uma

estrada pra mim de cinquenta tigela e lá eu aprendi muito com ele porque

eu não conhecia quase nada”. Saindo de casa as sete, às vezes as cinco,

seis da manhã e voltando a casa por volta de (11h00) onze horas o horário

de fechamento do corte, retornando as duas horas no mesmo trilho para

fazer a coleta “cortava seringueira, pra que pudesse tirar o leite dali pra

gente se sustentar”.

Raimundo Nival “essa foi uma experiência pra mim que considero

muito importante, o corte eu via, ele me ensinava e eu via como nós fumo

criado desde pequeno, se chamava parelha de estrada aí a gente rapava na

árvore aquele pedaço e daí ele me deu uma faca enquanto eu fui ajudando

e por ali pegando experiência muito rápido, e aprendia com ele aí depois

nós usava, quando chegava difuma que era borracha enrolada no pau, não

sei se vocês chegaram a ver, nu sei se vocês já deve ter conseguido já,

chamava borracha, enrolava num pau e lá no pau a gente ia rodando

jogando o leite em cima e em baixo no buiao, onde nós buntava caroço de

urucuri que era fumaça, aquela fumaça, o leite ia secando e você rodando o

pau e jogando leite em cima rodando até acabar o leite, era desse tamanho

assim mais ou menos quase da grossura de um tambor com uns oitenta

quilo, cem quilo e dalí quando o patrão passava na época era o Raimundo

marques e Zé Marques

“Lembro benzinho tinha nove anos dez anos a gente vendia pra que

comprasse o alimento, fartura tinha muito, vamo supor, peixe, o quelônio

que é o bicho de casco que nós chamamos aqui, pra nós tinha muito, isso ai

ninguém dava conta nas praia, cê podia ir a noite, principalmente, a noite

que formava tempo cê olhava sim chega ficava pretinho camarada, assim

incima tudo desovando qualquer criança chegava via aquilo não fazia nem

conta, isso pra mim foi uma experiência que hoje tenho o que 36 anos pra

idade que eu tenho pra mim nu vô apagar nunca da memoria... essa pra

mim foi a maior experiência de vida, sim ver como era aquilo ali porque no

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nosso caso nós trabalhava pro nosso pai que era meu pai de criação tudo

que nós fazia era uma conta só, nós era oito numa casa e era ele que

administrava tudo, nós muito pobre as vez ele dizia olha vamos trabalhar o

mês todo”.

O avô combinava no mês de outubro próximo ao final do ano período

que o patrão passava e compraria uma muda roupa para cada um deles

“aquilo pra nós era uma alegria aqueles calçãozinho, nossa ropia que nós

tinha era duas três mudas de ropa só pra sair pras outras comunidades

vizinhas porque nós era pobre num tinha, nosso rancho era ali contado

mesmo, e ele sempre contava meu filho isso aqui foi que eu aprendi com

meu pai e vocês cuido muito disso aqui, porque um dia isso aqui vai sumir

vai se acabar e eu achava assim como que vai se acabar, e ele dizia vai se

acabar vai diminuir isso ai foi uma experiência pra mim, não apagou da

memoria não.

Nival lembra a época que morou na Linda vista,há três horas do local

chamado ponta do camaleão, “onde até hoje se eu for andar na estrada eu

sei onde é, conheço as estradas, depois da ponta do camaleão fui pra

insiada bem próxima daqui uma hora e meia essas foi as três localidade que

a gente ficou bem próxima aqui do município e nós só vivia aqui, quando

era final de mês nós via pra cá passava dois três dias na época a cidade era

só mato, uma vez eu me perdi aqui hoje eu falando isso pro meu filho ele

pensa que é brincadeira, eu me perdi porque eu lembro que era só uns

caminhozinho, isso aqui era tudo palha mais eu tinha uma memoria –

lembranças – isso pra mim é uma experiência, que do que eu vejo hoje não

apaga nunca da memoria

Raimundo conta que na sua época não tinha muito contato com os

povos indígenas, a partir de então narra uma série de episódios de

encontros e convivência com índios “nosso contato era muito pouco com

indígena passava aquelas canoas que nós morava no camaleão e tinha uma

localidade pro tauamirim e foi justamente aqui em Tapauá, teve alguns

conflito e muitos deles foram embora mais ficaram alguns” é notório os

indígenas residentes na cidade, construíram família e das seguintes

divergências entre índios e brancos relatados nas histórias do avô “...não

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gostava de abrir muito pra gente porque naquela tempo era muito mais

difícil eles tinham medo né...”

Meu avô comentava com outros da mesma idade dele, mas pra nós

crianças não comentavam, ele não gostava assim de comentar muito não,

ele era muito assim cismado, até mesmo ele falava que tinha tido esse

conflito, mas ele não explicava qual era as pessoas, porque ele tinha medo

naquela época eles tinham medo... depois de grande não, não comentava

muito não, sabemos que teve aqui em Tapauá na história, mais ele não

comentava muito assim não...”

Enquanto residia no lago camaleão relembra as passagens dos índios

na direção do tauamirim, sempre trafegando o rio passavam remando,

“durmiam lá em casa as vez, jantavam de noite” quase sempre batiam na

porta da casa de Raimundo querendo um agasalho esperando o dia

amanhecer, em sua fala Raimundo expressa o sentimento de acolhimento

para com os viajantes moradores de outras comunidades, o vizinho que

necessitasse de abrigo e alimentação, ou parando para descanso pela parte

da noite ele diz “normal qualquer um, isso ai pra nós não tinha problema

não”.

Um costume típico amazônico abrigar os viajantes no caso do índio

cansados viajando a “remo” às vezes cinco, seis, oito e dez pessoas, em

uma canoa indígena, “pediam agasalho do meu avô, posso ficar aqui, não

tem problema já jantaram, não mandava minha vó servir comida, ainda

hoje tá viva, meu avô morreu, ela mora lá no açaí, ela tem umas memória

boa porque eles vieram de cima da banda de cima, o jacaré fica aqui pra

cima do Purus a gente se baseia muito por base da hora fica uma faixa três

hora, três hora e quarenta, a boca do jacaré num quarenta” – voadeira de

motor quarenta”.

Raimundo recorda dos tempos de infância, principalmente, a fartura. O

verão trabalhando na seringa, no inverno com madeira, a relação com o

patrão pelo nome de o Edilson Freitas dono de embarcação fazia muitos

negócios por todo o rio Purus, chegando a comunidades ribeirinhas,

negociando a troca de borracha e pegava toda a produção da família de

Raimundo por meio do aviamento de produtos e seguindo viagem,

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atualmente o barco se encontra naufragado próximo à fábrica de gelo a

beira da cidade.

O comércio girava em torno da borracha e madeira diz Raimundo “a

gente fazia aquelas jangadas grande muito grande no meio do rio mais a

borracha era muito assim, o mermo que ser hoje um salário numa capital

hoje, quem tinha seringal porque os que nu cortavam eles arrendavam por

muito dinheiro era o mermo que ter uma renda normal, se você plantasse

uma vazante qualquer coisa, um roçado pra comer tirasse um leite tudo

você tinha que pagar renda... que lá tinha o dono do lugar mermo que o

camaleão, era dele do Henrique pra entrar lá, e o cara dissesse eu vou fazer

uma casa e morar aqui, não tinha que primeiro falar com ele se ele

autorizasse ainda tinha que pagar renda, essa renda era na época, a gente

produzia numa base por dia doze frascos de leite cada, um litro só prum

frasco e dava a parte do patrão”.

A narrativa expõe a história de vida de um seringueiro que explica

todo o processo de elaboração da borracha desde o corte e defumação do

látex até o rolo da borracha pronta. As trocas com os patrões às formas de

contratos de arrendamento de terra e o funcionamento da rede de

aviamento se efetivaram entre patrões e trabalhadores. Na sua fala

aparecem os povos indígenas descidos de terras altas ocupando extensas

áreas em torno de Tapauá chocando-se com interesses dos grandes

proprietários de terras, também se pode observar que o convívio entre

índios e o cearense firmou novos pactos sociais.

Família paumari e vivência entre dois mundos: brancos/índios - cidade/aldeia

Nascido na aldeia manissuã o Francisco apelidado de bida e na língua

paumari banú que significa peixe piranha, afirma que as festas prologavam

os dias de vida do índio. Descreve sua infância já em contato com os

brancos e trabalhando na coleta da castanha, da seringa, cortando madeira,

tirando óleos de copaíba, itauba, viróla, marupá e louro. Conta Francisco na

mata utilizava a seringa para fazer boia bolando madeira da terra firme até

o rio percorrendo grandes distâncias. Registra que muitos seringais eram

dos índios paumari porque estavam na terra deles enfatizando sobre a

mudança ocorrida desde a chegada do IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio

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Ambiente e dos Recursos Naturais, “não se pode cortar madeira”

atualmente é o ICMBIO – instituto Chico Mendes de Conservação da

Biodiversidade que instituíram as reservas proibindo a retirada da madeira.

O Francisco explica “o índio não trabalha nessas coisas, somente, se

for incentivado pelo de fora – o trabalho do índio é pesca e o roçado, mas

quando chegava o patrão incentivando, o serviço dava conta de a gente

sobreviver retirando um tantinho de dinheiro” “nós trabalha na agricultura

aí trás para a cidade para vender e comprar as coisas necessárias para a

aldeia, o rancho e o combustou”. Estas falas relatam a condição do índio, o

modo de vida subsistente a natureza e de como se deu a modificação a

partir da entrada do branco com o extrativismo lucrativo.

Francisco conta “na aldeia o índio vivia sua tradição, festa, feitiço –

arabani – o pajé era quem curava e fazia a festa – ele se lembra do tio

“Nico” como um grande pajé. A época de festa os índios passavam dias na

floresta tirando o punã – uma lapa de pau, rapava e queimava, depois de

alguns dias estava pronto o rapé, partiam para a caçada e pescavam, este

era, somente, o preparatório da festa que durava entre dois a quatro dias e

noites, chamada de – xiguiné – hoje comemorada nas aldeias juntamente

as festas dos santos católicos.

Naqueles dias de festas não se coletava castanha Francisco paumari

compara a festa como o festejo dos santos católicos atualmente, na

comemoração acontecia “curação”, o pajé paumari chupava as pessoas

fazendo cura, e distribuía comida a cada criança, após a alimentação elas

estariam liberadas para fazer as refeições. O rito funcionava como modo de

proteção, os avós diziam que era a proteção para que o espirito da criança

não fosse levado pelo animal.

Segundo Francisco na mesma época da borracha os índios praticavam

suas tradições, quando a mulher se formava passando a ser moça, segue,

na “aldeia do Palhal” o roteiro é assim, logo que se forma a moça diz à mãe

que avisa o pai e o pai se reporta ao pajé, o responsável por colocar a

menina na esteira a qual fica por um ano, onde ninguém pode vê-la, ao sair

do curral é surrada sendo inserida novamente a sociedade adulta das

mulheres podendo assumir compromisso de casamento.

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O Paumari Francisco compara o modo de fazer farinha na época dos

pais diferente dos dias de hoje, os antigos “machucavam” na mão a farinha

que era levada ao fogo para cozimento. Antes do contato não se torrava a

farinha, na gíria – língua indígena se chamava damadamarí – cozida no fogo

com panela de barro e enrolada na folha ficava na forma de um pão,

Francisco conta também que hoje em dia as crianças gostam da farrinha

torrada não acostumam com modo antigo. Parte essencial da alimentação

os índios comem os mais variados tipos de alimento a farinha, nos vinhos

do açaí, do taperebá, com pupunha, melancia, tucumã e muitos outros

pratos do dia-dia.

Maria Vania fala da descriminação e de como isso inibiu o uso da

língua e das tradições na cidade e de como foi difícil no início conviver com

os brancos na escola, as crianças não queriam falar mais a língua porque as

crianças da cidade “riam” delas. Apesar de todos os preconceitos eles

ficaram e conquistaram espaço, afirma ela que os índios têm o direito de

estar na cidade por atendimento à saúde, acesso a escola, e envolvidos no

movimento indígena buscando cobrar do governo os direitos dos parentes

que vivem na aldeia. Os paumari Roberto e Maria Vania são lideranças e

participam das reuniões representando os paumari o que segundo eles só é

possível residindo na cidade “porque é aqui que as coisas acontecem”.

Roberto “nós estamos incentivado ao abandono de nossa cultura, na

época antiga quando entraram os brancos” – frentes extrativistas – foram,

primeiramente, negociando e a barganha convencia os índios a consumir

roupas e outros gêneros trazidos pelos patrões que forçavam as pessoas a

produzir para vender, hoje o problema da entrada de pessoas nas terras

indígenas são constates movidos pela retirada de madeira e outros produtos

nativos que atraem invasores as terras indígenas. Ameaçados e tendo de

fiscalizar e proteger a terra porque o contingente de fiscalização e

insuficiente para cobrir os extensos territórios.

Roberto diz “tem branco que tem consciência e outros que invadem

dando morte”, ele conta um caso da reserva a qual o branco tirou madeira

sem a permissão dos índios e eles prenderam a madeira. Fala Roberto “na

época dos nossos pais o feitiço era uma guerra, por exemplo, se o branco –

patrão – fosse buscar algum objeto por falta de pagamento, causaria

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revolta e o índio se via obrigado a devolver, índio integraria não tendo como

reagir, agiria com o feitiço colocando um bicho – no estomago do inimigo –

um tracajá como muitos causos que aconteceram em nossa comunidade”.

Assim se mostram dois planos a esfera das armas que os índios descrevem

como insuficiente para resistir o conflito com os brancos e a guerra de

feitiço que os índios utilizavam bastante e que trazia um equilíbrio no

confronto.

Os conflitos estão vivos na memoria, a pajelança e o feitiço

mostraram-se eficazes, arma bastante utilizada contra os brancos,

considerada uma forte proteção ou em muitos casos a única, a guerra de

feitiço realizava-se no mundo espiritual e materializava-se na relação com o

patrão explorador os índios sempre se utilizaram do feitiço na vida “inter-

étnica” ou praticado internamente pelas famílias na disputa do poder da

autoridade de cacique na aldeia. O pajé exerce a função de conduzir a

vingança, é o ser dotado de capacidade, ou melhor, preparado para

transitar entre os dois mundos, o espiritual e o material. Roberto conta que

os pajés estão divididos em duas categorias, aqueles que servem para curar

e outros para maltratar as pessoas.

Maraza cacique mamori relembra o “ajuntamento” de seu povo aos

paumari

Maraza lembra “antigamente todos respeitava o tuxaua, quando ele

falava “pega aquele cara ali e mata, os índios pegavam e matavam, quando

agente era brabo mermo os brancos não podia morar na aldeia”. Maraza

retoma a questão da discriminação que sofreram os índios, “agora há

mistura de branco com índio” o que de certa forma possibilitou a inserção

do índio a sociedade branca, ele explica como se deu o casamento do pai

branco e a mãe índia mamori, e do fato do pai dela ser paumari e sua avó

mamori.

Segundo o cacique a relação de casamento com o branco e com outras

etnias aconteceu devido aos contantes conflitos, onde os perdedores tinham

as mulheres e filhos tomados e criados pelos rivais, quase sempre as

mortes eram tão grandes que alguns povos foram considerados

exterminados. Novas formas de casamentos convencionadas na aldeia de

Maraza que hoje carrega os traços destes acontecimentos: as etnias

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mamori e Deni descendentes de paumari constam em dados da FUNAI –

Fundação Nacional de Apoio ao Índio e em outros registros bibliográficos os

mamori aparecem extintos.

A descida de sua família do alto cuniua se deu para o igarapé do

mamori chegando ao moco. O cacique Maraza faz uma pequena correlação

de parentesco começando pelo barrari, tio de sua mãe e irmão da sua avó e

diz que os primos são camadeni. Maraza conta a história da reconfiguração

do povo mamori juntando-se aos paumari; o casamento da avó se deu no

momento de guerra contra os catukina ela já estava grávida. O motivo da

barbárie segundo o cacique foi incentivado pelos brancos que invadiam a

terra dos mamori e juntos com os catukina atacavam com armas de fogo os

mamori.

Na época o tuxaua era o marrecão morto em conflito tendo os irmãos

Barrai, Macacari, Titicurari, Catarruri. Maraza conhece alguns primos

descendentes destes tios avôs. E conta que hoje em dia a praia ficou

conhecida como praia do marrecão em homenagem a morte do tuxaua que

morreu defendendo o povo mamori dos Katukina, e enfatiza que os mamori

tiveram perda maior tendo as mulheres de viver casadas com os Katukina

ou fugindo para casar com outros povos indígenas ou brancos, no caso da

avó, casada com paumari.

Fala do cacique “os katukina tomaram a finada vovó, a batará e a

abariranã a duas aceitaram”, mas vó de Maraza revoltada porque os

katukina mataram o marido fugiu e se juntou com os paumari. Maraza diz

que os mamori estão espalhados e misturados com os paumari, existindo

alguns velhos mamori legítimos e conta do aprisionamento de índios pelos

brancos “pego a dente de cachorro”, após o ataque catukina as crianças

mamori fugiam para o mato e se escondiam na toca do pau os jovens índios

Curari, nurru e outro maior que não se “adomava” com os brancos fugindo,

constantemente, um dia em uma fuga atravessando o lago a nado o índio

Katukina o perseguiu de canoa alcançando-o no meio do lago, o arpoo.

Maraza fazendo referência de uma conversa com um primo remonta a

história dos pais e avôs dizendo que o nome de seu povo é camadeni e

segundo o sogro makiri chama-se abadeni, mamori significa matrinxã e foi

um apelido dado pelas outras etnias. O relato revela diante as guerras

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construíram-se novas formas de casamentos e parentesco, grupos

diferentes casaram-se pela estratégia de sobrevivência. Maraza explica

“fumo atacado duas vez uma lá pra cima e outra no moco o pessoal correro

e foro espatifado”, seguiram e se espalharam ninguém sabe, mas se for

saber a história, os camadeni estão no mamoriá e outros se encontram no

xeruã e o Valdeci falou, se tua mãe for subir mermo, nós samo parente”. As

palavras de Maraza ditam um termo de auto-afirmação e deixa registrada:

“essa tribo existe mermo o povo mamori”. É preciso um estudo

aprofundado para reconhecer as alianças e os níveis de parentescos que

evolveram estes grupos indígenas no decorrer de duas a três gerações

anteriores.

Canutama a cidade de Manoel Urbano, Karipuna Maué e coronel Botinelly

A história destes três personagens ocupa a cidade, os registros estão

presentes na documentação e na memoria dos moradores que contam

diversos “causos” dos desbravadores da terra na época dos coronéis de

barrancos. Canutama era um ponto estratégico de parada após dias de

viagem subindo o Purus e também dotada de extensos seringais e

castanhais o que valorizava ainda mais a localidade.

Segundo os moradores seu fundador Manuel Urbano era dono da terra

viajante do Purus subia e descia o rio com os filhos deixando trabalhadores

espalhados na região para a coleta da seringa. Contemporâneo à chegada

de Manuel Urbano, o índio Karipuna Maués e Botinelly arrendaram terra e

construíram a base de seus negócios residindo, definitivamente, em

Canutama, enquanto Manuel Urbano esteve de passagem, como posseiro de

outras localidades do baixo ao alto Purus não tinha uma parada fixa.

A primeira impressão na cidade é de que não havia tantos indígenas

quanto em Tapauá, parece que os índios não detinham vínculos com os

parentes da aldeia. Eles contam que estavam amuito tempo sem manter

contato com a aldeia, a maior parte dos índios idosos relata que nasceram e

viveram na aldeia, saindo conforme as necessidades do trabalho e convívio

com os patrões, enquanto os adultos entre 30 e 40 anos nascidos na cidade

não conviveram com os parentes e contam que perderam vínculos com os

“parentes dos pais” os índios aldeados.

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Fotografamos diversos documentos datados de (1900 a 1978) e

encontramos algumas relíquias da segunda metade do século XIX, de (1870

e/ou 1890), os documentos de casamento servem de fonte para o

entendimento das relações de parentesco que se efetivavam por interesses

sociais e podem demonstrar as relações predominantes, por exemplo,

casamentos entre índios, brancos e negros, ou quais famílias casavam-se

entre si por enlaces políticos e econômicos.

O registro de batismo abre a possibilidade de revelar apadrinhamento

que se misturava aos negócios como forma de dominação e de amenizar os

ânimos conflituosos entre patrão e trabalhadores. Essa prática envolveu os

donos de embarcação, os proprietário terra de seringa e castanha, os

negociantes de madeiras, todos aderiram o “compadrio” angariando uma

rede de laços familiares afetivos que definia em muitos pontos a mão de

obra disponível por fidelidade e gratidão de parentesco, assim o trabalho

poderia ser realizado com êxito num universo escasso de trabalhadores.

O registro de imóveis apresenta os donos das propriedades na área

urbana e rural da cidade. Este documento dá um panorama geral da

população e as atividades econômicas mais realizadas do período, a

agricultura familiar, a pesca, o comércio, a hotelaria, os detentores do

grande latifúndio. A leitura destes livros possibilita a compreensão de como

se concentrava a população a partir das trocas, dos aviamentos e remonta

as dependências externas da cidade aos produtos de fora.

Karipuna Maué apresenta uma descendência indígena reconhecida pela

nova cartografia social no processo de reconhecimento dos remanescentes

indígenas do médio Purus, os registros públicos apontam cargos ocupados

pelos Karipuna na prefeitura da cidade, atualmente encontra-se apenas

uma família residente da área urbana e de parentesco com cearenses.

Enquanto Manuel Urbano da Encarnação está presente na memoria dos

moradores como o patrono da cidade, não consta registro do fundador

Manuel Urbano e de seus filhos na documentação do arquivo público da

cidade já que grande parte de sua vida esteve ativa nos meados do século

XIX a partir da década de (40).

O coronel Botinelly encontra-se registrado em muitos documentos,

grande proprietário de seringais adjacentes à cidade, dono de imóveis na

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área urbana, muitos moradores conhecem-no como homem trabalhador

e/ou violento, pai de muitos filhos requerentes da partilha aparecem no

livro de registro solicitando a parte na herança. O coronel foi o mais

presente na documentação histórica, desempenhando diversos cargos

públicos, por um longo período fez parte da vida política de Canutama.

Canutama detêm um cervo documental do cartório civil e judiciário,

assim como os arquivos públicos municipais da saúde e documentação

pessoal, um seringueiro aposentado como “soldado da borracha” é portador

da carteira de trabalho oficial distribuída pelo governo federal entre os anos

de (1940). As fotografias são acervos que documentam a história visual da

cidade de Canutama sobre guarda de particulares.

A equipe estava responsável por coletar os possíveis dados

epidemiológicos registrados pela secretaria de saúde do município,

procurando viabilizar o acesso aos pesquisadores da FIOCRUZ para o estudo

de endemias no médio Purus. Os casos mais comuns apresentados pela

população segundo os registros são a tuberculose, a hepatite, a

leishmaniose e acidentes com animais peçonhentos.

A tabela demonstrativa da secretaria de saúde remete uma escala de

trabalhadores e zonas, onde mais acontecem os casos – zona rural dispõe o

maior índice de incidentes e pode revelar que tipos de trabalhadores são

mais infectados ou os ataques mais recorrentes. Os casos de abandono são

constantes devido às vitimas serem trabalhadores de áreas rurais distantes,

tendo de tomar durante trinta dias o medicamento no posto de atendimento

na cidade.

Os pacientes abandonam o tratamento devido ao trabalho diário na

roça ou a pesca, alegando que não podem deixar de alimentar a família

ficando tanto tempo na cidade. No caso o doente do sexo masculino ou

feminino exerce uma função fundamental no manejo “alimentar de

subsistência” da família que necessita de cada braço para manter a comida

em casa. Após os constantes abandonos o doente retorna ao tratamento

devido ao agravamento da doença.

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Lista de documentos do arquivo público de Canutama

1909 – livro de registro de decretos, resoluções e mensagens do

superintendente na ocasião e por um longo período da história de

Canutama Theodoro dos Reis Botinelly elaborador do regulamento de

serviço do mercado público, do arrendamento de seringal, outras obras

públicas e construções vigentes entre os anos de 1904/07 a 1910, pelos

registros documentais figura pertinente envolvida em negócios com a

prefeitura em diversos documentos, este personagem está presente.

1911 – folha de pagamento da prefeitura quantidade de funcionários,

valores de vencimento distribuídos os seguintes cargos: secretario,

procurador, escriturário, fiscal, superintendente e os salários variavam

sendo os valores mais altos entre 150,00 e 400,00 reis esse demonstrativo

do corpo administrativo elucida diversas atividades econômicas que

envolvia a cidade de Canutama no seu perímetro urbano e rural.

1911 – livro de demonstrativo das verbas da receita do orçamento

vigente no 1º semestre e a classificação das secretarias por verbas

arrecadadas e orçadas. Resumo do balancete apresentado pela procuradoria

relativo ao 2º semestre dispondo dados da saúde Pública e estatísticos das

inundações anuais.

1923 – Folha de pagamento de da Superintendência do município de

Canutama.

1926 – a receita do município determina o valor oficial da borracha

exportada, contando ainda a renda do seringal municipal, apresenta os

alvarás e licenças. Consta também as despesas orçamentarias: subsídios

dos intendentes e do prefeito, manutenção do posto de fiscalização e os

gastos com profilaxia rural.

1927 – ata de reunião da superintendência municipal de Canutama

aparece o nome de Lyrio Botinelly, as primeiras sessões marcaram as

nomeações e encaminhamentos internos; votações e projetos de leis

aprovados.

1928 – O livro de terras apropriadas da Prefeitura Municipal de

Canutama, apresenta o termo conveniente das propriedades reconhecidas e

produtivas, neste documento o lançamento dos contribuintes das terras

apropriadas – indicativo de um dono ou proprietário eram extensas faixas

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vinculadas a floresta nativa consideradas propriedades privadas ou

particular – essas áreas variavam de 2,00 a 102.00 equitaries, na qual a

segunda maior propriedade do município registrada no livro pertencia a

Joaquim Freitas dos Santos Theodoro dos Reis Botinelly.

1932 – livro de imposto dispõe dos negócios circulantes da cidade e do

meio rural demostrando os mais variados arrimes de vida encontrado pela

população registrando-se o comercio de regatão forte agente atuante nas

comunidades rurais aviando produtos de Manaus a credito em troca de

borracha e outros produtos nativos pescado, agricultura, caça e madeira.

Compra e vendas de terrenos, pagamento de sepultamento, pagamento de

dividas ativas.

1932 – livro de cobrança de alvará e aferições de pesos e medidas,

registro de pagamentos de terrenos baldios, localizados no espaço urbano –

Renda do mercado público – serviço de agua – renda pecuária cobrança de

divida ativa e outros.

1932 – livro de lançamento do imposto e alvará do ramo da indústria e

do comércio este documento discorre sobre muitas localidades que

potencialmente apresentam características de propriedades atuantes no

ramo da economia gomífera: a primeira citada é o cafezal situado na terra

firma, localizado a margem direita do Purus, mesmo não especificando as

atividades comerciais o documento nos dá o nome da propriedade ou

comunidade, o nome dos donos, a extensão das terras e as taxas dos

impostos.

1939 – livro de contrato de arrendamento do seringal Havana da

Prefeitura de Canutama.

No ano de 1951 há um documento de indicação da Assembleia

Legislativa do Estado do Amazonas, enviando ao município de Canutama

um protesto enviando perante o Ministério da Agricultura contra

permanência do Sr. Feliberto Camargo na direção do Instituto Agronômico

do Norte segundo o documento em virtude dos seus constantes atos de

traição a Amazônia, dissidência – falta de cuidado, negligencia – pelos

interesses econômicos da região. O ano de 1971 o livro registrava a

prestação de contas Fundo de participação dos municípios no período o

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prefeito de Canutama seria Geraldo Monteiro da Silva que administrava o

seringal Havana propriedade da prefeitura.

1963 – pasta de ofícios de recebidos pela prefeitura de Canutama.

1965 – lei orçamentaria Municipal orçou a despesa e estimou a receita

para o exercício de 1966.

Ainda no ano de 1970 encontramos a demonstração da receita global

do exercício fundiário de prestação de contas do Fundo dos municípios ao

TCU. Outro documento que registra a importância das atividades nos

extrativistas da coleta da borracha foi o Projeto da Câmara municipal de

Canutama – Projeto lei nº 6 do vereador Abelardo Jardim Maués, onde

procuramos depreender do texto a essência do negócio. No artigo: 1. Ficou

definido que cada seringueiro arrendatário teria de pagar (40,00) quarenta

cruzeiros de imposto. 2. O agente descontaria o pagamento no ato do

arrendamento de suas estradas. 3. Também estando sujeito ao imposto de

(5,00) cinco por cada tartaruga comercializada. 4. Imposto de (5,00)

cruzeiro por cada alqueire de farinha produzida e retirada para outro

município. 5º Imposto de (20,00) cruzeiros para cada pescador considerado

profissional e (100,00) cem cruzeiros para proprietário de feituria.

1968 – O relatório de contribuintes do município de Canutama

destinando a prestação de contas a Secretaria da Fazenda estava a errata

dos anos de 1968/69/70/71 registrada as rendas com os nomes de

contribuintes em destaque consideramos os seguintes modelos vinculados a

atividade produtiva de Canutama: 16 seringalistas ,11 comerciantes e sete

ambulantes – este estereótipo se refere no documento como de motor,

embarcações que transportavam passageiros e as especiarias extrativas.

Ainda no ano de 1971 está registrado um fato de estrema relevância e

que não havíamos encontrado noticias de tal ocorrência uma pasta com

contratos de locação de um seringal pertencente a prefeitura e que

comumente firma contratos de locação de estradas a seringueiros que

individualmente solicitavam as parelhas de estradas a prefeitura, estando

registrado no documento a forma de pagamento seria por meio de 60 kg.

de borracha bruta dividido em duas parcelas com o pagamento de 50% em

quinze dias de trabalho e o restante quinze dias depois. O contrato de

locação detinha (9) nove clausulas que continha em anexo, o requerimento

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do seringueiro escrito a mão ou datilografado perante a prefeitura. Cabe a

nossa reflexão indagar, primeiramente, qual o procedimento no caso

daqueles não alfabetizados? E quem eram as testemunhas? Apresentando-

se a partir daí uma serie de questões pertinentes ainda em procedimento de

analise.

A fala de Sebastião Banawa, trajetos e andanças de um povo em contato com os brancos

Sua avó era branca, subindo o Purus de navio perdeu o marido por

picada de cobra, então a viúva não quis mais subir ao Acre, decidiu ficar no

Santo Antônio, onde ela namorou e se juntou com um homem branco.

Foram residir no centro – terra firme. Havia dois “cabocos banawa”

perversos mataram a família dela e levaram duas meninas, matando uma

em viagem, chegando à aldeia confessaram ao avô de Sebastião o tuxaua

retirou todo o grupo da aldeia entrando a mata sem deixar rastros, em suas

palavras não quebrando mato e proibiram os índios assassinos de

prosseguir com o grupo, segundo Sebastião ele sabia que os brancos iriam

atrás para vingar a morte.

A punição de pena de morte aplicada determinava que os condenados

deveriam ficar e esperar as consequências, e assim aconteceu, a regra

moral instituída na figura do cacique se fez valer, os índios descritos como

perversos ficaram acatando a palavra do Cacique e consequentemente

mortos. O cacique criou a menina e ela passou por todo o ritual banawa,

ficando por um ano presa no curral e ao sair foi surrada assim incorporada

ao mundo dos adultos. Com o tempo foi cortejada e o avô de Sebastião

decidiu casa-la com o próprio filho.

Sabastião banawa narra a fuga. Viajou a noite inteira sem paragem,

o caboco subiu no galho do pau e ouviu o sapo, e então deduziu o igarapé

está perto chegou ao local conhecido como banawa cheio de matrinxã.

Conta também que antes no Apituã o pessoal – branco tinha medo deles. O

tempo passou e o pai de Sebastião decidiu ser amansado pelo branco, um

período que faltava tudo, não tinha ferramenta para brocar e a falta de

roupa e alimento, a roça era pouca e não dava conta de sustentar o grupo.

Os banawa vivem do recurso da terra, devido à escassez alimentar se

deram os primeiros contatos, Sebastião acompanhou o pai em

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determinados pontos da mata onde os brancos deixavam fósforos e

terçados. Certo dia os índios escondidos observando os brancos, sem serem

vistos, decidiram conversar aproximaram-se e conheceram os jamamadi

amigos dos brancos e responsáveis por amansar os banawa que fecharam

negócio. Como a terra indígena era muito distante decidiram vender a

castanha sem precisar sair para transportar até a cidade.

Dentro de uma negociação tensa, ambos os grupos se reconhecendo,

os jamamadi convenceram os banawa que decidiram descer, dias depois

Sebastiao foi para a cidade em busca de negociar castanha, fechando

negócio com o rapaz que namorou sua irmã e Sebastião casou-se com uma

moça branca de Canutama, após o casamento ficou um ano residindo na

aldeia e como tinha muita malária, voltou para Canutama com a esposa

grávida. As filhas cresciam e necessitavam da escola o que levou Sebastião

a viver mais próximo a cidade.

Ana Banawa complementa a fala do pai e conta o motivo do

descimento da aldeia do pai tuxaua, por ser casado com uma mulher branca

que não aceitava o confinamento e nem a surra que as filhas teriam de

sofrer – rito de passagem realizado para a troca do sangue da menina. Ela

tinha poderes maléficos podendo matar um homem pelo olhar, amarrando-a

em um tronco de madeira os homens adultos com quatro cipós iriam surra-

la, a finalidade é o sangramento e a retirada do sangue significa a perda

dos poderes maléficos agora a moça estaria apta a conviver com o grupo

sem representar perigo.

Ana falou do problema enfrentado pelo pai ao não deixa-las serem

“peiadas” tiveram de sair da aldeia, o pai juntamente com o tio tiveram a

autoridade questionadaperdendo a função de cacique, mas segundo ela o

respeito de liderança continua com eles, o fator que influenciou a decisão de

Sebastião foi à esposa branca não aderir aos costumes, nas palavras de Ana

Banawa “era muita judiação”. Mesmo assim Ana Banawa ressalta a

importância da tradição e afirma que a prática ainda acontece na aldeia

Banawa, o período é sucedido por uma grande festa.

O projeto nova cartografia social que se realizou na região do Médio

Purus mapeando as terras indígenas e reconhecendo os povos indígenas

apresentou uma inusitada questão dos banawa entre a geração de

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Sebastião e a geração de seu pai, quando crianças foram registradas na

certidão de batismo consta o nome jamamadi e no momento do

reconhecimento da RANI documento de identidade indígena os filhos e

netos não se reconheciam mais como jamamadi, pedindo para serem

reconhecidos como povo Banawa. Este acontecimento revela a dinâmica da

cultura e as mudanças ocorridas por três gerações no reconhecimento

“indentitario” do grupo em um curto espaço de tempo.

Ana Banawa conta que os coronéis donos dos seringais e castanhais

dentro do igarapé do Quaru e Gessuã adentravam território indígena

ocasionando conflitos, a entrada dos brancos se dá até os dias de hoje em

busca da riqueza das terras dos índios. Após a demarcação da FUNAI, os

castanhais e seringueiras ficaram dentro da terra indígena e os coronéis

tiveram de sair, ela contou ainda que conhece a família dos Gomes donos

de seringais e que tiveram um filho, prefeito de Canutama chamado coronel

Gomes.

O Forte Veneza, terra de seringal que os patrões brancos se

consideram dono, agora fica dentro de uma RESEX – Reserva Extrativista,

Ana afirma as pessoas estão sabendo que os brancos não são donos, e sim

a terra é área indígena, cita a comunidade de santo Antônio do Apituã

residência dos banawa e paumari como outro ponto em disputa. Segundo

ela o movimento indígena está em luta pela demarcação da terra e os

patrões devem reconhecer que não tem direito sobre a terra.

João Cícero fala dos coronéis de barranco

Os proprietários da terra mandavam na terra, quem escravizava o

índio e o cearense eram os coronéis, muito dos refugiados do nordeste,

vinham em busca de abundancia e riqueza, na chegada encontrava um

ambiente diferente, e tendo enormes dificuldades de adaptação teriam de

trabalhar para os coronéis, segundo João Cícero nada poderia ser tirado da

propriedade do patrão sem autorização, pescado, caça e frutas. O poder de

domínio era hegemônico, citando o nome do grande coronel Botinelly, visto

como um grande reprodutor dono de prestígio, servido de todo tipo de

honraria, inclusive os seringueiros entregavam a própria filha para

engravidar do coronel, o laço era visto como honra.

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Cicero descreve algumas propriedades e os nomes dos donos o

Coronel Luiz Gomes no são Luiz do Cassianã, no Sepatini o coronel Cesar,

no sebastopol tinha outro coronel, Meteripuá o mais perverso coronel

Ambarino temido pelos seus capangas os guarda costas, quando o freguês

estava reclamando não aceitando o jugo o coronel dava o bilhete dele –

mandava matar – a desculpa era que a cobra comeu ou o jacaré pegou, isso

funcionava como explicação para o sumiço de pessoas, João Cícero lembra

ainda da época da eleição o velho Pedro Noronha e seus trabalhadores

trazidos do rio grande do norte a terra natal, seu filho Vicente Noronha dizia

“aqui tem oitenta eleitores (80) são oitenta votos para o candidato que nós

queremos, e ai deles que não votem para os nossos candidatos”.

Raimundo Gomes cearense seringalista

Nascido no seringal forte Veneza herdou e comprou a propriedade dos

irmãos que não gostavam do negócio da borracha preferiram levar a vida

na cidade de Manaus. Conta sua experiência como seringalista e de como a

defumação de borracha passou pelo processo de mudança até o sistema da

borracha prensada, afirma que a crise retirou a grande maioria das pessoas

do seringal. No trabalho com o pai aprendeu marcar cada seringueiro tinha

um número para o controle de qualidade, porque os seringueiros colocavam

impurezas na borracha aumentando o peso da borracha, quando isso

acontecia à empresa J. leite trazia de volta a borracha e “nós ficávamos no

prejuízo então dava a conta do seringueiro”. Essa atitude era servia para

não dar mau exemplo aos outros.

Ainda hoje Raimundo atua no negócio o principal freguês é a prefeitura

fornecendo para o IDAM – Raimundo conta que atualmente tem uma

empresa de beneficiamento de borracha no Iranduba. Conhecedor da

história do seringal Havana administrado pela prefeitura, e de como

funcionava o pagamento dos contratos e da atuação dosficais responsáveis

por não deixar acontecer corte indevido que mata a seringueira. O contrato

estabelecia que o seringueiro pagaria a renda em cima de uma

porcentagem em torno de 20% para a prefeitura manter os funcionários.

O seringal da família de Raimundo Gomes fica a quatro praias da

cidade de Canutama, e diz que hoje em dia ninguém quer mais colher

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seringa. A família Gomes era também aviadores, Raimundo conta que os

principais fregueses do avô e do pai eram os indígenas coletores de sova e

seringa, trocando produtos por borracha, para conquistar a confiança deles

o avô passava uma temporada no meio dos índios. Raimundo Gomes

comprou a parte de todos os outros herdeiros, a propriedade tem título

definitivo e hoje fica dentro da reserva demarcada e só quem pode coletar

na área são os moradores.

A produção de borracha no seringal dos Gomes girava em torno de 20

e 30 toneladas Raimundo contou que os barcos já atracavam em Canutama

lotados de borracha e de como o sistema borracha prensada foi implantado

há uns 20 anos. Raimundo relembra a variedade de seus produtos; seringa,

castanha, madeira sempre envolvido em diversos negócios para manter o

lucro. Hoje o peixe aparece na fala de Raimundo como um produto bastante

atrativo ao comércio, mas que há uma dispendiosa engenharia de

transporte pelo rio mucuim até chegar à estrada, onde os caminhões

embarcam o peixe para Rondônia.

Raimundo Gomes conta que na sua gestão de prefeito implantou

reserva que melhoraram a vida dos moradores locais, e proporcionará o

crescimento da região, a reserva do jamanduá é modelo criada no ano de

1997, hoje tem uma safra de mais de mil tartaruguinhas, pirarucu,

tambaqui e outros pescados, existem três flutuantes funcionando como

posto de fiscalização havendo uma política de manejo visando à

conservação das espécies. Canutama é um município que depende

essencialmente do transporte fluvial por não ter saída pela BR, os lagos, os

igarapés e riozinhos – pequenos rios – são a fonte da subsistência daqueles

que vivem no Purus.

Marcelino Apurinã: feirante, agricultor e cacique na cidade de

Lábrea

A terra indígena Caititu fica situada na BR-230, Lábrea/Humaitá, a

entrada se dá pela fazenda Ernesto de Almeida, curiosamente, essa é

entrada mais próxima das comunidades indígenas. Uma segunda opção é o

rio Ituxi que dá acesso aos lagos e igarapés e ligam as comunidades

distribuídas numa área bastante extensa, a maior parte da atividade

produtiva dos indígenas é a agricultura e o extrativismo, depende do

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escoamento da produçãopela estrada, rios, lagos e igarapés alternando no

decorrer do ano devido a cheia e vazante dos rios.

A liderança da comunidade Nova Esperança é Marcelino Apurinã,

pessoa muito bem articulada, possui um ponto de venda na feira da cidade

vendendo produtos cultivados por sua comunidade; o principal produto é a

farinha de mandioca, piquiá, goma de tapioca, açaí e babaçu. Os muitos

anos de feira fez de Marcelino uma referência, muito procurado pelas

demais comunidades para vender a produção que sobra por falta de

conhecimento, os indígenas que encontram dificuldade nas vendas o

procuram como intermediário.

A entrada de Marcelino como intermediário é acordada pelo sistema de

meia, comprando dos demais produtores indígenas revende os produtos

responsabilizando-se pela qualidade do produto, dizendo “ajudo os coitados

que não tem para quem vender” com experiência o agricultor Marcelino

quebrou a presença do intermediário de suas vendas, ele é o próprio

negociante e se tornou intermediário dos “parentes” índios que não tem a

mesma habilidade do negocio na cidade.

Presenciei a compra de três latões de goma de tapioca os dois garotos

chegando do quilometro 26 carregando numa moto os galões. Marcelino

logo perguntou se a goma estava misturada com água afirmando que a

goma rocha mesmo sendo gostosa perderia seu valor porque as pessoas da

cidade não gostam muito dessa cor, os garotos responderam que sim

estava conservada da forma que Marcelino aprovava.

Descansaram, jogaram bola, conversaram tomaram pinga e quase

duas horas depois foram pesar a goma, Marcelino pegou sua balança

manual pendurou no esteio da casa e pesou os latões, adiantando quarenta

reais deixando para pagar o restante no apurado dizendo “levaram meus

últimos quarenta reais mais vou ajudar e ver o que faço vieram lá do (26)

vinte seis – quilometro – e não tem venda, ninguém quer, eu fico pra ver se

ajudo” o sistema é de meia e sustenta os interessados na venda, as

relações de dependências são mutuas entre os indígenas daquela

comunidade.

Marcelino tem boa credibilidade na cidade, na feira as pessoas o

procuram bastante atrás de produtos de boa qualidade, ao fechar com um

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parceiro a “meia” é ele quem avalia a qualidade e logo diz qual nível se

encaixa o produto, se é de primeira, segunda ou terceira qualidade e diz

que vai vender conforme o produto se encaixe. O trajeto ocupado por

Marcelino atuante como feirante e pequeno agricultor.

Marcelino Apurinã conta sua história e como foi difícil à saída da aldeia

segundo ele “faltava preparo”, idas e vindas marcam as tentativas de se

estabelecer na cidade, ao todo foram três tentativas. Em todas as

colocações que ele trabalhou colocou roçado um costume ensinado pelo pai,

um momento extremo narrado por ele foi estar desempregado na cidade,

com fome, a esposa e o filho pediam para voltar ao centro – aldeia indígena

– Marcelino aponta uma das dificuldades de se viver na cidade é querer

manter o mesmo estilo de vida da aldeia.

Passando por estas dificuldades foi até um proprietário e pediu um

pedaço de terra para plantar, concedido o espaço resolveu chamar a terra

de “nova esperança” que depois se chamou “novo Paraiso” porque hoje

disfrutam aos benefícios da terra. Conversando com sua esposa decidiu

pedir emprego ao gaúcho próximo ao seu roçado, em suas palavras havia

apenas brocado a terra – fase de derrubar, queimar e abrir o roçado.

