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Repensando a Tradição e a Modernidade em Moçambique: uma abordagem
conceitual.
Fabiane Miriam Furquim
(Universidade Federal do Paraná)
Palavras chave: Modernidade; Tradição; Moçambique.
Resumo
O que se pretende nesta comunicação é trazer para discussão uma proposta
de análise dos conceitos e práticas que envolvem o debate tanto historiográfico quanto
sociológico sobre tradição e modernidade no continente africano, tendo um olhar mais
apurado em relação a Moçambique. Dessa maneira, e a partir de uma perspectiva
interdisciplinar, propõem-se discutir as questões sobre modernidade e tradição,
entendendo-as não apenas como conceitos inflexíveis e já concebidos, mas sim como
conceitos que podem ser operacionalizáveis e melhor analisados se pensados no
contexto histórico deste país e do continente de maneira mais geral. A partir dessa
perspectiva, será questionada a visão eurocêntrica que por muitas vezes coloca essas
duas categorias como binômios antagônicos, pensando então como elas se
constroem. Dessa forma, ao trazer para o debate uma perspectiva histórica que
abrange sociedades muitas vezes submetidas a um processo de modernização
forçada e cujas consequências ainda mostram as marcas indeléveis do seu passo,
poderemos evidenciar aspectos históricos e sociais que justificam a permanência da
tradição nesses locais não apenas como um elemento de resistência, mas sobretudo
como um elemento dinamizador das práticas culturais e sociais destas sociedades.
Práticas que transcenderiam o binômio discursivo e abririam novas possibilidades
heurísticas para a compreensão destas categorias.
Introdução
Os estudos a respeito da África por muito tempo se concentraram mais nas
suas relações a partir do colonialismo e com outros continentes, o que começou a se
modificar a partir dos anos 1950, como explana P.D. Curtin (1982). Essa perspectiva
é influenciada pela visão que os historiadores passaram a ter a partir desse período,
encarando que são fruto do seu próprio tempo e que essa característica influi
diretamente na sua escrita da História. Nesse sentido, os historiadores passaram a
rever as categorias silenciadas anteriormente pela historiografia, como as mulheres,
questões do cotidiano e também a África, encarando então o discurso de poder que
está envolvido nas escolhas pelos temas historiográficos. Essa quebra de narrativa,
inclui pensar a África a partir de novos métodos de construção do conhecimento, sobre
as pessoas e os povos que eram anteriormente deixados de lado. É a partir dessa
perspectiva que se desenvolve os estudos africanistas que, como aponta Feiermam
(1993), buscam questionar e abarcar essas novas categorias não apenas para
adicionar novas informações para a História, mas também para rever as narrativas e
a forma como são construídos, buscando então quebrar com um pensamento
exclusivamente linear, característico do eurocentrismo e das categorias
metodológicas ocidentais. Nas palavras do autor:
O estudo da história africana nos leva para além das formas de representação histórica, nas quais, a energia que conduz a narrativa tem sua origem na Europa, enquanto a história africana (ou latino-americana) fornece uma cor local, estabelecendo um cenário pitoresco para o drama central. Não há outro modo de se entender a história de Narwimba sem que se penetre profundamente nas raízes da longa história do desenvolvimento das formas sociais na África. (Feiermam, 1993:22)
Foi então a partir desse período que se passou a analisar a África a partir de
seus próprios processos, podendo assim amplificar os conceitos e pensá-los melhor
de acordo com a realidade africana. Entretanto, a maioria dos estudos sobre os
aspectos tradicionais africanos, mesmo com essa guinada nos estudos históricos
estão mais restritas às áreas da antropologia e a ciências jurídicas e políticas, e não
tanto na área histórica. Dessa forma é necessário analisar a tradição e modernidade
sob um olhar interdisciplinar perpassando não apenas a História, mas relacionando-a
com as Ciências Sociais, visto que essa perspectiva interdisciplinar é extremamente
necessária para se estudar temas africanos.