Meses depois chegou um garimpeiro experiente, sabedor que

Marcelino possuía conhecimento da mata, estava atrás de uma cassiterita

encontrada há 28 anos por um parceiro que ficou doente retornando e

deixando a descoberta para tráz. O patrão gaúcho não queria que Marcelino

saísse, mas o dono da fazenda, o prefeito autorizou a viagem de Marcelino,

como forma de retaliação o gaúcho cortou o salário que só foi pago o

primeiro mês a mulher de Marcelino, ao chegar de viagem ele decidiu não

trabalhar mais com o gaúcho e o prefeito.

Desempregado mudou-se para a terra, a roça estava pronta na época

em que os técnicos do IDAM – Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e

Florestal Sustentável do Estado do Amazonas veio observar a comunidade,

chegando a orientarem que Marcelino fizesse coloral do urucum, mesmo

sem preparo – projeto de treinamento – e nem os mecanismos adequados

deu andamento a produção. O primeiro financiamento pelo BEA – Banco do

Estado do Amazonas o valor de 1.600,00 reais não deu certo porque o

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alqueire da farinha estava avaliado 25 cruzeiro por alqueiro saindo 50

cruzeiro a saca plantaram esperando a renda para quitar o empréstimo.

No outro ano quando desmancharam dez alqueires de farinha, não

encontraram venda, não tinha comprador porque o preço da farinha caiu

consideravelmente a 5,00 cruzeiro o alqueire. A falta de informação e

planejamento anual derrubou o negocio e por não saber negociar com o

banco caiu inadimplente, chegando à dívida a doze mil reais (12,00 mil)

ficando doze anos sem poder fazer empréstimo, na ocasião o promotor

chegou a requerer alguns bens da comunidade como forma de pagamento

da dívida.

O novo financiamento feito pela esposa para compra do forno, segundo

Marcelino o valor do financiamento não é ineficaz, o crédito precisa ser

aumentado, o valor pretendido seria de 10,00 mil, voltado exclusivamente

para o plantio da mandioca porque o governo não tem a flexibilidade de ver

uma plantação diversificada como a indígena que cultiva milho, macaxeira,

mandioca e outros cultivos simultaneamente,descontente Marcelino lamenta

“agente não trabalha só com mandioca, minha propriedade tem tucumã,

babaçu, tem que ser levado em consideração o que eu têio na terra, eu

trabalho com muita coisas”. A lógica indígena de plantio é incrivelmente

extensa, não se planta apenas um tipo, mas vários o roçado é diferente da

agricultura do branco.

Os técnicos da FUNAI – Fundação Nacional de Apoio ao Índio,

recomendaram a Marcelino não trabalhar com septícida alertando sobre os

riscos e a desvalorização da propriedade. Uma roçadeira é aguardada pela

comunidade que enfrenta a resistência governamental de liberação de um

motosserra. Para resolução de tais empasses Marcelino solicita a visita

periódica de fiscais em cada comunidade avaliando, a exemplo a madeira,

especificaria aqueles que derrubam a madeira e as comunidades que

utilizam a ferramenta somente no manejo do roçado.

Para Marcelino o ideal é trabalhar com reflorestamento “temos que

produzir e vender para comprar a comida, pois na terra indígena não tem

um rio de grande porte ou igarapé que sustente a comunidade com peixe e

a caça que é pouca”, Marcelino em suas palavras não deseja derrubar mais

árvores, juntou os jovens da comunidade para reflorestar o pasto da

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extensão de 60 a 80 equitaries e enfatiza nas comunidade a dificuldade de

recurso é muito grande.

Ainda em Lábrea fomos convidados pela FOCIMP – Federação das

organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus a participar de uma

reunião que aconteceria com os paumari moradores do rio Ituxi na

comunidade do Araçá, o assunto seria a divergência entre os indígenas

sobre a retirada ilegal de madeira das terras indígenas e os eventuais

roubos de castanha que estavam acontecendo nas terras do (Bit - apelido)

um vizinho branco morador antigo que tem parte da extrema do terreno

fazendo extrema com a terra indígena.

Estavam presentes na reunião as comunidades do Araçá, de ilha

verde, sicibú, tacuapé, a reunião foi dirigida pelo cacique Raimundo Lopes,

João Baiano da FUNAI, e o coordenador executivo da FOCIMP Zé Bajaga, o

objetivo era trazer propostas e encaminhamentos para a resolução do

problema no intuito de evitar possíveis conflitos nas comunidades. Uma

breve avalição dos indígenas apontou como causa de conflitos na área a

entrada das frentes extrativistas – madeireiras invadindo diretamente as

terras indígenas, ou incentivando a entrada de posseiros.

Uma causa em comum marcou a discussão da reunião, o problema

principal segundo os indígenas, estava acontecendo devido aos próprios

parentes – índios – que não moravam mais na terra indígena. Residentes na

cidade de Lábrea formaram laços familiares com brancos e adentram a terra

indígena, somente, para usufruir a riqueza no período de coleta ou para

caçar e pescar, trazendo consigo os parentes brancos retiram e vendem a

madeira sem o consentimento das lideranças locais.

Zé Bajaga falou das necessidades do Purus como um todo e afirmou

que há necessidade de se fazer aliança com forças institucionais de âmbito

nacional, reivindicando políticas territoriais direcionadas ao Purus. Para isso,

as comunidades devem permanecer unidas visando organizar projetos de

melhorias aos povos indígenas porque se isso não acontecer as conquistas

das lideranças do passado estarão comprometidas, Bajaga aponta o

caminho dizendo que a juventude deve ser preparada e questiona os

parentes por haver tantos problemas internos, o que fragiliza o movimento

indígena.

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Bajaga fala da intenção de divulgar os povos indígenas do Purus e

compara as outras partes da Amazônia, citando o caso dos tukano do alto

Rio Negro, formados pelos padres, mesmo com toda a violência e punição,

conquistaram os ensinamentos do branco. Enquanto no Purus os

missionários não passam o conhecimento da escola, apenas aprendem a

cultura do índio, não dando nada em troca. O objetivo do movimento

indígena é organizar com autonomia participativa as políticas direcionas em

assembleias, seminários e reuniões em conjunto com governo Federal

programas sociais de acordo com a realidade do Purus.

Para Zé Bajaga divulgar o Purus trará muitos benefícios, ajuda médica,

relata a conquista da CASAI – Casa de Saúde indígena, criada para atender

os índios de forma diferenciada com uma melhor logística, visitando as

aldeias e com uma base de atendimento e internação no perímetro urbano,

a partir de então a proposta é de avançar e conquistar cada vez mais os

programas, de nível nacional, implantados no Purus, eventualmente,

proporcionará o bem estar social aos povos indígenas.

João Batista conhecido como – baiano – agradeceu o convite do

cacique Raimundo paumari solicitante da reunião motivado pelos

recorrentes fatos ocorridos na terra indígena. Segundo João baiano os

problemas internos devem ser resolvidos pela liderança porque a equipe

técnica responsável de organização e gestão da terra deve atuar a partir de

um prévio levantamento feito e solicitado pela liderança da comunidade

apontando as reais necessidades dos paumari do Ituxi.

Baiano informou que o governo Federal direciona os projetos conforme

a FUNAI recomenda, e esta atende a demanda dos pedidos do movimento

indígena, e enfatizou que no caso da terra demarcada entregue aos índios é

responsabilidade deles administrar. A quantidade de pessoal do governo é

insuficiente para a realização dos trabalhos de fiscalização e aplicação de

projetos. Para João Baiano recai sobre os indígenas realizar a guarda do

patrimônio já que a terra é sua riqueza.

Existe um sentimento de insegurança, os índios paumari estão em

menor grupo que os brancos exploradores de madeira da terra indígena, as

pessoas relatam as forma de intimidação e ameaças de morte que vem

sofrendo pelos madeireiros armados. O cacique Raimundo diz “estão

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zombando e mentindo usando meu nome” os madeireiros invasores

espalham rumores pelas comunidades indígenas de que tem autorização do

cacique para entrar e retirarem a madeira.

O termino da reunião foi registrado o encaminhamento da comunidade

diante a FOCIMP e FUNAI referente à questão da retira ilegal da madeira e a

solicitação de possíveis projetos para a comunidade, ficou acordado a

liderança organizar a próxima reunião articulando a participação das

lideranças que não estiveram presentes naquele momento. Desta forma

cada comunidade estaria representada, encaminhando questões especificas

de suas necessidades proporcionando assim a participação de todos ou a

maioria sobre as decisões políticas da terra indígena dos paumari do Ituxi.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O período em campo ascendeu à interação necessária par

descobrirmos a dimensão humana e territorial do médio Purus, mesmo que

limitada pelo tempo, a tentativa é apreender as características das cidades

visitadas e de percebemos como elas produzem sua falas e são capazes de

reproduzir a própria narrativa histórica. Ouvimos as pessoas, olhar os

espaços e escrevemos nossas impressões. A etnografia permeia assim todo

trabalho de campo, os registros do caderno e nas reuniões diárias do grupo

compartilhando ideias sobre as conversas com os entrevistados, as

fotografias e os vídeos também revelam esta perspectiva do contato direto

e da observação participante.

A partir da coleta de documentos que remontam parte da história do

Purus procuramos criar um banco de dados a serem disponibilizados no

NEAI: o material recolhido no acervo público das cidades de Tapauá e

Canutama com oito livros raros da segunda metade do século XIX (1870-

98); o período de 1900 apresentou uma quantidade expressiva de material,

recolhemos uma grande quantidade do arquivo público da prefeitura e do

cartório civil.

Lábrea é a cidade com a maior quantidade de documentos públicos.

Em Lábrea tivemos acesso ao acervo de livros dos irmãos marista inclusive

de fotografias. Infelizmente, não houve tempo suficiente para a

digitalização, uma vez que ficamos dependendo de uma autorização

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institucional para fotografarmos os documentos do arquivo público. Fica a

sugestão de uma possibilidade de aquisição dos documentos, e também do

acervo público - dependendo do grau de sua importância a vida útil

estimada pode ser de dez (10) a cinquenta (50) anos aproximadamente,

com o risco de incineração por determinações legais da justiça.

O material das entrevistas está em processo de transcrição, as estórias

daqueles que viveram os acontecimentos, ou por meio da memória

contadas por seus pais e avós. Reproduzido pela oralidade o conhecimento

se estende para as gerações de filhos e netos. Assim o costume indígena ou

caboclo conserva seus modos de crenças, rezas, festas, formas de caçar e

pescar, conduzindo a relação do homem com o meio ambiente e suas

espécies nativas extraídas seja para venda ou subsistência familiar.

Para a análise dos documentos procuraremos confrontar as

informações teóricas com a realidade social pensando em articular a

composição dos dados estatísticos e verificando similitudes e autonomias de

produção desenvolvidas pelas múltiplas sociedades do Médio Purus dotadas

de características singulares entrelaçadas por redes sociais muito próximas.

Portanto os documentos, as bibliografias e as etnografias produzidas sobre

o Purus formam um conjunto de fontes que devem ser reunidas para um

aprofundamento analítico.

A antropologia parte da subjetividade da nossa linha de pesquisa,

procura investigar a cosmologia indígena, para tal realização é de suma

importância à releitura de documentos oficias complementares a etnografia

dos povos do médio Purus, buscando evidenciar certos temas e assuntos.

Com os objetivos previamente estabelecidos de cruzar dados quantitativos

contidos em acervo documental histórico, contidos nos livros de casamento,

de óbitos, de imóveis, alvarás e reuni-los aos dados qualitativos por meio

de entrevistas utilizando o recurso da história oral.

Passa ainda por elaboração uma apresentação iconográfica das

imagens registradas no percurso da viagem, um recurso que antropologia

utiliza mostrando percepções humanas reveladoras do meio social, relações

de parentesco, expressão corporal, sociabilidades incomuns, nem sempre

perceptíveis na escrita ou na oralidade. Esperamos que este relatório seja o

início de uma série maior de produção acadêmica da Expedição Purus 2012.

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O SISTEMA DE PRODUÇÃO DA FARINHA EM CANUTAMA, MÉDIO PURUS (PARTE I)

Alba Garcia

INTRODUCCIÓN

El objetivo de la presente investigación fue estudiar los sistemas

productivos de la región del Medio Purús, en concreto, se estudió en detalle

el proceso de elaboración de la farinha de mandioca, en la localidad de

Canutama. El estudio que elaboramos fue abordado desde un punto de vista

multidisciplinar donde confluyen varios campos del saber científico para

tener, de este modo, una perspectiva más amplia del tema, y por tanto, un

conocimiento más rico de la realidad que venimos estudiando, esperando,

que favorezca de esta forma, no sólo la definición y problematización del

objeto de estudio sino también el planteamiento, desarrollo, resultados y

conclusiones de la presente investigación.

Este equipo multidisciplinar abordó por tanto aspectos de diferente

naturaleza de manera conjunta, de tal forma que aunque cada cual

supiéramos exactamente en qué aspectos debíamos centrar nuestra

investigación, de manera constante y diaria contrastábamos las nuevas

informaciones que descubríamos y las conclusiones a las que nos hacían

llegar. Esto, para mí, fue clave en la investigación, tanto a nivel individual

como conjunta, ya que de este modo entre todos ayudábamos a

complementar nuestras investigaciones individuales y nos ayudaba a tener

en cuenta ciertos criterios y aspectos de otras áreas que estarían

influenciando directamente la nuestra. Prácticamente todos los compañeros

teníamos claro que nuestra investigación formaba parte de una mayor y era

imprescindible tanto el trabajo individual como el trabajo en equipo para

sacar conclusiones que tuvieran una perspectiva lo más amplia y rica

posible. Fue éste carácter de ayuda mutua, de complementariedad y de

compañerismo durante el tiempo que duró la investigación el que, sin

ninguna duda, creo que hizo posibles los resultados finales de nuestras

investigaciones.

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Carácterísticas del contexto donde se realizó la investigación

A continuación describiremos brevemente las características del

contexto en el que realizamos la investigación que resultan relevantes para

la siguiente pesquisa. El lugar donde se realizó la investigación por

aproximadamente un mes es una localidad pequeña localizada en el Médio

Purús llamada Canutama, al sur oeste de Manaus. Esta comunidad está

formada por grandes familias, la gran mayoría de agricultores y

recolectores, por tanto, existe muy poco comercio. Me llamó la atención que

en la ciudad no hay ningún mercado y en las tiendas de ultramarinos

escaseaban las frutas y verduras. Las personas que tienen huertas, plantan

para su propio autoconsumo. Solamente en ocasiones excepcionales se

puede llegar a vender el excedente, pero éste, en tal caso, es muy poco

representativo en volumen, y esto siempre acontece dentro de la ciudad

para familiares o vecinos.

En el municipio de Canutama y los alrededores, donde se encuentran

las áreas de cultivo, existe tan sólo una pequeña área de tierra firme y el

resto se inunda, lo que se viene denominando várzea. Las áreas de cultivo,

por tanto se hayan distribuidas, por tanto, en esta pequeña porción de

tierra firme y en la zona de várzea. Éste último terreno se ve afectado, por

tanto, por la dinámica del flujo de las aguas, con todas las consecuencias

que esto tiene.

Por tanto, es ese factor hídrico el principal criterio que tienen en

cuenta los agricultores de Canutama tanto a la hora de escoger los

productos hortícolas se van a plantar como en la elección de cuándo van a

ser plantados, y por tanto recolectados, para asegurar la alimentación

familiar de forma satisfactoria y estable durante todas las estaciones del

año.

Dentro de la cosmovisión de los agricultores de Canutama, en la

percepción del tiempo se tiene mucho en cuenta este aspecto sobre los

tiempos que necesita cada especie vegetal desde su plantación hasta su

colecta pasando por la fase de desarrollo y maduración de las diferentes

especies vegetales que se plantaron en los rozados. Es importante resaltar

que normalmente siempre, los agricultores de Canutama recolectan tanto

las especies que ellos/ellas mismos/as cultivaron como las que recolectan

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en el mato. Este hecho lo constatábamos cada día en expresiones como

“casi al mismo tiempo que la mandioca está llegando el açaí”, “después del

açaí viene la melancía” y declaraciones parecidas.

Importancia de la mandioca con respecto a las otras especies vegetales en la cosmovisión canutamense

Durante la investigación, encontramos entre la mandioca y el resto de

los productos vegetales tanto plantados como recolectados una relación

desigual en cuanto a la importancia simbólica que tiene para los habitantes

de Canutama.

La mandioca es la “estrella” de los rozados. El número y cantidad de

especies vegetales cultivados en los rozados de las diferentes personas

puede ser variable pero lo que es imprescindible es la presencia de la

mandioca en todos los rozados de todos los plantadores. Nunca se encontró

durante el trabajo en el campo personas que tuvieran plantaciones de

diferentes productos sin plantar mandioca; en cambio muchos eran los

casos en los que la única planta cultivada era la mandioca.

La elección de las variedades de manivas de mandioca que se van a

plantar, también está tomada en base a una representación simbólica de las

mismas. Hay grandes diferencias entre los diferentes tipos de especies de

mandioca, hay unas que rinden más que otras, otras que requieren mucho

más trabajo para obtener la misma cantidad de farinha, otras que dan

farinha más “bonita” etc.22 Los agricultores tienen en sus rozados una

relativamente diversa variedad de manivas de mandioca, no se limitan a

plantar solamente una especie. A diferencia de lo que se podría intuir, no

necesariamente se planta un número mayor de las manivas. (Para más

detalle consultar el relatorio de Thayná que lo explica al detalle ya que éste

fue su objeto de estudio)

Los productos que se pueden plantan además de la mandioca son

varios, entre los más comunes podríamos citar: el feijao de praia, la

22 Farinha bonita, desde el punto de vista de los habitantes de Canutama, es una farinha sin

granos demasiado grandes, sin palha y de color amarelo-mustarda, incidiendo notablemente

en esta última característica

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macaxeira, la melancia, el milho, el jirimú etc. Al ser una zona de várzea-o

de Praia- donde se plantan estos productos, tanto la elección de los

productos que van a ser plantados (y la variedad) como el tiempo de

plantarlos y recogerlos, va a estar determinado por dos cosas: la dinámica

de las aguas (el periodo de crecida y seca del río) y el tiempo empleado en

el trabajo de la mandioca para obtener la preciada farinha.

Es importante estudiar la importancia de la farinha de mandioca, por la

importancia y valor que tiene tanto a nivel nutritivo, como a nivel simbólico

dentro de esta sociedad determinada y las implicaciones antropológicas que

tiene el proceso de elaboración de la farinha desde el punto de vista de la

cosmovisión nativa, en este caso concreto, para los moradores de

Canutama.

Para estudiar este hecho, el enfoque clave es, principalmente, el

antropológico, pero se ha pretendido combinar este con el estudio de

algunos aspectos ecológicos y biológicos, siempre desde una mirada

antropológica, para tener una visión de esta realidad más completa.

Proceso de la elaboración de la farinha

Cuando cogemos los granos amarillos de la farinha de mandioca con

nuestras manos debemos tener en mente que son el resultado de un largo y

trabajoso proceso con varias etapas que describiremos a continuación.

Utilizaremos las mismas palabras que los agricultores de Canutama utilizan

para definir las diferentes etapas:

1. Plantar. Se realiza en el mes de junio/ julio, dependiendo de la

especie de mandioca y del área donde se plante (varcea alta, varcea baja,

terra firme…. Thayná en su relatorio contempla con detalle esto.

2. Capinar. Consiste en quitar las hierbas que crecen en el terreno

donde está plantada la mandioca y que pueden dificultar el crecimiento de

esta. Normalmente se hace un par de veces o las que ellos crean

necesarias.

3. Arrancar e decotar. Consiste en cortar primero las manivas para que

después el proceso de arrancar la raíz requiera menos esfuerzo. Una vez

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sacado el tubérculo de la tierra, se quitan los terrones de tierra con el

cuchillo y se cortan los extremos del tubérculo.

4. Botar de molho. Una vez obtenidos los tubérculos se les deja a

remojo por dos días en un charco, lago o barreño cerca del roçado y de la

casa de farinha para que la mandioca tire su veneno. Al cabo de dos días las

mujeres y los niños/as vuelven al lago o charco y recogen los tubérculos

con las manos y les retiran la cáscara.

Figura 4 – Decote de las manivas. Foto: Alba Garcia.

Figura 5 – Tubérculos en remojo. Foto: Alba Garcia.

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5. Prensar. Esta masa formada por la mandioca ya blanda después de

haber estado en el agua, se lleva a la casa de farinha, se coloca en una

especie de molde o plancha y después se coloca en un mecanismo diseñado

especialmente para escurrir la masa. Se deja durante algunas horas hasta

que la mayor parte del agua esté eliminada. Normalmente se deja

escurriendo al final de la tarde al terminar la jornada para tenerla lista al día

siguiente a primera hora y poder continuar con el proceso aprovechando

bien el tiempo.

6. Penerar. Se hace grandes peneras hechas manualmente con cipó

del mato o compradas de metal. Se va añadiendo la masa de la mandioca

poco a poco en la penera y las mujeres y los niños la mueven a lo largo y

ancho de la penera para quitarle los nudos, hebras y partes duras de la

mandioca, obteniendo así una masa libre de toda impureza (o puba como

ellos lo llaman).

Figura 6 – Prensa de la masa de la mandioca. Foto: Alba Garcia.

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7. Torrrar. Es el último paso y el más costoso. Poco a poco se va

echando la masa de la penera al horno debidamente caliente e hidratado

con aceite de girasol o soja en su justa medida. Son los varones quienes se

encargan de mover con un remo de canoa sin descanso la farinha en la

superficie del horno. Al principio es removerla y al final se tiene que

levantar la farinha con el remo y dejarla caer desde una altura de unos

40cm para que el viento se lleve las pajitas que los filamentos de la

mandioca formaron. Es importante no parar porque la farinha se quemaría.

Como es un proceso que requiere mucho esfuerzo, los varones se van

turnando y combinan un rato de trabajo y otro de descanso.

Figura 7 – Família penerando farinha. Foto: Alba Garcia.

Figura 8 – Varones torrando la farinha. Foto: Alba Garcia.

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Articulación y funcionamiento de las unidades productivas para la obtención de la farinha de mandioca

Desde el punto de vista de los habitantes de Canutama, el tener

farinha en la mesa y en casa en el almuerzo y en la cena por toda la

temporada, es como tener aseguradas las comidas en la mesa para toda la

familia por los próximos meses.

A partir de la observación directa de varias familias e de la

organización de las mismas en la producción de la farinha, se dedujeron

ciertas conclusiones que a continuación explicaremos con detalle sobre el

padrón inconsciente que los individuos siguen en la organización del sistema

productivo, mediante el cual, se va organizando esa unidad productiva para

la obtención y garantía de ese producto tan importante y tan básico, del

cual ningún miembro puede carecer en ningún momento del año.

Aclaremos en este punto que entendemos como “unidad productiva”

aquella organización específica de la fuerza de trabajo dentro de la unidad

familiar que se estructura y organiza de un modo concreto, no aleatorio ni

improvisado, formada exclusivamente con la finalidad de elaborar y

asegurar la farinha de mandioca para todas las personas que componen esa

unidad familiar. A continuación explicaremos con rigurosamente los detalles

del patrón que rige esta organización, cómo funciona, quiénes son sus

integrantes, sus características, forma de articulación etc.

Estudiando y comparando genealogías de diferentes familias y

relacionándolas con los sistemas productivos familiares que se producen

dentro de las mismas percibimos una línea común de organización de esa

fuerza de trabajo en sus respectivas unidades familiar.

Lo que antes parecía una organización anárquica o espontánea resultó

ser una elaboradísima y estratégica trama, resultado de un complejo

conjunto de “decisiones” inconscientes por parte de los objetos de estudio

guiadas por “su sentido común” (sentido común propio y específico de los

plantadores de Canutama).

Precisamente, la presente investigación desveló ese “sentido común”

particular y esa lógica concreta que subyace a la formación, organización y

articulación específica de las unidades familiares de los agricultores de

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Canutama que da lugar a la formación de esas unidades productivas que

organizan y optimizan la fuerza de trabajo que tiene la unidad familiar

Básicamente, este sistema productivo de la farinha de mandioca se

estructura en torno de la unidad familiar de pertenencia. Se puede decir,

que la unidad familiar se organiza de una forma específica que funciona

como una unidad productiva perfectamente organizada que permite integrar

a todas las personas pertenecientes a la misma, en cualquiera que sea la

circunstancia personal en la que se encuentren (por muy adversa que esta

sea), de tal forma que nadie quede fuera de ella. Esto permite así, para

todos ellos y ellas, tener asegurando durante todo el año, este producto

primordial en la alimentación, tanto a nivel nutritivo como simbólico como

es la farinha de mandioca.

A continuación vamos a explicar minuciosamente la hipótesis que

dedujimos tras la observación de campo. Cabe decir aquí, que estos

resultados procedentes de la investigación sobre una unidad familiar

concreta de referencia que es la familia de Seu Chicó y Angélica (por tanto,

la unidad productiva de Seu Chicó y Angélica y las unidades productivas que

se formaron dentro de la familia tanto de Seu Chicó como de su esposa

Angélica).

Posteriormente, el resultado de este análisis, se comparó con la

articulación de otras unidades familiares y productivas diferentes y se

planteó una hipótesis de formación, organización, articulación y

funcionamiento de las unidades familiares y productivas ante diferentes

circunstancias. Esta hipótesis se corroboraba en todos los casos que

escogimos para la comparativa, confirmando, de este modo, la hipótesis

planteada.

Se escogió la unidad productiva de la familia de Seu Chicó como

referente debido a su disposición e interés para ayudarnos con la

investigación, a su la facilidad de palabra y capacidad de reflexión y de

relacionar diferentes cosas que tiene Seu Chicó. De ahí se decidió que, ya

que el entramado del sistema está creado por relaciones de parentesco y

afinidad, él sería el conector perfecto que nos presentara al resto de la

familia y amigos implicados, debido a su don de gentes y el amor que todo

el mundo le profesa.

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Se analizó también, por extensión, la familia de su esposa, Angélica,

que es una familia grande donde se observaron diferentes casos que nos

interesaba abordar y contemplar en la investigación, como por ejemplo

casos de viudez masculina y femenina, divorcio etc.

En primer lugar y antes de pasar a la explicación detallada es

importante hacer una aclaración.

Durante la presente investigación, vamos a diferenciar dos diferentes

tipos de unidad para el análisis de esta situación; por un lado tenemos la

unidad familiar y por otro la unidad productiva. Ambas unidades están

íntimamente relacionadas y el segundo es producto de la organización de un

modo determinado de la primera.

La farinha tiene un papel primordial a nivel simbólico e alimenticio en

la vida de las personas de la comunidad. Esta relación queda clara la

siguiente declaración de una anciana del lugar “en la mesa puede faltar

arroz, puede faltar feijao, pero nunca puede faltar farinha”. En términos

alimenticios, es la principal fuente de hidratos de carbono en la dieta de la

mayor parte de los habitantes de Canutama.

A un nivel más simbólico, para todas las personas,

independientemente de su situación económico social, la farinha es un

producto alimenticio que tiene un valor privilegiado en el imaginario

colectivo.

En las familias de renta más baja, generalmente las principales

comidas consisten en un pedazo de pescado acompañado por la preciada

farinha. Las familias que se lo pueden permitir, alternan el pescado con

carne (pollo u otro tipo de carne como de buey o vaca…) y finalmente, las

familias de rentas más altas comen cualquier producto pero siempre

acompañado por farinha, en mayor o menor medida.

Como ya hemos explicado con anterioridad, en la cosmovisión del

agricultor Canutamense, su propio tiempo vital es vivido acorde a los

diferentes ciclos de las plantaciones y recolectas de los diferentes

productos; así tenemos el tiempo de la farinha e macaxeira por un lado, el

del feijao de praia, el del milho, y otros que se recolectan directamente del

mato sin haber necesidad de plantarlos como son el cupuaçú, el açaí, la

goiaba, la pupunha, la banana…

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Pero para organizar este esquema temporal de obtención de los

alimentos, se tiene muy en cuenta el tiempo que se ocupa en “la farinhada”

y acorde con eso, se van programando y organizando las anteriores y

posteriores siembras y actividades de recolecta.

En las huertas pueden variar los productos que se plantan excepto la

mandioca que es una constante en todos ellos. Es decir, puede que haya

melancia o no, se puede plantar más macaxeira, menos, o incluso nada,

puede que planten feijao o no… pero, con toda certeza, la mandioca es un

vegetal que no va a faltar nunca en ninguna huerta, inclusive en muchos

casos es la única cosa que se planta.

Por causa de esta importancia que se le da a este elemento en la

alimentación y en las propias estructuras sociales y familiares implicadas y

desplegadas en la producción de la farinha se decidió estudiar cómo

funciona este fenómeno, cuál es la lógica interna en la organización familiar

para dar como resultado ese complejo sistema productivo y este sistema de

relaciones estratégicas entre las unidades productivas tan efectivo y

estratégicamente planeado aunque de manera inconsciente.

La mandioca, en general, y todo lo relacionado con ella, tanto el

producto de la misma, la farinha, como todo el proceso generado a su

alrededor para su elaboración, es de vital importancia no sólo a nivel

simbólico, sino también desde el punto de vista de toda la estructura social

y familiar que se moviliza y articula en el proceso, y todas las

representaciones colectivas que se tienen en torno al mismo.

De la unidad familiar a la unidad productiva. Proceso de formación y organización

Como hemos explicado con anterioridad, Canutama es una población

pequeña formada principalmente por agricultores, y estos agricultores,

generalmente suelen tener familias grandes.Teniendo en cuenta que la

norma es que las familias sean grandes la unidad productiva se establece

del siguiente modo: (adoptando el criterio “nativo” consideraremos como

“grandes” aquellas familias que tienen más de tres hijos o hijas).

Para explicar nuestra hipótesis de la formación de la unidad productiva

nos basaremos en el caso de una familia nuclear formada por un hombre y

una mujer y los hijos varones y hembras producto de la misma.

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Pueden existir varios casos:

Mientras los hijos varones son jóvenes; esto es, si todavía no han

tenido hijos o ya se casaron y tienen pocos hijos (menos de tres). Para

abreviar usaremos la secuencia “JV” cuando hagamos referencia a este

término: hijos varones solteros o casados con pocos hijos que trabajan en

la propia unidad de producción familiar junto a sus padres.

En esta situación, estos “JV” continúan en su propia unidad de

producción de origen junto con sus padres y además, los que están

casados, incorporarán a su esposa a su propia unidad productiva. Como

vemos, en este sistema son los varones los que se quedan en la unidad

productiva de origen y además incorporan nuevos miembros para dar

continuidad a la misma y son las mujeres las que salen. La esposa de “JV”

sale de su sistema productivo original que formaba con su propia familia

para pasar a formar parte de la unidad productiva del marido y esto sólo

ocurre después del matrimonio o la el concubinato.

Cuando “JV” van creciendo y a medida que van teniendo sus propios

hijos, siempre que su familia sea pequeña –esposa y hasta tres hijos-

pueden seguir trabajando y obteniendo farinha de su unidad de producción

de pertenencia. Ahora, a medida que la familia de este “JV” va creciendo y

ya se tienen más de tres hijos o los que se tienen se van haciendo mayores,

en esta situación, este “JV” tiene que conseguir un roçado propio y formar

otra unidad productiva independiente formada por él, su esposa, sus hijos y

sus ayudantes, en el caso de que los hubiera.

En el caso de las hijas jóvenes mujeres continuarán trabajando en la

misma unidad productiva de sus padres y ganando exclusivamente farinha

de ésta siempre y cuando sean: solteras, separadas o abandonadas por su

marido (en estos casos no importa que tenga hijos o no, si los tiene, viven

con ella y son lo suficientemente mayores como para ser de ayuda en el

proceso, se incorporarán también a la unidad productiva materna).

En caso contrario, si las hijas están casadas y con varios hijos (el caso

más habitual), como ya se ha explicado, la hija será incorporada entonces a

unidad de producción de la familia del marido (en el caso de tener pocos

hijos –menos de 3-) o en el caso de que hayan tenido más hijos y formen,

por tanto, una familia grande, adquirirán tierra y formarán una nueva

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unidad de producción formada por ella, su marido, sus hijos y sus

ayudantes en el caso de que los necesitase.

Debido a la fortaleza de las relaciones familiares en este contexto,

especialmente de las mujeres con su familia consanguínea, esta hija nunca

se desvinculará por completo de la unidad productiva de sus padres y de

vez en cuando cooperará por el bien de su unidad familiar de procedencia

(bajo la forma de unidad de producción) en el trabajo de uno u otro modo

(a través de trabajo físico, préstamo de material, haciendo la comida para

todos en la casa de farinha…).

Si la relación con su marido termina, la mujer tiene varias opciones:

puede salir de la unidad productiva del marido (tanto si se formó una nueva

como si se trabajaba en la unidad productiva de los padres del marido) y

volver a la unidad de producción de origen junto a sus propios padres y

hermanos en las condiciones anteriormente explicadas, o bien ayudar a

algún hermano (normalmente separado, soltero o de familia pequeña) o a

alguna hermana (suele ser el caso según lo observado debido básicamente

a la fortaleza de los vínculos femeninos en este contexto) para obtener

farinha.

Si por decisiones personales, esta hembra separada de su marido, no

quiere implicarse de forma tan directa y completa a las unidades

productivas formadas por los miembros de su familia nuclear,

tambiénpuede tener un empleo asalariado en otro lugar y trabajar

esporádicamente en las roças de sus padres o hermanos/as, como se ha

explicado, para ganar la farinha.

En el caso de que la hija esté enferma, los padres o hermanos le

fornecerán a ella y a sus hijos, en caso de que los tenga.

En el caso de los hijos varones que formaron su propia unidad de

producción y por ciertas circunstancias esta se vio quebrada, se observaron

varias alternativas:

-continuar con su propia unidad de producción y vender el excedente.

Al ser poca fuerza de trabajo seguramente va a necesitar ayudantes,

normalmente suelen ser familiares, amigos o conocidos, (en este orden).

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- volver a la unidad de producción de origen. La farinha se reparte

entre los miembros de la unidad de producción y entre los propios

miembros de la familia, asegurando de ese modo que ninguno quede sin la

farinha básica que va a necesitar durante el resto del año.

Lo que se acaba de explicar es la estructura básica de la unidad de

producción y cómo y en qué circunstancias se van creando otras nuevas.

Pero también puede ocurrir el siguiente caso: unidades de producción en las

que trabajan las hijas casadas, y el marido de estas hijas y hasta los hijos

de este matrimonio trabajando en la unidad de producción de los padres de

ella.

Esto ocurre cuando:

- Los padres del marido no plantan (por tanto no es posible

incorporarse a la unidad de producción formada por la familia del marido

como sería lo razonable según la hipótesis plantea)

- El marido tiene otro trabajo alternativo como empleado de la

prefeitura, profesor, pedrero etc que le imposibilite por tiempo material

tener un rozado propio. Entonces la mujer en este caso, se mantiene o

vuelve a su unidad productiva de origen para asegurar la farinha para su

familia y el marido ayudará esporádicamente cuando sus obligaciones

laborales se lo permitan.

En este caso particular de que el marido tenga un empleo remunerado

estable según la hipótesis que acabamos de plantear era de esperar que,

teóricamente, la mujer se incorporase a la unidad de producción de los

padres del marido. Pero en este caso no es así. Para explicar esta situación

tenemos que tener en cuenta el carácter social de este proceso, desde que

se cortan las manivas de mandioca hasta que se almacena la dorada farinha

en sacos. Por tanto, la explicación la debemos buscar precisamente ahí, en

los vínculos familiares especialmente fuertes que las mujeres agricultoras

canutamenses mantienen con su familia consanguínea. De ahí que, ya que

el marido no está implicado en el proceso productivo por tener otras

obligaciones laborales, estas mujeres quieran pasar todo este tiempo

empleado en la obtención de la farinha y realizar todo este proceso y esas

actividades con sus familiares directos en lugar de incorporarse a la unidad

de producción de los padres del marido, en el caso de que fuera posible.

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Porque no sólo se hace farinha sino que se trabaja de un modo totalmente

social. En definitiva, este proceso productivo en general, y el espacio tanto

físico como simbólico proporcionado en la casa de farinha todo un conjunto

de importantes consecuencias personales y sociales.

Estrategias adaptativas de las unidades productivas para garantizar la producción en situaciones extremas

Se observó en el campo un tipo de estrategia específica que consiste

en la alianza de varias unidades productivas de tal forma que, todas ellas, a

través de la ayuda mutua, obtengan al final del proceso su parte de farinha

en situaciones límites donde la cosecha corre peligro.

Para este tipo de formaciones de estas características específicas

utilizaremos el concepto de “grupo corporativo”.

Esta alianzas son imprescindibles dadas las características de las

unidades productivas que las forman ya que son formadas en periodos de

máxima necesidad y urgencia, sin las cuales la obtención de la tan deseada

farinha no es posible para ninguna de ellas.

Tales acuerdos son realizados cuando es importante trabajar a un

ritmo rápido para aprovechar la mayor parte de mandioca posible debido,

normalmente, a una inminente inundación del rozado plantado en la várzea,

producida por fuertes lluvias y consecuentemente, una rápida crecida del

río.

Las unidades productivas que se alían formando este grupo corporativo

se caracterizan por estar formadas por pocos miembros. Por “pocos

miembros” entendemos: un matrimonio formado por un hombre y una

mujer y los hijos de estos en igual número o menor a tres y/u otros

parientes de alto grado de proximidad de parentesco.

Los casos más típicos de estas unidades productivas aliadas son las

constituidas por:

hermanos casados, divorciados o solteros con pocos hijos,

hermanas solteras o divorciadas (con o sin hijos) o casadas que no

formaron una nueva unidad productiva por tener pocos hijos o porque su

marido tenía otro trabajo que le impedía tener una roça.

cuñados que no formaron una nueva unidad productiva por no tener

hijos o tener pocos y sus padres o hermanos no tenían rozado propio, de tal

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forma que le es imposible incorporarse a unidades productivas de parientes

pertenecientes a su propia familia nuclear.

Además de ser unidades productivas pequeñas, otra de las

características es que estos miembros que las componen están ligados

entre sí por vínculos próximos de parentesco. Además, al tener sus rozados

adyacentes pueden compartir la misma casa de farinha. Esto,posibilita que

puedan establecerse más fácilmente relaciones de ayuda, intercambio e

inclusive alianzas y ciertos vínculos especiales de colaboración y ayuda

entre todos para que, por medio de la colaboración de todos los miembros

del grupo corporativo trabajando por un bien común, se consiga el beneficio

para a todos ellos en términos de obtención de la farinha a partir del

aprovechamiento de toda o la mayor parte de la mandioca de la roça.

Sin la existencia de este tipo de alianzas, todas las unidades

productivas saldrían perjudicadas. Apropiándome de las palabras del famoso

mosquetero, se podría decir que en este caso es una especie de “uno para

todos y todos para uno”.

Estas pequeñas unidades productivas se alían funcionando como si

fuera una sola, trabajando todas las personas de todas las universidades

productivas para multiplicar la fuerza de trabajo y realizar el trabajo en un

menor tiempo. En primer lugar se trabaja en los roçados que tiene más

peligro de inundarse para pasar posteriormente al resto.

Sólamente gracias a esta estrategia de compromiso y ayuda recíproca

de todas las unidades productivas se obtienen resultados que benefician a

todos los miembros en momentos inesperados y dramáticos donde está en

riesgo para todas las unidades productivas la posibilidad de recoger a

tiempo toda la mandioca que se plantó y torrarla, para obtener la tan

preciada farinha.

Ilustremos este planteamiento teórico con un caso práctico.

Pongamos por ejemplo el caso de la familia de Dona María de Fátima.

El grupo corporativo formado en torno a ella está formado por las siguientes

unidades productivas:

María de Fátima, su esposo Augusto (Chiquiño) y su hermano, Joao

Batista.

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Raimundo Nonato (hijo de Maria de Fátima), su esposa Luciclene, sus

tres hijos (dos varones y una mujer) y un ayudante, Dinio, también

pariente.

Josemar (hijo de María de Fátima), su esposa y dos ayudantes: su

primo Totó (hijo de Joao Batista) el hermano de su esposa y

ocasionalmente el hermano de su esposa que normalmente trabaja en la

roça de los padres.

Antonio de Jesús (hijo de María de Fátima), su esposa Francisca, su

único hijo Neném y un ayudante. Ese ayudante normalmente era el padrino

de Neném pero este año comenzó a trabajar en un puesto remunerado

mensualmente y ahora es la esposa de este padrino quien ayuda a Antonio

de Jesús (madre viuda que trabaja con la tía).

Forma de repartir la farinha

La cantidad de farinha obtenida dependerá del trabajo que se haya

realizado en la unidad de producción.

Si la unidad productiva que va a repartir es la familiar y tiene que

repartir entre los hijos varones (y puede que alguna hembra en las

condiciones que hemos explicado más arriba) se repartirá en función de las

necesidades de cada familia, porque normalmente se trabaja por igual. En

el caso de que se tenga que hacer el pago a ayudantes varones, la forma

más popular es hacerlo mediante “meia” es decir, a partes iguales, mitad y

mitad. Y se hace “meia” aunque el ayudante solo trabaje en la torrada

dejando el resto de los pasos a cargo de el y la cabeza de familia. Éste

último paso, el de torrar la farinha se considera el que requiere más

esfuerzo físico.

También debemos poner en relevancia que aunque algunos de los hijos

o hijas estén viviendo fuera de Canutama, los padres o los hermanos

varones integrantes de la unidad productiva familiar de referencia les

fornecerán de farinha (se constató este hecho especialmente en mujeres.

Eran varias las madres, los padres o hermanos que decían que mandaban

farinha a sus hijas que vivían en Manaus, a su hermana que vivía en Lábrea

etc.

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En el caso de las ayudantes que sean mujeres, lo normal es que no se

obtenga “meia”, sino que se establezca un acuerdo previo de un

determinado número de alqueros23 por el trabajo realizado. Las mujeres

ayudantes suelen obtener menos farinha que los ayudantes varones al final

del proceso ya que se considera que el trabajo que hacen no es tan pesado,

tiene un valor social menor y, por tanto, está peor pagado.

Existen también otros casos, pero menos representativos, que se paga

a los ayudantes con dinero. Esto ocurre cuando el ayudante en cuestión no

precisa farinha por estar fornecido por otro lado. Este era el caso por

ejemplo de “el Pelao”, un sobrino de Dude. “El Pelao” vivía actualmente con

su abuela, la madre de Dude, porque la madre de “el Pelao”, hermana de

Dude, nunca se había hecho cargo de él. Como los padres de Dude tienen

rozado propio y el “Pelao” tiene garantizada la farinha en la mesa, “el Pelao”

trabaja en la unidad de producción de la abuela ya que vive en la casa de

ésta y come y bebe (como ellos decían) allí, y además, ayuda a su tío Dude

del que recibe dinero como pago.

Aspectos simbólicos entorno al proceso productivo

A continuación pasaremos a explicar todo el entramado simbólico

existente alrededor del proceso productivo de la farinha. Conviene aclarar

que se entiende este espacio simbólico como un espacio abierto y flexible,

en constante reconstrucción y resignificación que va tomando nuevas

formas y valores nuevos con el paso del tiempo y de las circunstancias

sociales, lo consideramos un proceso dinámico en lugar de algo fijo y

cerrado.

En primer lugar, hablaremos de la importancia de tener rozado propio.

Esto está referido a los varones especialmente. Las personas que

configuran la sociedad que venimos estudiando atribuyen un valor muy

positivo a los varones que tienen un rozado propio en las circunstancias de

que se tenga una familia de más de tres hijos o hijas. Socialmente se

espera eso de un varón en dichas circunstancias. Como ya hemos explicado,

23 1 alquero = 40 litros de farinha

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desde el punto de vista de los agricultores canutamenses se considera el

hecho de tener farinha en casa una garantía del cuidado y el bienestar

alimentario de la familia; por tanto el varón que asegura esto para los

suyos, tiene la aprobación social de buen padre y cabeza de familia.

El caso contrario no está muy bien visto en este contexto. Este varón

del que socialmente se espera que, por sus circunstancias personales

tuviera rozado y no lo tiene, no obtiene la aprobación de su sociedad y se le

atribuyen calificativos bien despectivos como vago, irresponsable o se

piensa que no cuida bien de su familia.

Todo ello es resultado del valor simbólico que tiene en esta sociedad

que estudiamos la farinha de mandioca unido al hecho de que en este

contexto es el varón es el cabeza de familia y está bajo su responsabilidad

abastecer a su familia de comida suficiente con la que alimentarse y de algo

de dinero para comprar los productos imprescindibles para llevar una vida

sin grandes carencias.

La casa de farinha como espacio físico y simbólico

La casa de farinha es un lugar de trabajo y también es la extensión del

espacio privado, es un espacio público y también privado. Es el lugar de

trabajo pero también es el lugar donde toda la familia se reúne y conversa.

El proceso de producción de la farinha es el espacio simbólico que posibilita

Figura 9 – Una casa de farinha. Foto: Alba Garcia.

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las trocas entre los familiares, las relaciones de ayuda, de solidaridad, de

cooperación, de intercambio de cosas de diferente naturaleza, de trueque…

en fin, es un lugar de encuentro donde se fortalecen (todavía más) las

relaciones familiares y los vínculos de proximidad con otras personas

procedentes de otras unidades de producción sean procedentes tanto de

dentro como de fuera de unidad familiar. Por tanto, podemos decir que en

torno de esta actividad productiva y gracias a ella se establecen vínculos y

relaciones que crean y favorecen un clima de cooperación y solidaridad en

la comunidad donde el ambiente es hostil debido a las difíciles condiciones

de vida y la vulnerabilidad de las personas en este ambiente con

condiciones ambientales tan duras.

La casa de farinha, por tanto, no es solamente es un lugar de trabajo

sino también un lugar de encuentro, de diálogo, de diversión, de

intercambio de fortalecimiento y consolidación de relaciones. Ahí las

personas se reúnen diariamente en tanto dura la época de la farinhada y se

prepara gran cantidad de comida para todos para comer, beber, se ríe... Por

tanto, podemos decir que la casa de farinha es un espacio tanto público

como privado al mismo tiempo.

Los familiares directos como hijos, hermanos e inclusive losamigos

cercanos… suelen hacer todo lo posible para conseguir tener los rozados

cerca físicamente los unos de los otros y poder compartir la casa de farinha

o ayudarse más facilmente, y lo cierto es que según se observó en el campo

ocurre que casi siempre se consiguen pegando unos con los otros.

La sincronización entre dos unidades productivas en los diferentes

pasos del el proceso de productivo, posibilita que pueda compartirse ese

mismo espacio de trabajo simultáneamente entre ambas unidades.

El esquema sería el siguiente:

Por un lado tenemos una unidad productiva que está arrancando las

manivas de mandioca y poniendo de molho (esto va a durar

aproximadamente 3 dias). A partir deese mismo día los individuos de la otra

unidad productiva pueden tirar masa, prensar y penerar y usar la casa de

farinha para torrar durante esos tres días en el que la otra unidad

productiva no va a precisar de ella y viceversa.

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Todo esto es posible gracias a una coordinación adecuada y exacta de

las actividades de ambas unidades.

Normalmente la casa de farinha es compartida por familiares que

tienen los rozados próximos aunque puede acontecer que se comparta con

amigos de rozados próximos. También puede darse el caso de que

familiares o amigos que no vayan a utilizar por ese año la casa de farinha la

presten sin pedir nada a cambio.

Cuando en la casa de farinha trabajan varias unidad pertenecientes a

la misma familia, la propia unidad familiar va a ocuparse de adoptar

diferentes estrategias para así adaptar las diferentes unidades productivas

dentro de ella para así garantizar que todos los miembros y sus respectivas

familias queden abastecidos. En muchas ocasiones para conseguirlo, se

necesita de los intercambios y colaboración de otros familiares y amigos

para completar el proceso y obtener así la cantidad de farinha necesaria

para abastecer a todos los miembros y pagar a los ayudantes, en caso de

que los hubiera.

Casi siempre las unidades productivas en algún momento del proceso

necesitan de ayuda extra. Esta ayuda puede tener dos formas: una más

formal, permanente o estable que se materializaría en la contratación de

ayudantes para torrar o arrancar. Y la otra es otro tipo de ayudas en las que

no hay ningún tipo de retribución pactada de modo explícito, pero que son

muy importantes ya que favorecen la buena relación entre ellos y

fortalecen y crean lazos afectivos. Puede considerarse como tipo “favores”

que se hacen. Con frecuencia las personas de diferentes unidades

productivas van a necesitar este tipo de ayudas que serán proporcionadas

básicamente por familiares y amigos.

A lo largo de la presente investigación queda reflejada en todos los

puntos la importancia que tienen en este contexto los vínculos familiares y

sociales. Tener una amplia y fortalecida red de parientes y amigos asegura,

como hemos visto, el éxito productivo de la unidad familiar en la obtención

de la farinha como en otros muchos aspectos de la vida en los que se pueda

precisar de algún tipo de “favor”, ya que como se ha observado en el

campo, en esta sociedad se producen muy frecuentemente este tipo de

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intercambios sin pedir nada a cambio pero de los que se espera una

reciprocidad cuando en otra ocasión se precisare.

Este hecho de la importancia de tener muchos parientes se constata

cuando nos enteramos que, a después de casarse una pareja (o irse a vivir

juntos), la persona pasa a adquirir como propios los parientes de su pareja,

tanto próximos como lejanos. Es decir, que para la esposa, por ejemplo, la

hermana del marido de su cuñada pasaría a ser considerada una parienta

próxima como una cuñada o como una prima. Y la hija de ésta parienta

pasaría a ser como su sobrina. De este modo, y teniendo en cuenta que en

este contexto que venimos estudiando las familias son muy grandes, el

matrimonio es el mecanismo que posibilita ese aumento exponencial del

número de parientes y con ello el número de ayudas que pueden ser dadas

y recibidas.

Por tanto queda reflejado en el presente trabajo, el funcionamiento

sumamente colectivo de esta sociedad de agricultores canutamenses en

todos los aspectos de su vida y, en concreto, de la actividad productiva que

venimos analizando: la producción de farinha de mandioca. En este

contexto, no sería posible éxito de dicha actividad productiva sin la ayuda,

intercambios y diferentes formaciones estratégicas como ya hemos visto,

con otras personas que suelen ser parientes. Este último aspecto al mismo

tiempo, revela que esta sociedad además de funcionar de una forma muy

colectiva, lo cual favorece positivamente a todos sus integrantes, su

garantía de éxito asegurado, en prácticamente en cualquier aspecto de la

vida, se basa en tener muchos vínculos familiares fuertes y estables.

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O SISTEMA DE PRODUÇÃO DA FARINHA EM CANUTAMA, MÉDIO PURUS (PARTE II)

Thayná Ferraz da Cunha

INTRODUÇÃO

O presente estudo teve como objetivo investigar como se organizam

os sistemas de cultivo e beneficiamento da mandioca, focando-se assim em

descrever e analisar os aspectos sociais, cognitivos e simbólicos

relacionados ao complexo de produção da farinha na cidade de Canutama,

localizada no sudoeste do Amazonas, às margens do rio Purus.

Para alcançar os objetivos propostos, a equipe lançou mão de certos

procedimentos metodológicos como leituras gerais acerca da região do

Médio Purus e também sobre o tema proposto, realização de trabalho de

campo (observação participante), utilização de caderno de campo,

gravador, filmadoras e máquinas fotográficas e elaboração de etnografias

temáticas, croquis e genealogias. Desde o início do trabalho de campo, a

equipe guiou suas observações a partir de certos elementos-chaves que

viriam a ter inúmeros desdobramentos ao longo de sua duração: critérios

de identificação das variedades da espécie, técnicas de beneficiamento

adotadas, calendário da produção e organização/mobilização dos grupos

sociais em torno da produção de farinha. Além disso, tentamos também

descrever e compreender os conhecimentos nativos sobre o ambiente de

cultivo e as formas de diferenciação entre mandioca e macaxeira entre os

agricultores de Canutama.

O trabalho de campo na cidade de Canutama foi realizado em trinta

dias, entre os dias 11 de janeiro e 11 de fevereiro de 2012. Optamos

(Ingrid, Alba e eu) por realizar apenas a descrição na cidade de Canutama,

onde a rede de relações tecidas a partir do processamento de mandioca e

sua descrição técnica já pareciam por demais complexas.

Assim que chegamos, fomos recebidas no porto por Leandro, um

funcionário do IDAM que havíamos contactado previamente, justamente por

ser a única referência que possuíamos na cidade. Após alocarmos nossas

coisas no alojamento, fomos realizar uma visita inicial as áreas de cultivo

próximas à cidade (chamada de Baixa Grande). Nesse dia, conhecemos e

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conversamos com alguns agricultores que nos receberam muito bem em

suas casas de farinha. No fim dessa mesma tarde, enquanto estávamos

andando perdidas em uma parte da cidade mais afastada do Centro,

encontramos por acaso a primeira família que havíamos conhecido durante

a visita inicial daquele dia: a família de seu Chicó, composta por ele, sua

esposa Angélica e seus cinco filhos. Convidaram-nos para entrar e ficamos

conversando por horas com eles, com quem tivemos grande empatia. Como

no dia seguinte não iriam trabalhar na roça, nos convidaram para

apresentar uma área mais afastada da cidade onde há uma grande

quantidade de agricultores de Canutama plantando: a área da Beira do

Seringueiro. A partir desse passeio, nosso envolvimento com a família foi se

fazendo diariamente enquanto íamos acompanhando essa unidade

produtiva fazendo sua farinha. Esse tempo que nos dedicamos a isso foi

essencial não apenas pelas amizades que íamos construindo entre nós da

equipe que cada vez compartilhava informações e construía mais analises,

mas também com a família com quem convivíamos fundamentais no estudo

não só como observados, mas também como aqueles que muitas vezes

construíam esquemas de compreensão que iam de acordo com aquilo que

sabiam que observávamos.

O tempo em que nos focamos na convivência com essa única família

exclusivamente - mais por opção deles do que por alguma escolha nossa –

foi de inestimável importância por três principais aspectos: 1. participando

da produção de farinha deles íamos aos poucos ganhando familiaridade com

as categorias nativas, posto que eles tivessem paciência e generosidade

para nos explicar aquilo que perguntávamos ou que não entendíamos; 2.

conforme éramos apresentadas a diferentes agricultores íamos ganhando

confiança aos poucos e, sem precisar de nenhum tipo de aproximação

forçada, fomos construindo nossa rede de relações próprias que, baseadas

nessa aproximação, nos afastaram do universo de desconfiança dentro do

qual nos estávamos sendo classificadas como as ‘mulheres do IBAMA’ ou as

‘mulheres do governo’; 3. foi a partir dessa família que percebemos que era

a partir da unidade familiar que todo o sistema produtivo de farinha se

organizava.

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A partir dessa última percepção, ajustamos o foco de nossa pesquisa

para, a partir dessa família extensa inicial, descobrir as dinâmicas sociais de

diversas outras ligadas a ela por parentesco. Como a maioria dos parentes

da família da esposa de seu Chicó – Angélica - morava na mesma rua,

traçamos a genealogia a partir das tias de Angélica, chamando atenção para

perguntas como: quem planta junto com quem? Quem ajuda quem? Quem

compartilha casa de farinha? Quem recebe farinha?

Além disso, começamos também a dividir a equipe, de maneira que

cada um costumava acompanhar etapas de preparo da farinha com

diferentes unidades produtivas, realizando comparações e diferenciando os

espaços. Nesse sentido, estar familiarizado com algumas categorias nativas

básicas foi de extrema importância, a fim de potencializar as observações

em um tempo mais reduzido. A partir disso, conseguimos observar alguns

padrões de organização social que foram de fundamental importância para

o prosseguimento da pesquisa. Passada a euforia a descoberta, as

observações começaram a se repetir e, a partir disso, optamos por nos

aprofundar em outros temas que tinham surgido mais recentemente e que

não tinham sido minunciosamente descritos e analisados, como interação

entre agricultores que plantam em diferentes ecossistemas: terra firme e

várzea.

Após esse esboço sobre o desenvolvimento do trabalho de campo, faz-

se necessário traçar um breve panorama a respeito da cidade de Canutama

a fim de que se coloque claro que a área de cultivo e a dinâmica social aqui

descrita e analisada é apenas uma dentre as diversas outras nas quais se

inserem os moradores dessa cidade.

Com uma população de aproximadamente 8.181habitantes, a cidade de

Canutama é formada principalmente por agricultores, funcionários públicos

e alguns comerciantes. Donos de pequenas vendas no centro da cidade, os

comerciantes são aqueles que, além de trazerem ou encomendarem

mercadorias de polos urbanos como Manaus, Porto Velho, Cruzeiro do Sul e

Lábrea, compram farinha e castanha de alguns moradores de Canutama

para vender para empresas ou outros compradores nesses polos urbanos

maiores. Muitos dos comerciantes são aqueles considerados como os mais

ricos da cidade e são justamente eles os donos dos barcos recreios que

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realizam a rota Manaus- Canutama-Lábrea e também aqueles que possuem

fazendas com criação de gado.

A maior porcentagem da população de Canutama, contudo, é formada

por agricultores assalariados. A maioria desses plantadores é também

pescador durante certas épocas do ano e alguns também são coletores de

açaí e castanha. Embora alguns também extraiam seringa, essa atividade

se mostra pouco expressiva em Canutama: embora essa matéria-prima

atualmente apresente certa valorização, apenas alguns dos antigos

seringueiros voltaram a trabalhar com essa atividade, enquanto a maioria

dos jovens e adultos habitantes de Canutama não possui nenhum tipo de

interesse nela.

No que diz respeito à agricultura, os moradores cultivam

principalmente mandioca (mandioca-brava), macaxeira (mandioca-mansa),

milho, jerimum, batata-doce, maxixe, feijão (apenas nas chamadas praias)

e banana (ver calendário agrícola). Dentre esses cultivos, destaca-se a

importância da mandioca, cujo calendário agrícola e beneficiamento

desencadeiam uma profunda mobilização de grupos familiares a fim de

abastecer todos os seus membros com farinha, produto este último de alta

importância alimentícia e simbólica para os agricultores canutamenses. Os

mesmos produzem farinha principalmente para o consumo de sua unidade

produtiva (aspectos que serão abordados em outros tópicos desse

relatório), podendo ocorrer um eventual comércio caso seja requerido por

alguém.

Contudo, a comercialização é muito incipiente e ocorre geralmente em

nível local (entre vizinhos ou, em alguns casos, com comerciantes

próximos), visto que não há mercados ou feiras onde a produção possa ser

vendida em maior escala, nem cooperativa de agricultores que organize a

distribuição dessa farinha para polos urbanos maiores. A renda dos

agricultores usada na compra de outros gêneros alimentícios se baseia em

benefícios sociais concedidos pelo governo federal, como Bolsa Família e,

para a maioria que também é pescador, Bolsa Pescador (para que não haja

pesca durante a época reprodutiva de algumas espécies de peixe, de

novembro a março).

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As principais áreas de cultivo relacionadas diretamente com a dinâmica

da cidade de Canutama e seus moradores estão localizadas em dois

ecossistemas distintos dentro do bioma amazônico: várzea e terra firme.

Enquanto o primeiro corresponde à faixa de terras marginais aos rios de

águas brancas (ricos em minerais e matéria orgânica) que compõe uma

planície aluvial de grande largura sujeita a inundações sazonais, onde se

forma um sistema complexo de canais, lagos e ilhas com vegetação

adaptada à dinâmica de cheia e vazante dos rios (SIOLI, 1951) O segundo

corresponde ao ecossistema mais extenso dentre aqueles do bioma

amazônico, apresentando terras com relevo mais alto e, portanto, não

afetadas por alagamento, com vegetação mais densa e escura que mantem

maior umidade no ambiente.

Para além das particularidades em relação à formação e composição

do solo, distribuição e características da fitofisionomia, ciclagem de

nutrientes e fluxo de energia, essas duas ordens de paisagem constituem-

se também como áreas onde os sistemas produtivos e as formas de

organização social em torno deles se deram de maneira muito distinta.

Tentaremos, a partir desse momento, apresentar as diferentes áreas de

cultivo em que os agricultores moradores de Canutama cultivam e como

costumam separa-las em seu discurso. É importante ressaltar que essa

exposição irá se focar justamente na dinâmica dos cultivos empreendidas

por grupos familiares agricultores que moram em Canutama, o que muitas

vezes está para além da área urbana. O trânsito constante entre área

urbana (cidade de Canutama) e área rural do município de Canutama faz

dos mesmos um verdadeiro continuum, de maneira que determinados

períodos do ano são passados em diferentes espaços, mas a residência na

cidade sempre é mantida.

Essa apresentação servirá também para fornecer informações um

pouco mais detalhadas sobre aspectos do cultivo na terra firme, ambiente

sobre o qual não iremos nos debruçar nesse trabalho. Logo em seguida,

portanto, nos aprofundaremos nos sistemas produtivos e relações sociais

que acontecem no ambiente de várzea, especificamente na área chamada

de Baixa Grande, na qual se realizou grande parte do trabalho de campo e,

portanto, sobre o qual tentaremos descrever com mais precisão e riqueza

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de detalhes. Por fim, serão apresentadas as relações que se tecem entre

agricultores de terra firme e várzea e como as plantas estão envolvidas

nessas redes.

Figura 10 - Croqui de uma área de produção de farinha. Autora: Thayná Ferraz da Cunha.

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Tabela 3 – Calendário agrícola. Autora: Thayná Ferraz da Cunha.

Jan Fev Mar Abril Maio Junho Julho Agosto Setembro Outubro Novembro Dezembro

Plantio ______ ______ _____ ______ _____ Mandioca Milho Milho Milho Milho Banana _______

Macaxeira Feijão-de-

praia

Banana

(época da pesca) Batata-doce (época da pesca)

Jerimum

Maxixe

Milho

Feijão-de-praia

Capinagem ______ ______ _____ ______ _____ Mandioca Mandioca Mandioca Mandioca Mandioca Mandioca

Macaxeira Macaxeira Macaxeira Macaxeira Macaxeira Macaxeira

Feijão-de-praia Feijão-de-praia Milho Milho

Colheita Mandioca Mandioca _____ ______ Banana _____ Maxixe Maxixe Maxixe Maxixe Maxixe Maxixe

Maxixe Macaxeira Milho Milho Milho Milho

Batata-

doce

Feijão-de-praia Macaxeira

Jerimum Batata-

doce

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Terra firme

Muitos agricultores de terra firme possuem duas habitações: uma na

terra firme e outra na cidade de Canutama. Os roçados na terra firme da

maior parte moradores de Canutama se localizam ao longo do rio Mucuim.

Costumam passar por volta de quinze dias na terra firme e sete em suas

residências em Canutama. As esposas, em geral, permanecem morando na

cidade ao longo do ano inteiro, só indo para a terra firme durante os meses

de janeiro e fevereiro, época das férias escolares dos filhos. Algumas

também costumam ir por vezes para ajudar na capinagem e,

principalmente, no plantio. O homem, portanto, costuma trabalhar na terra

firme sozinho, acompanhado de algum filho, irmão, cunhado ou de algum

ajudante que more próximo ao roçado. As etapas da roçagem e derrubada

ocorrem em maio ou junho, a queima acontece em agosto e, em setembro,

realizam o plantio. A primeira capina é realizada em janeiro e acontece

depois disso de três em três meses.

Durante a época que fazem farinha, o que pode acontecer em qualquer

momento do ano, mas em geral ocorre entre maio e novembro, apenas os

homens trabalham. Quando estão sozinhos, muitas vezes contratam um

ajudante que mora próximo ao seu roçado na terra firme. Durante o inverno

(janeiro, fevereiro, março, abril, maio), os agricultores de terra firme

produzem farinha em pequena escala apenas para consumo próprio. Em

meados de maio, antes de começar a época de verão (junho, julho, agosto,

setembro, outubro, novembro e meados de dezembro), dão início ao

beneficiamento da farinha para que possam aproveitar e transportar a

farinha de barco até a cidade. Os agricultores produzem farinha em grande

quantidade a fim de comercializa-las em Canutama. Embora prefiram

vender sua produção para amigos que vão até suas casas e compram litros

avulsos - os quais costumam pagar um preço mais elevado porque

reconhecem o esforço empreendido na produção e no transporte - por vezes

acabam tendo que negociar com comerciantes dos mercadinhos da cidade,

os quais acabam pagando pouco pela farinha ou a trocando por gêneros

alimentícios (rancho) pedidos pelo agricultor – levam esse rancho para suas

casas localizadas em áreas rurais que são curiosamente chamadas de

centro.

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Transportam desde 15 alqueiros de farinha até 30 sacos de lona. É

importante chamar atenção para o fato de que a farinhada, em geral, é

programada para ser realizada na época em que o estoque de farinha dos

agricultores da várzea já está baixo, isto é, costumam aguardar até “falhar

a farinhada deles” para trazer então seus produtos para venda, que terão

seus preços elevados ao dobro. A variedade de mandioca majoritariamente

utilizada na produção de farinha é chamada de samauma, havendo outros

que plantam também janauaca, orana, cubiçada, jabuti, pirarucu. Em geral,

os agricultores de terra firme não gostam de plantar variedades de

mandioca que tenham tempo de maturação de seis meses, pois caso

ultrapasse esse tempo a plantação o tubérculo estraga e o agricultor acaba

tendo grande prejuízo. Em geral, estão habituados com variedades de terra

firme que não apreciam ter épocas certas para serem arrancadas. Segundo

muitos deles, preferem variedades de ano ou mais, pois com elas podem

“fazer uma farinha mais descansada”. Os poucos preparam farinha de

variedades de seis meses, como a ituqui e flecha, costumam preparar

apenas o suficiente para consumo próprio e não para venda. Nesse caso, ao

plantar separam essas variedades em áreas mais baixas do terreno para

arrancarem mais rápido, enquanto aquelas com tempo de maturação maior

plantam em locais mais altos para arrancar os tubérculos apenas quando

quiserem fazer farinha para vender. Em muitos casos também os

agricultores plantam variedades de seis meses (adaptadas à várzea) apenas

para manter as sementes (fragmentos para reprodução vegetativa), pois

apreciam sua farinha resultante, embora não tenham o costume de

prepara-la com frequência.

Quando são confrontados com a comparação entre o cultivo na terra

firme e na várzea, os agricultores de terra firme afirmam preferir a terra

firme por não estar sujeita a inundações da cheia do rio (nessas condições a

mandioca apodrece), por não terem pressa em processar a farinha, por não

precisarem realizar plantios todos os anos (fazem apenas um único

replantio na mesma área) e por poderem plantar árvores frutíferas no

roçado. Contudo, ressalvam que a capinagem na terra firme é mais penosa,

pois a quantidade de espécies gramíneas aumenta rapidamente do primeiro

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ano de plantio para o segundo, sendo necessárias praticamente capinas

mensais.

Uma parte dos agricultores de terra firme planta variedade de

mandioca adaptadas à várzea apenas para vender seus fragmentos

propagativos (sementes) para os plantadores da várzea. Chegam a trazer

para cidade até 70 feixes (cada um possui de 40 a 50 varas de mandioca).

Os principais cultivares plantados é olho verde e mantegueira amarela,

sendo também encontrados os tipos: flecha, ituqui, baixota. Escolhem

principalmente os dois primeiros por acharem que mantegueira amarela e

olho verde apodrecem menos em solo úmido. Tanto talo encarnado, quanto

mineva, socó e mantegueira preta são plantadas por poucos deles, pois

acham, por exemplo, talo encarnado é dura para arrancar do solo e com

muita fibra.Esse tipo de interação entre os agricultores desses dois

ambientes será descrito com maiores detalhes nos últimos tópicos desse

relatório. Os agricultores afirmam que as variedades de mandioca

adaptadas à terra firme possuem raízes tuberosas mais grossas que as de

várzea, além de serem mais saborosas e menos aguadas. As de terra firme

também possuema casca da batata de mandioca mais grossa, massa mais

fina e amarela e a farinha menos avermelhada. Outra diferença percebida

nas de terra firme é a coloração mais escura, tanto das partes aéreas da

planta (caule e folhas), quanto da casca do tubérculo, admitindo essa

diferença à “força da terra”.

Em relação ao cultivo de macaxeira, a maioria prefere plantar

principalmente macaxeira-juriti porque ela engrossa mais que as outras. O

plantio é feito em pequena escala, apenas para consumo. Alguns, no

entanto, vendem sacos de macaxeira para lanchonetes e comércios da

cidade, realizando grandes plantios da mesma. Alguns plantam também

macaxeira-pão, pois amadurece mais rápido que as demais, embora

também apodreça mais rápido, pois tem tempo de maturação de seis

meses. Não produzem farinha seca de macaxeira.

Em relação ao solo, os agricultores dizem que terra firme possui uma

composição com maior teor de areia do que argila, mas justamente por isso

a percolação é mais rápida e o solo tem alto potencial de drenagem, por

isso os tubérculos não apodrecem facilmente com a umidade. Por outro

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lado, o solo também é mais quente, o que não é muito vantajoso. As áreas

que possuem composição mais misturada do teor de areia com argila

costumam ser melhores para o plantio de mandioca.

Para além da maioria dos agricultores de terra firme que possuem

seus roçados no rio Mucuim, alguns possuem suas áreas de cultivo na ilha

de terra firme localizada na própria cidade de Canutama, área localizada ao

lado do clube aéreo da cidade e conhecida pelos moradores como “banda da

terra firme”, a única parte da cidade que não alaga durante inundações

intensas. São poucos os que plantam nesses locais, pois além da prefeitura

retira dai barro avermelhado para aterrar suas principais obras, existe

também aí o depósito de lixo da cidade, restringindo muito a área onde se é

possível plantar. Os que ali plantam, portanto, possuem terreno pequeno

apenas com a função de manter as sementes de mandioca e macaxeira que

plantam em maior escala em suas roças localizadas no ambiente de várzea.

Contam que não realizam a retirada da batata de mandioca, apenas cortam

as partes aéreas da planta para que ela volte a se desenvolver. Isso pode

ser realizado por três anos seguidos sem ocorrer o esgotamento do solo,

pois “sem tirar a batata, não puxa muito da terra”. Passados esses três

anos, a pessoa deve retirar a batata do solo e realizar um primeiro

replantio. Passados mais três anos, deve-se então preparar outro roçado.

Disse que possuía apenas variedades de mandioca de várzea: olho verde,

talo encarnado, flecha amarela, socó e mantegueira-preta; e uma variedade

de macaxeira de várzea chamada de macaxeira-pão. Também plantam

algumas árvores frutíferas, aproveitando que o terreno não alaga. Possuem

também, logo na área paralela ao roçado de terra firme, um roçado de

banana e milho localizado num ambiente de várzea.

Além desses dois grupos de terra firme que tem seus agricultores

ligados a Canutama, existe ainda uma terceira, localizada próxima à beira

do lago da Padaria (ver mapa), onde a maior parte dos roçados são

também para manutenção de semente de mandioca e macaxeira e também

para cultivo de banana, ingá e outras frutíferas.

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Várzea

Praia

As áreas de cultivo de várzea que se localizam na beira do rio Purus

são conhecidas pelos moradores de Canutama como praia. Trata-se da área

de cultivo localizada na cidade de Canutama que possui cultivo mais antigo,

sendo encontradas até três gerações de uma família que plantam em uma

mesma praia. Os terrenos pertencem à marinha brasileira, sendo permitido

utiliza-los para plantio. Um agricultor pode fazer o tamanho de roça que

bem entender desde que não ultrapasse o limite do plantador ao lado. As

roças são separadas por tornos, pedaços de madeira colocados em suas

duas extremidades.

Assim como a área da Beira do Seringueiro, nas praias o inicio do

beneficiamento da mandioca também tem que começar cedo, o que

também é facilitado pelo fato de existir muita água disponível para colocar a

mandioca de molho. É possível, portanto, encontrar agricultores colhendo a

mandioca com apenas cinco meses, mas a maior parte prefere esperar até

janeiro para que as raízes tuberosas engrossem mais. Essa espera, porém,

implica na realização de um processamento da mandioca mais intenso e

acelerado desde do princípio, tendo em vista que são as primeiras áreas de

várzea a serem atingidas pela inundação do rio Purus. Os agricultores que

cultivam nessa área, portanto, acabam tendo que fazer uma dita “farinha

mais ligeira”. Na época que a alagação começa a se intensificar, entre o

final do mês de janeiro e inicio de fevereiro, os plantadores costumam dizer

que estão “aperrados” e frases como “ou a gente faz ou o rio faz pela

gente” e “a gente espera pelo rio, mas ele não espera pela gente” se

tornam corriqueiras entre os agricultores. Nessa fase ocorre uma

intensificação expressiva das interações e ajudas mútuas não só entre

parentes, como entre amigos que moram próximo. Não é raro encontrar

dois amigos torrando junto, cada um com um remo, mexendo a farinha no

forno. Cada dia beneficiam a farinha de um e assim todo processo é

agilizado, sem que ninguém tenha sua colheita prejudicada.

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Segundo os agricultores das praias, nas faixas de terra marginais ao

rio de águas brancas, cada inundação da várzea permite que o fluxo do rio

mude o relevo do terreno. Isto é, após cada alagação anual do rio Purus, a

área alta, chamada de lombo, onde estão depositados um grande nível de

sedimentos (chamado de aterro ou adubo) cresce para frente. Atrás do

novo lombo que surgiu existia antes um barranco, que acaba se desfazendo

ou quebrando com a nova alagação, tornando-se assim uma área um pouco

mais baixa, com menos sedimento/aterro acumulado do que antes.

Conforme os anos vão passando, esses antigos lombos vão assim ficando

cada vez mais para trás, sendo esses locais utilizados para o plantio de

arroz, jirimum (abóbora), melancia e milho. Nesses locais há um maior

crescimento de espécies de gramínea, como capim-de-burro. Além disso,

neles nasce também à espécie embaúba e, por isso, dão o nome do local de

embauzal. Conforme vai ficando para trás e também mais baixo, com o

passar do tempo esses antigos lombos irão virar áreas de chavascal,

constantemente alagadas, mudando também sua distribuição de espécies

vegetais. Atrás dessas áreas de chavascal e, conforme a faixa de terra vai

se afastando mais da margem fluvial, o terreno torna-se grutião (área baixa

e área alta), onde existe apenas mata. Os agricultores contam que essa

dinâmica de mudança na deposição de sedimentos durante as cheias é

esperada todo o ano e, por isso, calculam o local onde irão realizar o

próximo cultivo de acordo com aquilo que irá aparecer durante a época de

vazante: “A natureza é perfeita: faz e desfaz”.

Figura 11 - Casa de Farinha e depósito na beira do rio Purus. Foto: Thayná Ferraz da

Cunha

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O plantio realizado em julho na areia branca mais próxima a margem

do rio é o de feijão-de-praia, que inclui diversas variedades como feijão

barrigudinho; branco/leite; vermelho, manteguinha, curujinha, arromba-

homem, cujas sementes são guardadas de um ano para o outro em

garrafas pets bem fechadas. A capinagem do feijão-de-praia é realizada nos

meses de julho e agosto e, sua colheita, em outubro. Os agricultores da

praia afirmam que é bom de plantar na areia branca porque alaga todo ano,

o que acaba esfriando a terra, mas no verão não é possível plantar nela

praticamente nenhum cultivo, pois a areia fica muito quente e, como possui

alta capacidade de drenagem, não retém umidade, fazendo com que as

plantas morram ressecadas.

Já o plantio de mandioca é realizado em junho, na chamada terra de

lombo ou na parte de seu entre-vão com uma área baixa. Essa faixa que

fica atrás da areia branca e possui temporariamente um relevo mais

elevado pela deposição de sedimentos que ocorreu ao fim da última cheia. A

composição do solo nessas faixas, segundo os agricultores, é de areia e

barro misturados, sendo predominante a presença de barro conforme o

relevo da terra aumenta. Essa composição dos lombos é considerada boa

para que tubérculos da mandioca se desenvolvam mais, mas é maior

também a dificuldade de arranca-los. Já nas áreas de entre-vão, como a

composição do solo é formada por um teor proporcionalmente maior de

areia que de barro, acaba sendo mais frouxo e a colheita, mais fácil.

Passado o plantio nessas áreas, a primeira capinagem ocorre em julho,

ocorrendo duas vezes ao longo desse mês. Nos meses de agosto e

setembro a roça já está grande e não precisa mais de capina. No final de

dezembro iniciam a farinhada, durando o mês de janeiro e inicio de

fevereiro.

Os agricultores mais novos costumam cultivar as variedades de

mandioca chamadasmantegueira amarela, flecha amarela, olho verde. Já os

mais velhos, que plantam na região há muito tempo e cujos pais também

plantaram no mesmo local, costumam plantar apenas mantegueira-preta.

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Área do Seringueiro (composta pela área de cultivo da Beira do Lago

do Seringueiro e área da Baixa Grande)

A macro-área do Seringueiro é um complexo que engloba duas outras

áreas menores localizadas próximas uma da outra, mas que podem ser

diferenciadas pela distância espacial, relevo, nível de inundação,

proximidade com a cidade, práticas agrícolas, momento inicial e duração do

beneficiamento da farinha e até mesmo por sua composição social. Essas

dois espaços menores podem ser chamados de área da Beira do Lago do

Seringueiro e área da Baixa Grande.

Enquanto as praias do rio Purus já são utilizadas para o cultivo há

muito tempo, o plantio naquilo que chamamos de macro-área do

Seringueiro é bastante recente. Há quatorze anos alguns fragmentos de

vegetação foram derrubados nas proximidades da beira do lago do

Seringueiro (ver croqui) para a plantação de arroz e milho. Contudo, essa

iniciativa nunca se concretizou e as áreas ficaram desocupadas, de maneira

que alguns moradores de Canutama começaram a utilizá-la para plantar

principalmente mandioca e macaxeira para próprio consumo. Passados

cerca de dois anos do inicio do plantio, nesse espaço, alguns dos

agricultores que lá plantavam resolveram tentar transferir sua área de

cultivo para uma mais próxima da cidade, vindo a plantar então na

chamada Baixa Grande.

No inicio, a maior parte dos agricultores da Praia e da Beira do lago do

Seringueiro não acreditava que o solo daquela área iria ser próspero para o

cultivo e, por isso, apenas poucos agricultores tomaram a atitude de mudar

o local de cultivo. Porém, conforme a produtividade dos mesmos foi se

mostrando alta, além de outros tantos realizarem essa transferência, muitos

moradores da cidade começaram a plantar também. Segundo os próprios

agricultores, estimam que atualmente cerca de 80% da população da

cidade de Canutama plante, produzindo sua própria farinha. Tentaremos

então apresentar as duas áreas englobadas pela macro-área do

Seringueiro: Beira do lago do Seringueiro e Baixa Grande. Será sobre a

segunda, contudo, que iremos nos debruçar ao longo dos próximos tópicos

desse relatório.

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A Beira do Lago do Seringueiro é considerada área rural do município

de Canutama. O terreno localizado em uma das margens do lago do

Seringueiro é uma área bastante baixa, que alaga fundo. Do outro lado da

margem, existe uma parte que alaga raso (onde estão as roças) e uma

parte alta (várzea alta), onde se localizam as casas de farinha (que

raramente alagam). Essas áreas de cultivo na várzea (chamada de vazante)

que estão justamente na beira do lago Seringueiro tem seu nível de água

acrescido durante a época cheia por conta do enchimento do igarapé que o

liga a um lago muito maior, chamado Itapá (este sim possui conexão com o

rio Purus através do igarapé do Sacado, sendo através dele que se dá a

entrada do fluxo de água). É justamente essa área, portanto, uma das

primeiras a sofrer inundações provenientes da cheia do rio Purus e também

uma das que tem o nível de alagação mais profundo. Quem possui roça aí,

logicamente são os primeiros a começar a dita farinhada.

Como possuem uma parte de seu terreno localizados num ambiente de

várzea com relevo mais alto, nessa área da Beira do Seringueiro se

encontram as casas de farinha mais equipadas de recursos e equipamentos,

como telha de alumínio e uma espécie de homogeneizador da massa. Os

donos, em geral, são funcionários públicos da cidade, isto é, diferenciadas

pelos demais agricultores como pessoa ‘que tem renda’, tendo assim

recurso para investir na produção de uma farinha mais trabalhada, que em

geral é comercializada.

Nesses meses de janeiro, esses funcionários públicos que aí possuem

roça costumam pedir suas férias e levam consigo toda a família para morar

nessa área durante todo o processo de produção de farinha. Há nessa área

alta, portanto, pequenas casas de madeira onde a família passa todo o mês

de janeiro e que, posteriormente, servirão de depósito para a farinha. Ao

final do processo voltam para Canutama, mas deixam a produção naqueles

depósitos e, quando os terrenos estão amplamente alagados, realizam o

transporte até a residência em Canutama. Como possuem um lago próximo

de água corrente, podem retirar a goma da mandioca quando bem

entendem. Além disso, o lago lhes permite colocar a mandioca de molho,

podendo assim começar o processamento de mandioca mais cedo que os

agricultores da área da Baixa Grande. São, portanto, os primeiros a

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terminar a farinhada e, muitas vezes, emprestam suas casas de farinha

para amigos, vizinhos ou parentes agricultores da Baixa Grande terminarem

de torrar sua farinha, tendo em vista que as suas próprias acabam sendo

alagadas.

É importante ressaltar que, embora a composição social dos

agricultores dessa área seja majoritariamente formada por funcionários

públicos, existem diversas pessoas aí que fogem a regra e se dedicam

integralmente a agricultura e a pesca.

Voltando a seguir a dinâmica das águas durante a cheia do Purus, após

a cheia do lago do Seringueiro, essa água começa gradualmente a encher o

chamado igarapé da Baixa Grande, o qual conecta justamente as áreas da

Beira do Lago do Seringueiro e Baixa Grande. Quando então esse igarapé

começa a transbordar se diz então que “o rio represou”, isto é, começou a

inundar o terreno. O terreno da área da Baixa Grande, partindo desse

igarapé até o centro da cidade de Canutama, apresenta crescimento de

Figura 12 - Beira do Lago do Seringueiro. Foto: Thayná Ferraz da Cunha.

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relevo e, portanto, vai sendo alagado gradualmente tanto pela inundação do

igarapé quanto pelo acúmulo das chuvas principalmente nas áreas mais

rebaixadas da área. É justamente o que se passa com o sistema produtivo

dessa área da Baixa Grande que iremos, nos próximos tópicos, tentar

descrever e analisar a partir não só da dinâmica ecológica, mas também

dos mecanismos sociais dinamizados por essa forma de produzir.

Organização do Sistema Produtivo na Várzea: a área da Baixa Grande

A área da Baixa Grande, localizada próxima ao centro de Canutama, é

um vasto terreno pertencente ao Estado, onde se é permitido que qualquer

morador de Canutama cultive o tamanho de terra que desejar para

consumo de sua unidade familiar. Considerando que a maior parte da

população de Canutama planta e que as proximidades da cidade são áreas

valorizadas para isso, pode-se encontrar no local uma extensa quantidade

de plantações que, aos olhos de qualquer visitante, parecem indistinguíveis

limites entre elas. Contudo, nessa grande faixa de terra existem inúmeros

agricultores que sabem precisamente onde começa e onde termina suas

áreas de cultivo. Cada uma dessas áreas de cultivo, como se encontram no

ambiente de várzea, é chamada de vazante pelos agricultores. Cada

vazante é delimitada pelo início da vazante do vizinho, sendo separadas por

uma extrema, isto é, pedaços de tronco queimados fincados em linha no

terreno (“na cidade, uma parede não divide a casa? Pois é... aqui é a

extrema que divide a roça”). Cada vazante, portanto, possui quatro

extremas, visto que faz fronteira com quatro outras vazantes. As extremas,

contudo, apenas são colocadas para separar áreas de cultivo de vizinhos

que não sejam parentes ou amigos próximos. Caso o sejam, as delimitações

são feitas apenas por acordos verbais no qual separam as vazantes por

características físicas do terreno como árvores ou relevo e até mesmo por

afastamento das linhas de plantio.

Um espaço que ainda não tenha sido plantado, depois que passa pelas

etapas de roçagem (extração das plantas de menor porte, como as

herbáceas) e derrubada (retirada das espécies arbóreas) e, posteriormente,

pela queima, coivara e plantio no ano seguinte, passa a ter um determinado

dono, pois todos sabem que o agricultor começou ali um cultivo. Portanto, a

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propriedade do espaço não se dá no nível burocrático, mas é legitimada

socialmente através do trabalho que determinada pessoa teve ao retirar

toda sua vegetação e queima-la. Por isso, uma terra usada pode ser

anunciada no rádio e vendida de um dono para outro através de um

contrato oral, no qual o proprietário irá calcular o preço da vazante de

acordo com seus dias de trabalho para prepará-la. Caso o proprietário tenha

a intenção de algum dia ainda utilizar aquela área, pode também negocia-la

temporariamente por algum tipo de troca, como, por exemplo, três sacos de

farinha do que foi produzido anualmente naquela terra. Muitos dos

agricultores, contudo, apenas estabelece esse tipo de negociação com

parentes, posto que outros por vezes repassem a terra para outras pessoas

e quebram o acordo anterior. Esses parentes podem plantar na área sob a

condição de não o repassarem a ninguém quando não queiram mais plantar

nele, devolvendo-o automaticamente a seu antigo dono.

A outra possibilidade é o dono não repassar aquela terra a ninguém,

abandoná-la por alguns anos, deixando que vire capoeira. Mesmo não

sendo utilizada, ninguém plantará na área, pois todos sabem quem é o

dono que já plantou ali, sendo então preciso comprar do mesmo ou recebe-

la de doação. A maior parte dos agricultores possui uma vazante sendo

usada e outra abandonada. As terras mais valorizadas e cobiçadas para

compra são aquelas que estão mais próximas da cidade, tendo em vista que

essa disponibilidade já está muito restrita atualmente. A distância da

vazante até a residência do plantador na cidade de Canutama configura-se,

portanto, como um fator muito importante na escolha da área de cultivo,

tendo em vista que o transporte da farinha até a residência é algo

considerado trabalhoso.

O tempo de utilização de uma mesma roça varia muito, podendo

atingir mais de doze anos consecutivos. Durante esse tempo, quando

alguma parte da vazante - terreno em que plantam a roça de mandioca –

começa a não apresentar boa safra de mandioca, são realizadas estratégias

para que aquele espaço continue sendo incorporado ao plantio, como por

exemplo, a introdução de variedades de mandioca que estejam mais

adaptadas a solos mais utilizados ou empobrecidos; transferência de

variedades para outras partes do terreno ou até mesmo a realização de

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pequenas expansões do terreno para plantio (onde plantam macaxeira e

variedades de mandioca que crescem bem em terra nova).

Quando, contudo, a produtividade da roça se mantem baixa, os

agricultores abandonam a área, deixando que a mesma permaneça dois ou

três anos sem nenhum tipo de plantio, passando para o estágio sucessional

de capoeira, quando estão podem ou não retomar as atividades na mesma.

Durante esses anos, o agricultor procura uma área para sua nova roça que

esteja relativamente próxima da antiga, visando assim utilizar a mesma

casa de farinha. Caso não haja terreno disponível para preparar uma área

de plantio (vazante) ou até mesmo comprá-la, o agricultor terá que

desfazer-se de sua casa de farinha anterior, levando todos os componentes

e instrumentos nela contidos para assim construir uma mais próxima da

nova roça. É importante ressaltar que esse deslocamento da casa de farinha

implica em um distanciamento entre o local onde a farinha é produzida e

onde a mesma é armazenada (residência na cidade), tornando assim o

transporte da produção mais trabalhoso. Por esse motivo, alguns

agricultores preferem manter a casa de farinha próxima à residência e

transportar a massa de mandioca até ela, onde todo o processo de

beneficiamento ocorre.

O plantio de mandioca e macaxeira é realizado tanto por homens

quanto por mulheres durante os meses de junho, julho e agosto. Embora a

vazante (época em que a água do rio começa a reduzir o nível e o solo

aparece) ocorra principalmente no mês de maio, a maior parte agricultores

de Canutama prefere realizar o plantio nos próximos meses, visto que

durante essa época a terra já está mais enxuta, de maneira a garantir que o

pedaço de maniva plantado (pau) não apodreça (“fique pubo”) em meio a

solo úmido e também que o enraizamento do plantio seja satisfatório. Além

disso, procuram plantar durante o período de lua nova ou crescente, a fim

de que assim a roça prospere mais.