A ampliação dos espaços de pensamentos e criação intelectual abriu
possibilidades para que não apenas a História enquanto um conceito linear e uniforme
fosse revista, mas também possibilitou que conceitos amplamente utilizados tais como
modernidade e tradição fossem criticados e repensados, de forma a aceitar os
processos históricos nos quais foram construídos, bem como a ideologia de
superioridade racial e o eurocentrismo dos quais estavam cercados. O caso de
Moçambique é pertinente para este trabalho, visto que após a independência do país
em meados dos anos 70, houve uma política de modernização da sociedade através
de preceitos baseados no marxismo leninismo que visavam a emancipação dos
homens através da razão, de modo a deixar o obscurantismo1 para trás bem como as
práticas tradicionais, que, na visão do partido, eram obstáculos para a igualdade e
consolidação da revolução. Dessa forma é importante analisar de que maneira os
conceitos de modernidade e tradição são/foram operacionalizados em Moçambique.
Discussão
As políticas modernas não ficaram apenas no campo do pensamento, mas
foram levadas para além da Europa através do Imperialismo. Terence Ranger
(RANGER,1984) aponta que para a imposição da colonização a ideia construída de
“Império” foi culminante no processo de invenção de tradições na própria Europa para
a consolidação de suas próprias identidades. Os colonizadores se baseavam em
tradições inventadas europeias, principalmente em relação aos costumes e da cultura
dita erudita, para formar e se definir enquanto europeus e dessa maneira justificar a
sua posição hierárquica baseada em uma superioridade em relação às outras
sociedades. Assim, justificam através do discurso progressista as atitudes e violências
tanto físicas quanto morais em relação à colônia, bem como reforçavam a intenção
em fornecer um modelo hegemônico que se legitimasse em relação ao resto do
mundo. Da mesma forma, Ranger aponta que ao se depararem com a realidade
africana e não encontrarem semelhanças em relação a imagem (preconceituosa e
racista) que possuíam do continente, os administradores construíam tradições
africanas para a própria sociedade africana, e também europeia, de forma a
diferenciar e diminuir o valor dos modos de viver das sociedades localizadas no
continente. Uma forma de operacionalizar essas ideias era fomentar que nesses locais
os costumes eram rígidos e pouco flexíveis, cercados de misticismo. O que se percebe
é que para colocar em prática os projetos de dominação e exploração, não seria
suficiente somente o uso da força física, mas também se fazia necessário o uso de
1Para a FRELIMO o obscurantismo eram as práticas tradicionais, que utilizavam de elementos como
feitiços para resolver conflitos.
dispositivos que pudessem penetrar na subjetividade das pessoas, de forma a guiar e
regular não só as práticas, mas também as formas de pensar a sociedade.
Esse processo é melhor debatido na obra de Aníbal Quijano quando o autor
discorre sobre o conceito de colonialidade do poder, que aponta para uma
continuidade dos processos de colonização mesmo após as independências
(QUIJANO,2000). O autor se utiliza dessas balizas de conceitualização para as ex-
colonias da América Latina. É evidente que os processos de independência e até
mesmo de colonização dos dois continentes se deram de forma distintas, entretanto
pode-se perceber alguns aspectos de ordem subjetiva que são semelhantes tanto nas
colônias americanas quanto nas colônias africanas. O processo de imposição de
modos de viver e de organização da sociedade é visto em ambos os continentes, o
que tornaria pertinente o uso do conceito de colonialidade do poder.
Dessa forma, vemos que em ambos os continentes o discurso
desenvolvimentista, alimentado pela ideia de progresso e inovação, construído sob a
base de uma teleologia evolutiva, foi muito utilizado como um termo econômico e
simplificado, mascarando o impacto nas questões de relacionamentos político-sociais
dessa forma de ordenamento. Nesse sentido Quijano aponta que quando a partir do
século XIX, a ideia de desenvolvimento culmina com o fortalecimento do capitalismo
pensado como padrão de poder econômico e social desenvolvido mundialmente
revela três categorias de países: desenvolvidos, em desenvolvimento e
subdesenvolvidos, e coloca como característica definidora desses estágios não
somente as práticas comerciais, mas também as práticas culturais. Os diferentes
modos de organizações sociais que não sejam necessariamente pautados no modelo
de Estado-nação centrado em um poder positivo separados por instâncias oficiais de
representação (tribunais, parlamentos e etc.) eram vistos como atrasados e de menor
complexidade. Assim, a instabilidade que os países possuíam eram encaradas como
decorrência das práticas culturais que divergiam das europeias. Essa visão não
contempla os processos históricos que os diferentes países passaram para chegar
nessas configurações de organização social que foram impostas através do
colonialismo. Esse tipo de baliza gera e reforça discursos racistas e preconceituosos
que não contemplam os países fora do eixo europeu, vendo os diferentes tipos de
organização como tribais, regionais, atrasados e autoritários.