O trabalho da capina é tarefa predominantemente masculina e, em

geral, ocorre pela primeira vez, de acordo com o calendário agrícola, após

vinte dias do plantio (no mês de julho) e, em geral, uma vez ao mês em

agosto, setembro, outubro, novembro, totalizando cerca de cinco capinas

anuais. Contudo, passado o primeiro mês de plantio as plantas cultivadas já

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se apresentam suficientemente crescidas a ponto de diminuir a entrada de

luz solar nos estratos vegetais inferiores e controlando, dessa forma, as

espécies de gramíneas que ocupavam o terreno. Deve-se ter em vista,

contudo, que os agricultores diferenciam áreas onde o crescimento de mato

(gramíneas) é maior de acordo com a altura do relevo. Isto é: segundo

eles, em áreas que alagam menos (15-30 centímetros) existe maior

desenvolvimento de espécies gramíneas, exigindo assim que o trabalho de

capinagem ocorra mais vezes. Esse tipo de comparação entre alturas do

relevo é relacional, podendo ser realizado entre espaços dentro da própria

área de cultivo (área baixa: “baixa” e área alta: “lombo”) ou entre

diferentes regiões de plantio (“Baixa Grande” e “Beira do lago do

Seringueiro”).

Durante as primeiras chuvas do mês de janeiro, as primeiras áreas de

cultivo a serem alagadas são as chamadas baixas, espaços da várzea

característicos por seu relevo mais rebaixado para onde a água escorre das

áreas mais altas – os chamados lombos. Como o solo do local é composto

principalmente por argila (barro) misturada com uma determinada

proporção de areia, a tendência da água é se acumular em tais locais, posto

que a argila possui baixa permeabilidade. Segundo os agricultores, caso

emposse água na plantação de mandioca e se passe dia ensolarado, os

tubérculos já apodrecem (“ficam pubos”) e pode-se perceber isso vendo a

própria parte aérea da planta, posto que suas folhas murcham rapidamente.

Por essa razão, os agricultores plantam nessas áreas baixas apenas

variedades que possam ser retiradas da terra mais rapidamente, isto é, que

tenham amadurecimento mais rápido.

Esses espaços cultiváveis de baixo relevo são caracterizados pelos

agricultores como áreas mais prósperas e mais facilmente manipuláveis,

tendo em vista que o aterro/adubo se acumula aí em maior espessura (3 a

4 centímetros) por conta do maior tempo de duração e altura que a água do

rio atinge. O solo aí, considerado mais frouxo, possui uma camada primeira

de terra preta (mistura de areia, barro e matéria orgânica proveniente da

cheia) e uma segunda da chamada tabatinga (mistura de argila e areia,

estando o primeiro em maior proporção). Devido a sua composição, nesse

solo se torna, portanto, menos trabalhoso arrancar a mandioca. Por outro

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lado, nas áreas cultiváveis mais altas do terreno o depósito de aterro é

menor (1 a 2 cm), sendo o solo, portanto, composto majoritariamente por

argila misturada com uma pequena proporção de areia – chamado de

tabatinga. Por ser mais endurecido e menos poroso, arrancar os tubérculos

desse solo configura-se uma tarefa muito mais árdua. Em algumas áreas

altas que alagam mais, contudo, pode-se encontrar o chamado solo

areiusco, formado por argila misturada com uma proporção maior de areia.

A colheita, processo conhecido pelos agricultores de Canutama como

arrancada, constitui-se como tarefa predominantemente masculina.

Contudo, as mulheres que o fazem, geralmente constituintes de unidade de

produção pequena (as unidades de produção serão abordadas

posteriormente), são vistas socialmente com admiração, tanto pelos

homens quanto pelas mulheres. A colheita da roça de mandioca é realizada

ao longo de todo mês de janeiro e fevereiro, podendo em alguns casos

prolongar-se até março. Nessa região chamada Baixa Grande, localizada

bem próxima do centro da cidade, a colheita só tem início quando as áreas

baixas do terreno já estão parcialmente alagadas com as primeiras chuvas

do mês de janeiro. A quantidade de tubérculos arrancados do solo naquilo

que chamam de arrancada tem como padrão de medição sacos de lona e é,

sobretudo, altamente variável, vindo a depender geralmente da quantidade

de mão de obra masculina disponível na unidade de produção, da

velocidade em que os terrenos estão se alagando com a cheia do rio Purus,

da necessidade do agricultor de dedicar seu tempo em outra atividade

(como a pesca ou coleta de castanha), da quantidade de farinha que o

grupo quer estocar e, principalmente, do interesse e ritmo que cada

unidade de produção escolhe para si, levando em consideração aí todo

processo de interação social desencadeado durante as diferentes etapas de

beneficiamento.

Em dias de colheita, os homens de uma unidade produtiva saem de

suas respectivas residências na cidade de Canutama por volta das cinco e

meia da manhã a fim de evitar o excesso de sol durante a atividade, mas

deixam, em alguns casos, tanto as mulheres quanto as crianças dormindo

mais algumas horas para que depois se direcionem até a respectiva roça.

Durante as primeiras arrancadas, os homens costumam escolher apenas

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uma variedade de mandioca para arrancar do solo por dia, tendo em vista

que a mistura de variedades na farinha em geral não é apreciada (deve-se

ter em vista, contudo, que à medida que a área de cultivo vai se alagando

com a cheia do rio, as últimas colheitas vão sendo feitas mais rapidamente

e, portanto, a mistura de variedades se torna corriqueira).

Os homens cortam com um terçado o tronco da maniva (parte aérea

da mandioca), descartando-as nas extremidades da roça logo em seguida.

Puxando o restante final de tronco que permaneceu ligado a raiz, arrancam

os tubérculos do solo e, utilizando outra vez o terçado, os separam e

retiram de cada um deles o excesso de barro e as extremidades (etapa esta

chamada de decotagem), a fim de amoleçam mais rapidamente quando

colocados de molho na água para fermentação. Às vezes, quando está

muito difícil de arrancar a mandioca, utilizam uma madeira que chamam de

eleva para auxiliar na extração das raízes tuberosas.

Enquanto alguns homens do grupo retiram essas raízes do solo e as

amontoam em um canto, as mulheres ou outros homens decotam, cortando

e limpando superficialmente cada batata de mandioca. No mesmo dia,

depois de acumulado certa quantidade, os homens colocam os tubérculos

em um saco que é carregado até a área baixa do terreno, alagada desde as

primeiras chuvas. Essa área baixa constitui-se, portanto, como o depósito

em que as mandiocas são colocadas de molho para fermentação durante

dois até quatro dias (tempo que irá depender do volume de chuvas, isto é,

quanto mais chuva, menos quente se torna a água do depósito e, portanto,

mais dias são necessários para fermentação).

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Decotagem:

Nos depósitos, também chamados de baixas, enquanto alguns

agricultores costumam colocar os tubérculos de molho dentro do próprio

saco, outros os depositam dentro de caixas/balsas de madeira, canoas

velha, lonas de plástico ou no chamado paiol (cercado de palha). Deve-se

ter em vista que uma área de baixa pode ser utilizada por qualquer unidade

produtiva que tenha roça próxima, entretanto os instrumentos onde a

mandioca é colocada pertencem apenas a quem a construiu, o que não

exclui, contudo, a possibilidade de empréstimos, doações e trocas. A essa

Figura 13 – Retirada das partes aéreas e decotagem das manivas. Foto: Thayná Ferraz

da Cunha.

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etapa de deixar a mandioca fermentando dá-se o nome de demolhagem,

que ocorre necessariamente no mesmo dia da colheita (arrancada).

Durante a média de três dias nos quais a mandioca deve fermentar,

ou “ficar de molho”, os agricultores podem descansar, dedicar-se a outras

atividades ou até mesmo trabalhar em outras unidades de produção.

Ademais, são esses dias de intervalo no beneficiamento da mandioca que

Figura 14 - Demolhagem nas áreas baixas. Foto: Thayná Ferraz da Cunha.

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permite o chamado revezamento de casa de farinha - local este de

beneficiamento da mandioca, incluindo nessa categoria todos seus

instrumentos constituintes. Ou seja: acordos (que serão posteriormente

detalhados ao longo deste relatório) entre unidades produtivas que

funcionam na medida em que, enquanto um grupo espera o amolecimento

dos tubérculos, o outro utiliza a casa de farinha para torrar sua própria

massa de mandioca. É importante ressaltar, contudo, que conforme a água

da cheia do rio Purus vai alagando as áreas de cultivo (chamadas de

vazantes), a tendência é a produção de farinha se acelerar para que não

haja perda de mandioca e, dessa forma, tais intervalos de tempo citados

acima acabam sendo suprimidos pelos próprios agricultores. Nessa fase

realizam colheitas de muita mandioca e, consequentemente, a rotatividade

de entrada e saída do estágio de fermentação é muito grande, restringindo

assim o compartilhamento de casa de farinha apenas a parcerias estáveis

ou até mesmo parcialmente estáveis (as quais serão explicadas no tópico

“Casa de Farinha”).

Passado o intervalo de dias necessários para o inicio do processo

fermentativo, a mandioca já escurecida e amolecida pela absorção de água

torna-se facilmente destacável de sua casca. Nesses dias, homens e

mulheres saem da residência por volta das 7 horas, levando as crianças

quando o terreno não está excessivamente enlameado após as chuvas, e

direcionam-se até a casa de farinha da unidade produtiva. Lá, sabendo que

no mesmo dia irão retirar a mandioca d’água e torrar farinha, vão

preparados para almoçar e ir embora apenas por volta da 17 horas. Logo

de manhã, mulheres e crianças, todos sentados em suportes de madeira,

retiram a mandioca do depósito em que se encontrava, passando água nas

extremidades de cada raiz tuberosa a fim de retirar a camada escurecida

decorrente da fermentação e de facilitar também a separação entre massa e

casca. A casca é descartada na própria água acumulada na área baixa,

servindo também para atrair peixes que tentarão capturar com auxilio de

malhadeira para almoçar durante o dia intenso de torragem da farinha. A

massa de mandioca fermentada, ainda encharcada de água, é chamada de

massa puba, categoria esta última bastante recorrente entre os agricultores

da cidade de Canutama que designa, na maior parte das vezes, algo já

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apodrecido. A massa puba é então acumulada em cima de algum suporte

até que um dos homens venha amassá-la e coloca-la em um balde para

realizar o transporte até a casa de farinha, em geral construída próxima da

área baixa alagada de depósito. Quando lá, é colocada aos montes em uma

caixa de madeira conhecida como gareira, local onde será mais uma vez

amassada e sofrerá uma primeira triagem das fibras (os chamados paus ou

crueira) que na massa se encontram. Neste local permanecerá até ser

introduzida na prensa. Algumas variedades de mandioca precisam ter sua

massa torrada no mesmo dia em que é tirada da água, caso contrário o

processo de fermentação pode prosseguir e a farinha tornar-se escura

(arroxeada) e amarga (amaruja). Outros cultivares, por outro lado, é

justamente o contrário, sendo então necessário deixar suas massas puba

acumulado na caixa/gareira desde o final da tarde do dia anterior até a

manhã do dia seguinte, quando pode então passar para a prensa de

madeira. É esse um dos motivos importantes pelos quais a maior parte dos

agricultores prefere separar, no momento da colheita e beneficiamento, as

variedades de mandioca.

Figura 15 - Retirando as mandiocas d’água. Foto: Thayná Ferraz da Cunha

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A etapa seguinte é justamente a prensagem, tarefa

predominantemente masculina. Cada casa de farinha deve possuir uma

prensa de alavanca, constituída por madeiras nobres como maçaranduba,

piranheira, entaúba trazidas pelo próprio dono da casa de farinha, membros

de sua unidade produtiva ou parceiros de casa de farinha e talhada por

algum serrilheiro conhecido. Durante o processo, enquanto o homem

levanta a alavanca da prensa, as crianças vão enchendo um balde pequeno,

chamado de tambor, até que possa ser levado para uma rede porosa

conhecida como estopa, onde a massa puba é depositada, passando a ser

sustentada pela montagem de um gradiamento formado por varas de

pedaços longos de madeira que impedem que ela caia para os lados quando

prensada. A quantidade de massa envolvida por essa rede/estopa passa

então a ser chamada de estopa, correspondendo assim a um tambor

pequeno. Cada duas estopas são colocadas, após serem peneiradas, no

forno, correspondendo assim a uma fornada. Portanto, caso o agricultor

possua dois fornos, por exemplo, colocarão em sua prensa quatro estopas

verticalmente posicionadas para serem espremidas. Depois de colocada a

quantidade desejada, o homem em geral ajudado em parte pelas crianças

que estão aprendendo, coloca uma espécie de tampa e alguns pesos como

troncos de madeira para permitir que a pressão se coloque adequadamente

sobre a massa. Prende, em seguida, a corda no chamado burinete e

puxando para trás a alavanca, espreme grande parte da umidade que havia

Figura 16 - Massa puba na gareira. Foto: Thayná Ferraz da Cunha

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na massa e gera a chamada manipuera, líquido leitoso de cheiro forte com

alto teor de ácido cianídrico. A corda é apertada inicialmente com três

voltas, deixando 20 minutos para que parte da água escorra, dando espaço

para que se dê mais uma volta, deixando dessa vez de 15 a 20 minutos,

momento em que se dá faz a última para secar bastante. Não se deve,

contudo, ultrapassar essa quantidade de voltas na corda durante a

prensagem, visto que uma massa resultante muito seca é mais suscetível a

queimar durante a torragem, ao que os agricultores chamam de “tostar o

pó”. Feito isso, retira-se as duas primeiras estopas, levando-as em direção

a chamada caixa para peneirar (divida em duas partes, sendo que em cada

uma delas cabem duas estopas de massa prensada).

Nesse momento se dá mais uma etapa do processo de beneficiamento,

esta majoritariamente feminina, recebendo a colaboração das crianças.

Durante essa fase de peneiração, na medida em que algumas das crianças

vão manualmente amolgando a massa, as mulheres vão peneirando,

acumulando assim a massa peneirada na segunda parte da caixa de

madeira. A malha da peneira utilizada definirá a granulometria da farinha,

Figura 17 – Prensagem. Foto: Thayná Ferraz da Cunha.

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mas em geral um balde de massa rendem dois baldes após ter sido

peneirada. Enquanto as mulheres se dedicam a essa atividade e a de

preparar o almoço para o grupo, os homens vão limpando o forno (chapa de

ferro sustentada por um suporte de barro montado anualmente), colocando

óleo e retirando a massa puba peneirada com o auxilio de uma cuia ou

balde pequeno (chamado de tambor) e, em intervalos de dez minutos,

colocam um balde em cada forno, de maneira a completarem três baldes

(lembrando que cada estopa equivale, depois de peneirada, a um balde e

meio). Ou seja: uma fornada é o equivalente a três pequenos baldes e são

realizadas simultaneamente, de acordo com o número de fornos que existe

na casa de farinha. Todo tipo de fibra ou massa que ficou retida na peneira

é chamada pelos agricultores de crueira e, após passar por breve processo

de torragem, é utilizada como ração para animais como porcos, patos,

galinhas e cachorros.

Figura 18 – Peneiragem. Foto: Thayná Ferraz da Cunha.

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O veneno da mandioca, para os agricultores de Canutama, está

intimamente associado ao cheiro da massa. Segundo eles, após a etapa da

prensagem e a liberação do líquido chamado de manipuera, o cheiro se

torna bem menos acentuado, mas apenas quando a massa passa pela fase

da torragem, entrando em contato com o calor do fogo, que o odor do

veneno realmente cessa e eles sabem que aquele produto pode então ser

consumido.

A última etapa do processamento da mandioca é justamente aquilo

que chamam dão o nome de torragem. Essa tarefa, essencialmente

masculina, é um trabalho bastante árduo e delicado, sendo bastante

valorizado socialmente. Um torrador que prepara o que chamam de “uma

farinha bonita” tem prestigio e costuma orgulhar-se de sua própria

produção, mostrando e oferecendo um punhado da mesma para aqueles

que falam sobre o assunto. Durante a torragem, a farinha é mexida e

sacudida por mais de uma hora e, quem realiza o preparo deve estar muito

atento ao que chamam de “posição de fogo”, isto é, a administração da

quantidade de lenha que deve ser colocado para o processo. Caso haja fogo

em excesso, a massa seca demais e, em questão de minutos, os pequenos

grãos da massa se agregam em uma única pelota, impedindo assim que seu

interior seja torrado adequadamente. No caso oposto, em que o fogo está

baixo demais, a farinha acaba ficando branca, não adquirindo assim a

qualidade amarelada pretendida e valorizada pelo agricultor. Para evitar o

erro, muitos torradores costumam manter um balde com água próximo ao

fogo, a fim de assim manejarem sua intensidade.

Além da importância da habilidade do torrador no processo, outros

importantes fatores para que uma farinha seja bem torrada é tanto o

estágio de maturação em que a mandioca é colhida, quanto o tempo

decorrido desde que foi retirada d’água, isto é, o nível de fermentação em

que a mesma se encontra. Isto é: caso uma variedade de mandioca que

possua tempo de maturação de seis meses for colhida com apenas quatro

ou cinco meses, a farinha acabará apresentando aquilo que chamam de pó,

isto é, ficará excessivamente fina. Além disso, no caso de certas variedades

de mandioca, se a massa puba for retirada d’água e não for torrada no

mesmo dia, fermentará em excesso e sua farinha apresentará gosto azedo.

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A maior parte dos agricultores deixa sua produção armazenada em

sacos de lona embaixo de suas casas de farinha, localizadas na região mais

alta do terreno. Segundo os padrões de medição local, um saco de lona é

equivalente a dois alqueiros, considerando que um alqueiro é 40 litros. Um

saco é também o resultado de três fornadas de farinha produzidas. Os

agricultores costumam realizar o transporte dos sacos de farinha quando

grande parte do terreno já está alagada, facilitando assim deslocar a

produção até a residência na cidade através de canoa. Chegando à

residência, a farinha é armazenada em tinas grandes, chamadas de tambor,

onde cabem cinco alqueiros (isto é: duas sacas e meia). Nesse recipiente a

produção pode ficar guardada até o próximo ano, caso haja quantidade

suficiente.

Na época logo após a produção, estação chamada de inverno devido a

grande quantidade de chuvas, a fartura de farinha é muito grande, pois a

maior parte da população planta mandioca. Nessa época, portanto, a venda

é muito restrita e, quando ocorre, os preços são muito baixos (cerca de 40

reais por um saco). Já na estação de estiagem, chamada de verão,

configura-se como uma época em que a produção armazenada já foi em

grande parte consumida, ocorrendo com isso mais vendas e preços

valorizados (um saco pode chegar a custar 120 reais). Segundo os próprios

agricultores, é justamente pela necessidade de armazenar a maior

quantidade de farinha possível - para que não haja falta ao longo do ano –

que o tipo de beneficiamento da mandioca entre os moradores de

Canutama deve ser rápido e em abundância. De acordo com eles, oficinas

para produção de uma farinha dita de maior qualidade, chamada de “toco

mole” foram realizadas entre os agricultores, porém afirmam que esse tipo

de beneficiamento - no qual a mandioca é descascada, cevada e colocada

de molho – não se aplicaria a várzea, posto que o tempo de beneficiamento

é inadequado para um armazenamento de grande quantidade de farinha.

Além disso, a questão da qualidade da farinha, no caso dos agricultores

canutamenses, está focada principalmente no gradiente de coloração de sua

produção: quanto mais intenso o amarelo da farinha, mais apreciada ela é.

Depois que a área de cultivo está alagada, os agricultores fazem

visitas relativamente frequentes ao local, empurrando constantemente

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todos os restos das partes aéreas da mandioca colhida anteriormente para a

beira do terreno, chamada de aceiro. Posteriormente, quando houver a

vazante do rio e o terreno estiver enxuto, esses restos vegetais são

queimados e, em tais locais, os agricultores plantam milho.

Além da farinha, grande parte dos agricultores também costuma

utilizar a mandioca para obter sua goma e, posteriormente, utiliza-la para

preparar tapiocas, por exemplo. No entanto, a obtenção de goma não se

trata de uma prioridade, diferente da farinha, sendo realizada apenas

quando conseguem tempo em meio a intensificação da cheia anual. Esse

processo é apenas realizado justamente no final da “época de farinhada”,

em meados de fevereiro, momento em que a cheia do rio Purus já atingiu

seus terrenos e, portanto, a água contida em suas áreas baixas deixa de ser

água parada e passa a ser água corrente, isto é, limpa o suficiente para

preparar a massa bem branca.

Além da farinha d’água e da obtenção da goma, a mandioca pode

também ser utilizada para produção de bolos (da massa puba) e farinha

seca, esta ultima costuma ter sua produção restrita a apenas aquelas

pessoas que não podem alimentar-se da farinha d’água por se encontrarem

com algum tipo de doença, inflamação ou até com problemas digestivos. De

acordo com os agricultores, a farinha seca é considerada uma farinha mais

suave, que não absorve água e, por isso, não causa enchimento no

estômago. Não é produzida em grande escala, pois dizem que torrá-la é

muito demorado e é preciso muita paciência, uma vez que a intensidade do

fogo deve ser baixa, caso contrário seus grãos se aglomeram e a farinha

embola.

Variedades de Mandioca e Macaxeiras

Mandioca

Os agricultores de Canutama listaram 11 variedades de mandioca e

três de macaxeira adaptadas ao ambiente de várzea. A identificação das

variedades se apoia principalmente em critérios como: a cor, tamanho e

espessura do tubérculo; tempo de maturação e resistência no solo;

arquitetura e características das partes aéreas; quantidade de fibras

(crueira) em sua massa; coloração e rendimento da farinha após a

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torragem (variedades rendosas são aquelas que a farinha não diminui muito

de tamanho depois que seca no forno, isto é, “não quebra muito no forno,

não diminui na farinha, é rendosa”); quantidade de goma (inversamente

proporcional à quantidade de manipuera, “quanto mais goma, mais rendosa

e mais saborosa fica a farinha”, porém é mais trabalhosa de torrar porque é

mais úmida, mais pesada, tem que ser muito mexida no forno, senão os

grãos se aglomeram); tempo de resistência ao alagamento do terreno.

Segundo os agricultores, as variedades de mandioca cujo tempo de

maturação é por volta de um ano ou mais são reconhecidas como

tubérculos que fornecem uma farinha mais saborosa. Reconhecem que são

poucas as variedades adaptadas ao ambiente de várzea por conta dos

poucos meses (em torno de seis) que o tubérculo tem para se desenvolver

no solo. Quando, por vezes, plantam algum cultivar adaptado à terra firme,

isto é, com tempo de maturação de um ano ou mais, os tubérculos chegam

a crescer, porém sua grossura é menor e a qualidade e coloração da farinha

são, respectivamente, menos saborosa e menos amarela.

Segundo os agricultores, as variedades mineva, mantegueira amarela,

camarão, ituqui, mantegueira preta, flecha amarela e socó são aquelas que

fornecem farinha mais amarela, mas caso não encontrem sementes delas

(as mais difíceis de encontrar são camarão e mineva), plantam outras. As

variedades que fornecem mais goma são olho verde, mantegueira preta,

samauma (terra firme) e orana (terra firme). Os agricultores mais jovens

costumam variar constantemente as variedades plantadas, introduzindo

sempre variedades que não haviam plantado antes a fim de experimentá-

las. No entanto, certas variedades como olho verde, mantegueira amarela,

talo encarnado e ituqui são aquelas plantadas pela maior parte dos

agricultores que cultivam na grande área chamada de Seringueiro, a qual

inclui a Baixa Grande e a Beira do Lago do Seringueiro.

Macaxeira

A maioria dos agricultores planta macaxeira em pouca quantidade,

visto que é apenas para consumo próprio e possui caráter complementar na

dieta da população canutamense. Segundo eles, as pessoas apenas plantam

macaxeira em maior quantidade quando pretendem vender o tubérculo em

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sacos para lanchonete e comerciante da cidade ou então vender seus

subprodutos, posto que a mesma seja utilizada para o preparo de bolos,

salgados, farofas, carinas ou é consumida apenas cozida ou frita. Os

agricultores não tem o costume de preparar farinha de macaxeira,

afirmando que sua torragem é muito demorada por conta do cuidado com o

excesso de fogo (em um dia, conseguem obter apenas duas fornadas) e,

além disso, dizem que a farinha seca da macaxeira possui coloração muito

esbranquiçada e o gosto muito adocicado, características essas não

apreciadas em uma farinha. Alguns, no entanto, fazem esse processamento

ou destinada ao consumo de pessoas com problemas no estômago, ou para

consumi-la acompanhada de açaí – este último consumido em abundância

na cidade de Canutama – ou ainda para complementar a nutrição dos filhos

pequenos.

O plantio da macaxeira é realizado um mês antes da mandioca, em

maio, visto que seus tubérculos demoram mais para se desenvolver. Além

disso, os agricultores em geral plantam a macaxeira em uma área de solo

novo e afastada da mandioca, caso contrário ela pode amargar. Sua

colheita também nunca é feita em concomitância com a de mandioca,

ocorrendo antes (desde meados de outubro até dezembro) ou depois (de

meados de fevereiro até março) da época da mesma, posto que o

beneficiamento da mandioca é um complexo de atividades que consome

praticamente todo o tempo dos agricultores. Isto é: durante certa época, a

prioridade é a produção da farinha de mandioca, alimento principal da

população de Canutama que deverá ser estocado durante o ano inteiro. A

colheita e preparo da macaxeira então apareceria nesse momento como

atividade secundária, visto que tem caráter mais complementar na dieta

dos agricultores (“só fazemos bolo quando não estamos ocupados”).

A macaxeira depois de colhida em geral passa pelo mesma etapa de

decotagem que a mandioca, é lavada na área baixa do terreno e depois

transportada até a residência na cidade, onde então é descascada, lavada

com água limpa e aí pode ou ser colocada de molho por um dia (como sua

casca é mais fina que a mandioca, se passar desse tempo na água poderá

aguar), levada para a prensa da casa de farinha, posta para secar e depois

ser armazenada enquanto massa (Carina) ou então pode ser ralada

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manualmente, coada com uma tela para que sua goma seja descartada,

temperada sua massa, levada para casa de farinha e assada no forno

envolto por folhas de bananeira (bolo). A macaxeira não costuma ser

armazenada, pois ela rapidamente fermenta e adquire coloração arroxeada,

porém algumas pessoas chegam a congelá-la.

Um aspecto interessante relacionado à macaxeira é que, embora sua

importância na dieta dos moradores de Canutama seja secundária, a maior

parte agricultores evita ao máximo a perda dos feixes, chamados por eles

sementes, os quais serão utilizados no próximo plantio. Para isso,

costumam encanteirar tais feixes nos quintais de casa ou podem ainda

mantê-los em áreas de várzea alta, as quais raramente são alagadas. Em

contrapartida, não veem nenhum problema em perder os feixes de

mandioca, visto que os mesmos podem ser facilmente obtidos

posteriormente com os agricultores da terra firme. Iremos, contudo,

abordar o tema da obtenção e manutenção de sementes de mandioca e

macaxeira mais adiante.

Figura 19 – Macaxeira sendo lavada na área baixa; macaxeiras assadas no

forno. Foto: Thayná Ferraz da Cunha.

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Casa de Farinha

Em geral, todos aquelas pessoas que plantam, devem ter casa de

farinha, visto que é algo valorizado socialmente. Em diversos casos,

contudo, isso não acontece. Alguns podem ainda não ter condições

financeiras (caso queira colocar alumínio no teto), outros não possuem uma

unidade produtiva suficientemente grande para ajudar na construção da

casa, outros não tem interesse (visto que a construção implica em

processos bastante trabalhosos e demorados) e outros ainda preferem

simplesmente compartilhar casa de farinha pelo processo de interação e

ajuda mútua que nela ocorre. É importante salientar que todos esses

motivos podem ser simultâneos e, somados, corroboram para os diversos

casos de compartilhamento de casa de farinha que citaremos a seguir. O

primeiro caso se trata de uma parceria estável que se dá geralmente entre

familiares (pais e filhos; irmãos; genro e sogro; cunhados) ou entre amigos

muito próximos. A casa de farinha, nesse caso, pode ser resultado de uma

construção em conjunto ou então pode pertencer a uma das partes, mas

receber colaborações através de ajudas na sua manutenção. Além dessas

colaborações, em tais parcerias de longo prazo cada um dos parceiros de

casa de farinha costuma realizar o embarriamento (preparo de um suporte

de barro) de seu próprio forno (ou até de um forno emprestado), embora

todo o resto do material incluído na casa de farinha seja revezado entre os

parceiros. O estabelecimento de um novo forno na casa de farinha é

vantajoso para ambas às partes visto que, através do revezamento nos dias

de “torragem” (ver BENEFICIAMENTO DA MANDIOCA), aumenta-se a

quantidade de farinha produzida por dia, algo essencial quando as vazantes

começam a alagar rapidamente pelas chuvas.

É importante ter em vista, portanto, que essa inclusão de mais um

forno por parte do parceiro permite que ambos tenham os mesmos direitos

de utilizar a casa de farinha, realizando para isso um acordo prévio de

revezamento que deve ser mantido durante toda época da farinha

(farinhada). Em geral, tais acordos estáveis são estabelecidos com

antecedência a farinhada e, caso dêem certo e seja de interesse de ambos,

podem se manter por anos. Tais parcerias estáveis podem ou não se

desenvolver para a formação de grupos coorporativos (explicação!). Além

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disso, a potencialidade para compartilhamento de casa de farinha com

parentes ou amigos próximos é um dos fatores que influencia no momento

de escolher a localização de sua própria vazante.

O segundo caso se trata, em geral, de acordos eventuais, parcialmente

estáveis, mas de curta duração. Geralmente o combinado se dá entre

conhecidos, amigos ou parentes em função de alguma razão recente, como

uma parceria que foi rompida durante a última farinhada, constituindo-se

assim como uma espécie de suporte momentâneo até que pessoa se

estabeleça outra vez (através de outra parceria ou de construção de sua

própria casa de farinha). O novo ‘parceiro eventual’ geralmente faz o

suporte de barro (embarriamento) de seu próprio forno na casa de farinha

do dono. Caso não o faça, por não possuir forno ou disposição para

construir seu suporte (embarriá-lo), subentende-se que ficará dependente

da disponibilidade do dono de farinha, isto é, o dono da casa de farinha terá

prioridade em sua utilização. Isto é, aquele que utiliza eventualmente a

casa de farinha fica sujeito a não poder usá-la quando o alagamento da

roça do dono esteja sendo intenso, visto que o mesmo precisará torrar

farinha praticamente todos os dias. Nesses casos em que o parceiro

eventual não tem seu próprio forno, a tendência é que realizem o

beneficiamento de sua colheita num período anterior ao que o dono da casa

de farinha a utilizará. É importante ressaltar que os acordos eventuais têm

uma tendência a se estabilizar caso o parceiro possua seu próprio forno e a

parceria dê certo naquele ano (o que envolve o cumprimento de certas

regras reciprocidade entre os parceiros, como deixar a casa de farinha limpa

após o uso, ajudar a carregar palha para manutenção de seu teto,

emprestar forno nos dias que não está utilizando, realizar acordo para

revezamento de materiais e dias de “torragem”).

Esses acordos eventuais estão intimamente relacionados ao terceiro

caso de compartilhamento de casa de farinha, no qual existe uma espécie

de constância de acordos não fixos. Isto é, alguns agricultores que possuem

roça e não tem casa de farinha própria preferem realizar todos os anos

acordos imediatos (em contraposição aos previamente combinados, como

os do primeiro caso apresentado), eventuais e de curta duração. Tais

agricultores, em geral, não possuem forno nem contribuem com algum tipo

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de ajuda para o proprietário da casa de farinha. É justamente por isso que o

local de beneficiamento de sua colheita não será estável, dependendo assim

de sua afinidade com o dono da casa de farinha (em geral parentes ou

vizinhos de casa na cidade), da disponibilidade de uso dessa casa, da

proximidade da mesma com sua roça e até mesmo dependente do nível de

alagamento em que a água se encontra. Embora essa forma de acordo não

seja estável como a parceria, existe uma espécie de rota pré-estabelecida

de casas de farinha que tais agricultores procuram, solicitam e, quando

possível, percorrem para produção de sua farinha. São justamente essas

rotas, formadas por um conjunto de acordos eventuais com pequena

duração, que caracterizam esse terceiro tipo de compartilhamento de casa

de farinha. Subentende-se, no acordo, que devem levar sua própria lenha.

Em geral, quando as pessoas são conhecidas ou parentas, os donos da casa

de farinha não costumam cobrar pela utilização de seu forno. Caso não

sejam, costumam cobrar de dois a três alqueiros de farinha em troca da

utilização do forno por três a sete dias.

É importante salientar, contudo, que esse tipo de compartilhamento é

percebido de maneira negativa pelos demais agricultores da cidade de

Canutama. É esperado socialmente que uma pessoa que possua roça e

família grande vise construir uma casa de farinha própria ou, se ainda não

possuir condições para tal, estabeleça um acordo constante e estável com

um parceiro. Tomemos para ilustrar esse terceiro tipo, o caso de um

marido, sua esposa e três filhos que possuem vazante na chamada ‘beira do

lago do Seringueiro’ e realizam, logo no início da época da farinha, o

beneficiamento da mandioca na casa de farinha dos pais da esposa.

Conforme o lago vai subindo e as roças alagando, os pais da esposa

precisam fazer a farinha muito rapidamente, utilizando a casa todos os dias,

não tendo assim disponibilidade para que a mulher e seu esposo usem. Por

isso, procuram nessa semana o irmão da esposa, perguntando se poderiam

usar sua casa de farinha no próximo dia. Vendo que o cunhado não terá sua

casa disponível e tendo sido facilitado o acesso de canoa por conta da cheia

do terreno, o esposo vai solicitar casas de farinha de seus amigos ou

conhecidos (em geral vizinhos da própria cidade de Canutama) que se

localizam numa área mais distante de sua roça, chamada ‘Baixa Grande’.

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Como esse local enche mais tardiamente que a beira do lago do Seringueiro

(onde possuem roça), as casas de farinha aí localizadas ainda não estão

sendo utilizadas com tanta intensidade, visto que seus proprietários ainda

não estão “aperreados com a cheia”. Perguntando com um dia de

antecedência para os donos que lá se encontram, conseguem então o aval

dos mesmos para que beneficiem lá sua massa de mandioca, realizando o

transporte através de canoa.

Em geral, as pessoas que possuem roça próxima a cidade, constroem

a casa de farinha na parte alta próxima a baixa onde depositam a caixa com

a mandioca, pois nesse local não precisam carregar a massa por uma

distancia grande. Outras pessoas, possuindo roça distante, preferem colocar

a casa de farinha perto da cidade para não precisar carregar a farinha por

uma distância grande. Isto é, preferem carregar a massa por distancia mais

longa (da baixa de seu terreno até a casa de farinha próxima da cidade).

Quando os pais tem uma vazante grande e possuem filhos que estão

começando a constituir uma família (com apenas um filho ainda), dividem a

área, ficando com um parte e dando as outras para cada filho varão. Alguns

pais ajudam seus filhos homens a comprar algum pequeno terreno próximo

aos seus, para que compartilhem a mesma casa de farinha. Contudo,

quando o terreno não é grande os filhos podem continuar a trabalhar na

vazante dos pais até terem filhos suficientes para constituir uma unidade

produtiva e fazer sua própria vazante. A maior parte dos filhos procura

fazer suas vazantes próxima a dos pais para poderem compartilhar casa de

farinha e tudo que a atividade dentro dela representa. Caso não haja

terreno próximo, fazem distante mesmo e podem construir sua própria casa

de farinha ou realizar acordo com conhecidos que torrem próximo.

-As casas de farinha que se localizam em áreas de várzea alta

possuem plantações de árvores frutíferas, variedades de pimenta e hortas

com temperos a fim de temperar o peixe do almoço.

- Uma casa de farinha pode ser vendida junto com a roça, custando

cerca de 1.500 reais.

- Espaço de interação: “Aqui, se tiver com cara feia vai embora... aqui

é alegria, grito, brincadeira... um lugar de alegria”.

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Aquisição das sementes pelos agricultores da várzea

Um aspecto importante relacionado ao plantio na várzea em Canutama

é a obtenção das chamadas sementes de mandioca, isto é, fragmentos das

partes aéreas da planta que são utilizados para sua propagação vegetativa.

Como suas áreas de cultivo estão sujeitas a mudanças sazonais na dinâmica

das águas, não é possível manter as sementes de um ano para o outro em

tais locais. Para obter essas sementes, portanto, as alternativas são:

Comprar dos agricultores que possuem roça nas áreas de terra firme

do rio Mucuim, localizado relativamente próximo de Canutama (colocar

mapa);

Manter um pequeno cultivo na várzea alta (área com relevo um pouco

mais elevado que raramente alaga) ou na ilha de terra firme próxima à

cidade para assim guardar suas sementes de mandioca e macaxeira;

Encanteirar seus feixes de maniva nos quintais da residência ou

próximo à casa de farinha. Ambos os locais, contudo, estão sujeitos a

alagações e, caso a mesma seja intensa, os agricultores irão recorrer aos

vendedores da terra firme ou, por vezes, aos da várzea alta para obtenção

de suas sementes.

No primeiro caso, quando tratamos da venda de sementes por

agricultores do ambiente de terra firme, existem duas formas básicas em

que isso pode ocorrer. A primeira delas se dá através de encomendas

realizadas com antecedência (entre os meses de janeiro e fevereiro) aos

agricultores da terra firme. Durante esses meses, justamente os mesmos

em que ocorre a época da farinhada, quem plantou na várzea já sabe quais

os resultados de sua produção e, portanto, pode decidir que variedades de

mandioca continuarão plantando. Cada agricultor da várzea possui sua

própria rede de agricultores de terra firme que irá acionar quando precisar

de sementes e, como entre eles se estabelece uma relação de confiança, os

da terra firme irão conferir se sua cota de encomendas ainda não se

esgotou. Caso não possa se comprometer com o agricultor da várzea

durante aquele ano, irá adverti-lo com bastante antecedência para que não

corra o risco de não obter feixes e, além disso, recomendará alguém de

confiança com quem possa comprar os feixes naquele ano. É importante

chamar atenção que não são todos que fazem esse tipo de negociação,

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posto que, além do transporte dos feixes ser bastante trabalhoso, suas

áreas de roçado na terra firme estão localizadas distantes da cidade de

Canutama, sendo assim necessário gastar muito com gasolina para o barco.

As sementes são então trazidas durante o mês de maio, final da época

cheia do rio Purus, quando os agricultores de terra firma ainda podem

realizar a maior parte do trajeto de seus roçados até a cidade de barco. São

trazidas com eles as sementes agrupadas nos chamados feixes que contem,

cada um, cerca de 30 a 40 varas de maniva, custando um valor que

dependerá da grossura do feixe, em geral oscilando a cada ano entre 15 a

20 reais. Alguns avisam por telefone quando estão chegando à cidade e

realizam a entrega no pequeno porto da cidade, enquanto os que possuem

residência na cidade entregam nos próximos dias em que lá ficarão. Além

da compra, também é possível para os agricultores da várzea adquirir essas

sementes por meio de trocas com os agricultores da terra firme, em geral

negociando semanas de trabalho com capinagem ou derrubada nos roçados

de terra firme. Outra forma de troca ocorre quando os agricultores de terra

firme perdem suas sementes de algum cultivar específico, trocando com os

de várzea pelos tipos que os últimos desejarem.

Os principais cultivares comprados com agricultores da terra firme é

olho verde e mantegueira amarela, sendo também encontrada flecha,

ituqui, baixota. Em geral, optam por sempre cultivar os dois primeiros por

acharem que mantegueira amarela e olho verde apodrecem menos em solo

úmido. Tanto talo encarnado, quanto mineva, socó e mantegueira preta são

plantados por poucos deles, pois acham, por exemplo, talo encarnada dura

para arrancar do solo e com muita fibra.

É importante diferenciar mais uma vez aqui as variedades adaptadas a

terra firme (cujo tempo de maturação ultrapassa 12 meses e pode chegar a

três anos) daquelas propícias para a várzea (tempo de maturação entre 5 a

6 meses). Os agricultores de terra firme que costumam vender feixes de

mandioca cultivam tanto os tipos próprios à terra firme – como, por

exemplo, samauma, janauaca, orana, flechinha, jabuti – para com eles

prepararem a farinha para consumo e venda, quanto também variedades de

várzea, destinadas apenas a venda dos feixes de mandioca. Por vezes,

contudo, cultivares próprios da terra firme vem entrelaçado por engano em

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meio aos feixes vendidos aos agricultores da várzea, que acabam

plantando-os para que não haja nenhum tipo de perda. Procuram plantar

essa variedade sempre em solos que tenham menos teor de argila em sua

composição e proporcionalmente mais areia, de maneira que seja mais

frouxa e permita o melhor desenvolvimento de suas raízes tuberosas.

Deve-se atentar para o fato de que esse tipo de obtenção de sementes

é o que ocorre majoritariamente na cidade de Canutama, de maneira que a

maior parte das variedades que é plantada pelos agricultores da várzea de

certa forma é determinada por aqueles da terra firme. Isto é, a terra firme

e os critérios de seleção de seus agricultores tem uma espécie de controle

sobre o banco fitogenético daquilo que poderá ser plantado na várzea.

Conversando com alguns agricultores de terra firme percebi que eles

costumam plantar as variedades que acreditam que os moradores da várzea

gostam mais, por pedirem mais, como por exemplo, olho verde e

mantegueira amarela. Essas duas variedades são realmente as mais

encontradas nas áreas de cultivo da várzea.

Uma informação interessante é a de que, se por um lado há grande

oferta de sementes de mandioca em Canutama, por outro não há

praticamente nenhum tipo de comercialização de sementes de macaxeira. O

fato é que praticamente todos os agricultores de várzea guardam suas

sementes em áreas de várzea alta ou encanteiradas nos quintais ou

proximidades de casa de farinha. Há uma espécie de cuidado especial para

que essa semente não seja perdida e, caso isso porventura aconteça, sua

obtenção em geral ocorre por meio de doações de parentes que morem

próximo. Não há como afirmar o motivo pelo qual isso acontece, isto é, se

as pessoas dão tanta importância para manutenção dessas sementes por

conta da baixa oferta por parte dos agricultores de terra firme ou se é

justamente o inverso: aqueles da terra firme não trazem por não ocorrer

esse tipo de demanda. O fato é de que a quantidade de varas de macaxeira

mantidas por cada agricultor é tão pequena que não atinge a escala

comercial, pairando apenas no universo dos consanguíneos que moram

próximo. Veja a informação abaixo dada por um dos agricultores da várzea:

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É raro as pessoas perderem, pois é muita preocupação correr atrás

de semente de macaxeira, porque tem gente que não gosta de

vender e quando encomenda não traz... acham que é pouco para

trazer de tão longe, aí preferem trazer o que dá para vender mais

(Dude).

O segundo caso que enumeramos anteriormente diz respeito a

agricultores da várzea ou da praia (beira do Purus) que mantém, além de

suas roças, outro pequeno espaço de cultivo. Nessas áreas de várzea alta

ou aquelas de terra firme que se localizam na própria cidade de Canutama

são mantidas não só variedades de mandioca e macaxeira, mas também

uma ampla diversidade de espécies como maxixe, quiabo, limoeiro,

azeitona, goiabeira, bananeira, mangueira, urucuzeiro, açaí, urucurizeiro,

milho, pupunha, coco, biribá, cana, cajueiro, ingazeiro, mamão. Os

agricultores costumam visitar com frequência a área para ver o estado da

plantação e se alguém mexeu em algo. Alguns costumam chamar as

plantas que cultivam na várzea alta de “bens de raiz”, isto é, uma espécie

de patrimônio para vida toda que garante no caso da prefeitura de

Canutama precisar da área, que seja pago um valor por cada uma das

árvores, considerando que oferecem alimentação e renda para seu

proprietário ao longo de toda sua vida e de seus herdeiros.

Em geral, os donos dos roçados (chamam de roçado quando se localiza

no ambiente de várzea e terra firme) realizam no final da época cheia do rio

Purus, em meados de maio, a escolha das varas de mandioca que irão

plantar no próximo mês em suas vazantes. Selecionam, em geral, um feixe

(cerca de 50 varas) de plantas que possuam caules mais finos - por serem

mais fáceis de juntar no feixe e de plantar- e compridos – pois poderão

render mais quando forem cortados em pedaços. Realizam um corte em

cada um desses caules para verificar se possuem bastante seiva, também

chamado de leite por conta de sua coloração esbranquiçada. As plantas de

mandioca possuem apenas suas partes aéreas extraídas, enquanto seus

tubérculos em geral não são colhidos por três principais motivos: a várzea

alta em geral se localiza distante da casa de farinha; os tubérculos que

crescem nesse ambiente não apresentam crescimento satisfatório devido ao

pouco nível de adubo depositado; não realizando sua extração mantem-se

aqueles nutrientes no ambiente, postergando assim o esgotamento dos

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mesmos no solo e permitindo mais anos de cultivo no mesmo local. É

importante diferenciar aqui alguns tubérculos da macaxeira são retirados,

escolhendo apenas as plantas de tronco mais grosso para isso. O transporte

das sementes até a residência, tanto as de mandioca quanto as de

macaxeira, é realizado de barco, diminuindo o esforço empreendido, e as

varas são encanteiradas no quintal até que sejam plantadas em junho.

Alguns dos agricultores que possuem roçado na ilha de terra firme de

Canutama ou na várzea alta também realizam a venda de sementes de

mandioca, mas em uma escala muito menor do que os vendedores de terra

firme que possuem roçados mais distantes. Em geral, vendem apenas para

conhecidos ou amigos vizinhos, enquanto para parentes costumam dar.

Nessa doação, as pessoas que devem ir até o roçado buscar as sementes e,

em geral, como forma de retribuição, o que recebe a maniva costuma

capinar o roçado daquele que realizou a doação.

Mesmo que seja raro, a várzea alta por vezes é alagada em épocas

que a cheia do rio Purus é muito intensa. Contudo, como esses locais

possuem relevo mais alto e alagação neles é rasa (atingindo cerca de 15

cm), pode-se ainda assim retirar a mandioca ou a macaxeira sem que a

mesma estrague. Sua extração, no entanto, deve ser feita antes que a água

da cheia baixe caso contrário à planta seca. Em alguns casos, quando a

alagação é maior, o plantio é perdido e torna-se necessário obter as

sementes por meio de compra com pessoas da terra firme ou de doações

por parte de parentes.

No terceiro caso mencionado, os plantadores mantem suas sementes

de mandioca e macaxeira no quintal de sua própria residência na cidade ou,

no caso na mandioca, nas proximidades da casa de farinha. Ao final de cada

colheita, encanteiram cerca de sete feixes (lembrando que cada feixe é

formado por 40 a 50 varas) das plantas mais prósperas, finas e com mais

seiva para serem mantidas até o próximo plantio. Tomam particular cuidado

para não realizar o transporte de sementes leves e secas, isto é, com pouca

seiva, visto que esta é de fundamental importância no desenvolvimento das

raízes tuberosas. Depois do transporte, a tarefa de manutenção das

sementes em geral é feminina. As varas são escoradas em um fio de

barbante amarrado em diversas madeiras espalhadas pelo quintal e, assim

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encanteiradas, são realizadas podas nas folhas que começam a nascer dos

nós do caule, deixando que apenas os apicais se desenvolvam. Dessa

forma, segundo os agricultores, evitam que a seiva se divida e perca sua

força. Contudo, afirmam que ainda realizando um manejo constante, as

manivas encanteiradas sempre acabam por perder um pouco de sua seiva e

algumas delas chegam a ficar muito secas, leves, com o “miolo tufado”. Por

isso costumam encanteirar uma quantidade maior do que aquela que

realmente precisarão durante o plantio.

Quando chega a época de plantio, os agricultores escolhem justamente

as varas mais pesadas, cortando sua extremidade para verificarem a

quantidade de seiva nela. Aquelas com pouca são enterradas no próprio

local para ver se a seiva se renova. Caso renove, entre oito a dez dias,

utilizam apenas a parte da vara mais próxima ao chão. No momento do

Figura 20 – Estacas de mandioca. Foto: Thayná Ferraz da Cunha.

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plantio, as varas são cortadas em pedaços com três nós. Caso haja pouca

vara para utilizarem, enterram dois pedaços provenientes das que tem

pouca seiva em uma única cova, aumentando assim as chances de sucesso.

Embora seja uma alternativa bastante utilizada, sobretudo para

manter sementes de macaxeira, a maior parte dos agricultores não aprecia

varas de mandioca que tenham sido encanteirados, dizendo que a plantam

perde sua seiva (leite) e nasce com menos vigor quando replantada do que

aquelas que foram tiradas recentemente da roça. Além disso, o

encanteiramento de mandioca costuma apenas ser realizado quando a cheia

do rio não é demasiada intensa, pois nessas condições os agricultores

possuem tempo suficiente para empreender essa tarefa. A macaxeira, por

outro lado, é uma prioridade e deve ser encanteirada, algo facilitado pelo

fato de serem poucas varas necessárias, tornando assim o trabalho muito

mais fácil e rápido.

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ROÇADOS E MANDIOCAS JAMAMADI

Ingrid Daiane Pedrosa de Souza

INTRODUÇÃO

Parte do grupo que ficou na cidade de Canutama (Thayná, Alba e eu)

deu início ao estudo sobre o evento conhecido como farinhada. A pesquisa,

vinculada ao projeto “Sistemas Produtivos no Médio Purus Indígena” do IBP,

coordenado pelo Prof. Gilton Mendes, objetivava o acompanhamento dos

agricultores de várzea do município, investigando prioritariamente os

aspectos sociais e simbólicos por detrás da atividade produtiva.

Este primeiro momento serviu como uma espécie de “pré-campo”,

uma vez que me possibilitou estar na região do Purus, conhecendo uma

área de roçados24, acompanhando um grupo de agricultores que fazem

desta sua principal atividade; compreendendo, entre outras coisas, a

dinâmica das relações entre nordestinos e indígenas, impressa na história

destes grupos. Esta última parte, de modo mais específico, de suma

importância para compreensão dos reflexos do extrativismo na história

social dos coletivos indígenas e não indígenas da região.

Meu retorno a Lábrea

Informada que o professor Gilton não poderia ir para Lábrea, fui por

ele instruída a entrar em contato com os professores do curso de pedagogia

indígena da UEA que haviam sido vinculados ao projeto sobre os sistemas

produtivos do IBP. A intenção era saber como estavam sendo conduzidos os

levantamentos e as pesquisas nas comunidades Jarawara, Paumari, Apurinã

e Jamamadi, onde os mesmos davam aulas, bem como realizar reuniões de

orientação ao grupo. Nesse sentido, tanto auxiliaria no andamento dos

trabalhos, quanto tomaria conhecimento do material referente aos

24 Embora os roçados que conheci no município de Canutama sejam do tipo “vazante”, ou

seja, “roça de mês”, enquanto que nos Jamamadi as roças são de terra firme, roçados de

ano, a experiência de estudo trouxe grandes contribuições quando na pesquisa com os

Jamamadi.

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Jamamadi, de modo a me situar do atual contexto agrícola do grupo, uma

prévia do que encontraria durante o trabalho de campo.

Nesta ocasião conheci a professora Apurinã Lucilene, que também

fazia parte do grupo de professores do projeto e era responsável por dar

aulas nas comunidades Jamamadi. Durante os encontros, a mesma

disponibilizou quatro desenhos de alunos seus produzidos já de acordo com

a proposta e objetivos do projeto. A partir de diálogos durante as aulas,

havia sido elaborado um modelo de “calendário dos roçados” orientando a

produção dos desenhos, os quais findaram sendo entregues à professora

como parte das atividades de uma das disciplinas por ela ministrada.

Além deste material, Lucilene trouxe ainda algumas informações

iniciais - baseadas em um questionário, uma espécie de “roteiro” que havia

sido elaborado e entregue pelo próprio professor Gilton - sobre o cultivo de

roçados e a produção de farinha entre o grupo. A mesma havia realizado

um pequeno levantamento na Comunidade São Francisco, bem como, em

uma casa de farinha localizada próxima ao Igarapé Preto, pertencente ao

cacique Bada.

De acordo a professora, no São Francisco vivem cerca de trinta e

quatro famílias, somando o total de 175 pessoas. Dos cultivos de mandioca

citados em seu levantamento constavam as espécies “Samaúma, Mineve e

Joaquim Grande”, as quais são descritas25 da seguinte forma:

25 Em nenhum momento do levantamento Lucilene explica como foi feito o levantamento, se

baseado nas suas observações ou na fala dos próprios Jamamadi.

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MANDIOCAS LEVANTADAS

Espécies de Mandioca26 Descrição

Samaúma

Possui folha verde, talo roxo. O tubérculo tem a

casa preta e massa branca. O caule é branco (?).

Ela a espécie “aguenta” até três anos. Seu pé é

alto e “galhado” e rende farinha branca.

Mineve

Toda verde, caule amarelo, roxo. Não é muito

alta. Aguenta cerca de dois anos. Possui massa

amarela e rende uma farinha de cor “bem

amarelinha”.

Joaquim Grande

Dura aproximadamente dois anos, sendo que

com onze meses já é possível fazer farinha desta

espécie de mandioca (confirmar). Sua planta é

alta, folha verde, caule cinzento, talo verde,

batata “esbranquiçada”. Rende uma farinha que

não é nem muito branca e nem muito amarela.

Tabela 4 - Mandiocas levantadas no São Francisco.

Além das espécies de mandioca mencionadas, a professora conta que

os Jamamadi do São Francisco cultivam ainda milho, batata, ariar, cará,

banana, abacaxi, cana, caju, tingui, arroz e macaxeira (mandioca mansa).

Quanto à produção de farinha, Lucilene descreve algumas etapas do

processo. Conta que primeiro arrancam o tubérculo, decotam, carregam e

colocam de molho. Com aproximadamente três dias, retiram-no

transferindo para cima da palha da bananeira braba. Para prensar, utilizam

o tipiti, que é preso na forquilha de uma árvore e com o auxilio de uma vara

fina (de aproximadamente dois metros e meio), presa na raiz da árvore,

26 Não sei se estes nomes foram grafados corretamente e nem os nomes científicos de cada

uma das espécies citadas. Muito menos saberia informar os nomes correspondentes na

língua Jamamadi.

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espremem a massa. Acontece que “aterram” e engancham o tipiti tanto na

parte superior quanto inferior e, em seguida, a mulher senta em uma das

extremidades da vara de modo a fazer o peso necessário para que a água

escorra. O processo é repetido algumas vezes até que a massa enxugue por

completo. De acordo com o levantamento de Lucilene esta é a única

atividade onde apenas as mulheres participam, conforme o esquema

abaixo:

Tabela 5 – Divisão de atividades agrícolas por gênero.

DIVISÃO DE ATIVIDADES AGRÍCOLAS POR GÊNERO

Homens Mulheres Homens e Mulheres

- Broca;

- Derrubada;

- Queima.

- Espremer a massa

(tipiti).

- Coivara;

- Ir atrás das manivas

(?);

- Plantar (Cavar covas e

pôr as manivas);

- Limpar;

- Arrancar;

- Decotar ou cortar;

- Carregar;

- Peneirar;

- Torrar.

Após terem escorrido a massa, ela é levada até a casa de farinha onde

já pode ser torrada. Quando não é possível torrar no mesmo dia, pode-se

optar ainda por realizar a atividade no dia seguinte.

Dando continuidade ao processo de produção da farinha, partem a

lenha e fazem o fogo, de modo que após a massa ter sido peneirada e o

forno estar bem quente a jogam dentro. Enquanto um mexe o outro vai

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jogando. No começo mexem com movimentos mais devagar, pois ainda

estão escaldando a massa. Depois, mexem com mais força até “secar a

farinha”. Segundo a professora, o tempo máximo que levam mexendo até

que se tenha uma fornada é de uma hora.

Na casa de farinha visitada, Lucilene registrou alguns dos materiais

utilizados no processo, entre os quais menciona: três tipitis, uma peneira,

uma caixa de peneirar massa, um forno, uma cuia para botar a massa no

formo, um remo para mexer, paneiro para carregar a mandioca, um pedaço

de pano molhado de óleo para passar no forno e um pano seco para puxar o

pó de farinha que fica quando a retiram do forno.

A chegada à TI Jarawara/Jamamadi/Kanamati

Embora estivesse ansiosa após a espera pelo retorno de André, tive

que conter minhas expectativas por mais um dia. Isso porque iniciei a

viagem de campo conhecendo primeiro a aldeia “Casa Nova”, também

situada na TI Jarawara/Jamamadi/Kanamati, mas pertencente aos

Jarawara. Neste local estava previsto ocorrer um campeonato de futebol

que contaria com presença de vários Jamamadi e ribeirinhos.

André por algumas vezes durante o trajeto havia mencionado seu

interesse em ir até lá para assistir e participar do campeonato, contudo,

fiquei bastante receosa que isso pudesse atrasar minha entrada, prejudicar

no sentindo de limitar meu tempo de trabalho, minha estadia nas

comunidades Jamamadi.

O comentário sobre o evento aumentava à medida que os demais

Jarawara que estavam no bote conosco – e desceriam em um ponto

próximo de onde ocorreria o campeonato – também aguardavam minha

decisão para seguirem direto até o local.

Apesar de expressar seu interesse, André procurou todo tempo me

deixar bastante a vontade para decidir, dizendo sempre que a gasolina era

minha e eu diria o que faríamos. “O que Daiane decidir”.

Sempre gostei de futebol, fiquei interessada, todavia, estava

preocupada em manter o foco, imaginando que após André encontrar

parentes e amigos, poderia dispersar do ponto final da viagem. Assim, após

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conversar com o agente sobre a proximidade das aldeias Jamamadi27 e dele

me garantir que logo pela manhã estaríamos no porto de uma delas - a

aldeia “Buritirana” do cacique Gasparino -, findei aceitando a proposta.

Logo que chegamos ao porto Jarawara, tratei de guardar minhas

coisas em uma casa localizada próximo a margem, para seguir a caminhada

até o local onde ocorreriam as partidas de futebol. Os Jarawara me

ajudaram a guardar e trancar a casa, alertando para o fato de muitos

poderem mexer no material que eu levava, não havendo controle com

tantas pessoas (indígenas e ribeirinhos) de diferentes lugares.

Aconselharam-me a escrever em letras garrafais “OPAN” e “FUNAI” no

garrafão de gasolina e no rancho deixado.

Chegando lá, assisti a umas partidas, enquanto observava o local e as

pessoas, conhecia alguns Jarawara e era também por eles observada. À

tarde, sem comer nada, cansada, adormeci. Cochilava deitada no chão de

uma das casas altas, de madeira, ao redor do campo, apoiando a cabeça na

rede que havia levado.

27 Jarawara e Jamamadi dividem a mesma T.I., em uma área extensa onde os Jamamadi

detém maior parte.

Figura 21 - Cobrança de Pênaltis, aldeia “Casa Nova” dos Jarawara. Foto: Ingrid

Daiane.

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Não demorou e um Jamamadi chamado Vane (ou Vande, como muitos

brancos o chamam), da aldeia São Francisco, se ofereceu para ajudar,

atando minha rede, me acomodando no local. Sempre atencioso e

preocupado em saber se estava tudo certo, foi a ele que reclamei/exclamei

de fome, enquanto ele ria de mim. Na frente da casa onde estávamos,

haviam mulheres Jamamadi sentadas com seus filhos, expectadoras atentas

das partidas.

Ir até lá assistir o campeonato, me fez perceber (e depois, através do

campo junto aos Jamamadi, confirmar), entre outras coisas, o quanto os

grupos indígenas da região também são afeitos ao futebol. Lá estavam

presentes vários Jamamadi, homens, mulheres, adultos, jovens e crianças,

de diferentes aldeias, participando e/ou assistindo. Mas, era Vane quem de

todos os presentes redobrava as atenções e dispensava cuidados.

Dentre os Jarawara que conheci, estava um jovem cacique que se

aproximou de mim para conversar. Ele tentou apresentar-me sua esposa,

que era branca, mas sorrimos e nos cumprimentamos, pois, já nos

Figura 22 - Campo de Futebol visto da casa onde estava (I e II

Jamamadi sentados na “varanda)”, III (campo onde jogavam

futebol). Foto: Ingrid Daiane.

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conhecíamos de Lábrea, de uma das vezes que visitei a casa do cacique

Bada, localizada no Bairro da Fonte.28

Entre outras coisas, o cacique Jarawara falou sobre uma antropóloga

que havia feito um trabalho sobre o grupo. Referia-se a Fabiana Maizza,

cuja dissertação eu havia dado importante atenção pelas proximidades

históricas e culturais entre o grupo por ela pesquisado e os Jamamadi desta

pesquisa. O cacique comentou que havia sido ajudante dela na pesquisa e

lamentava que a mesma nunca mais tivesse mandado notícias ou aparecido

para visitá-los. De acordo com ele, a antropóloga havia sido muito bem

tratada, que não a deixavam carregar nada, sempre dispostos a ajudar no

que fosse preciso. Ansiava cada vez mais saber como seria recebida pelos

Jamamadi.

À noite, acordei e percebi que estava cercada de pessoas que não

conhecia. Eram os donos da casa onde havia ficado. Falei rapidamente com

dois homens e logo André chegou, me direcionando para a escola da

comunidade, onde eu dormiria. Já completamente escuro, desci em direção

ao igarapé da comunidade, onde tomei banho ao lado de algumas mulheres

Jarawara que ali se encontravam. Em seguida, após organizar minhas

coisas e me instalar na escola, segui com Vane e André para enfim comer

algo.

Nas casas do outro lado do campo acontecia uma festa em

comemoração ao aniversário de alguns Jarawara. Havia bastante comida e

muita gente reunida conversando e sem dar muita atenção ao fato de eu

não ser dali. Os Jarawara são bastante animados, gostam de festa.

Observá-los me fazia imaginar todo tempo os Jamamadi, como seria estar

com eles.

Apesar de ter deixado meu rancho no porto, não precisei mais me

preocupar com comida, pois na ocasião da festa era farta e composta por

todo tipo de carne de caça. Dentre as opções, experimentei porco do mato,

28 O Bairro da Fonte é bastante conhecido por sua forte presença indígena. O local é

bastante procurado por grupos indígenas tanto para fixar moradia quanto para comprar

casas onde permanecem durante sua estadia na cidade - como no caso de Seu Bada. O líder

Jamamadi havia comprado a casa há pouco tempo em um local cercado de vizinhos

Jarawara.

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com farinha e bastante arroz. O gosto é diferente, mas ao mesmo tempo

referenciável. Gostei bastante, mais ainda pela fome que sentia.

Senti-me bem acolhida e pelo fato de não me cercarem todo tempo,

de não ser o centro das atenções (claramente a “de fora”, diferente), tive

tranquilidade em estar ali, conversando com naturalidade com as pessoas

sentadas próximas a mim. De modo especial, atenta a meus novos amigos

Jamamadi.

Depois do jantar, fomos até uma casa onde muitos Jarawara se

aglomeravam para assistir em um canal de TV a cabo um evento de luta do

tipo telecatch, impressionando-se com cada cena, que era por eles

comentada com grande excitação. Nos intervalos, mudavam de canal para

uma partida de futebol onde Neymar findava sendo o centro das conversas.

Em seguida, dando continuidade as comemorações, houve um culto

evangélico curto, onde cantaram parabéns para os aniversariantes e

repartiram o bolo. Várias mulheres saíram distribuindo, em bacias enormes,

fatias de bolo feito de uma massa bem pesada, além de pipoca, sucos e

refrigerantes, de modo que a etiqueta de aceitar o que me era oferecido já

não poderia mais ser seguida fisiologicamente, o que causava risos em

Vane que recordava do comentário de fome feito por mim horas antes.

Figura 23 - Aniversariantes na festa Jarawara. Foto: Ingrid

Daiane.

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Uma banda formada pelos próprios Jarawara começou a tocar músicas

animadas no estilo “forró gospel”, com letras entoadas na língua nativa.

Não demorou e logo casais se formaram. Vane comentou que os Jarawara

gostavam muito de festa e que agora que eram crentes dançavam ao som

de hinos da igreja, o que era mal visto pelos Jamamadi, cristãos mais

conservadores.

A música continuou durante a noite toda, mas cansada e sonolenta fui

para escola organizar as ultimas coisas, pensando no dia cheio que teria. De

manhã cedo, enquanto quase todos dormiam, conforme havíamos

combinado, seguimos viagem.

Aldeia Carapanazal

A caminho da Aldeia Carapanazal comecei a ficar preocupada, não

apenas com as histórias de cobras que haviam contado, mas com meu

condicionamento para a viagem mais longa. Estava extremamente cansada

pelas noites corridas, mal dormidas, pelas manhãs nas aldeias que

começavam mais cedo do que eu estava habituada, e mesmo pela mudança

de locais, deslocamentos que havia feitos nos últimos dias. A caminhada

mal havia iniciado e já estava cansada, desejando chegar logo ao destino

final.

Na cidade sempre caminhei com certa rapidez e por caminhos longos,

principalmente quando tinha um objetivo: passadas longas e precisas, sem

Figura 24 – A banda arrumando os instrumentos. Foto: Ingrid Daiane.

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perder o ritmo. Mesmo quando me falaram das distâncias e longas

caminhadas que me aguardavam nos Jamamadi (principalmente no verão)

em momento algum desanimei, sempre encarando com muita tranquilidade.

Contudo, a partir da experiência de campo, pude perceber que andar por

entre varadouros era completamente diferente do que eu fazia na cidade,

outra referência. Tenho certa tendência a ser desastrada: tropeço e caio

sem tanta dificuldade e não sem frequência. Andar na mata potencializou

consideravelmente isso.

Lamentei não ter seguido minha meta (pensada justamente por conta

do campo) de fazer caminhadas frequentes durante os últimos meses,

enquanto ainda estava na cidade. Vontade não faltou, mas a correria dos

preparativos para a viagem realmente dificultou por o plano em prática.

Meu condicionamento definitivamente não era dos melhores, mas

segui firme, mesmo carregando comigo uma mochila pesando

aproximadamente 15 kg (e aumentando consideravelmente a cada passo),

que só reiterava o cansaço e preocupação com a viagem mais longa, rumo

ao São Francisco.

Quando já estávamos bem próximos à comunidade, avistei uma

grande área queimada, repleta de troncos caídos, por onde um menino

Jamamadi caminhava.

Figura 25 - Varadouro próximo à comunidade Carapanazal. Foto: Ingrid Daiane.

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Mais adiante, vi um senhor de boné caminhando por entre os troncos,

cuidando do roçado que ali crescia. O homem, que tinha cabelos e bigode

branco, era Chico Inácio, filho do primeiro cacique dos Jamamadi, irmão de

criação de Bada e o garoto que havíamos visto primeiro, era seu neto.

Muito sorridente e conversador, Chico Inácio é um dos Jamamadi mais

velhos29, conhecedor de inúmeras histórias que foram, ao longo da minha

curta estadia no local, gentilmente compartilhadas. Vane e eu nos

aproximamos do local onde ele estava e, nesse primeiro momento,

conversamos rapidamente a respeito do roçado que orgulhosamente exibia.

Como parecia estar relativamente claro para os Jamamadi que meu

interesse estava de modo especial voltado para seus cultivos - desde a

cidade comentávamos -, durante as conversas o tema parecia algumas

29 Isso se não for de fato o mais velho. Reza a lenda (disseminada em conversas

descontraídas pelos membros de instituições) que seu Chico é muito velho, mais do que se

imagina, um centenário. A brincadeira é sustentada pelo fato do próprio Chico Inácio afirmar

ter criado o cacique Bada Jamamadi, que já é um senhor velho.

Figura 26 - Chico Inácio em um de seus roçados, Comunidade Carapanazal. Foto: Ingrid

Daiane.

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vezes fluir com certa tranquilidade.30 Por vezes durante o trabalho de

campo31 eles mesmos iniciavam o assunto, chegando até a avisar-me

quando determinada pessoa estaria indo ao roçado ou torrando farinha.

Mesmo quando Vane não tomava a frente, explicando meu interesse em

saber mais a respeito da agricultura que exerciam - dizendo repetidamente

a todos que estava me acompanhando e ajudando a fazer trabalho [de

campo] -, eles mesmos findavam percebendo a partir do andamento que

tomava boa parte das conversas.

Assim, mesmo cansada da caminhada, estava definitivamente animada

em conhecer o roçado de Chico Inácio, o primeiro que eu visitava. Mais

ainda por ele parecer disposto a conversar.

Com Vane iniciando as perguntas (ciente do meu interesse), aproveitei

a oportunidade para, com mais naturalidade, também dialogar com o

Jamamadi, que sorridente nos respondia.

Durante a curta conversa, Chico Inácio mencionou as variedades de

mandioca cultivadas: Cobiçada, Flecha Amarela, Janauacá e Mareão,

mostrando-me as que estavam mais próximas. Além das roças de

mandioca, ele possui outros cultivos como os de milho, cana, caju e

abacaxi, sendo descrito por Vane como proprietário de vistosos roçados.

Sem nos estender, cansados, seguimos caminhada. Não demorou e

logo adentramos a comunidade Carapanazal, onde alguns Jamamadi já

almoçavam. Vane de imediato anuncia: “Terra boa Carapanazal... Tem

muita planta”. Mal pude conhecer naquele momento o local, descansei um

pouco, coloquei meu rancho e mochila em uma das casas e tratei de comer

algo.

Recorreria naturalmente ao meu rancho para fazer a refeição não fosse

o gosto deles pelos enlatados. Vane me abordou comentando que algumas

mulheres queriam saber quanto à lata de sardinha havia me custado, pois

queriam comprá-la de mim. Embora soubesse que absolutamente tudo era

por eles negociado (favores, serviços, alimentos, artesanatos, etc.),

30 Com exceção apenas das limitações e problemas de comunicação decorrentes de minha

falta de compreensão da língua.

31 Aqui faço referência ao trabalho realizado no São Francisco, onde fiquei por mais tempo.

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expliquei que eu não poderia vender, e, mesmo tendo pouca, daria para

que dividissem.

Não sabia como seria quando meu rancho estivesse chegando ao fim,

mas naquele momento não gostaria de iniciar (muito menos ter) uma

relação com eles nesses moldes. Esperava, ao contrário, algo semelhante

ao que Vane vinha construindo comigo: certamente eu saberia recompensar

tamanha dedicação e cooperação para comigo e com a pesquisa e ele sabia

disso. Chegou a sugerir sutilmente interesse em alguns objetos meus,

demonstrando curiosidade e admiração. Compreendendo algumas das

nuances por detrás de sua aparente despretensão, mencionei que daria um

presente especial pela ajuda, a faca que ele tanto tinha gostado. Feliz, por

onde passávamos ele comentava “quando minha amiga Daiane for embora

vai me dar faca dela!”. Isso parecia valer bem mais do que qualquer

dinheiro que eu pudesse dar pela ajuda, era uma dádiva que nos ligaria

mesmo após minha saída.

Confiante de que seria a melhor decisão naquele momento, cedi um

dos enlatados, a (desejada) sardinha. Peguei outra e com ajuda de uma

mulher, preparei meu almoço, comi uma parte e dividi o restante com Vane

e os demais. Não demorou a me retornarem um prato com caldo e matrinxã

fresquinha, o melhor almoço que eu poderia ter!

Satisfeita - com o almoço e a reciprocidade manifesta-, planejava

minha tarde quando Vane procurou-me para avisar que seguiríamos para

São Francisco naquele mesmo dia. Tentei durante o dia anterior persuadi-lo

a continuar nas comunidades, mas ele parecia determinado a seguir

viagem. Ainda cansada, vi no céu cinza a chance de permanecer no local.

Avisei que o clima parecia anunciar que iria chover e alguns Jamamadi que

estavam próximos concordaram. O céu de fato estava fechado, nublado e

Vane findou concordando em permanecer no local por mais uma noite,

avisando de antemão que logo pela manhã a viagem continuaria.

Não choveu e, ao contrário, tivemos um produtivo dia de trabalho.32

Dando início as atividades daquele dia, resolvi partir do levantamento do

32 Uma das coisas engraçadas e inusitadas do meu trabalho de campo foi a expectativa e

cobrança que cercava minhas atividades. Quando não saia para fazer levantamento do

parentesco ou para ir ao roçado Vane estranhava e perguntava se naquele dia eu não iria

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parentesco, adotando a mesma estratégia utilizada no Buritirana, ou seja, a

partir das casas e seus respectivos proprietários/moradores.

Notei que o local, apesar de um pouco maior que o Buritirana, estava

um tanto deserto, “desfalcado”. Só não estava mais vazio pelo fato de

pessoas de outras comunidades estarem no local, “passando dias” – o que

inclusive, no começo, dificultou um pouco o levantamento.

Ocorre que, justamente durante minha estadia na T.I, vários homens

desta e de outras comunidades haviam partido para os “centros”, pois o

calendário coincidia com o período de extração do óleo de copaíba. Entre

eles Dino, filho solteiro do seu Gasparino, do Buritirana, José, um dos filhos

de seu Chico Inácio e o cacique Ricardo, estes últimos, ambos do

Carapanazal.

Partindo em grupos de aproximadamente 15 homens, costumam levar

com eles algumas mulheres que, apesar de não retirarem copaíba, são

essenciais para o desempenho da atividade. Segundo disseram-me, elas

auxiliam seus parceiros dando suporte, entre outras coisas, cozinhando e

lavando roupas.

Geralmente o grupo abriga-se nas casas temporárias, construídas com

este intuito, onde ficam apenas quando estão de passagem pelo local,

trabalhar, não entendendo que o simples fato de estar com eles conversando ou

compartilhando uma refeição fazia parte do “trabalho”.

Figura 27 - Vane chegando à comunidade Carapanzal. Foto: Ingrid

Daiane.

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empregados nas atividades de extração. De acordo com seu Chico, embora

não haja manutenção das casas, as mesmas não são destruídas após o

término da extração, permanecendo justamente para quando precisem

retornar; até que se “acabe sozinha”, não resistindo ao tempo. Conforme

explicam, “cai porque é no mato”.

Assim, levando em consideração o calendário do grupo e as

implicâncias deste momento específico no trabalho de campo33, o

levantamento das casas e dos respectivos moradores foi feito, de modo que

a distribuição das casas no Carapanazal pode ser visualizada no quadro

abaixo.

Tabela 6 - Distribuição das casas Jamamadi - aldeia Carapanazal.

Distribuição de Casas – Comunidade Carapanazal

Casa 1. Pode ser vista logo que se adentra a comunidade. A mesma pertence

ao cacique Ricardo e sua família nuclear. No local são realizados cultos e

também a tradução da bíblia.

Casa 2. Localizada ao lado da primeira casa, é onde vive Seu Chico Inácio e os

filhos Salgado e José, bem como sua nora Cleonice.

Casa 3. Embora a casa pertença ao cacique Ricardo, ele não mora mais no

local. Pelo que me foi dito, qualquer pessoa de passagem pela aldeia pode

abrigar-se lá.

Casa 4. Pertence a Abadia, filho do cacique Gasparino. Lá ele mora com sua

esposa Cléia e seus três filhos.

33 Por certo tais ausências influenciaram no resultado das informações e levantamentos

realizados durante esta primeira entrada. Exemplificando um destes aspectos, cito o fato de

não estarem torrando no Carapanazal durante este período. Segundo Vane, haviam torrado

na semana anterior e como neste momento estão no centro, apenas retomariam a atividade

quando voltassem à comunidade.

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Casa 5. No local vive Nilton (irmão do cacique Moacir, do São Francisco) com

sua esposa Nadime e os filhos solteiros. Lá eles recebem ainda (por vezes

durante meses) a visita da filha Eulina com o marido Raimundo e o filho do

casal. Eles ficam na casa de Nilton, pois possuem casa apenas no Pauzinho.

Casa 6. Pertence a Marildo, filho de Nilton e Nadime. Ele vive no local com a

esposa Rubina e os três filhos do casal.

Casa 7. Pertence a outro filho de Nilton, Isaac, que é casado com Rita (filha de

Gasparino), que moram ainda com seus dois filhos. Possuem casa nas aldeias

Buritirana (onde os conheci) e Carapanazal.

Casa 8. Lá vive Elton (filho de Gasparino) e Melista (filha de Nilton) com os

três filhos do casal.

Quanto aos moradores de cada uma das casas, optei por incluí-los no

esquema de parentesco (nos moldes clássicos da antropologia), imaginando

que deste modo poderia, futuramente, traçar as genealogias e análises de

modo mais satisfatório. Contudo, para organização no presente relatório,

decidi fazer algumas pequenas adaptações34, para uma melhor leitura do

material. Deste modo, dividi por cores os respectivos familiares incluídos no

levantamento mais “genérico”, de maneira que de vermelho constam as

pessoas que moram na casa, de azul aqueles que costumam ficar “de

passagem” (geralmente os filhos casados, seus respectivos cônjuges, com

ou sem filhos); verde para aqueles que possuem casa em outros locais

(“moram lá e aqui”) e cinza para membros da família nuclear falecidos.

Conforme encontrei o local, segue a descrição abaixo, seguida do esquema

de parentesco:

Casa 1: Durante minha visita na comunidade, a casa 1 do cacique

Ricardo estava sob os cuidados de Socorro (esposa de Dentista), uma

Jamamadi do São Francisco de passagem pelo local. Ricardo, que é casado

34 Semelhantes ao esquema acima, referente ao Buritirana, que destacava de vermelho o

ego.

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com Maura (filha de Chico Inácio), como mencionado acima, estava para o

centro.

Casa 2: Já a casa 2, no dia de minha visita, abrigava apenas seu Chico

Inácio, estando o restante dos moradores no centro, extraindo copaíba -

inclusive a esposa de José, Cleonice, que fora auxiliar o marido (o casal não

tem filhos). Seu Chico Inácio foi casado com Tamará, irmã do cacique

Gasparino. Pelo que me foi dito ela faleceu em um acidente que ocorreu

quando Tamará alcoolizada alagou a canoa onde estava, juntamente com

uma criança, um dos filhos do casal.

Casa 3: Já na casa 3, também pertencente ao cacique Ricardo, estava

Carlo (cunhado do cacique Moacir), um Jamamadi do São Francisco,

passando uns dias. Segundo me foi dito, geralmente quem fica no local é

Chico

nácio

Ricardo Maura

Kátia

? ? ? Eduardo Jairo Ketinha

José Maura França

Salgado

Cleonice

Tamará Chico Inácio

_

+

=

+

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Barriga (Bahika), que naquele momento era mais um dos que estavam no

centro, juntamente com a esposa Raimunda (Bonoidiha).

Casa 4: Na casa 4, por sua vez, o que me chamou atenção foi o fato

de estar um casal sem aparentes vínculos diretos com demais membros da

comunidade, o que abre para a possibilidade do mesmo existir e ter,

contudo, passado desapercebido durante o levantamento, ou o contexto ser

de alguma outra motivação até então desconhecida. Embora Abadia seja

sobrinho da falecida esposa de Chico Inácio (Tamará) e de dois irmãos seus

(Rita e Elton) morarem no local, nem ele e nem sua esposa possui pai e/ou

mãe na comunidade, o que os difere dos demais. Como mencionado

anteriormente, o casal e os filhos estavam, na ocasião de minha visita, na

cidade de Lábrea, onde Abadia participava das aulas do Pirayawara. Assim,

quando visitei o local, era Margarida, uma Jamamadi do São Francisco,

quem estava passando uns dias. Próximo a casa, notei uma casinha “anexa”

que funciona como cozinha, padrão que se revelará bastante comum em

comunidades maiores como São Franscico e Pauzinho.

Casa 5: O local, que abriga a família nuclear de Nilton (Bokakari) e

Nadime, esporadicamente recebe ainda o casal Eulina e Raimundo, com a

filha Soeki, que permanece no local durante semanas e até meses. Eulina é

uma das filhas de Nilton e possui casa somente no Pauzinho.

Morena Gasparino

?

Creia Abadia

? ? Neuza

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Casa 6: Já na casa 6 vive mais um dos filhos de Nilton, Marildo,

juntamente com sua esposa Rubina (sobrinha de Vane) e os três filhos do

casal.

Casa 7: A casa 7 da comunidade Carapanazal pertence a Isaac (filho

de Nilton) e Rita (filha do cacique Gasparino). O casal e seus filhos possuem

ainda outra casa, listada anteriormente, localizada na comunidade

Buritirana, onde revezam a estadia.

Nadi

me

Nilton

Eulina

Raimundo

Soeki

Iv

an

Euli

na

Melist

a

Sam

ia

Sili

a

Mari

ldo

Fran

ça

Isa

ac

Sáli

o

Nadim

e

Deca

Vane Noca Nilto

n

Marildo Rubina

? Gabriel Nira

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Casa 8: A ultima casa listada pertence a Elton (filho do cacique

Gasparino) e a Melista (filha de Nilton), que moram no local com seus três

filhos.

A partir do levantamento realizado, podemos notar que a comunidade

é formada, basicamente, por membros de duas famílias principais, a de

Chico Inácio e a de Nilton. Esta segunda, por sua vez, além de mais

representativa aparece diretamente relacionada com outra família, a do

cacique do Buritirana, Gasparino Jamamadi. Foram identificados dois casos

de casamento estabelecido entre os filhos de Gasparino e Nilton, de modo

que em ambos os casos optaram por construir – somente ou também -

residência no Carapanazal.

Nadim

e

Nilton More

na

Gasparino

Rita Isaac

Brenda João

Nilton Morena Nadime Gasparino

Melista

Elton

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Além das casas onde o grupo vive, a paisagem da aldeia é composta

ainda por uma casa de farinha, localizada próxima à cozinha de Abadia. O

local, compartilhado por membros da comunidade, estava com aspectos

visíveis de recente (e frequente) utilização, muito embora durante todo o

dia em que estive no local ninguém tenha torrado farinha.

De acordo com Vane, apesar de utilizarem a casa com certa

frequência, nem mesmo haviam arrancado e colocado de molho a

mandioca, o que provavelmente ocorreria apenas quando parte do grupo

retornasse dos centros.

Pude notar que o local é composto, entre outras coisas, por uma

prensa onde espremem a massa fermentada (mandioca-puba). De acordo

com Vane, o desempenho da atividade no equipamento fica a cargo dos

homens enquanto que as mulheres recorrem ao tipiti, ainda bastante

utilizado, para auxiliar na mesma tarefa, já que a prensa é pequena e não

cabe muita massa.

Mais adiante, em outras comunidades, findei notando que, quando o

local não possui casa de farinha com prensa, apenas as mulheres

Figura 28 - Casa de Farinha do Carapanazal. Foto: Ingrid

Daiane.

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espremem a massa no tipiti, não cabendo, portanto, em ambos os casos,

sua utilização pelos homens.35

Vane comenta que mesmo quando eles estão espremendo, as

mulheres também estão presentes, sempre ajudando. Seja tirando a

mandioca de molho ou carregando a massa, as mulheres tem grande

participação durante todo o processo de produção da farinha. Sobre esta

divisão de tarefas, Vane explica que tanto os homens quanto as mulheres

podem arrancar e cortar (decotar) a mandioca, contudo, quando é

necessário carregar (transportar) grandes quantidades, é o homem que

finda sendo responsável. As mulheres carregam quantidades menores,

“mais maneiro, mulher força pouca”.

Cabe, por sua vez, a elas retirarem a mandioca que fica de molho - no

caso do Carapanazal, no porto da comunidade -, de modo que, após terem

espremido a massa, retirando o suco, elas seguem peneirando. Os homens

cuidam da lenha utilizada para aquecer os fornos, todavia, na ausência

35 Muito embora o tipiti seja uma das únicas “cestarias” que os homens produzem. De

acordo com os relatos, apenas as mulheres fazem os cestos comercializados pelo grupo -

chegaram a rir quando perguntei se os homens também sabiam fazer, respondendo que era

coisa de mulher -, contudo, seu Bada contou-me que os homens confeccionam o espremedor

artesanal. O artefato não é voltado para fins comerciais, mas para uso interno do grupo.

Figura 29 - Prensa, localizada na Casa de Farinha do Carapanazal. Foto: Ingrid Daiane.

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deles, elas também se encarregam desta etapa.36 Ao fim do processo,

ambos podem participar, torrando a farinha.

Durante o diálogo na casa de farinha, Vane lista ainda algumas “tribos

de mandioca37”, espécies cultivadas pelos Jamamadi, entre as quais cita:

Cobiçada, Janauacá, Flecha amarela (“do branco... Jamamadi chama fowa

sauwa”), Samaúma e Mereão, que segundo ele, rende farinha amarela. Sem

mencionar as variedades, comenta ainda que cultivam macaxeira (mandioca

mansa), que chamam na língua de cuiu.

A partir da casa de farinha, Vane segue apontando ainda uns pés de

caju, mamão e pupunha que cercam a comunidade, além de mostrar a

embaúba e a planta a partir da qual produzem flechas.

Esse aqui mesmo fazer flecha, né? (...) pra flechar alguma coisa,

flechar peixe, flechar bicho, né? (...) fazer um ponta dele mesmo

aí... fazer um ponta dele mesmo bem fina e coloca também um

veneno do mato (...), mas isso quem saber só velho mesmo (...)

agora nós não tamo fazendo mais não, ninguém aprende não, só

velho. 38

Mais adiante, Vane exibe uns pés de tucumã e explica que também é

“planta mesmo”, todavia, faz clara distinção entre estas e as demais

árvores frutíferas cultivadas ao redor da comunidade; esclarecendo que,

36 Embora Vane tenha explicado assim, cheguei a ver no São Francisco uma mulher (nova,

por volta dos 25 anos) que sozinha transportava a lenha (um tronco de árvore enorme e

pesado) para uma das casas de farinha, mesmo havendo muitos homens presentes no local.

37 A expressão “tribo” utilizada por Vane para se referir aos diferentes tipos de mandioca

cultivada pelo grupo chamou bastante atenção. A curiosa forma de se referir surpreendeu-

me desde que foi mencionada pela primeira vez, durante uma conversa informal, ainda no

Buritirana. A partir daí o vi recorrer algumas vezes a analogia durante novas conversas, sem

conseguir – por hora - obter mais informações que me levassem a grandes conclusões de

cunho perspectivista, muito embora de imediato tenha me ocorrido como possibilidade

analítica. Deixei em aberto.

38 De acordo com informações extraídas do relato do cacique Bada Jamamadi para a Cartilha

do Plano de Vida do Médio Purus (2011), antigamente, na ausência de ferramentas como

“ferro, machado, terçado, era usado dente de anta para fazer flecha, na etnia Jamamadi.

Para flechar tinha que fazer a ponta do dente da anta, assim trabalhava o velho Jamamadi”.

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diferente das outras, esta primeira nasce no mato. Ainda sobre o fruto, o

Jamamadi comenta que na manhã seguinte passaríamos por uma área de

capoeira que antigamente era uma grande região de roçado, mencionando

haver no local bastante árvore de tucumã.

O lugar datado por Vane da “época dos nossos avós, dos nossos tios”,

abrange uma região bastante rica em árvores frutíferas, porém, “do mato”

(como eles dizem), tendo ocorrido no local à sucessão ecológica

secundária39, tornando o local mais enriquecido.

39 A sucessão do tipo secundária ocorre em um determinado ambiente a partir de certas

“perturbações”. No caso mencionado, por tratar-se de uma área de roçados, compreende-se

que a “perturbação” está diretamente relacionada à interação do homem com o ambiente

através, por exemplo, do corte de árvores, queimadas e dos cultivos empreendidos no local.

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ETNOGRAFIA E SISTEMAS PRODUTIVOS DOS PAUMARI DO RIO TAPAUÁ

Angélica Maia Vieira

INTRODUÇÃO

Tudo começou em dezembro de 2011, quando o NEAI, motivado pelo

interesse comum acerca dos estudos e pesquisas que se tem sobre os

povos que habitam o rio Purus, organizou uma viagem para a região com a

proposta de contemplar alguns dos objetivos dos projetos que

desenvolvíamos no âmbito do NEAI, bem como as pesquisas de mestrado

que eu e Ingrid Daiane, que estuda os Jamamadi Ocidentais, realizamos

dentro do PPGAS/UFAM. E foi assim que eu, juntamente com outros seis

colegas, parti rumo ao rio Purus na então chamada Expedição Purus-2012:

150 anos depois.

Assim, em 07 de Janeiro de 2012, ao entardecer do sábado, no barco

“Vovô Osvaldo II”, partimos rumo ao Purus. Três dias se passaram; e eu,

na companhia de Alexandre, Admilton e Mario, descemos na cidade de

Tapauá, na terça-feira (dia 10/01/2012), com a proposta de realizar alguns

estudos etnográficos na cidade, bem como conhecer os Paumari que ali

moravam. O restante da equipe – Alba Garcia, Ingrid Daiane e Thayná

Ferraz, seguiram viagem por mais dois dias até a cidade de Canutama.

Deste modo, a Expedição Purus foi concebida coletivamente a partir de um

viés interdisciplinar composta pelas experiências de pesquisa de várias

pessoas, que comungavam a mesma expectativa: conhecer a região do

Purus.

Cada pesquisador ficou responsável por uma temática, cujo objetivo

era montar um panorama tanto histórico, quanto produtivo e social da

região por onde passaríamos. Eu, por sua vez, realizei minha pesquisa nas

Terras Indígenas Paumari do Lago Manissuã e Paricá, localizadas logo acima

da foz do rio Tapauá, cujo objetivo era analisar a relação dos Paumari com

o universo aquático, de modo a seguir as evidências dos registros históricos

do século XIX do estilo de vida dos Paumari bem como as formas pelas

quais estes índios tecem relações com o seu ambiente fluvial. A partir disso,

pretendo refletir se a relação estabelecida com o ambiente aquático se

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traduz como a “relação preferencial” de sociabilidade entre os Paumari e os

demais seres que habitam o cosmo e/ou o mundo subaquático dos seres

não humanos.

Notas sobre a Leishmaniose no Município de Tapauá

Um dos objetivos da viagem “Expedição Purus” era o de compreender

e etnografar o ciclo anual das atividades produtivas que os povos indígenas

que habitam a região do Purus e suas adjacências exerciam durante os

meses em que estavam realizando as atividades de campo, bem como o de

apreender informações das demais atividades realizadas no decorrer dos

meses, tendo assim um panorama do calendário de atividades executadas

durante o ano todo. A preocupação em compreender os processos

produtivos está associada ao aparecimento da Leishmaniose após uns

meses de execução das atividades cotidianas – coleta de castanha, caça,

abertura de roçado.

Em meio a este objetivo comum, buscamos os órgãos de saúde para

conversarmos sobre os casos que sucedem na região acerca desta doença e

de como é diagnósticada e quais as formas de tratamento que os órgãos de

saúde dispõem para os indígenas. No entanto, não tivemos respostas

positivas e nem dados acerca da doença e dos processos de contaminação,

a não ser o acesso há um caso de óbito por Leishmaniose e de um possível

caso de contaminação por Leishmania em uma senhora da Etnia Mamori. Ao

saber deste caso em particular, procuramos conhecer esta senhora e buscar

informações que nos mostrasse alguma ligação entre a doença e as

atividades por ela desenvolvida bem como de sua percepção em relação à

doença.

Esta senhora se chama Leontina. Fomos até a casa de Dona Leontina,

filha de uma índia Mamori com um índio Paumari. Apresentamos-nos,

explicamos nossa pesquisa e expressamos nossa “curiosidade” sobre a

ferida braba. Começamos a conversar; e ao longo da conversa Dona

Leontina nos disse que a possível ferida braba lhe apareceu no mesmo dia

em que ela recusou um pedido de casamento vindo de um pajé do Lago

Marahã. A mesma chegou a dizer que esses pajés são fortes e tem muito

poder, e por não aceitar o pedido de casamento, o então pajé lhe lançou um

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feitiço que se transformou na ferida que acomete seu rosto há mais três

anos. Contudo, não há nenhum diagnóstico que confirme a ferida como um

caso de Leishmaniose, embora a CASAI apresente-a como um dos casos

registrados da doença na região. Assim como Dona Leontina, tivemos a

informação de que um jovem rapaz havia falecido em função da

Leishmaniose, uma vez que a doença estava muito avançada no paciente e

já havia corroído parte de sua cavidade nasal. Não há nenhuma estrutura

no Município que dê conta do diagnóstico da doença, uma vez que a

instituição carece de médicos, de recursos financeiros e principalmente de

profissionais capacitados para este tipo de análise.

Cabe registrar que o Município de Tapauá concentra um grande

número de populações indígenas, seja ao redor do município como também

no rio que corre a frente da cidade (Ipixuna). À frente da cidade há

inúmeras casas flutuantes, quase todas elas são habitadas pelos índios

Paumari que migraram das terras indígenas Paumari do Lago Manissuã,

Paricá e Cuniuá, localizadas na foz do rio Tapauá, com o objetivo de

buscarem melhores condições de vida, educação para seus filhos e

atendimento médico. Das pessoas que conhecemos e que conversamos

tomamos conhecimento de que todas elas têm roçados em áreas de várzea

e algumas possuem pequenas áreas de terra firme, onde plantam pupunha,

banana pacovã e outras variedades de frutas. A pesca é praticada no

decorrer do dia, dependendo muito de quem vai pescar. No entanto, a

pesca acontece, geralmente, quando toda a família vai para o roçado colher

parte da produção que está “madura” enquanto que o pai ou um dos filhos

lança a rede de pesca nas proximidades do roçado da família.

FOZ DE TAPAUÁ: ADENTRANDO O UNIVERSO PAUMARI

Breve caracterização dos Paumari

Pertencentes à família linguística Arawá, os índios Paumari habitam

atualmente a região do Médio rio Purus, ao sul do Estado do Amazonas.

Ocupam áreas geográficas distantes uma das outras, entre elas, as áreas do

rio Ituxi e lago Marahã, localizados nas proximidades do município de

Lábrea e as áreas dos lagos Manissuã, Paricá e Cuniuá, localizados pouco

acima da foz do rio Tapauá (BONILLA, 2005, pg.1).

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Os Paumari têm por principal atividade a pesca de peixes e quelônios,

seu ciclo econômico está marcado pela mobilidade de seus grupos locais e

seus deslocamentos entre as diversas zonas de exploração (terra firme,

várzea, praias e castanhais). A pesca é praticada nos rios, igarapés e lagos

da bacia do Médio Purus e constitui-se como atividade fundamental na

economia de autosustento Paumari. Além do peixe, a preferência por

quelônios - da qual chamam de "bichos de casco" - tem especial destaque

nos hábitos alimentares deste povo (SCHRÖDER, 2002, p. 2).

A preferência por estes animais é, também, apontada por quase toda a

documentação histórica. O geógrafo Willian Chandless ([1864]1949), chega

a observá-los em mais de sessenta canoas descendo rio abaixo a procura de

tartarugas. Segundo o autor, em cada uma delas ia uma mulher a remar e

um homem em pé, na proa do barco, só na expectativa de encontrar o

referido quelônio. Já Ehrenreich (1905), descreve que entre os índios da

Amazônia Ocidental, os Paumari e os Aruanas se destacam por uma

particularidade: são índios que levam uma vida de puros pescadores que se

Figura 30 - Mapa de Localização das Terras Indígenas

Paumari. Fonte: Instituto Socioambiental - ISA

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alimentam principalmente de tartarugas e jacarés, morando em balsas que

acompanham o fluxo do rio.

É preciso ressaltar que a pesca é a atividade mais descrita nos relatos

dos viajantes, sendo que pouco se sabe a respeito da exploração da terra

firme pelos Paumari. No entanto, alguns viajantes chegam a narrar o uso da

terra firme para o cultivo de pequenas hortas e leguminosas. Embora, haja

essas informações, são de comum acordo, nos escritos dos viajantes,

informações que narram o não cultivo de mandioca por parte dos Paumari,

que estes índios não são dados à agricultura, antes, preparavam farinha de

uma leguminosa e de um tubérculo.

Porém, para Schröder (op.cit.) e Pohl (1998), os Paumari praticam a

“agricultura” tanto nas áreas de várzea quanto nas áreas terra firme,

estando a mandioca entre as principais espécies cultivada nos roçados. É

importante ressaltar que estas afirmações baseiam-se nos dados coletados

durante a expedição dos biólogos norte-americanos Ghillean Prance, David

Campbell e Bruce Nelson à região do rio Purus. Esta expedição revelou uma

situação contrária àquela apresentada pelos viajantes no século XIX,

porquanto os biólogos descobriram diversas variedades de mandioca nas

roças Paumari - mais de quatorze –, logo, tal “achado” incidiu como uma

surpresa para os que estavam na expedição, pois não se esperava

encontrar tantas variedades de mandiocas em meio a um povo que é

considerado aquático, nômade e não dado à agricultura.

Deste modo, ambos os autores assinalam que os Paumari praticam

agricultura na várzea e/ou na terra firme e além de serem agricultores, são

também cultivadores de diversas fruteiras, leguminosas e plantas

medicinais. Coletam diversas frutas silvestres que lhes servem tanto para

seu consumo quanto para matéria-prima (principalmente cipós e enviras).

Essas matérias-primas são utilizadas na construção de casas, cestos,

embarcações e na confecção de objetos diversos.

Por sua vez, os Paumari são conhecidos por sua orientação aquática,

que se manifesta nos hábitats tradicionalmente preferidos: várzeas, rios e

lagos. São denominados por Kroemer (1985) como índios fluviais; Labre

(1872) como verdadeiros canoeiros; Steere (1949) como índios ribeirinhos,

hábeis nadadores e barqueiros, vivendo quase que exclusivamente de

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peixes e tartarugas; ou como acrescenta Cunha (1960) habilíssimos

fabricantes de ubás e incomparáveis remadores; ou como conclui

Associação Comercial do Amazonas (1893):

(...) exímios remeiros, nadadores e pescadores, capazes de pegar

peixes e jacarés, com as mãos, após um mergulho. (...) Os Paumari

foram os criadores das casas flutuantes da Amazônia, construídas

nos lagos, sobre jangadas ou balsas (...) (1893, p.33 - 38).

Spix e Martius (1817/1820) relatam que os Paumari costumavam fugir

das brumosas e úmidas espessuras mudando-se para o próprio rio,

estabelecendo-se sobre a madeira flutuante que se aglomerava nas

enseadas em enormes pilhas, oferecendo uma base vacilante para suas

humildes choupanas. E acrescentam os autores: “(...) Deve-se procurar sua

origem na sua vida quase anfíbia (...)” (op.cit, p.187).

“Eles não abandonam as águas pela terra e passam pouco tempo em

terra durante a estação chuvosa", escreve Silva Coutinho (1862, p.68).

Eles, diz o etnológo americano Joseph Steere (1949 [1873], p.365),

“permanecem sempre às margens dos rios e lagos em habitações

flutuantes, sem se internarem na floresta”. Já o etnólogo alemão Ehrenreich

(1948, [1888] p.96), arrisca-se a dizer que “os Paumari são representantes

modernos da idade palafítica” e, são descritos por Euclides da Cunha (1960,

[1904] p.81) (...) “em enormes malocas flutuantes, numa permanente

viagem, ancorando ao acaso nas praias e barreiras”.

Já o cearense e Coronel Antônio Rodrigues Pereira Labre, que fundou a

cidade de Lábrea na localidade denominada Terra Firme do Amaciary, sítio

pertencente aos índios Paumari, os descreve nos seguintes termos:

(...) as suas cabanas são feitas nos lagos em jangadas ou balsas,

pelo que suas habitações são flutuantes. São destros remadores,

entregando-se ao trabalho do mar; são verdadeiros canoeiros. (...)

são os selvagens mais conhecidos por não arredarem-se das

margens dos rios e lagos (...). (LABRE, 1872, p. 27)

Deste modo, os Paumari continuam sendo apresentados como índios

fluviais que habitam/habitavam excepcionalmente as ilhas e lagos do Médio

rio Purus. Entregam-se integralmente à prática pesqueira e à caça de

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tartarugas. Steere (idem) reconhece-os, também, como moradores de

aldeias de caráter permanente nos lagos e rios da região puruense. E os

expõe neste contexto:

(...) Entre as tribus do Purus, os Paumari são os mais conhecidos.

São principalmente índios ribeirinhos, hábeis nadadores e

barqueiros, vivendo quase que exclusivamente de peixes e

tartarugas. (STEERE, 1949, p.364)

Além disto, um relatório técnico da Fundação Nacional do Índio -

FUNAI (S/D) assinala que a particularidade deste grupo é a sua afinidade

com as águas; cuja origem é intrínseca à vida quase anfíbia que este povo

possui. De igual modo, Bonilla (2005:07) ressalta que o que se “sobressai

da literatura é o componente aquático da vida dos Paumari”. Deste modo,

feita esta breve apresentação dos Paumari, faço uma descrição do contexto

vivido na aldeia e de algumas das atividades que pude acompanhar no

período de 16 dias nas Terras Indígenas Paumari do Lago Manissuã e

Paricá.

O contexto da Aldeia

No dia 23 de Janeiro de 2012, cheguei a Terra Indígena Paumari do

Lago Manissuã. Fui recebida por Sara Paumari, esposa do Professor

Germano Cassiano Paumari. No momento em que cheguei à aldeia,

Germano encontrava-se “internado” na mata com seus dois filhos, pois

estavam quebrando castanha no “ponto” que pertence à família Cassiano

Paumari.

Passei dezesseis dias nas terras indígenas Paumari; viajei por

algumas comunidades e conheci diversas pessoas e inúmeras crianças. O

tempo na aldeia foram os melhores, bons momentos estão registrados na

memória e no coração, pois esta gente, de tenra simplicidade e carisma,

ensinaram-me muitas coisas e cuidaram de mim como se cuida de um filho,

de um parente próximo. Visitei as roças, as casas de farinhas, fui para as

estradas de castanha e conheci um pouco de cada um. Aprendi a fazer açaí;

colhi frutas e macaxeiras, acompanhei uma pesca de peixe-boi e aprendi

um dos exercícios mais significativos para os Paumari: observar o ambiente

que nos cerca e se concentrar na atividade a ser executada. Coletei

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castanha com duas jovens moças da comunidade Abaquadi, da Terra

indígena Abaquadi, que conjeturavam pagar o regatão de quem haviam

comprado roupas e alguns gêneros alimentícios.

Registrei tudo o que podia, aprendi, ou melhor, tentei soletrar algumas

palavras na língua Pamoari bem como tentei responder, também em

Pamoari, as perguntas que eles me faziam. Tudo era motivo de risos e

brincadeiras, mas em meio a tantos risos e brincadeiras, fui adentrando no

cotidiano Paumari e com eles aprendendo muitas lições de vida. Ouvi

histórias sobre os antigos Paumari, sobre a fabricação dos balaios e do pica-

pau que confeccionava a canoa. Perguntei sobre os “outros”, sobre quem

eram os Mamori e os Juberi, de como estes se diferenciavam dos Paumari e

de como eles “desapareceram” ao longo dos anos. As inúmeras informações

eram intensamente guardadas em minha memória para que depois eu as

registrasse no caderno de campo. Toda a familiaridade que fomos

conquistando durante os dias, nos permitia e nos possibilitava adentrar

ainda mais no cotidiano das famílias, de suas brigas internas, das grandes

disputas e nos demais contextos que durante os dias iam surgindo.

Depois de sentir a familiaridade e a confiança que tínhamos

conquistado, passei a fazer o recenseamento das famílias, a etnografar a

aldeia, a entender as relações com outrem e com os próprios parentes. Com

isto, apresento o levantamento básico que fiz na aldeia e demonstro por

meio de tabelas o senso demográfico que realizei no período em que estive

com eles e entre eles.

Vejamos a tabela a seguir:

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Tabela 7 - Levantamento demográfico das aldeias. Fonte: Vieira, 2012.

A tabela acima assinala o número de pessoas residentes nas aldeias,

onde moram, se é em terra firme ou em flutuantes, bem como as

respectivas comunidades a que pertencem cada família. Os campos em que

consta o símbolo jogo da velha representam as comunidades que eu não

visitei e de onde não obtive informação sobre seus moradores, tipo de

moradia etc.

O que podemos extrair deste levantamento é que boa parte da aldeia é

formada por indivíduos mais jovens, sem muitos anciões. Outro indicativo

que me chamou a atenção foi a constante migração dos Paumari para o

município de Tapauá, onde a maior justificativa é a busca por melhores

condições de vida e educação. Os Paumari que ainda residem na aldeia

relataram-me que muitos Paumari estão se mudando e indo habitar em

outras regiões e que as causas para tanta mudanças são diversas e há

casos de índios Paumari morando no Rio Negro, Porto Velho, Tapauá e até

mesmo em vilas bem próximas as aldeias. Eu lhes perguntei sobre os

TI Aldeia Nº de

Pessoas

Nº de

Famílias

Ambiente de

moradia

Manissuã Sete Bocas 10 3 Flutuante

Centro 27 6 Terra firme

Paricá

Bacia ######### ######### #########

Abaquadi 25 5 Terra firme

Terra Nova ######### ######### Terra firme

Cuniuá Xila ######### ######### #########

Açaí ######### ######### #########

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motivos das migrações, e obtive a mesma resposta que recebi dos Paumari

que conheci no município de Tapauá: educação de qualidade para os filhos,

saúde e melhores condições de vida.

Portanto, os que permanecem na aldeia são geralmente os jovens,

adultos e são poucos os anciões que existem. Durante as conversas e

registros das famílias da aldeia, Sara mencionou-me a saída dos rapazes

Paumari para o mundo dos brancos, ou seja, quando o menino alcança

certa idade – não me foi relatado à idade em que os meninos costumam

sair de suas casas, mas neste caso a idade não é determinante e pode

variar de rapaz para rapaz -, o garoto sai do seio de sua família e vai

trabalhar para um regatão por tempo indeterminado ou até que ele sinta a

vontade para regressar para a aldeia e se casar com alguém de seu meio ou

pode até mesmo se casar com a filha de algum regatão. Sobre isto, Sara

contou-me que seu filho trabalha para um regatão de Manaus e que o

Irmão do “Preto”, liderança da aldeia Xila, tem um irmão casado com a filha

de um regatão e que ele faz um preço “mais acessível” para os demais

Paumari. Sobre esta informação, os Paumari relataram-me que este ato se

configura como uma “espécie” de saída para conhecer o mundo do outro,

ter acesso ao mundo dos bens, aprender o português e a comercializar,

assim como os regatões comercializam com os outros. Portanto, é comum

ver um jovem sair de sua casa e ir trabalhar para um barqueiro de Manaus,

porto velho e outros lugares.

Tipo de Moradia

Os Paumari constroem suas moradias em lugares situados nas

proximidades das margens do rio, de preferência nas praias fluviais, ilhas

de terra firme, nas várzeas e áreas que não alagam; localizadas na

interface entre as planícies fluviais alagáveis e a terra firme, denominadas

na região de "pé da terra firme" (ver relatório da OPAN, 2009).

De acordo com alguns estudos realizados pelo PPTAL, os

assentamentos permanentes na terra firme é um fenômeno recente, pois os

Paumari são um povo nômade, que vive a perambular nas áreas fluviais.

Referências do século XIX apontam a existência de oito a quinze casas

flutuantes em cada aldeia, com uma ou duas famílias em cada uma delas.

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Outras habitações menores são utilizadas na época da seca e, em muitos

casos elas ficaram despercebidas, trata-se dos ranchos simples de folha de

palmeira, de forma semicircular que eram fincadas nas praias fluviais dos

Purus.

No entanto, na atualidade, os "flutuantes" concebem um tipo

minoritário de habitação paumari. No Manissuã presenciei cerca de seis

flutuantes, sendo que em alguns casos, os donos desses flutuantes

possuem também uma casa na terra firme. Assim, a maioria dos Paumari

mora pelo menos uma parte do ano em casas do tipo regional, enquanto

que alguns preferem os flutuantes e/ou passam o ano dividindo os dois

tipos de habitação.

As casas mais comuns são sobre as palafitas, seguindo o estilo

regional de habitação. As residências podem ter um ou mais

compartimentos. Suas paredes são forradas de palha e em alguns casos são

cobertas de palhas trançadas ou de alumínio. Esta moradia é a preferida na

época da cheia, pois facilita o trabalho nos roçados e permite um

deslocamento adequado dos produtos das roças bem como no auxílio na

fabricação de farinha.

Os atuais "flutuantes", por sua vez, são balsas com o mesmo tipo de

casa, porém sem palafitas; estando apenas ancoradas em grandes trocos

de árvores. Por causa das grossas toras que as sustentam, são de difícil

remoção e permanecem amarrados por longas temporadas na beira de

lagos, acompanhando somente as mudanças dos níveis de água. No

entanto, esse tipo de moradia pode ser removido, dependendo muito do

anseio de seu dono, que muitas vezes deseja mudar-se para outro lugar ou

ir para a outra margem do rio. Ademais, morar em um flutuante não

impede os Paumari de exercerem suas atividades em terra firme.

Vejamos a seguir uma tabela demonstrativa dos tipos de habitação e

da tipologia de construção dessas moradias:

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Tabela 8 - Distribuição espacial e habitação dos Paumari. Fonte: Vieira, 2012.

TI Aldeia Casa

Flutuante

Casa de

terra firme Tipologia da Construção

Manissuã

Sete Bocas 4 Nenhuma

Estrutura de madeira com

cobertura de alumínio e,

flutuante todo coberto de

folha palha.

Centro Nenhum 5

Estrutura de madeira com

cobertura de palha e algumas

com cobertura de alumínio

Paricá

Bacia #### 1 ####

Abaquadi

Nenhuma

5

Estrutura de madeira com

cobertura de palha e algumas

com cobertura de folha de

alumínio.

Terra Nova

Nenhuma

6

Estrutura de madeira com

cobertura de palha e algumas

com cobertura de folha de

alumínio.

Cuniuá Xila #### #### ####

Açaí #### #### ####

O conjunto da aldeia Paumari é construído por essas paisagens – casas

de terra firme e flutuantes que seguem um modelo regional. Um caso a ser

registrado é que esta configuração social está – ao que me parece –

associada às disputas políticas que existem no interior do grupo. No caso da

aldeia Manissuã, foi-me relatado que todos se concentravam na terra firme

e que depois de algumas “brigas” e “desentendimentos” com a liderança da

aldeia, Germano e Sara, juntamente com seus filhos, se mudaram para a

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entrada do lago Sete Bocas e com eles se mudaram o Sr. Luiz e D.

Laurinda, liderança da aldeia. Há algumas versões sobre a mudança desta

família, alguns afirmam que o Sr. Luiz está velho demais para ser um

“líder”, que não tem mais forças para lutar pelos ideais do povo e que sua

filha Sara, esposa de Germano, saiu da aldeia por conta dos conflitos que

envolviam seus pais. Assim, toda a família que habita o lago Sete Bocas é

formada pela Família de Germano, Luiz e Gerson.

Os Mamori e Juberi

No proceder do campo, deparei-me com uma curiosidade que percorria

toda a minha trajetória de pesquisa bibliográfica com os Paumari, que em

muitos contextos pareciam estar difundidos em outros grupos ou que

desapareceram completamente no decorrer dos processos em que eram

submetidos. Neste sentido, os registros históricos apontam, para além do

Paumari, outros três grupos – os Mamory, Arawá e Jubery - como

subgrupos que formavam o antigo grupo dos Purupurus, sendo que os

Paumari representam hoje, o único subgrupo remanescente do período de

colonização e ocupação do rio Purus, após o avanço da civilização branca na

região.

Sobre os Arawá nada se sabe e não obtive sequer informações sobre a

possível existência desse grupo nas áreas que circunvizinham o rio Tapauá.

No entanto, sobre os Mamory e Jubery, muito se ouviu falar! Foi

surpreendente perceber a maneira como eles eram descritos e de como aos

poucos iam “surgindo” remanescentes destas tribos até então

“desaparecidas”. A primeira figura a aparecer foi os Mamory, na pessoa de

Dona Leontina, que foi logo se autodenominando índia Mamory, nos

descrevendo, principalmente, que as pessoas dessa tribo formavam família

apenas com os índios Paumari, sendo considerado casamento preferencial

entre ambos os grupos. Os filhos, fruto desse casamento, pertenceriam à

nação Paumari.

De acordo com a descrição de algumas pessoas com quem

conversamos, foi-nos dito que os Mamory são oriundos do rio Cuniuá,

habitando, antigamente, o mesmo lugar onde os Deni habitam na

atualidade. Este relato se vê confirmado não só na fala dos habitantes que

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tiveram contatos com os indígenas, como também pela fala de seu Maquiri,

índio Deni que conhecemos na aldeia Bela Vista, localizado na Ponta do

Evaristo, no rio Tapauá. Conforme seu Maquiri, os Deni são os Mamori, pois

eles eram assim chamados pelo fato de habitarem as intermediações do

lago Mamori.

Deste modo, os Mamory aparecem como um grupo que mantinham

alianças matrimoniais com os Paumari e que ainda hoje existem

remanescentes Mamory entre os Paumari e Catuquina. Vale Lembrar

também, que Kroemer relata que os Mamory eram perseguidos pelos

Catuquina, sendo obrigados a se embrenharem pela mata e realizarem

casamento com outros povos, realizando uma miscigenação. Sobre este

fato, contou-me o senhor Ademazinho Katuquina, habitante da Terra

Indígena Paumari do Lago Manissuã, que os Mamori foram exterminados

por sua tribo por conta de conflitos entre ambos e que esses conflitos

recebiam toda a motivação dos “patrões seringalistas” que forneciam

munições para as expedições de guerra entre eles. Assim, ele diz que os

Mamori foram mortos nas imediações do riozinho, e que havia um Mamori

muito conhecido naquela região que se chamava Marrecão.

As informações não paravam, eram inúmeras as descrições e

apontamentos que se faziam sobre o suposto desaparecimento dessas

tribos, contudo, ao conversar sobre isto na aldeia, outra surpresa aparece,

pois esses grupos aparecem com muita força na ascendência dos Paumari

que habitam a região do rio Tapauá. Eles contavam-me que os Paumari

entendem a língua dos Mamori e que elas são bem parecidas, e que

provavelmente, a língua Mamori seja a mesma língua que os Deni falam,

pois eles justificavam que tanto os Deni quanto os Paumari tem muitas

semelhanças gramaticais.

Sobre os Juberi, não se sabe muita coisa, mas o que me contavam

com muita frequência era que os índios que faziam parte desta tribo eram

ágeis guerreiros e muito bravos com os demais índios e com os próprios de

sua família. Uma das pessoas com quem eu conversava, chegou a dizer que

os Juberi amarravam seus filhos no tronco de uma árvore, caso ele não

parasse de chorar, pois eles deveriam ser valentes, caso contrário, a onça

os comeria. Na aldeia, também apareceu alguns remanescente de Jubery,

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entre eles, tive a oportunidade de conhecer seu Agostinho Cassiano, que

mora no lago do Tamanduá, que se encontra fora do perímetro da TI, mas

eles lutam para que esta área seja demarcada como território indígena, pois

conta ele, que o lago do tamanduá é um uma antiga morada dos índios

Jubery, e lá estão vão corpos de seus descendentes, como também agrupa

uma das áreas de castanhais mais importantes para os Paumari.

Ainda que a pesquisa apresente poucos dados sobre esta questão, os

Paumari, por sua vez, eram bem enfáticos sobre as características desses

grupos, sobre suas descendências e as diferenças internas que existem

entre os descendentes destes grupos quando comparados aos Paumari.

Germano, filho de seu Agostinho e Dona Odete, filha de Mamori, não soube

dizer a que grupo ele pertencia, entretanto, ressaltou que ele é Paumari

porque todos os são, mas que ele, quando comparado a uma Paumari,

exibe uma característica completamente distinta daquela que os Paumari

apresentam quando são filhos gerados a partir de dois Paumari “puros”.

Assim, ele ressaltava as diferenças existentes na estatura dos Paumari,

Mamori e Jubery, o formato do corpo e do rosto como marcadores de

diferenças entre esses grupos. Neste sentido, todos aqueles que estão de

fora (nós) os chamam de Paumari, mas aqueles que estão lá dentro (eles)

sabem muito bem discernir quem descende de Paumari, quem descende

dos Juberi ou Mamori e tais diferenças não são apenas ponderadas, mas são

constatadas a partir das diferenças corporais, da estatura de cada um e da

história oral que cada um carrega.

No entanto, Bonilla (2005), que atuou entre os Paumari do Lago

Marahã e rio Ituxi, em seu trabalho etnográfico sobre os subgrupos

Paumari, assinala que o grupo mencionado não têm configurações sociais

do tipo madiha e que talvez os paumari não apresentem uma organização

sociológica que possa ser configurada como subgrupo. Assim, a autora voga

que mesmo não tendo grupos nomeados e localizados, os Paumari tendem

a organizar, no plano cosmológico, os seres, animais e objetos como

subgrupos nomeados que se comparam a organização social do tipo

madiha.

Sobre este evento, Bonilla há de dizer que os Paumari tendem a um

“perspectivismo generalizado”, onde a “socialidade potencial dos seres é

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projetada na totalidade do cosmos, coincidindo, portanto, ao que foi

chamado de subgrupos madiha”. Assim propõe a autora:

(...) É interessante pensar o perspectivismo generalizado dos

Paumari em relação à questão dos subgrupos arauá (que também

foram chamados de clãs), pois aqui, a socialidade potencial é

projetada na totalidade do cosmos e coincide, ao menos

lingüisticamente, com o que foi chamado de subgrupos madiha

(conforme o modelo e o termo kulina). Os Paumari não apresentam

hoje em dia configurações sociológicas do tipo madiha. Os

subgrupos localizados, nomeados e idealmente endógamos não

existem enquanto tais. Os grupos locais são unidades idealmente

endógamas, mas não são associadas a nomes de animais ou plantas

e são conhecidas por seus nomes próprios (...). Aqui é como se a

configuração madiha tivesse sido projetada no cosmos incluindo,

então, as relações entre os Paumari como um todo e todos os

outros seres potencialmente sociais. Os ‘subgrupos’ coincidem,

então, com as espécies ou subespécies vegetais e animais, ou

mesmo com os objetos, com os quais os Paumari têm de se

relacionar no cotidiano (Bonilla 2005: 50 – grifos meus).

Porém, pensar esse cenário entre os Paumari do rio Tapauá é um tanto

complexo e paradoxo, pois para eles, tanto os Mamori quanto os Jubery são

grupos presentes em suas histórias de vida, possuem assentos simbólicos

bem delimitados nas mediações da TI – antigos cemitérios, antigos

castanhais e lugares de moradias. Portanto, partindo desses apontamentos,

realizamos um levantamento genealógico de algumas famílias, partindo do

pressuposto de que esses grupos habitavam aquela área e que juntamente

com os Paumari, estabeleciam diversas alianças.

Figura 31 – Genealogia de algumas famílias Paumari.

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ATIVIDADES ECONÔMICAS E EXTRATIVISTAS

Agricultura

A agricultura é praticada tanto na várzea quanto na terra firme, sendo

a mandioca a principal planta cultivada. As informações, ainda

generalizadas consideram as principais espécies agrícolas nas roças:

macaxeira, mandioca, banana, cará, cana, ananá, abacaxi, batata, cupuaçu,

castanha.

Também coletam uma série de frutas silvestres e cipós e enviras para

a construção de casas, embarcações e a fabricação de diversos objetos.

Caça

Entre os Paumari, a caça configura-se como uma atividade secundária

que é exercida apenas em casos particulares e ou em momentos de grandes

festejos. Diferentemente do que acontece com a pesca, atividade primordial

deste povo, a caça acaba sendo um exercício para as “empreitadas” que são

montadas no período de grandes festejos – aniversários, dia do índio,

campeonato entre as comunidades indígenas com as comunidades da foz de

Tapauá; jogo de futebol etc. – ou quando vão para os acampamentos de

castanhas e por lá topam com alguma caça, mas geralmente o grupo que

vai para os castanhais tende a levar gêneros alimentícios (arroz, sardinha,

conserva de boi, farinha, etc.) para acompanhar o peixe que há de ser

pescado nas proximidades do castanhal.

É importante registrar que alguns Paumari, principalmente os da

aldeia Manissuã (área de terra firme), criam alguns porcos do mato em

pequenos cercados com o objetivo de comercializá-los com os demais

habitantes da aldeia ou troca-los por gêneros alimentícios com os

comerciantes que moram na vila localizada na Foz do Rio Tapauá. Este

processo, ao menos é o que aparentemente podemos deduzir, acarreta uma

possível eliminação do ato de caçar na floresta, uma vez que se têm alguns

pontos de comercialização de caça pelos próprios índios ou por uma família

de “brancos” que ocupam uma área de terra firme dentro das localizações

da Terra Indígena Paumari. Deste modo, a caça acontece somente em

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alguns casos, dependendo muito da ocasião e da atividade exercida pelos

Paumari.

Pesca

Esta é a principal atividade de subsistência do grupo. São sempre

realizadas nos rios, igarapés, lagos e lagoas que cercam a região. Em

alguns casos, os Paumari tendem a pescar nas proximidades de suas casas,

como pude notar no dia em que observava o casal de lideranças Snr. Luiz e

D. Laurinda. Ambos pescavam próximo a sua casa, apenas com uma vara e

uma linha amarrada sobre ela. Pegaram algumas piranhas pretas, pois

buscavam apenas alimentos para si mesmos, já que seu filho e sua nora

estavam viajando.

Os Paumari são conhecedores de diferentes técnicas de pesca, sendo

os peixes, precisamente, o principal alimento na sua dieta cotidiana. Em

alguns momentos, me foi relatado que muitos Paumari costumam pescar

com a ajuda da “malhadeira” e que esta foi um presente dos brancos,

facilitando em muito a execução da atividade. Há também quem goste de

pescar apenas com arco e flecha, mas sendo esta uma técnica cansativa e

que requer paciência, principalmente na época da cheia, quando os peixes

estão espalhados ao longo do rio e não mais concentrados nos canais ou

lagos da região.

Coleta de Castanha

É no início do mês de Dezembro que a coleta de castanha se torna a

principal atividade exercida pelas Comunidades Paumari do rio Tapauá. No

contexto das aldeias, diferentemente do que foi observado entre os Paumari

e demais pessoas no município de Tapauá, a castanha se configura como o

“elemento” de negociação entre o patrão e o empregado, regatões e

comerciantes, entre sogros e genros; filhos e pais etc. A castanha não

compõe o rol dos hábitos alimentares dos Paumari, sendo apenas usada

como meio de troca e como forma de pagamento das dívidas adquiridas

com os regatões. Assim, a castanha é dada ao patrão como forma de

pagamento de uma dívida anterior que ao ser saldado abre-lhes o

precedente para uma nova dívida. Logo, este cenário está associado à

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permanência do sistema de aviamento, fenômeno que perdurou por longos

anos na região Amazônica.

Para saldar a dívida, como também para adquirir novos bens, produtos

industrializados, os Paumari passam a compor “expedições esporádicas” nos

castanhais que estão localizados há algumas horas ou dias da aldeia. Do

recenseamento que realizei na aldeia, registramos que quase todas as

famílias possuem dois pontos de castanhas, muitos deles localizados no

mesmo lugar (rio, lago) e alguns tem pontos de castanhas em diversos

lugares distintos (rio, lago). Há também aqueles que não possuem

castanhal, pois não são oriundos da região do Tapauá, mas da região do

Marahã ou Ituxi, localizados na proximidade de Lábrea. Estes, por sua vez,

são “emprestados” aos sogros, tios ou a qualquer outro Paumari que

necessite de mão de obra na quebra de castanha. O resultado deste

“empréstimo” pode ser pago por meio de uma saca de castanha ou o

numero de latas que o “emprestado” conseguir quebrar. Todavia, isso pode

variar, ficando a cargo da negociação que há de se estabelecer com o

indivíduo que necessita de ajuda na quebra de castanha.

Nas expedições de quebra de castanha, é comum ir um grupo de

homens da mesma família e/ou aquele está sendo “emprestado” para o

serviço. Geralmente, são os pais com seus respectivos filhos ou cunhados

que seguem para os castanhais, onde irão limpar as estradas, montar

acampamento, amontoar os ouriços para depois quebrá-los e ensaca-los.

De acordo com Germano Cassiano Paumari, dependendo do período (mês)

as expedições podem durar mais de um mês ou duas semanas na floresta.

O fator determinante do período de acampamento nos castanhais está

associado à produtividade das árvores, a queda dos ouriços e o mês em que

a coleta há de acontecer.

Notas sobre Leishmaniose nos Paumari do Rio Tapauá

Paralelamente a atividade de campo sobre o peixe-boi, buscou-se

obter o mínimo de informações sobre a tão chamada “ferida braba”

(Leishmaniose), as formas de contágio, tratamento e até mesmo as

percepções dos Paumari em relação à doença em questão. Pelo que

conseguimos registrar, há indicativos de dois casos de ferida braba entre os

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indivíduos que habitavam a aldeia Manissuã e um caso na aldeia Paricá. Um

dos casos registrados no Manissuã foi tratado pela CASAI de Lábrea, onde o

indígena passou mais de dois meses, tratando a ferida que acometia parte

de sua perna. Ao ser questionado sobre a possível contaminação, o mesmo

nos respondeu que a ferida apareceu logo após uma picada de carrapato

que sucedeu em sua passagem pela floresta. Os outros dois casos

(Manissuã e Paricá) foram tratados na própria aldeia com o sumo da casca

de capurana e ambos atestavam que foram picados por carrapatos. É

importante registrar que os Paumari criam porcos e cachorros, este último,

em muitos casos, é o companheiro na hora das caçadas, nos passeios na

floresta e principalmente na coleta de castanha, pois ele “pode latir e

assustar a onça” – informações de um indígena da aldeia Paricá.

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ETNOGRAFIA DA QUEBRA DA CASTANHA JUNTO AOS PAUMARI DO RIO TAPAUÁ: PRIMEIRAS IDEIAS E

APROXIMAÇÕES

Mario Rique Fernandes

INTRODUÇÃO

Foi com friozinho na barriga que eu recebi, no fim de novembro de

2011, o convite do professor Gilton Mendes para participar da

carinhosamente chamada “Expedição Purus 2012: 150 anos depois”.

Tratava-se para mim, há apenas dois anos morando no Norte, da primeira

oportunidade de experenciar o que eu considero uma “Amazônia profunda”.

Não havia ainda tido a experiência única de viajar dias nesses grandes

barcos-recreio apinhados de gente e mercadorias – apelidados de “gaiolões”

- que nos remetiam aos porões dessas embarcações no século XIX descritas

por Ferreira de Castro. Também nunca havia entrado e permanecido

durante dias em uma terra indígena, compartilhando o cotidiano com

índios; enfim, não somente para mim, mas para todos da equipe, esta foi

uma experiência amazônica por excelência.

A região do Médio rio Purus é um lugar fascinante e um excelente

campo de pesquisas para as mais diversas áreas, considerando a riqueza de

temas que abarca em termos históricos, sociais, culturais e biológicos - só

para citar alguns. E aqui gostaria de compartilhar um paradoxo purulesco (e

amazônico de forma geral), no qual me vi enredado ao longo da viagem: o

lugar é lindo e tem um campo de pesquisa imenso, mas é longe demais, de

difícil acesso e isolado de tudo. E talvez seja justamente por ser longe

demais e isolado de tudo que o lugar seja lindo e ótimo para pesquisas.

Como resolver essa contradição? Trazer esse campo pra perto, torná-lo

mais acessível, seria afastar seus mistérios e quem sabe acabar com sua

beleza, mas por outro lado, seria justo aceitar deixar o lugar e as pessoas

que ali vivem à margem da história e do desenvolvimento do País? Não sei

se tenho uma resposta, mas prefiro deixar a questão em aberto.

A possibilidade de conhecer esses rincões do Brasil foi ao mesmo

tempo um privilégio e um exercício de desapego e de entrega. Privilégio por

compartilhar histórias de vida e a vida de pessoas que habitam esse lugar

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esquecido e distante, o que exigiu um trabalho de desapego - pela distancia

e pelo isolamento - do meu ego-centrismo (ou quem sabe do meu

etnocentrismo). A entrega foi ocaminho para lidar com o medo do

desconhecido e de amor a tanta beleza, diversidade e vida pulsante neste

mundo de florestas, águas, pessoas e bichos. Mas para quem ama viagens,

todos os percalços e imprevistos que passamos, servem para poder contar

história depois. A vida é feita de momentos e esta expedição certamente

marcou a vida de todos que participaram dela. Quem sabe um dia,

contaremos para nossos filhos e netos, “memórias de árvores, de água, de

luz e menino”.

Fui convidado para participar da expedição com a incumbência de

acompanhar a quebra da castanha a partir de uma perspectiva etnográfica.

A ideia foi fazer uma primeira aproximação com essa realidade na região e

investigar a economia da castanha entre os indígenas. Ficou decidido que

eu então acompanhasse a Angélica em seu trabalho de campo de mestrado

com os Paumari que vivem próximos da foz do rio Tapauá - afluente de

águas pretas do rio Purus -, assessorando-a e aproveitando para

acompanhar o extrativismo indígena da castanha. A proposta inicial, um

tanto ousada para uma primeira ida à região, foi investigar os conceitos

Paumari a respeito da castanha e como se dá o seu processo de produção e

distribuição, partindo-se do pressuposto da existência de uma trama de

relações sociais e simbólicas em torno desta atividade - com raízes

históricas profundas -, tecidas pelas unidades sociais e os esquemas

cosmológicos ali operantes.

Entretanto, ainda que com esse objetivo em pauta, parti nessa viagem

sem muita pretensão além de estabelecer primeiros contatos, ideias e

impressões a respeito do objeto de pesquisa, pensando em um possível

projeto de doutorado num futuro talvez não muito distante. O que de certa

forma foi bom, porque possibilitou que eu me relacionasse com as pessoas

do lugar e com os Paumari como um ser humano “comum”, sem aquela

pressão em coletar dados que todo pesquisador tem em campo, o que me

deixou bastante a vontade e permitiu estabelecer boas relações.

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O presente relatório constitui assim um primeiro esforço de

sistematização das informações e impressões recolhidas durante esta

viagem, cujos resultados e discussão são ainda bem preliminares.

Métodos utilizados

A ideia de fazer uma etnografia daquebra da castanha foi algo um

tanto desafiadora.40 A ideia inicial foi considerar as práticas sociais em volta

da castanha como um fato social de longa duração, nesse sentido, seguindo

a proposta metodológica de Durkheim, considerando-a como “coisa”, ou

seja, como realidade fenomênica externa, que é dada, que se impõe à

observação.41 Para tanto, a proposta foi usar o aporte metodológico próprio

da antropologia, que parte da premissa de uma longa familiaridade, desde

dentro, no dia-a-dia do grupo observado, a qual se dá o nome de

observação participante.

A ideia inicial para descrever o trabalho com a castanha de uma

maneira interessante foi utilizar conceitos weberianos como os de ação e

relação social.42 Tais conceitos serviram-me como instrumentos teórico-

40 Atrás de respostas à pergunta “o que é etnografia?”, encontrei uma perspectiva

interessante feita pelo antropólogo Luiz Fernando Duarte, a qual me inspirou ao longo desta

viagem. Diz ele que o objeto da etnografia é o sentido ou o significado da experiência

humana no mundo – as relações sociais, instituições, sistemas de valores e crenças,

linguagens, etc. – a partir de uma imersão nessas unidades de significação em estudo –

conhecida como observação participante (Disponível em:

www.cienciahoje.uol.com.br/colunas/sentidos-do-mundo).

41 Durckheim, Emile. (2007). As regras do método sociológico. 3. ed. São Paulo: Martins

Fontes.

42 Weber dizia que toda conduta humana é dotada de sentido, isto é, de uma justificativa

subjetivamente elaborada. Cada indivíduo age em relação a outros, levado por motivos que

resultam da influência da tradição, dos interesses racionais e/ou da emotividade. O motivo

que transparece na ação social - que pode ser expresso pelo sujeito ou estar implícito em

sua conduta - permite ao observador desvendar o seu sentido, que é sempre social na

medida em que cada indivíduo age levando em conta a resposta ou a reação de outros

indivíduos. Por outro lado, Weber distingue a ação da relação social. Para que se estabeleça

uma relação social é preciso que o sentido da ação seja compartilhado. Ver em: Weber, Max.

(1994). Economia e Sociedade. 3. ed. Brasília, UnB.

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metodológicos para interpretar em campo os possíveis sentidos das ações

dos indivíduos que trabalham com a castanha. Isso facilitou que eu olhasse

e interpretasse os sentidos por trás das ações e relações sociais em torno

da castanha, buscando entrever “aquilo que está sob a casca das coisas”.

Todavia, creio não ter ido muito longe, tendo em vista que a ideia

também era entender os conceitos e as categorias nativas a respeito da

castanha, isto é, o lugar desta árvore no conjunto das crenças,

conhecimentos, práticas, do pensamento, das instituições de parentesco,

etc. em outras palavras, o lugar da castanha na totalidade da cultura

Paumari.

O desenrolar do campo

No total, meu tempo de permanência no “campo” durou 36 dias,

contando do dia em que saímos do porto de Manaus ao dia da minha

chegada ao mesmo porto (que não coincidiu com o restante da equipe).

Considerando o campo a viagem como um todo, nesse período foram cerca

de dez dias viajando em barco, onze dias na cidade de Tapauá e dezesseis

dias em terras Paumari. Ter ido ao Purus nesses barcos-recreio – ao invés

de avião - foi importante, pois nessas viagens temos oportunidade de

conhecer pessoas que vivem na região – cada qual ali no barco exercendo

um tipo de ação e relação social -, com tempo de sobra para ouvir suas

histórias, sonhos, anseios, problemas, conhecimentos, sabedorias, enfim, o

barco nos serviu como o início da imersão na “unidade de significação em

estudo”. Foi possível, assim, começar um exercício etnográfico no próprio

barco. Além disso, viajando assim temos contato direto com o ambiente,

com o grande rio e a floresta, as condições do tempo, o vento, a chuva, o

sol, o céu, as estrelas.

Quando partimos no fim da tarde de sábado, no barco-recreio “Vovô

Osvaldo II”, no dia 07 de janeiro de 2012, nossa equipe contava com sete

pessoas – eu, Alexandre, Admilton, Alba, Thainá, Angélica e Ingrid – que ao

longo da viagem foi se dividindo. Eu, Angélica, Alexandre e Admilton,

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descemos na cidade de Tapauá, na terça-feira (dia 10). O restante da

equipe, contando só com as meninas, continuaram a viagem por mais dois

dias até a cidade de Canutama. O período de viagem juntos, foi dividido

entre confraternizações e reuniões. Filmamos e fotografamos o momento da

entrada na foz do rio Purus, no final da tarde de domingo, um marco

importante da viagem, sabendo que entrávamos a partir dali dentro da

unidade geográfica de estudo.

Os imprevistos da viagem fizeram com que demorássemos mais que o

previsto na cidade de Tapauá, pois a ideia era ficar, eu e Angélica, apenas

uns cinco dias na cidade para tentar aproveitar o máximo de tempo nas

Terras Indígenas. Porém, problemas de atraso no depósito de dinheiro para

dar continuidade à viagem, junto com a falta de regularidade de barcos

subindo o rio, fez com que ficássemos onze dias em Tapauá.

Entretanto, o campo na cidade foi também bastante interessante.

Durante esses dias, foi possível conhecer e entrevistar uma série de

personagens que compõem a paisagem humana do Purus. Estabelecemos

contato com Apurinãs e Paumaris que vivem e trabalham na cidade;

fizemos bons contatos com funcionários (muitos indígenas) da FUNAI e da

Casa de Saúde do Índio (CASAI); foi possível fazer longas e interessantes

entrevistas com ex-seringueiros descendentes de nordestinos; foi possível

conversar com os principais atravessadores e comerciantes de castanha e

compreender um pouco a lógica subjacente dessa atividade na região; foi

possível também acompanhar todo o processo de produção de farinha de

mandioca acompanhando uma família, inclusive visitar sua roça, etc. Enfim,

nesses dias construímos uma rede de relações sociais – com direito a

dádivas e contradádivas -, e muito ainda ficou por se fazer, dada a

diversidade de pessoas interessantes que de uma forma ou outra fazem

parte do tema da expedição e das nossas pesquisas, mas que ficaram ainda

por se conhecer ou se conhecer melhor.

A primeira entrada em território Paumari foi outro marco importante

da viagem. Saímos da cidade de Tapauá em direção à Vila da Foz do rio

Tapauá (o rio tem o mesmo nome do município), no sábado, dia 21 de

janeiro, ao meio dia, e chegamos ao vilarejo ribeirinho no fim da tarde do

dia seguinte (domingo, 22 de janeiro). Vale ressaltar que dessa vez

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pegamos o barco “Comandante Maia” muito mais apinhado de gente e

abarrotado de mercadorias do que o “Vovô Osvaldo II”, uma vez que

embarcamos no “meio do caminho” - o barco vinha de Manaus rumo à Boca

do Acre. Na foz do rio Tapauá deu-se a separação total da equipe; a partir

dali, Alexandre e Admilton continuariam a viagem rumo a Canutama, eu e

Angélica, continuaríamos agora pelo rio Tapauá. Como já era quase noite -

não permitindo que fossemos direto para a TI - aceitamos o convite de

Edelson (um morador da Vila), para pousar na casa de Dona Ardete (sua

irmã), comerciante e evangélica. Nessa noite escura de domingo demos

ainda uma “volta” na vila, que estava “agitada”; dia de missa na igreja

evangélica; jovens sentados nas bancadas das casas de madeira e crianças

correndo à meia luz pela rua principal; homens jogando sinuca nos bares ao

som de brega; tomamos coca-cola e sorvete.

A segunda-feira amanheceu com “rompante de chuva”; durante a

manhã conseguimos uma pessoa para nos levar à casa do seu Germano –

um professor Paumari, que seria nosso anfitrião nos primeiros dias no

Manissuã. Mas só conseguimos sair da vila depois do almoço, - na verdade,

depois que a chuva amenizou, mas não sem antes ter encontrado com seu

Nilson, agente de saúde Paumari, que havia trazido seu Ademarzinho – um

Katukina que mora no Manissuã - ao posto de saúde, picado de cobra no dia

anterior atrás de sua casa.

A sensação de entrar pela primeira vez em uma TI daquele porte foi

emocionante. Enquanto íamos subindo o rio Tapauá, naquela tarde nublada

e branca, a floresta verde-escura da terra firme, com enormes castanheiras

sobressaindo-se, formava uma muralha gigante ao longo do rio, impondo

um ar de mistério e respeito; ao mesmo tempo vinha uma sensação de a

cada segundo estar me afastando do meu mundo, indo para mundos

outros, para o desconhecido. Quando entramos em um igapó para fazer um

furo (atalho dentro da floresta alagada) a emoção transbordou. Era tanta

beleza e mistério naquele ambiente que meus olhos se encheram d’água.

Quando chegamos ao flutuante do Germano – num local do Lago manissuã

chamado de “Sete Bocas” -, recebemos as “boas vindas” de um “jacaré-

tronco” logo atrás da casa, que nos avistou e mergulhou pro-fundo nas

águas.

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Ao desembarcarmos não encontramos ninguém no casa-flutuante;

após alguns minutos avistamos a esposa do nosso anfitrião - Sara e suas

duas filhas (Kamelícia e Klícia) –, remando na canoa tranquilamente vindo

nos receber. Germano e os seus dois filhos tinham ido de manhã ao

castanhal quebrar castanha, de onde voltariam somente dias depois.

Começava ali nossa entrada no mundo dos Paumari.

O TEMPO NA CIDADE

O que eu chamo de “campo na cidade” foi o tempo despendido na

cidade de Tapauá, que no total foram de onze dias. Embora tenha durado

mais que o previsto, o campo na cidade, como mencionado anteriormente,

serviu como período de adaptação e inserção no contexto sociológico da

região. Faço a seguir um breve relato sobre as primeiras ideias e

impressões a respeito do nosso trabalho na cidade e de nossas relações

com os moradores e trabalhadores do lugar.

A cidade de Tapauá

A ocupação urbana de Tapauá distribui-se entre áreas de terra firme e

áreas de várzea. Parte da cidade situa-se ao longo da foz do rio Ipixuna,

com várias casas e comércios flutuantes, formando literalmente um “bairro

aquático”. A escadaria do porto onde desembarcamos indica a terra firme -

na qual boa parte da cidade se assenta. No entanto, essa parte da cidade

em terra firme apresenta um relevo bastante descontínuo, com muitas

ladeiras, ruas estreitas e casas de palafita. Como a maioria das cidades do

interior do Amazonas, o que move a economia de Tapauá é o setor de

comércio (formal e informal) e de serviços.

Caminhando pelas ruas, é comum observar residências e ao lado uma

pequena venda de roupa, de bebida, produtos eletrônicos e

eletrodomésticos, pequenos mercadinhos, peixarias, etc. sugerindo que

muita gente transforma parte de suas casas em um tipo de comércio. A

maioria das casas é feita inteiramente de madeira. Como as frentes das

casas e vendas nas ruas principais dão direto para calçada (raras são as

casas com muro), há muita sociabilidade (e pouca privacidade) nas ruas e

nas esquinas e um intenso trânsito de motos. Como quase não há calçadas,

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as pessoas andam praticamente no meio da rua sendo desviadas pelas

motos.

O centro fica na parte mais alta da cidade, com a Igreja Matriz, uma

praça e uma pequena orla com vista para o encontro das águas do rio Purus

- de água branca – com o rio Ipixuna – de água preta -, proporcionando um

espetáculo tão belo quanto o famoso “encontro das águas” em Manaus;

alguns bares, comércio e serviços (correios e banco). Na Praça da Matriz é o

local onde os jovens costumam se encontrar a noite e onde são realizadas

as festas e os eventos públicos da cidade. 43

O sistema de comunicação é limitado, sendo a Vivo a única operadora

celular que funciona - durante a nossa permanência a Vivo literalmente saiu

do ar - “morreu” - deixando seus usuários sem contato com o mundo

exterior durante três ou quatro dias (só quem tinha telefonia fixa podia se

comunicar). Quanto aos serviços de internet, não havia uma única lanhouse

na cidade funcionando, sendo que a única forma de ter acesso à rede era ou

nas instituições públicas (ICMBio, Casai e Funasa) ou nas escolas

municipais. Por outro lado, a televisão está presente em praticamente todas

as casas e a globo é onipresente. A cidade é abastecida de energia por uma

termelétrica.

O município tem sérios problemas com a questão política local. Desde

a última eleição, dois prefeitos, tanto o da situação como o da oposição -

que havia tomado posse com a saída do primeiro -, foram afastados, sendo

que um foi preso por ter relações com o tráfico, e o próprio presidente da

câmara (o atual gestor na época) estava sendo investigado. Essa disputa

política mobiliza boa parte da população, uma vez que a prefeitura acaba

servindo como “cabide de empregos” – um funcionário chegou a relatar que

a prefeitura estava empregando mais de mil pessoas -, o que mostra como

esse embate entre grupos políticos locais constitui um forte agente

43 De acordo com Censo do IBGE de 2010, a população total do município de Tapauá era de

19.077 moradores, sendo 10.618 pessoas vivendo no “meio urbano” e 8.449 no meio rural

(Disponível em: www.ibge.gov.br). Um indicador interessante apresentado no Censo é que

do total de moradores, aproximadamente 90% se disseram naturais do próprio município, o

que vai ao encontro dessas minhas observações e impressões na cidade, cujo padrão de

sociabilidade deve guardar característica arraigadas na região.

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mobilizador entre os moradores, já que muitas pessoas e famílias

dependem desses empregos para sobreviver. Apesar de termos sido bem

recebidos em todas as instituições que visitamos, tivemos que tomar muito

cuidado com essa questão política, buscando se esquivar ou não se envolver

quando o assunto aparecesse, para evitar que “portas fossem fechadas”.

“Índios urbanos”

O aumento de indígenas vivendo nas cidades do Médio Purus (Tapauá,

Canutama e Lábrea) é um fato marcante que vem se estabelecendo no

panorama socioambiental da região ao longo dos últimos anos (Aparício,

2011). Pesquisas recentes mostram como as cidades hoje passaram a estar

inseridas no itinerário e na cosmologia desses povos (Oiara), porém, esse é

um tema que precisaria ser mais bem explorado em todas as suas nuances.

Por trabalharmos em torno dessa temática, tivemos a oportunidade de

entrar em contato com vários indígenas – funcionários da Casai e da FUNAI,

entre outros (Apurinã, Deni e Paumari) -, que por motivos diversos vivem

na cidade.

Antes de comentar a minha experiência com esses indivíduos, é

preciso ressaltar que logo quando chegamos se tornou perceptível na fala

da população certo rancor (ou preconceito?) em relação aos índios,

considerados hoje como agentes de direitos e regalias especiais. Há de fato

uma diferenciação na cidade entre quem é índio e quem não é, porém, essa

diferença acontece hoje não tanto pelas diferenças culturais, mas sim pelo

status jurídico de “ser índio”, o que de certa forma acaba contribuindo (às

avessas) a desentendimentos entre a população não índia (a maioria) com

os indígenas que vivem e passam pela cidade.

Um bom exemplo disso é a queixa feita pelos índios - em uma reunião

com agentes de governo sobre saúde indígena - no atendimento que

recebem dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). Os índios alegam que os

médicos do SUS tem resistência em atendê-los, porque eles já possuem

cobertura da Casa de Saúde Indígena (Casai), que é o órgão de

atendimento à saúde do indígena. O problema é que a Casai não tem

estrutura para tratar problemas mais graves e acaba mandando o índio

para o SUS, que chega no hospital já com a resistência dos médicos e

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enfermeiros, seja pelo motivo alegado, seja porque também “índio chega

sujo, descalço, suado, fede, etc.”.

Foi interessante observar nesse sentido - numa oportunidade de

acompanhar um grupo de índios voltando a pé para casa após essa reunião

sobre saúde indígena - como a cidade parece constituir um ambiente

“estranho” para os mais velhos. Percebe-se claramente a falta de jeito e a

agonia deles em atravessar uma rua, o medo que sentem das motos, o

andar lento, os olhares - o ver e o não ver e o não ser visto. Fiquei

pensando de como o ambiente está dentro - “estruturalmente” - das

pessoas, como o índio, acostumado a andar na mata e nos rios, caminha

na/pela cidade. Mais interessante ainda foi verificar que todos eles

moravam no “beiradão” ou o que eu considero o “bairro aquático” da cidade

- fenômeno mais perceptível entre os Paumari, famosos por sua forte

relação com os ambientes aquáticos que, sem exceção, todos moravam em

flutuantes. Fica a questão: o que é ser um índio urbano no Purus?

Conversa com um Paumari

Seu Jorge e sua família foram os primeiros Paumari que tive contato

durante a viagem e a primeira impressão foi muito boa. Visitei-o em sua

casa, um flutuante de madeira no rio Ipixuna, numa tarde ensolarada, junto

com a Angélica e o seu Orlando - agente de saúde da Casai. Seu Jorge tem

um problema sério de hérnia na coluna que quando entra em crise deixa-o

praticamente paralisado, tendo de ficar deitado o tempo todo em uma rede;

embora seus olhos tenham brilhado ao falar da sua terra, o problema na

coluna foi uma das causas dele ir morar na cidade, junto com o desejo dos

filhos de estudar na cidade, já que consideram a escola na aldeia muito

fraca – segundo eles as crianças terminam a 4° série sem saber ler nem

escrever. Seu Jorge e sua esposa - dona Leontina - são da aldeia do Lago

Manissuã; ele é filho de seu Luis, o cacique, e irmão de seu Nilson, agente

de saúde e uma das jovens lideranças da aldeia.

Seu Jorge me contou que sua família teve um papel protagonista na

criação da TI dos Paumari e no projeto de “manejo” da OPAN. Em sua fala

articulada e esclarecida ele se mostrou um defensor da causa da

“sustentabilidade” em suas terras, introduzindo a problemática em torno do

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projeto de manejo dos lagos, pois nem todas as famílias são adeptas da

proposta em se fazer a despesca, ou seja, deixar de pescar pirarucu em um

lago por certo tempo (geralmente um período de três anos). A questão

parece nem tanto ser falta de paciência ou “visão” ou talvez necessidade,

mas sim as relações de parentesco e de compadrio estabelecidas com os

pescadores de fora, não índios, que arrendam os lagos em troca de rancho

e mercadoria.

Entre os Paumari é muito comum que os jovens saiam das aldeias para

trabalhar durante alguns anos em barcos de pesca, depois voltam e se

casam. Essa relação com o branco é sempre de subordinação. Antigamente

costumava-se sair para trabalhar nos seringais, na coleta castanha ou de

sorva; hoje é nos barcos peixeiros. O próprio Jorge trabalhou durante anos

num barco desses, aprendendo a língua, o modo de ser, os valores dos

brancos, etc. Sem dúvida sua experiência nesses barcos, tanto positiva

quanto negativa, contribuiu para seu protagonismo na comunidade frente

às relações com os agentes externos que atuam em prol da

“sustentabilidade” na região. Nossa conversa durou mais ou menos

quarenta minutos, mas foi importante por ver que se trata de um povo

receptivo e que vive numa terra especial.

Entrevista com um ex-seringueiro que quase virou Pajé44

Seu Eladio é filho de um paraibano de Catolé do Rocha, mais um

dentre tantos descendentes de nordestinos que vivem no Purus. Porém, a

história de seu Eládio é bastante representativa do processo de

“caboclização” dos nordestinos que vieram à Amazonia nos dois ciclos da

borracha que devassaram a região em meados dos séculos XIX e XX.

Conhecemos-nos rapidamente por acaso em meio a conversas informais no

porto. Ele me foi apresentado como um ex-seringueiro que conhecia tudo

sobre a região. Quem o vê na rua – senhor de meia idade, franzino, usando

óculos, de bermuda e chinelo - não imagina a riqueza da “micro-história” do

Purus que existe ali dentro. Na ocasião, conversamos rapidamente e

44 Entrevista gravada em 15 de janeiro de 2012.

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marcamos uma conversa no hotel para o dia seguinte pela manhã. Ele não

compareceu na hora marcada; quando dava como perdida a nossa

entrevista, ele apareceu no fim da tarde, meio tímido, se desculpando por

faltar de manhã.

Como tínhamos nos conhecido rapidamente no dia anterior, aquele

caboclo ainda era um mistério; de certa forma foi uma aposta que eu tinha

feito em marcar a nossa conversa, a entrevista podia ser uma “furada”, sem

muitas novidades, etc. Mas bastaram dez minutos para que o homem

começasse a crescer e ganhar confiança e quando nos demos conta (eu e

Alexandre) ele já estava narrando histórias de índios, pajés, feitiços, bichos,

rios, viagens... Sempre intercaladas com um “trago” de rapé. Seu Eládio é o

caso típico do homem sertanejo que se transformou em caboclo na

Amazônia. Nascido num seringal do Purus, aos oito anos passou a conviver

com os Apurinã e aos dezoito anos por pouco não se casa com uma índia na

aldeia e vira aprendiz de pajé, mas preferiu ir embora e servir o exército.

Seu Eladio é um bom exemplo do caboclo que herdou o conhecimento

indígena sobre a floresta, as crenças, o imaginário, as técnicas, etc. e até

mesmo o saber narrar estórias, os gestos, os tons, envolvendo os ouvintes

como se estivéssemos à beira de uma fogueira. Por trás daquele pequeno

homem uma grande história e uma pequena história amazônica. Ao longo

de mais de duas horas de conversa, sem parar de falar, ele apresentou uma

memória fora do comum e um grande conhecedor dos povos indígenas do

Purus (fala Apurinã fluente e um pouco de três outras línguas). Histórias

ocorridas nos seringais, encontros com os Suruahá no meio da floresta,

onças, cobras e muitas outras coisas. A história de seu Eládio é um exemplo

de que a história do Purus não se resume à guerra, confrontos armados,

violência, etnocídios, etc. Houve também espaços de entendimento e

integração no encontro entre os dois mundos.

A “ferida braba”: notas em relação à Leishmaniose

Durante os dias passados em Tapauá, questões interessantes

apareceram sobre a leishmaniose - o que não quer dizer que as dúvidas

acabaram ou que chegamos perto de compreender o fenômeno da doença

na região. Antes de tudo é preciso destacar a precariedade do sistema de

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diagnóstico e de compilação de dados (registros) oficiais no município. Logo

no primeiro dia fomos à Funasa e só havia dados referentes à malária. No

discurso do coordenador e dos funcionários de saúde, a leishmaniose não é

um problema de saúde pública na região. De acordo com um funcionário da

Casai o maior problema de doença entre os índios é a tuberculose, a

hepatite B e A e a hanseníase (essa mais entre os Deni). Na fala dos

coordenadores parece que a leishmaniose nem existe, mas ela existe sim,

embora não epidêmica.

A ocorrência da doença foi-nos revelado logo no primeiro dia por um

funcionário da Casai, ao falar do caso da dona Leontina (que depois

viríamos descobrir que era a sogra de seu Jorge), que apresentava uma

ferida no olho bastante suspeita. Fomos à casa desta senhora e ela nos

contou como a doença apareceu: há mais ou menos três anos ela foi pegar

água perto de casa e “espocou” uma bola de sangue pequena e que depois

foi crescendo; os sintomas relatados são pele escura ao redor da ferida

(como se tivesse tomado uma pancada e ficado roxo) e forte quentura no

corpo - não apresentava sinais de leishmaniose tegumentar na boca nem no

nariz. Os médicos do município não sabiam se era leishmaniose. Ela

esperava na ocasião uma oportunidade para ir a Manaus fazer os exames.

Talvez o maior problema sobre essa doença seja a precariedade nos

diagnósticos dentro do município, seja por falta de capacitação dos agentes

de saúde, seja pela precariedade de equipamentos para realizar exames.

Segundo relatos de moradores, os diagnósticos costumam generalizar as

doenças (um mal-estar na barriga, dizem que é “dor de barriga”, por

exemplo), quando na verdade poderia ser um problema mais sério.

Posteriormente alguns Apurinãs me mostraram cicatrizes em suas pernas e

costas, a que chamavam de “ferida brava”. Segundo eles as feridas se

originaram pela picada de carrapato (um carrapato que dá em anta) e não

de mosquito.

Os sintomas foram os mesmos em todos os casos relatados: forma-se

uma bola de sangue que depois de “espocar” abre uma ferida que vai se

aprofundando e necrosando a pele. Os dois informantes foram medicados

em Lábrea, o que indica haver algum tipo de diagnóstico na região. Em

todos os casos relatados não houve proliferação da ferida. Resumindo:

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casos de leishmaniose existem na região, porém não podemos saber em

que nível, devido à falta de informações oficiais e de confusões a níveis

conceituais, uma vez que para os índios e moradores em geral parece

tratar-se apenas de uma “ferida brava”.

Notas sobre a farinha de mandioca em Tapauá

O mês de janeiro é marcado por uma intensa movimentação em torno

da produção de farinha. Bastava ir até a beira do rio Ipixuna e ver o intenso

movimento de canoas e pessoas indo e vindo, trazendo a mandioca colhida

nas “vazantes” para serem transformadas em farinha nas “oficinas”. Pude

acompanhar a família de seu Francisco durante alguns dias produzindo

farinha em sua propriedade na beira do rio Ipixuna. Nessa oportunidade foi

possível entender um pouco as ações e relações sociais em torno dessa

planta, registrar o processo de produção da farinha, visitar sua roça de

vazante e de terra firme.

O intenso movimento em torno da mandioca é comandado pelo ritmo

da cheia do rio, pois se deve fazer a colheita antes que as águas do Ipixuna

e do Purus cubram os roçados nas várzeas – “vazantes” - e a produção se

perca. É uma corrida contra o tempo das águas. A produção de farinha dá

muito trabalho, desde o plantio da mandioca, o cuidado com a roça, até a

colheita, e depois todo o processo de transformá-la em farinha. A colheita

nas vazantes vai sendo feita conforme a farinha vai sendo produzida. O

trabalho é feito em regime familiar e de compadrio. Famílias inteiras se

mobilizam para a produção nessa época, inclusive os jovens e as crianças,

que neste período estão em férias.

A torração da farinha nas oficinas (barracões onde estão armazenados

os fornos de torrar) constitui assim um espaço de sociabilidade familiar,

onde se reúne cunhados, genros, sogros, noras, filhos e netos, etc. em

torno de um objetivo comum. A produção é praticamente toda voltada para

o autoconsumo. Cada família se arranja do jeito que pode durante a safra;

se alguém está doente ou adoece, vai o compadre, algum familiar ou o

vizinho ajudar a colher, descascar, torrar, etc. tudo porque senão perde-se

a produção.

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Contando com a paciência de seu Francisco foi possível entender um

pouco mais como funciona o processo de produção da farinha:

O plantio de “vazante” - mandioca plantada nas várzeas - começa no

final do mês de julho, contudo, o ciclo inicia quando a maniva (semente)

da vazante é colhida na roça de terra firme em maio/junho, para depois

ser plantada nas várzeas - nesse sentido, a roça de terra firme funciona

como um tipo de banco de semente da mandioca plantada nas várzeas.

Entretanto, existe variedades da terra firme e variedades da vazante.

Diz seu Francisco que a da vazante é uma variedade mais “ligeira” -

chamada “socó”, que dura apenas sete meses pra ficar madura -

justamente no período em que o rio começa a encher - depois disso,

não presta mais, fica “desgostosa”, “aguada”, nas palavras dele. A

qualidade de mandioca da terra firme é conhecida como “cobiçada”, que

aguenta de um a dois anos na terra. Como o próprio nome sugere,

trata-se de uma variedade que produz uma farinha mais gostosa –

amarelada - devido ao maior tempo de maturação na terra. É comum

misturar as duas variedades - a da terra firme e a da vazante – na

mesma farinhada.

A mandioca colhida na vazante é colocada de molho – em canoas

submersas na beira do rio - por cerca de três dias, processo esse

chamado “pubar a farinha”. A mandioca pubada fica com uma

consistência mole, permitindo que seja descascada facilmente com as

mãos – trabalho que é feito dentro do rio – formando uma massa

pastosa branca. Já a variedade da terra firme não é pubada; ela é

“decotada” – isto é, descascada - tal como foi tirada da terra, e depois

ela é “sevada” - triturada - num “sevador” – um tipo de rolo dentado

movido por uma correia movimentada por um motor - formando uma

massa pastosa e mais amarelada que a massa de puba. As duas massas

são então misturadas e depois vão para a prensa de madeira –

construída artesanalmente -, pra que a água escorra da massa. Começa

aí processo de secagem da mandioca. Cerca de três horas na prensa, a

massa seca, mas ainda úmida, é peneirada em uma peneira feita de

palha e daí está pronta para ir ao forno pra ser torrada. Torrar significa

a última etapa do processo de secagem da massa da farinha; uma

fornada precisa de duas demãos para farinha ficar totalmente seca,

levando na base de 1h a 1h30 de duração – 30 minutos a primeira

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demão e 1h a segunda. A farinha no forno tem que ser mexida

constantemente para não queimar e às vezes é lançada ao ar para que o

vapor se desfaça dela com mais facilidade.

Uma safra de farinha dessas pode render de 20 a 30 sacas por família. A

farinha é armazenada em tambores, podendo durar mais de um ano.

Notas sobre o esquema da castanha em Tapauá

A castanha, o peixe e a farinha constituem os principais produtos que

movimentam a economia de Tapauá. No entanto, ao contrário do peixe e da

farinha em que boa parte da produção é consumida dentro do município, a

castanha, apesar de seus valores nutricionais, praticamente é toda voltada

ao mercado externo. É claro que existe um mercado interno, mas este é

irrelevante. De acordo com as estimativas de um comerciante, praticamente

99% da castanha coletada dentro do município é exportada. Nesse sentido,

o valor de receita que fica no município deve ser pífio se comparado à

receita que é obtida na ponta final da cadeia produtiva. A economia da

castanha dentro do município se resume ao extrativismo puro e simples,

praticamente sem nenhuma forma de beneficiamento.

Durante o período que estivemos na cidade foi possível entrevistar dois

grandes atravessadores, o que possibilitou ter uma ideia mais apurada

sobre como funciona o esquema da castanha na região. Buscando não

perder de vista informações importantes dessas entrevistas, peço licença

para colocá-las na íntegra, como estão nas minhas anotações do caderno de

campo - com algumas alterações:

Primeira entrevista

Hoje entrevistei um grande atravessador de castanha da cidade, seu Avilon,

que mora num flutuante próximo ao terminal portuário. Senhor de meia idade,

branco e de personalidade forte; disseram-me no porto que não era muito

receptivo, mas me recebeu bem, foi solícito e atencioso; porém, não deixou

gravar a nossa conversa. Pareceu ser uma pessoa amigável, mas sempre com

um pé atrás... Desconfiado. No início da conversa, chegou um seu cumpadre,

seu Francisco Braga Tavares, homem com seus 70 anos, nascido na região,

em uma comunidade um pouco mais acima do rio Purus. Filho de seringueiro

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cearense, seu Francisco logo se mostrou um ótimo informante, bem humorado

e atencioso na nossa conversa, demonstrando uma postura sincera, prestativa,

respeitosa e amigável. Mostrou-se um informante com informações valiosas

sobre a vida no passado na região; se apresentou como proprietário de terras

no rio Ipixuna, onde passou boa parte da infância (a outra, o inicio, onde

nasceu, foi numa comunidade ribeirinha no Purus, chamada Recreio São

Domingos), e onde criou seus 14 filhos, hoje todos adultos (só dois moram em

Tapauá), quase todos “doutores”; trabalhou com castanha, herdou do seu pai

um castanhal no Ipixuna com cerca de 150 hectares (1.500 metros de frente

por 3.000 metros de fundo). Seu Francisco mostrou-se profundamente aberto

pra falar da sua vida, ao contrário de seu Avilon, aberto pra falar só do seu

trabalho com castanha. Enfim, a conversa foi interessante, começou com seu

Avilon, de maneira bem objetiva, falando sobre a economia da castanha e

depois com a chegada e a participação de seu Francisco, a conversa enveredou

pra outros rumos, interessantes também, pois ajudou a compreender um

pouco mais sobre o contexto histórico na região. A não permissão de gravar

nossa conversa por parte de seu Avilon é compreensível, em parte por ter sido

nosso primeiro contato, de não nos conhecermos, por ter eu chegado sozinho

me apresentando; talvez sua desconfiança deve-se ao seu trabalho de

comerciante, embora essa desconfiança tenha reverberado na minha própria

desconfiança em relação a ele, como agente explorador dos trabalhadores.

Seria este o receio dele? Qual será que foi a visão dele em relação ao meu

papel ali? Um defensor das pessoas com quem ele trabalha/explora?

Interessante foi que no dia eu usava uma camiseta do Governo Federal sobre

a Política Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (que eu ganhei num

evento em Brasília), e que seu Avilon reparou e até perguntou o que era; tive

que explicar.

~

Depois dessa tentativa de contextualizar a entrevista, das minhas impressões,

vamos agora direto ao assunto da nossa pauta castanheira com seu Avilon e

seu Francisco. Ressalta-se antes de tudo, a impossibilidade de não ter tido a

permissão de gravar a conversa, principalmente para poder pegar o

vocabulário próprio de seu Francisco contando sobre sua vida; vocabulário de

caboclo; palavras que não se encontram nos dicionários. Minha pergunta a seu

Avilon, abrindo a nossa conversa, foi direta, objetiva e aberta: “Seu Avilon,

qual é o esquema da castanha aqui em Tapauá?” Vamos à resposta:

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- A safra da castanha é de janeiro a maio, no período do inverno. Em 2011 ele

comprou de 800 a 1000 “medidas”. A medida é equivalente ao hecto e

corresponde a uma saca de castanha (com casca) com cinco latas, o que

equivale a 100 litros (cada lata de castanha tem 20 litros). Seu Avilon diz que

em Tapauá a medida está custando entre R$ 100 e R$ 110. Seu Francisco

lembrou que antigamente as medidas eram calculadas em caixas (que eles

chamam de “barrica”) de sabão ou de querosene.

- A maior parte da castanha produzida na região é exportada pra Manaus ou

Belém onde estão instaladas as fabricas de beneficiamento. Hoje a maior parte

da produção vai pra Belém e de lá pra São Paulo. Manaus tinha duas fábricas,

a IBESABA e a SIEX, das quais só resta a ultima (?). Eles comentaram sobre

um grande comprador de castanha no Purus, o Dário Pantoja, que é de Belém,

e que entra no Purus com uma grande embarcação comprando castanha dos

comerciantes e atravessadores – também encomenda castanha que é levada

nos barcos-recreios. Diz ele que o seu “patrão” tem fabrica de beneficiamento

em Belém. Diz que no Pará tem muita usina (citou Oriximiná e Óbidos). Seu

patrão vende por R$ 450 uma caixa com 30 quilos de castanha beneficiada.

Explicou por cima como é o processo de beneficiamento da castanha nas

fábricas: descasca - lava- leva pra estufa – leva ao forno. Ele ressaltou que a

castanha é torrada para inviabilizar seu plantio; disse que a Malásia hoje é a

maior produtora mundial de castanha, levada do Brasil, assim como fizeram

com a seringueira (?). Em Lábrea há uma cooperativa e uma grande fábrica de

beneficiamento de castanha. Parece que a prefeitura compra a castanha com

dinheiro do Governo Federal. Perguntei a eles se não seria legal uma fabrica

em Tapauá, claro que sim, ele confirmou que; e disse que o Eduardo Braga até

chegou a prometer ao prefeito, mas ficou só na promessa.

- Seu Avilon também falou que no rio Ipixuna antigamente se produzia muita

castanha. Da boca do rio até a metade era pertencente a um proprietário –

Rissa dos Santos, o “Turco” – e da metade do rio pra cima era de um tal Mario

Martim. Essa é uma informação importante e que gera algumas dúvidas: resta

checar a sua veracidade e ver se eram proprietários mesmo ou se tinham o

monopólio do comércio (já que um deles era Turco!). De toda forma, sugere

que o esquema da castanha segue o mesmo sistema da borracha, a relação

entre proprietários, donos do meio de produção, neste caso, a terra, e de

outro lado, trabalhadores (seringueiros/castanheiros). Mas só dois

proprietários? Seu Avilon cita um livro que conta a historia de Tapauá e que lá

tem uma foto que ilustra embarcações comprando castanha em frente ao

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terminal portuário. Diz ele, que as embarcações iam e vinham de Manaus e

Belém, num ir e vir constante. Isso tudo demonstra a importância de se fazer

um levantamento histórico detalhado da região, no intuito de compreender a

situação atual.

- Seu Avilon só compra a castanha produzida no rio Ipixuna, sua “freguesia” é

toda de lá. Diferente do Abufari, em que o castanhal pertence a uma empresa

(trataremos disso depois), ele compra a castanha dos próprios produtores

(donos da terra?), parece que de castanhais pequenos. Ele confirmou – meio

desconfiado, reticente - o esquema de aviamento que ele pratica: avia

mercadoria, como açúcar, café, bolacha, leite, etc. e instrumentos de trabalho,

como botas, terçado, etc. ele não compra do castanhal do Abufari, o maior da

região, porque diz lá ser muito caro a castanha por ela ser graúda - “três

castanhas dá um palmo”. Mas o fato é que quem manda no comércio da

castanha do Abufari é o Louro, muito amigo dele, segundo ele. Ninguém do

Abufari faz negócio se não passa pelo Louro (veremos o porquê disso depois).

Diz ele que gente da Malásia comprou as terras do Abufari (veremos isso

depois, na entrevista com o Louro). Quando perguntei sobre o fato de os

castanhais estarem dentro de uma Reserva Biológica, ele disse que o Governo

permite a coleta dentro da área, desde que não corte a árvore, mas que

também tem castanhal fora da reserva. No Abufari são duas comunidades, São

Sebastião e Fazenda.

~

- Pela conversa com seu Francisco, a economia por essas bandas funcionava

antigamente com base na castanha e na seringa. A fala do seu Francisco

sugere que a seringa não era muito produtiva na região do Médio Purus, pelo

menos não tanto quanto no Alto. Pelo menos no tempo dele e do seu pai, as

atividades anuais dividiam-se entre a seringa (no verão) e a coleta de

castanha (no inverno). Também havia é claro comercialização das “drogas do

sertão”: pele, couros, caça e peixe - muito peixe - bichos de casco, peixe-boi e

por aí vai. Diz ele que da década de 50 pra frente, quando a seringa ficou cara

(?), trocou-se a borracha no verão pela exploração de peixes e caça – além da

madeira (?); mas a castanha de toda forma continuou. Fica a pergunta se a

exploração de castanha acompanhou o período da borracha logo no início ou

se ela veio depois. Quanto tempo tem a economia de castanha na região?

Outra questão interessante é quanto à territorialidade que existe no contexto

da castanha. Diz ele que o castanhal dele foi herdado do pai no tempo ainda

em que sua mãe era viva.

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Segunda entrevista

Ontem entrevistei uma figura chave da economia da castanha em Tapauá. Seu

Raimundo Rabelo de Oliveira, mais conhecido como “Louro do Abufari”,

considerado o principal intermediário da castanha na cidade. O avô do Louro

foi um cearense que veio trabalhar no que antes era o Seringal do Abufari (que

depois acabou emprestando o nome à Reserva Biológica); uma área enorme

com cerca de 180 mil hectares, com muitos castanhais e também com gente

morando lá dentro - castanheiros/seringueiros (existem duas comunidades

dentro dessa área – “Fazenda” e “São Sebastião” – possivelmente constituída

pelas famílias que trabalhavam no seringal). Na década de 1980, o seringal foi

vendido para uma empresa madeireira, porém, logo no ano seguinte (1982), o

governo cria a Reserva Biológica (Rebio) do Abufari sobrepondo parte do

antigo seringal, justamente nas áreas mais ricas em madeira. A empresa

passa então a investir em projetos de manejo e reflorestamento e no

extrativismo da castanha (os castanhais ficaram de fora da Rebio). Louro

começa a trabalhar para a empresa, nos projetos de manejo e com castanha;

depois ele acaba sendo contratado para gerenciar a extração de castanha –

comprava a castanha e levava pra sede da empresa em Itacoatiara, de onde

vendia para Belém, Manaus, etc. Em determinado momento, essa empresa

para de funcionar (?); para continuar no Abufari ele passa a gerenciar

contratos de arrendamento para a empresa de forma autônoma. Ele arrenda a

propriedade da empresa, trabalhando com as famílias que estão lá dentro. O

esquema funciona assim: as famílias que ali vivem quebram a castanha e

vendem diretamente para o Louro, sendo que 20% do total do rendimento da

produção vai para a empresa proprietária da área. O trabalho do Louro é

conseguir compradores e financiamento externo para a safra da castanha -

bancos como o Basa ou empresas compradoras como a família Montran de

Belém, Ibesaba e Siex em Manaus, gente de São Paulo, do Acre, enfim, uma

ampla rede de contatos com interesse na castanha do Abufari, considerada de

boa produção e a maior do Brasil. Hoje ele tem essa autonomia pra vender pra

quem quiser. O sistema de trabalho funciona da seguinte maneira: antes da

safra a empresa interessada “avia” (adianta) ao Louro certa quantia de

dinheiro; este dinheiro vai servir para “aviar” os castanheiros naquilo que for

preciso para o trabalho de coleta (combustível, medicação, rabeta, terçado,

dinheiro, etc.); esse aviamento será pago pelo castanheiro com a castanha

que coletou e o excedente (se houver) poderá receber em dinheiro ou em

outro tipo de aviamento. Cerca de 100 famílias que vivem nas duas

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comunidades (600 pessoas em média) trabalham com o Louro, segundo ele,

quase todos são seus parentes. Há um contrato meio informal que permite às

famílias continuar morando na área; elas ocupam o espaço impedindo invasões

e ao mesmo tempo cuidam da terra e da produção. Provavelmente existem

restrições de uso; funciona assim como uma espécie de reserva particular

produtiva. O Louro possui certo carisma na cidade, talvez por sua importância

como provedor de muitas famílias. As relações dele com essas famílias não são

apenas comerciais; foi difícil encontrá-lo com tempo livre para conversar,

sempre correndo de lá pra cá. Quando aparece um problema nas comunidades

é sempre a ele que se busca primeiro. Na cidade todos o conhecem.

Sem querer chegar a alguma conclusão, é possível levantar algumas

questões a partir dessas entrevistas – além das que foram levantadas

anteriormente - que poderão ser investigadas em trabalhos futuros. A

primeira questão que chama a atenção é a respeito da concentração

fundiária em torno dos castanhais. Ao que parece os maiores e mais

produtivos castanhais estão dentro de grandes propriedades e pertencem a

poucos proprietários. Isto implica que o trabalho com a castanha na região

deve ocorrer predominantemente em forma de parceria ou de

arrendamento, constituído por uma diferenciação entre o dono terra e dos

meios de produção (com pouca ou nenhuma relação com a terra), e aqueles

que vendem sua força de trabalho (os castanheiros), mas que vivem e

sobrevivem na/da terra. Isso fica muito claro na segunda entrevista quando

se verifica que o proprietário da terra é uma pessoa jurídica que não possui

vínculo com o município e que detém um território.

Seria interessante, nesse sentido, tentar entender, a partir de um

levantamento histórico, como se deu o processo de ocupação e de

estruturação fundiária no município, investigando como o domínio dos

castanhais pode estar relacionado com poderes políticos (locais, regionais e

nacionais) e econômicos. Essa questão fundiária ou territorial de domínio

em torno dos castanhais pode ser importante para entender como se dão as

relações sociais não apenas entre castanheiros e proprietários, mas também

entre os indígenas, uma vez que seus territórios são influenciados e estão

envolvidos por esse sistema econômico. Não é a toa que no discurso dos

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Paumari, os castanhais e os lagos – chamados genericamente de

“produção” – são considerados fatores determinantes no processo de

demarcação e delimitação de suas terras.

Outra questão associada a essa primeira é a permanência do sistema

de aviamento, fenômeno de longa data na economia extrativista da região e

que levanta muitas discussões a respeito das relações entre “patrão”

(comerciante, regatão) e “freguês” (o extrativista que vende ou troca o

produto).

O TEMPO NAS ALDEIAS

A sensação de estar dentro de uma terra indígena no coração da

floresta amazônica é como viver em outra dimensão de tempo e espaço.

Foram dezesseis dias de convívio, morando e participando das atividades

diárias com os Paumari. Nesse tempo curto, creio pelo menos ter tido uma

ideia de como é o dia a dia de um índio Paumari em tempos de invernada e

de águas. Os Paumari se mostraram um povo receptivo e acolhedor.

Nestes dias, visitamos e registramos castanhais e como é feita a quebra de

castanha; acompanhei uma viagem à Vila da Foz com os Paumari com o

intuito de vender castanha - e por tabela verificar como se dão as relações

comerciais com os brancos; tive oportunidade de acompanhar uma caçada

de caititu no Abaquadi e uma “pesca de mergulho de tracajá” no lago

Capanã; passear nos roçados de terra firme; entre outras coisas, como

pescar, jogar bola, tomar banho de rio, aprender a andar ou “flutuar” de

canoa, dar meu primeiro tiro de espingarda - na tentativa meio incerta de

acertar um bando de marrecos em noite de lua...

A Relação com os Paumari

Os Paumari são um dos grupos étnicos que compõem hoje a rica

paisagem etnográfica do Médio Purus (junto com os Deni, Apurinã,

Jamamadi, Jarawara, Suruahá, Himerimã e Banawá). Habitantes ancestrais

de afluentes do Purus (rio Ituxi, Sepatini e Tapauá), os Paumari são um dos

únicos povos que conseguiram sobreviver sem confrontos armados nos dois

“ciclos da borracha” que devassaram o Amazonas em meados dos séculos

XIX e XX. Diferentemente de outras etnias, acabaram se incorporando

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rapidamente ao sistema social e econômico sobreposto, optando pela

manutenção de relações pacíficas (e submissas) ao invés da guerra ou da

fuga. 45

Relatos de viajantes do final do século XIX já os descrevem como

pacíficos e com boas relações comerciais, indicando que já estavam

incorporados ao sistema econômico dominante da borracha, entrando em

um acelerado processo de dependência. Essas reações e relações históricas

dos Paumari, submetendo-se e incorporando-se rapidamente à economia

extrativista, talvez explique o estereótipo do grupo hoje tido como “povo

manso”, “aculturado” ou “civilizado”, a ponto de eu já chegar a ouvir na

cidade frases do tipo “Paumari não é índio”. Talvez pelo curto tempo de

permanência com os indígenas, tenha sido quase impossível identificar

diferenças com a sociedade envolvente. Em geral, a arquitetura e a

disposição das casas seguem o modelo regional (casas de madeira, cobertas

de palha ou telha de amianto); o cardápio alimentar é praticamente o

mesmo (mandioca, peixe, caça, etc.); os Paumari também consomem bens

domésticos e industrializados (fogão, TV, panelas, etc.); verifica-se o

mesmo padrão na construção das canoas ou rabetas e o uso de motores e

por aí vai.

Mas talvez o que mais aproxime os Paumari coma sociedade

envolvente seja a questão da língua. Em todas as aldeias, sem exceção, as

crianças, os jovens e os adultos falam o português perfeitamente num

sotaque bem ao estilo regional. São poucos os que dominam a língua

Paumari (alguns adultos e os mais velhos) e as crianças são educadas no

dia a dia ouvindo o português. Falar Paumari é exceção e não regra.

Portanto, não houve “choque cultural” na minha relação com os Paumari.

Em poucos dias já me sentia “em casa”, com condições de entender e

45 APARÍCIO, Miguel. (2011). Panorama contemporâneo do Purus Indígena. In: SANTOS,

Gilton Mendes (org.). Álbum Purus. Manaus: EDUA, p. 113-131.

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participar das conversas e ações do dia a dia Paumari com certa

desenvoltura. 46

Sempre busquei adotar uma postura de igual pra igual com eles e elas,

“entrevistando” e também sendo “entrevistado”, colocando minhas opiniões

e pontos de vista, como faria com qualquer outra pessoa mais próxima;

ajudando nas atividades domésticas como se estivesse na casa da minha

família; o que não quer dizer que não tenha presenciado situações

reveladoras de contraste cultural, ou de estar vivenciando experiências

novas a cada dia. O fato de não ter aquela pressão em coletar dados e

informações específicas ajudou para que eu me sentisse mais a vontade. Na

verdade, eu estava ali com a finalidade sim de coletar informações, porém,

a ideia era deixar que os dados surgissem a partir do contexto vivenciado,

de uma “escuta atenta” de “participação observante”. De fato, me sentia ali

um privilegiado “turista aprendiz”, como Mario de Andrade se reportava em

sua viagem à Amazônia.

Atividades produtivas

Pesca

Uma vez que o peixe e a farinha são os principais alimentos dos

Paumari – peixe assado e cozido com farinha, foi o que mais comemos no

campo -, a pesca é uma atividade permanente e diária na vida do índio

Paumari. Pesca-se praticamente todos os dias - como quem vai a um

mercado ou a uma feira comprar alimentos. Na maioria das vezes são os

homens que pescam, mas as mulheres também saem para pescar,

geralmente quando o marido ou os irmãos estão ocupados em outra

atividade, como a quebra da castanha por exemplo. As crianças e os jovens

geralmente acompanham os pais e quando preciso saem para pescar

sozinho - ou em dupla - o alimento do dia. Quando por algum motivo não

46 Embora o português tenha facilitado a comunicação com os Paumari, por outro lado, a

minha total ignorância da língua nativa e seu uso não corrente, não permitiram que eu

adentrasse em aspectos mais profundos do conhecimento e da visão de mundo Paumari, nas

suas relações sociais e na relação com os elementos constituintes dos ecossistemas em que

estão inseridos.

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tem peixe ou carne, satisfaz-se a fome só com farinha, bolacha e frutas

como banana, açaí, pupunha, etc. Mesmo no inverno - quando as águas dos

rios se espraiam formando um só corpo d’água com os lagos, permitindo

que os peixes se espalhem por amplas áreas dificultando a pesca - peixe

nunca falta na rede ou na linha.

A rede ou malhadeira (de náilon) é o principal instrumento de pesca,

mas também se pesca com vara e anzol. Os Paumari sabem onde jogar sua

rede ou como atrair o peixe ao anzol. A pesca (no inverno) é feita dentro

dos igapós (ou florestas de várzea), em meio às árvores, geralmente

próximo de uma margem de terra (quando há), em locais mais rasos, com

água parada; amarra-se uma ponta da rede em um tronco e com a canoa

em movimento vai jogando a rede na água, formando um tipo de barreira

em linha reta, na horizontal ou diagonal, por quinze a vinte metros de

distância - dependendo do tamanho da rede ou do espaço disponível no

local. A rede pode ficar esticada por algumas horas ou o dia inteiro

dependendo da necessidade alimentar, mas sempre tem que ser retirada no

mesmo dia; não sendo assim, corre-se o perigo de algum peixe maior – ex.

pirarucu – ou de um jacaré furar a rede, ou mesmo, as piranhas devorarem

todos os peixes emaranhados. É comum sair com a rede, esticá-la em

algum lugar e ir fazer outro tipo de atividade, como por exemplo, caçar, e

na volta recolher a malhadeira com os peixes; o resultado sempre é

garantido.

Na maioria das vezes pesca-se de malhadeira e esta é utilizada sempre

quando há muitas bocas para alimentar. A pesca com linha e anzol parece

ser mais utilizada quando a necessidade é mais modesta – para a pessoa

que pesca ou uma família; em todo caso, sempre existe a possibilidade de

compartir o peixe ou a refeição na aldeia. A pesca pode ser feita em

qualquer igapó e a isca mais utilizada foi uma espécie de grilo,

popularmente conhecido como “esperança”; a pesca de anzol é sempre

precedida pela busca da “esperança”, pega com as mãos nas folhas e

galhos das árvores; para atrair os peixes na mata, costuma-se bater a vara

na água repetidamente por algumas vezes - imitando algum bicho? O

sentido auditivo dos índios também é aguçado em meio ao silêncio do

lugar; um barulho na água e identifica-se um peixe – cada espécie tem um

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barulho específico? – e vai-se lá jogar a linha. Da única vez que pude

acompanhar uma pesca de anzol, durante apenas meia hora pescamos –

eu, Nilson e seus dois filhos pequenos – uma meia dúzia de tucunarés atrás

de seu flutuante. Tucunaré e piranha são os peixes mais comuns, mas

também comemos aruanã, jaraqui, matrinxã entre outras espécies. 47

Logo no segundo dia no campo, tive o privilégio de acompanhar e a

incumbência de registrar fotograficamente uma pesca de mergulho de

tracajá (Podocnemis unifilis) ao estilo tradicional Paumari. Peço licença mais

uma vez para registrar essa pesca/caça de tracajá, tal como está no meu

caderno de campo - com alterações:

Os Paumari historicamente são reconhecidos por sua forte ligação com o

universo aquático. Neste ambiente rico em lagos e rios, cercados por

águas, tanto no inverno quanto no verão, eles se aperfeiçoaram ao

longo dos séculos na arte da pesca e da caça de peixes, tracajás,

tartarugas e peixes-boi. Uma prática tradicional de pesca bastante

conhecida e documentada ainda no século XIX por viajantes (...) é a

chamada “pesca de tracajá (ou tartaruga) de mergulho”. Esta consiste

em pegar o tracajá dentro dos igapós; mergulhando e surpreendendo-o,

agarram-no em cima de um toco ou tronco na superfície, enquanto o

bicho toma seu banho de sol diário – geralmente entre 12hs e 14hs, na

hora do dia em que o sol está mais forte. Hoje a pesca de mergulho é

praticada somente por poucos. A maioria dos Paumari prefere a

facilidade da pesca com malhadeira do que os riscos em mergulhar no

meio de um igapó, que são muitos: cruzar dentro da água com um

jacaré, um puraqué (peixe-elétrico) ou um pirarucu, não seria uma coisa

das mais agradáveis.

~

O registro fotográfico desta prática foi feito num dia de sol na sua hora

mais quente (mais ou menos 13hs), numa mata de igapó a cerca de dez

47 Dentre esses não comemos tambaqui nem pirarucu. Dizem que a região era farta de

tambaqui, mas que devido à sobrepesca no passado hoje é raro encontrá-lo. Já o pirarucu

parece ser um peixe voltado à “exportação”, talvez pouco consumido pelos Paumari dado seu

alto valor de mercado.

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minutos de motor do flutuante onde mora o Nilson e sua família, no lago

Capanã dentro da TI Paumari Manissuã. Neste dia, fomos visitá-los junto

com seus pais (seu Luis e D. Laurinda) para pegar uma lona que seria

utilizada futuramente por seu Luis para viajar à Tapauá de motor, com o

motivo de receber o pagamento da aposentadoria do casal. A visita

acabou rendendo o dia inteiro na casa dos nossos anfitriões, já que

tivemos ainda que esperar o Nilson e sua mulher voltarem do castanhal

(o que levou toda a manhã). Nilson é hoje o agente de saúde da

comunidade do Manissuã e se mostrou uma pessoa muita viva e ativa,

sempre muito disposto a nos mostrar e ensinar sobre a cultura do seu

povo. Neste dia, ao chegarem do castanhal por volta do meio dia,

aproveitando a oportunidade da nossa presença em sua casa, ele me

convidou para mostrar “como Paumari pega tracajá” - ou “Zé-prego”

como eles chamam os machos da espécie. Com o sol a pino – que é a

melhor hora, pois é quando eles saem da água e ficam em cima dos

tocos - pegamos a pequena canoa Paumari (eu munido da câmera com

a incumbência e a honra de registrar essa prática tão antiga) e partimos

rumo a um igapó próximo ao seu flutuante; quando chegamos próximo

da mata alagada ele desliga o motor, sai da popa e vai à proa. Do motor

para o remo.

[Silêncio]

Só o barulho do impulso da madeira (do remo e da canoa) na água em

meio às copas das arvores e dos troncos submersos. Jogo de luzes e

sombras conforme entravamos ou saiamos das “clareiras alagadas”,

entre folhagens e galhadas. O céu estava num azul limpo e cintilante. A

sombra da mata dava o refrescor do sol quente do dia.

Olhar atento na câmera. Olhar atento na mata. Algumas frases e

palavras soltas por vezes quebravam o silêncio. O menino, filho do

Nilson, apesar de novo, se comportou como gente grande, não fazendo

galhardes. Qualquer barulho pode espantar o bicho pra dentro d’água.

Passados uns dez minutos flutuando na mata, avista-se um casco;

longe. Silêncio e expectativa. Mais leveza na remada. Nilson então

estaciona a canoa atrás de uma galhada. Detalhe: só ele viu o bicho. Diz

para o menino ficar de pronto, esperar aviso, pra quando a hora, remar

até o toco, buscá-lo.

Ele desembarca sorrateiro como se entrando numa banheira. Pela água

vai, chega mais próximo a um tronco, e verifica uma distância calculada

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para que o oxigênio sustente os pulmões para alcançar a presa

submerso. Atrás do tronco dá um sinal de positivo e se prepara para o

bote.

[Mergulha]

Após mais ou menos um minuto o menino ouve um chamado e começa

a remar. Desta vez sucesso! O Zé-prego vacila em cima do toco seguro

pelas mãos habilidosas do Paumari. Sorriso. Satisfação. Segundos. Pose

pra foto. O menino ainda leva uma arranhada afiada do bicho quando

tenta pegá-lo pra colocar no “porão” (fundo) da canoa. Parte do almoço

agora está garantido. O bicho, nas mãos das mulheres, logo foi para o

fogo e virou caldo. A carne cozida tem gosto de frango, eu digo ao

experimentá-la. Dona Laurinda brinca rindo dizendo que “o tracajá é a

galinha dos Paumari”.

Além do tracajá, os Paumari também se aperfeiçoaram na arte da

pesca de tartaruga e do peixe-boi. Porém, não foi possível acompanhar a

pesca de nenhum dos dois. As conversas informais indicam, no entanto, que

a pesca da tartaruga (maior e mais pesada) difere da do tracajá, uma vez

que a tartaruga é capturada no fundo das águas (e não na superfície), com

o Paumari mergulhando apanhando-a com as mãos ou usando um tipo de

arpão comprido, arpoando-a no fundo das águas. Já a relação com o peixe-

boi, cuja carne é muito apreciada pelos índios e pela população regional, foi

objeto de investigação da minha companheira de pesquisa - a Angélica -,

tendo ela a oportunidade de acompanhar um dos mestres nessa arte, seu

Evange, que fez a gentileza de levá-la a um local de pesca/caça.

Assim sendo, a impressão que ficou durante esses dias nas aldeias, é

que boa parte do dia a dia dos Paumari gira em torno do arranjar o de

comer: seja um peixe, um tracajá, uma caça, frutos de açaí, etc. (tudo

sempre misturado com farinha). Salvo algumas exceções, como a “mixira”

do peixe-boi48, não há excedentes alimentares (no caso das proteínas), pois

48 A “mixira” é um termo genérico referente ao processo de conservação tradicional de carne

de caça, a qual é conservada na gordura da própria banha do animal - geralmente em galões

ou latões hermeticamente fechados. A mixira mais conhecida é a do peixe-boi, mas pode-se

fazer também com caça. Além da mixira também pude observar postas de pirarucu sendo

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não há como conservá-los durante muitos dias. Mas com isso não quero

dizer que o Paumari “pensa com o estomago” ou que “vive pra comer”.

Embora o esforço pra arranjar o de comer seja diário a tempo de sobra para

outras atividades ou simplesmente para não fazer nada. De toda forma,

vale ressaltar que é a partir dessas práticas diárias de subsistência que o

conhecimento - sobre a mata, as águas, os bichos, as plantas, os

ecossistemas, enfim, sobre o território - é construído e mantido.

Caça

Como mencionado anteriormente, os Paumari são conhecidos na

literatura como “índios aquáticos”, dada a preferência deste povo na

exploração dos recursos dos rios e lagos. O que não é de se estranhar, por

sempre viverem cercados de águas com fartura de alimentos. No entanto,

essa “especialização” aos ambientes aquáticos é uma característica que os

distingue dos outros povos do Médio Purus, mais voltados para a exploração

de recursos da terra firme. Como disse seu Ademarzinho - um Katukina

casado com uma Paumari (filha de seu Luis) – que mora no Manissuã:

“cada qual [povo] tem seu sistema”. Em nossa conversa ele fazia questão

de ressaltar sua preferência pela terra firme, que a floresta é onde se sente

em casa, etc. e que Paumari é bom pra caçar peixe-boi, pescar e pegar

tracajá, mas não para caçar. A importância da caça na história do povo

Paumari é, portanto, algo que precisaria ser melhor investigado. Minha

hipótese é que a caça tenha adquirido mais importância a partir do contato

com o branco, quando os Paumari passaram a ter acesso às armas de fogo

(espingardas).

O fato é que hoje os Paumari caçam com certa regularidade,

entretanto, a caça continua sendo um recurso secundário quando

comparado à pesca. Geralmente caça-se durante expedições na floresta,

principalmente, durante as expedições de coleta de castanha, que

costumam durar vários dias. Nestes casos, a caça é feita quando algum

animal – passível de virar comida - cruza o caminho da pessoa, desde que

salgado, outro método bastante utilizado para conservar não só o pirarucu, mas também

carnes de caça.

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se esteja com uma espingarda à mão. Presenciamos isso no campo quando

o Germano e seus filhos chegaram do castanhal com um macaco barrigudo

que acabou virando nossa janta (um picadinho de carne frita) aquela noite.

Outra situação como essa foi com o Gerson (cunhado do Germano e filho

caçula de seu Luis). Ele mais seu sobrinho (Esdrei) foram quebrar castanha

e quando montavam acampamento ouviram um bando de queixadas, foram

atrás e conseguiram matar um. Como haviam se esquecido de levar sal,

resolveram voltar pra casa e a queixada acabou se tornando nossa comida

durante dois dias na casa do Germano. Além destas, teve um dia que eu

comi uma carne de anta no Manissuã, mas acabei não perguntando de

quem era e como havia sido caçada.

Somente um dia, no Abacoadi, pude participar de uma expedição de

caça que durou algumas horas, e mesmo assim não foi exclusivamente de

caça, pois se aproveitou a ocasião para esticar a malhadeira de pesca no

caminho. Neste dia, eu, mais João, Isac e Oseas (e os cachorros), fomos

atrás de caititus (avistados em dias anteriores) na ilha do Paricá, no lago de

mesmo nome, que segundo João, é a sua fazenda ou reserva onde ele “cria

seu gado” - isto é, de “caça”. A ilha do Paricá foi um antigo local de

ocupação e de roçados, portanto, constitui uma capoeira não muito antiga,

com plantas úteis (buritis, castanheiras, etc.) e um tirirical medonho. Não

encontramos nem os rastros dos caititus, pois segundo eles, havia ainda

“muita terra”, mas seu João, que desceu antes, conseguiu matar um veado

jovem com os cachorros. Na volta, tirou-se a malhadeira da água com

muitos peixes, levando para a aldeia fartura de carne de caça e de peixe,

posteriormente distribuídas entre as famílias da aldeia.

Roças

A agricultura/horticultura é um componente essencial das atividades

produtivas Paumari, ainda que durante nosso período no campo eles não

estivessem trabalhando na terra. Embora os Paumari sejam mais

conhecidos por sua preferência pela pesca e coleta de quelônios, não há

dúvidas de que também são horticultores já de longa data, como atestam

as antigas capoeiras, indicadoras de antigos roçados dentro do território. É

preciso ressaltar, no entanto, que assim como outras atividades produtivas,

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como a caça e a coleta de castanha, não sabemos se a horticultura e o

consumo de mandioca constituem um costume antigo ou se tem influência

da atuação do SPI nas primeiras décadas do século XX e posteriormente

dos missionários. Minha impressão é que apesar de muito da cultura

Paumari hoje estar imiscuída com elementos da nossa civilização, a roça

constitui um dos elementos culturais que permanecem relativamente

íntegros, constituindo um tema bem interessante de se pesquisa da cultura

Paumari.

Nosso período no campo não permitiu que acompanhássemos os

trabalhos na roça, pois os Paumari na época do inverno estão envolvidos

com a quebra de castanha, sendo que a lida no roçado começa quando

aquela acaba, ou seja, no início do verão (junho/julho). Mas mesmo assim,

tivemos oportunidade de visitar alguns roçados nas três aldeias que

visitamos, permitindo, ao menos, dar uma ideia do que seja uma roça típica

indígena amazônica. Seguem algumas observações bem gerais a respeito

delas:

Verificamos certo padrão na estrutura e no “funcionamento” dos

roçados nas três aldeias Paumari visitadas (Manissuã, Abacoadi e Terra

Nova).

- Em geral, estão localizados no que eles chamam “pé da terra firme”;

- O tamanho da roça varia entre um a dois hectares por família;

- Em geral estão localizadas próximas das aldeias, ao longo dos

igarapés, facilitando assim o acesso por canoa;

- São pequenas áreas abertas dentro da floresta, num sistema de

corte-e-queima, no qual os troncos são empilhados e queimados e os tocos

das árvores mantidos (daí também esse tipo de agricultura ser conhecida

como “roça de toco”);

- As roças são utilizadas em geral por dois a três anos, depois se abre

outra área de floresta ou capoeira, que pode estar contígua ou não à área

aberta utilizada, que a partir daí, vai ficar em descanso, podendo voltar a

ser utilizada após alguns anos;

- Uma família nuclear tem a sua própria roça da qual é responsável por

zelar;

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- Os homens participam do trabalho mais pesado de “limpar” a área -

isto é, cortar os “paus” mais grossos e atear fogo – e do cultivo; as

mulheres podem participar do processo, mas sua responsabilidade é em

cuidar das plantas cultivadas;

- A mandioca é a grande “protagonista” das culturas plantadas,

ocupando cerca de 80 a 90% do espaço cultivado;

- As outras espécies cultivadas nestes espaços agrícolas são

“coadjuvantes”, mas que não deixam de ser boas para pensar: variedades

de abacaxi, ananás, banana, batata doce, cana-de-açúcar, cará, etc.

- O tempo de trabalho na roça é durante o verão, quando as raízes

maduras são colhidas e começa uma nova safra de produção de farinha;

- O tempo de abrir uma nova roça é no fim do verão

(setembro/outubro);

- O trabalho despendido para se fazer um roçado é enorme, e parece

não ser todos os Paumari que tem essa disposição – algumas famílias

preferem comprar farinha dos comerciantes, regatões ou mesmo de outros

Paumari.

Coleta

Afora os produtos cultivados nas roças, há uma série de frutas nativas

e outras cultivadas próximas às casas ou às aldeias, que são consumidas

diariamente pelos índios. Entre as frutíferas nativas destaca-se o açaí e a

bacaba, dos quais se prepara um tipo de caldo ou vinho, freneticamente

consumido, misturado com açúcar e farinha. Pudemos participar no

Abacoadi de uma “açaizada” que alimentou toda a aldeia. Existe todo um

processo em torno do preparo do açaí, desde a sua coleta na mata (tarefa

masculina) - na qual as crianças participaram como protagonistas,

competindo para mostrar suas agilidades em tirar os frutos em cima das

arvores -, até o preparo do vinho pós-coleta, tarefa predominantemente

feminina. O consumo do açaí apresentou-se assim como um fator

interessante de coesão social entre indivíduos e famílias. Há também a

pupunha, que é cozida durante horas, sendo seu consumo acompanhado de

café (sempre doce). Das frutas cultivadas, a goiaba e o taperebá (ou cajá),

foram as mais consumidas nas aldeias. A goiaba (de vários tipos) em

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especial é muito apreciada e era constantemente consumida pelas crianças.

Há sem dúvida muitas outras frutas, nativas ou cultivadas, que não vimos,

registramos ou experimentamos porque não estavam na época ou porque

não houve oportunidade.

A Castanha

“Comercialização das relações”

Parece impossível falar da castanha entre os Paumari sem entrar na

questão das suas relações mercantis com os jará. Porque antes de tudo a

castanha pertence à categoria de “produto” entre os Paumari – que implica

ser mais do que um produto de coleta. Por entrar no rol classificatório de

“produto” a castanha funciona mais como uma moeda de troca do que como

alimento. De fato, mesmo sabendo que a castanha seja apreciada e

consumida como alimento, foi raro ver um Paumari comer uma castanha ou

tirar leite de castanha, salvo quando nós mesmos tomamos a iniciativa de

comprar a castanha deles. Alguns relatos de Paumari mais velhos a respeito

de antigos castanhais apontam, no entanto, que a castanha era apreciada

como recurso alimentar antes do contato (em que grau não sabemos), e

que após o surgimento de uma demanda de mercado tenha se tornado um

“produto”.

Para entender a relação dos Paumari com a castanha temos que

adentrar neste universo de dádivas e contradádivas de bens e serviços –

possivelmente mais antigas do que podemos supor - que no caso das

relações com os brancos se institucionalizam no sistema de aviamento.

Como aponta a antropóloga Oiara Bonilla, o aviamento marcou

profundamente a vida econômica e social Paumari, a ponto de ter sido

incorporado e estar presente nos rituais e na cosmologia do grupo. A autora

ressalta a importância do comércio para os Paumari, ou o que ela chama de

“comercialização das relações”, isto é, a apreensão e inversão no plano

simbólico das relações sociais ou comerciais em relações de predação. Sua

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hipótese consiste em pensar que a relação comercial é a Relação por

excelência, para os Paumari. 49

Sem querer me aprofundar nessa questão levantada pela autora, o

fato é que no campo foi interessante verificar a “comercialização das

relações”. Os Paumari estão sempre trocando, se endividando, negociando,

comprando, etc. seja conosco, seja com os patrões, seja entre eles

próprios. Isso faz com que bens, serviços, ideias, etc. circulem

continuamente entre as aldeias e as famílias. E a castanha, produto com

alto valor no “mercado”, contribui de certa forma para que essas relações

sejam estabelecidas, permitindo que os Paumari tenham acesso a bens e

mercadorias que, ao entrarem nas aldeias, inserem-se em uma rede de

trocas, dádivas e contradádivas, fazendo girar a roda viva social Paumari.

As relações comerciais

Os Paumari “vendem” sua castanha para os regatões, comerciantes da

Vila da Foz e da cidade de Tapauá. Os regatões, durante todo período de

safra, sobem e descem o rio Tapauá e Cuniuá, visitando aldeias e

comunidades ribeirinhas, atrás de castanha pra trocar ou comprar - em

viagens que podem levar semanas. A relação Paumari com o regatão é

contraditória. São vistos como exploradores, que inflacionam o preço das

mercadorias ou contabilizam os preços de forma a levar vantagem -

aproveitando-se da “ingenuidade” dos índios -, mas sempre tratados como

afins e conhecidos em detalhes - aquele é mais “solidário” nas trocas;

aquele cobra mais caro, aquele vende mais barato; etc. Por outro lado, são

eles de fato os agentes sociais externos que mais próximos estão e mais

frequentemente se relacionam com os índios, conhecendo-os também pelo

nome, pelo parentesco, pelo caráter, etc.

Essa relação de trocas - face a face - é construída na base do

aviamento, que é uma variante linguística de adiantamento, ou seja, o

regatão ou o comerciante adianta ou avia mercadorias, ferramentas,

ranchos, etc. entrando assim em um ciclo de prestações e contraprestações

49 Ver BONILLA, OIARA. (2005). O bom patrão e o inimigo voraz: predação e comércio na

cosmologia Paumari. Mana, 11(1), 41-66.

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com o “freguês”, que sempre é paga com algum tipo de produto da floresta

– castanha, peixe, tracajá, etc. A lógica é que o “freguês” esteja sempre

endividado, que é uma garantia para o “patrão” de que vai adquirir algum

produto, pois de outra forma, haveria livre-arbítrio em vender a quem

melhor entendesse.

Se o certo é que “se a pessoa passa a dever a um regatão, pode

esperar que um dia ele vai voltar”, também é certo que mais dia menos dia,

um Paumari vai se endividar – seja por razões culturais/simbólicas (Bonilla,

2005), seja por necessidade material. É interessante pensar, como esses

laços relacionais entre os Paumari e os regatões, se tornam mais intensos

na medida em que aumenta a distância geográfica entre as aldeias e a foz

do rio. 50

Foi interessante observar que há diferenças na relação paumari com

comerciante regatão e com um comerciante da Foz. 51 Como disse acima, o

regatão é aquela pessoa que tem maior afinidade e proximidade com os

índios, que pode passar dias em uma aldeia, que conhece todo mundo, etc.,

portanto, percebe-se um tipo de relação que é motivada não só por

interesses racionais, mas também há uma relação mais aberta à

emotividade. Já com o comerciante que vive na Foz, relativamente distante

geográfica e socialmente, predomina uma relação mais “racionalizada”,

onde não há muito espaço para brincadeiras e nem muita conversa. - há em

alguns, desconfiança de ambos os lados. Há algumas exceções, como no

caso de seu Luis e dona Laurinda, que são evangélicos e preferem vender

50 Ver BONILLA, Oiara. (2011). Os Paumari dos rios Tapauá e Cuniuá. In: SANTOS, Gilton

Mendes (org.). Álbum Purus. Manaus: EDUA, p. 206-229.

51 O sistema de trocas com os comerciantes da Foz ocorre no mesmo esquema de

endividamento. O comerciante tem a sua cadernetinha, onde se anota tudo que foi comprado

e o valor final do débito correspondente, que será subtraído numa próxima vinda, mas nunca

saldado. Percebi no caso do seu Luis, que não sabe ler nem escrever, uma total falta de

controle de sua parte nas negociações com a castanha, tendo que confiar em tudo que o

comerciante anotava e calculava. Dada a minha presença ali, o comerciante fez os cálculos e

as anotações certinhas, mas verifica-se aí a fragilidade e a vulnerabilidade que os Paumari -

principalmente os mais velhos e analfabetos - estão sujeitos nessas relações.

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seus produtos aos comerciantes da Foz que também são evangélicos, que

também os recebem bem. Neste caso, observei que existe uma relaçãode

afinidade maior por conta dessa “irmandade religiosa”.

Ações e relações sociais

A ideia de aplicar conceitos como o de ação e relação social buscando

entrever os sentidos das ações dos indivíduos em torno da castanha,

permitiu observar o que faz (os motivos das ações) com que um Paumari vá

à floresta coletar castanha. Isso acabou revelando o lado “de dentro” da

ponta de uma cadeia produtiva (da castanha), que vai se estender e

movimentar outros indivíduos, com outras motivações e sentidos em suas

ações, podendo terminar em uma prateleira de supermercado em São Paulo

ou em Paris. Como mostra a tabela, são as necessidades básicas do dia a

dia que levam um Paumari a quebrar castanha na mata, desde comprar

alimento ou rancho, até comprar mercadorias diversas como xampu, calças

jeans, munição, etc.

Tabela 9 - Motivações que levam os Paumari a quebrar castanha. Fonte: Caderno de

campo, 2012.

Saldar dívidas com regatão, comerciante ou com outro Paumari

Trocar por rancho e mercadorias - xampu, roupas, munição, espingarda, etc.

Comprar combustível - que servirá para ir à Tapauá receber o dinheiro da

aposentadoria e visitar o filho que mora na cidade e que está doente

Comprar rancho de “resguardo” para a esposa, fraldas e roupas para o nenê que

nascerá em breve

Pagar serviço de um serrador que vai cortar a madeira necessária para reformar o

flutuante

Trocar por um porco (doméstico) - que depois virou churrasco de domingo e

pretexto para encontro de parentes e afins de diferentes aldeias

Comprar motor Honda 5,5 ou um motor a diesel

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Enfim, as ideias de ação e relação social propostas por Weber, neste

caso, permitiram seguir alguns itinerários de desejos e de ações Paumari e

perceber que por trás de uma canoa no rio que carrega castanha jaz uma

pequena ação social que irá envolver uma pluralidade de outros agentes,

com sentidos diversos subjacentes às suas ações.

O transporte

De acordo com os relatos dos Paumari, a coleta (ou a quebra) de

castanha na região ocorre de janeiro a março, sendo o forte da “produção”

em fevereiro. É o período da invernada amazônica; o nível dos rios está alto

e continuando a subir, inundando matas centenas de metros adentro –

formando os igapós, um dos ecossistemas mais fascinantes da Amazônia;

rios e lagos se tornam “tudo uma coisa só”, tornando impossível aos olhos

leigos distinguir nessa geografia o que é rio e o que é lago. Arrisco-me a

falar que se não fosse assim, o extrativismo da castanha entre os Paumari –

e em boa parte da bacia amazônica - se tornaria inviável. Isto porque a

água é um elemento essencial para transportar um produto pesado como a

castanha - uma saca de castanha pesa em média 80 quilos - sem precisar

mais do que uma canoa com um motor (ou mesmo um remo). O transporte

por terra por longas distâncias tornaria inviável a produção, pois não há

outro meio de transporte que não seja a canoa ou o barco*. As pequenas

canoas Paumari permitem ainda adentrar quilômetros de mata pelos

igarapés, acessando os castanhais mais distantes. O ambiente aquático é

nesse sentido um fator fundamental para que a castanha quebrada seja

transportada facilmente por longas distâncias, diminuindo o tempo de

viagem e possibilitando a coleta em locais de difícil acesso.

As distâncias

A distância geográfica entre os locais de habitação e os castanhais é

uma questão interessante de se pensar no que toca aos conceitos Paumari a

respeito da castanha. Os Paumari classificam as árvores de castanha em

dois tipos: as “de planta” e as “nativas”. As castanhas “de planta” são as

árvores plantadas ou cultivadas e que geralmente estão localizadas

próximas às aldeias ou ao redor das casas - espaços de transição entre o

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“doméstico” e o “selvagem”? Já as castanhas “nativas” são as árvores não

cultivadas (pelo ser humano), que existem por “si”, que são “dadas” pela

floresta, portanto, se incluem no domínio do “não domesticado”.

Interessante verificar que as castanhas nativas parecem estar associadas

aos castanhais mais distantes das aldeias, locais de difícil acesso, e,

portanto, espaços fora do domínio doméstico. São categorias interessantes

que levantam questões para futuras investigações como o grau de

domesticação (ou de humanização) das castanhas; a influência humana na

distribuição dos castanhais; se há diferenças no tipo de relação entre a

castanha “de planta” e “nativa”; se essa classificação pode ser parte de um

sistema conceitual e de pensamento perpectivista mais amplo; quão

“selvagens” são os castanhais nativos; etc. Enfim, perguntas suscitadas por

essa experiência no campo que, seja por falta de tempo ou de percepção,

não foram tão bem aproveitadas quanto poderiam.

As expedições de coleta

As áreas mais produtivas de castanha dentro do território Paumari

localizam-se longe dos locais de habitação. Uma expedição de coleta de

castanha pode levar vários dias dentro da mata (cinco dias ou mais),

dependendo da distância, da quantidade de castanha a ser quebrada, da

demanda do produto, da quantidade de pessoas, de comida, etc. Como não

foi possível acompanhar essas expedições mais longas, minhas observações

e registros estão limitados ao que foi possível observar em visitas curtas

(de uma manhã) aos castanhais mais próximos, e nas conversas com os

índios que iam ou chegavam dos castanhais. Segue um breve relato dessas

observações:

A quebra da castanha

O meio de transporte ao castanhal é a canoa com motor; de furo em furo,

entrando e saindo de igapós, chega-se à beira da terra firme; cada castanhal

tem os seus caminhos - que no linguajar local designa-se como “varedas” –

mais abertos ou mais fechados, cujo trajeto varia de acordo com a distribuição

das castanheiras dispersas na mata; a distância entre as castanheiras pode

variar, mas não chega a ultrapassar mais de um quilometro, em geral estão

relativamente próximas; ao chegar à castanheira, o coletor apanha - com as

mãos ou com o terçado - os ouriços (frutos) caídos no chãodentro de um raio

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que abrange a copa da árvore - que pode chegar a 50 metros ou mais - e vai

amontoando-os próximo à base do tronco da castanheira; repete-se o mesmo

procedimento até a última castanheira; o número de castanheiras em cada

“vareda” varia de acordo com o tamanho destas; na volta, o coletor “quebra” os

ouriços amontoados e coloca as castanhas dentro das sacas; para quebrar o

ouriço – fruto lenhoso e muito duro (devido à presença de lignina) - é preciso

desferir vários golpes com o terçado na parte superior do fruto, como se fosse

tirar sua “tampa”, exigindo força, destreza e equilíbrio, para que as sementes

que estão dentro não sejam também cortadas; quebra-se a castanha sentado no

chão da floresta; após abrir o fruto, pode-se ou retirar as sementes e colocá-las

direto numa saca - de fibra de plástico, com capacidade de armazenamento de

100 litros - ou ir amontoando-os abertos até terminar de quebrar todos para

então colocar as sementes na saca; os ouriços quebrados – chamados de

“quengas” ou “quengos” - vão sendo amontoados ao pé da castanheira, que

segundo um informante servem como adubo; no entanto, o acúmulo de água da

chuva dentro dos ouriços faz com que estes sirvam como focos de reprodução

de carapanãs (há muitos em volta das castanheiras), abrigo para formigas,

diversos tipos de insetos e mesmo para outros bichos como cobras; depois de

retiradas todas as castanhas dentro dos ouriços, o coletor coloca a saca nas

costas e segue até a próxima castanheira onde se repete o mesmo

procedimento.*

A castanha coletada e ensacada é então levada até a beira do igarapé e

embarcada na canoa; um trabalho que exige muita força e resistência - carregar

uma saca de 80 kg nas costas do “centro” até a “beira” não é uma tarefa pra

qualquer um. A produção é transportada à casa do coletor onde ficará

armazenada até ser vendida. O único tratamento que é feito antes da venda é a

lavagem das castanhas, mergulhando-as no rio em cestas de palha vazadas. O

grosso da produção é transportado e negociado na Foz (quando há combustível),

onde os preços das mercadorias são mais em conta do que o cobrado pelos

regatões.

O que se leva

O material levado ao castanhal é simples. Vale ressaltar que muitas

dessas coisas são itens que fazem parte do pacote de “aviamento” do patrão ou

do comerciante, um tipo de contrato informal que dá garantia de que o produto

será vendido a ele.

1. Terçado - instrumento fundamental para abrir trilhas, “roçar” os locais

de coleta, extrair fibras e cipós e principalmente quebrar o ouriço da castanha;

2. Camisa de manga comprida, calças - para se proteger dos mosquitos e

de outros insetos durante a quebra - ou bermuda;

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3. Botas ou calçados (na falta de botas) - segurança para andar na mata e

contra picada de cobra -, mas não são todos que tem bota ou calçado.

4. Rede, mosquiteiro e lona (quando há);

5. Espingarda e munição (utilizado para caçar e se defender de alguma

onça);

6. Sacos de fibra de plásticode cem litros ou mais, onde se armazena a

castanha;

7. Combustível; etc.

Alimento

O alimento levado é o básico: farinha de mandioca, sal e rancho, como

café, leite em pó e bolacha; quando há, leva-se “mixira” de peixe-boi ou de

caça. O restante arranja-se no próprio local: o peixe pescado nos igarapés, o

fruto coletado na mata e uma caça quando aparece algum animal.

Regime de trabalho

O trabalho com a quebra da castanha é familiar e predominantemente

feito pelos homens. Os filhos acompanham os pais desde a infância e

constituem uma força de trabalho fundamental, de forma que quando chega

o tempo da castanha as aulas nas aldeias são suspensas até o fim da safra.

Os jovens quando se casam - formando um novo núcleo familiar – passam

a coletar para si próprios, garantindo um ponto de castanha próprio e

desvinculando-se do trabalho com o pai – esse é um dado inferido que

precisaria ser checado. As mulheres também quebram, só que mais

comumente nos castanhais próximos às aldeias.

Uso e territorialidade dos castanhais

A forma como se dá o acesso aos castanhais dentro do território

Paumari é uma questão interessante que a princípio parece simples, mas

que trás muito pano pra manga. A questão pode ser colocada nos seguintes

termos: dentro das TIs Paumari, os castanhais e as castanhas são de

usufruto comum, porém o uso dos castanhais é regulado e/ou negociado

entre os grupos familiares. De que forma se dão essas negociações, a que

interesses e motivações obedecem, são questões que podem ser levantadas

para iniciar o diálogo e abrir caminho para futuras investigações. Observa-

se que a forma de acesso ao castanhal caracteriza-se pelo uso coletivo ou

privado.

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No primeiro caso, observado no Abacoadi, as famílias da aldeia se

reúnem no tempo da castanha e fazem investidas coletivas aos castanhais,

onde cada qual “quebra o que pode ou aquilo que dá”. Disse-me um

informante que quem convoca essas primeiras incursões é o chefe/cacique

da aldeia – no caso, seu Evangelista. Depois dessas primeiras investidas,

onde se coleta o máximo de castanha possível, cada família tem livre

acesso para voltar e coletar as castanhas que continuam a cair - mas que já

não são muitas. No entanto, ainda que haja essas áreas de uso comum no

Abacoadi, parecem existir outras áreas de castanhais de domínio das

famílias mais proeminentes da aldeia- uma informação que precisaria ser

checada.

Nos casos em que o acesso é “privado”, como no Manissuã, a coisa fica

um pouco mais complicada. Aqui os castanhais são divididos em pontos por

família. Cada ponto é composto de uma “vareda” – caminhos ou trilhas na

mata - com uma determinada quantidade de castanheiras (esquema que

remete às chamadas estradas ou colocações nos seringais), no qual uma

família tem direito de usar e fica responsável em zelar por ela. Um

castanhal pode ter um ou mais pontos dependendo do seu tamanho. É

interessante observar que os maiores castanhais (que podem chegar a ter

mais de 400 castanhas) estão localizados na TI do Lago Manissuã. 52

Segundo o relato de seu Luis, logo após a terra ser demarcada foi feita

uma reunião para dividir os pontos entre as famílias interessadas em

trabalhar com castanha. Não compreendi muito bem quais foram os

critérios de divisão utilizados, mas seu Luis parece ter tido um papel

importante nesse processo, por ter sido ele o responsável em dividir os

pontos por família – haja vista, ser ele uma liderança importante dentro das

aldeias. Contudo, existem divergências no Manissuã entre as famílias que

52 Os principais castanhais da TI Paumari do Lago Manissuã, com os respectivos chefes de

família responsáveis pela quebra de castanha na área, são: Capanã – Boró, Davi, Germano e

Nilson; Manissuã – Ademarzinho, Davi, Dário, Germano e Gerson; Peruano – seu Luis e

família; Assinharim – seu Luis e família. Todavia, não posso precisar quem são as pessoas

que realmente usam cada castanhal – isso acabou não ficando muito claro no trabalho de

campo –; possivelmente essa lista poderia se estender mais e incluir a quantidade média de

castanha quebrada em cada local.

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trabalham com a castanha, que alegam uma divisão desigual, de que seu

Luis se apossou dos castanhais maiores e mais produtivos - que a princípio

são áreas coletivas e de usufruto da comunidade –, sobre os quais se alega

no direito de receber parte da castanha quebrada por qualquer outra

pessoa. Além disso, dizem que o cacique se apropriou dessas áreas mais

distantes mesmo sem estar em condições físicas de quebrar a castanha,

quando poderia abrir mão delas para aqueles que estejam precisando mais.

O fato é que, por conta dessas e outras questões, as relações entre os

Paumari em torno dos castanhais no Manissuã são mais tensas quando

comparadas com o sistema de trabalho no Abacoadi.

O uso “privado” ou coletivo dos castanhais não é nenhuma novidade

quando comparados aos sistemas de acesso e uso dos castanhais em

âmbito regional. Mas chama atenção essa questão do domínio individual de

um castanhal dentro de uma terra indígena, onde a princípio os recursos

são de usufruto da comunidade. Por isso a necessidade de se colocar aspas

no “privado”, porque neste caso estamos tratando de um sistema de

territorialidade (domínio e controle de um recurso) regulado por relações de

poder e/ou de parentesco regidas dentro de uma lógica, que se aplicarmos

os conceitos de Weber, misturam tanto interesses racionais e emotivos,

quanto os que são dados pela tradição. Verificamos relações de trabalho

que refletem as de âmbito regional, como por exemplo, casos de “parceria”

ou de “meia” - em que parte da castanha quebrada fica nas mãos do “dono”

do ponto – mas que quando regidas por uma lógica de parentesco ou de

compadrio entre os núcleos familiares (genro e sogro, pai e filho, etc.),

podem nem sempre funcionar de maneira maniqueísta.

No vocabulário Paumari, castanhal é sinônimo de “produção” – assim

como os lagos de pirarucu -, e no discurso e ações deles aparecem como

um dos principais critérios a serem considerados quando se trata de

fiscalização e definição dos limites do território oficialmente demarcado. É

importante tentar entender quais são esses critérios que fazem com que se

assuma um castanhal como sendo de domínio Paumari. Tive a oportunidade

de acompanhar seu Luis num castanhal fora dos limites da TI - uma

“vareda” pequena com apenas dezessete castanheiras - que segundo ele,

era tudo “planta de parente” e por isso se via no “direito legitimado” de

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quebrar castanha lá dentro, mesmo estando fora do território demarcado e

mesmo sabendo que a área pertence ou também é utilizada pelos brancos.

Verificamos aí uma ação social territorialista motivada por interesses dados

pela tradição (com base num critério ecológico), mas que também

apresentam razões práticas (racionais ou emotivas), por ser uma área

próxima e acessível para uma pessoa de idade mais avançada, permitindo

que ele quebre sua castanha de forma mais independente. 53 Mesmo tendo

obtido permissão da FUNAI para coletar, foi interessante observar a postura

de seu Luis neste “espaço”. Durante a nossa permanência lá dentro – havia

um clima de enfrentamento por parte dele e de certa tensão no ar, como se

estivéssemos sendo vigiados por pessoas no gratas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados e a discussão apresentados neste relatório são bem

preliminares. Abrange informações sobre aquilo que eu considerei

importante, tendo em vista nossos objetivos, que merecem maior

profundidade de análise e de diálogo com a teoria – especialmente na

questão da castanha. Nesse sentido, creio ter sido este um primeiro passo

para um futuro artigo.

Pretendo ainda complementar este relatório com um ensaio

fotográfico, onde serão apresentadas as fotos da viagem junto com algumas

reflexões suscitadas pelas imagens.

53 Seu Luiz diz que não tem mais condições físicas de acompanhar o ritmo de trabalho nos

grandes castanhais - os pontos pertencentes a ele estão sendo quebrados pelos filhos e

genros -, daí ele ter solicitado à FUNAI quebrar castanha nesta área mais próxima de onde

mora, porém fora dos limites da TI. A FUNAI acatou “direito legitimada”, desde que fosse só

para coletar a castanha e não para habitar - morar só dentro do território demarcado.