O que Quijano assinala, é a necessidade de pensar historicamente a
constituição dos países e de suas configurações sociais. Para isso, o autor levanta
algumas categorias de análise da formação da dita cultura europeia, tendo uma
atenção mais detalhada em relação à constituição dos Estados- Nação modernos na
Europa. Isso se deve ao fato de que o autor aponta que a sociedade capitalista é mais
desenvolvida em países que passaram pelo estágio moderno (aqui se pensa o período
histórico, e não o conceito), e que acabaram por culminar na centralização do Estado-
Nação2. Assim, o Estado- Nação é visto como um processo específico onde a
sociedade capitalista assume determinadas características democráticas
(relativamente limitadas) dentro de um espaço de dominação. Esse processo se deu
na França, por exemplo, com o combate ao Antigo Regime para a instauração de um
governo democrático e dito igualitário. Já em Moçambique essa relação entre Estado-
Nação e desenvolvimento ocorreria pela intermediação do colonialismo, e não como
um “processo natural” da própria sociedade. Dessa forma não se vê um processo de
democratização propriamente dito, mas uma imposição de uma forma de pensamento
sobre outra. Com isso, a elite dos países colonizados tanto no período colonial quanto
do período pós-colonial assume esse discurso de necessidade de centralização e
delimitação territorial e, ao invés de realmente democratizarem o poder, acabam por
reproduzir as antigas estruturas mesmo que sob a capa de uma retórica modernizante.
Muito da análise anterior demonstra a necessidade de se pensar historicamente
as configurações sociais dos países. Entretanto, as balizas temporais utilizadas ainda
se conformam dentro de um padrão eurocêntrico. Assim é necessário repensar essas
questões que dizem respeito da ideia de modernidade. Enrique Dussel, filósofo
argentino, aponta que existe uma diferença entre a modernidade e o mito da
modernidade (DUSSEL, 1994). Para ele, o primeiro se concentra em mostrar o sentido
emancipador da razão moderna articulando os conceitos de progresso, civilização e
domínio de tecnologia; artifícios esses que foram desenvolvidos devido ao processo
histórico o qual a Europa passou, tais como o Iluminismo, a Revolução Francesa e a
2 Aqui é necessário ressaltar que existiam incontáveis processos de centralização de poder estatal em
África mesmo antes do colonialismo. Entretanto essas questões foram por muitas vezes apagadas da
História do continente ou então reduzidas pejorativamente à ideia de conflitos étnicos e tribais deixando
a característica de Estados fortes e centralizados apenas para os processos de unificações europeus.
Revolução industrial que possibilitaram a consolidação dessa ideia específica de
modernidade. Entretanto, o filósofo aponta que essas questões acabavam por ocultar
os processos de dominação e violência que esse pensamento acabava exercendo
sobre as outras culturas, justificando-as a partir do discurso civilizatório. O segundo
conceito, o de mito da modernidade, apresenta a questão do pensamento da cultura
europeia como mais desenvolvida em relação as outras o que justificaria a sua ação
doutrinaria, inocentando a figura do europeu da violência que comete. Dessa forma, o
mito da modernidade seria a justificação das práxis irracional e violenta e não o
processo histórico temporal que alguns países do continente passaram. O que
devemos apreender não é uma dicotomia entre modernidade e mito da modernidade,
mas sim a questão que a modernidade é construída sobre o mito. Assim, ele não critica
a modernidade em si, nem a nega, mas critica a violência física, psicológica e
estrutural que foi exercida através dos dispositivos de dominação europeus, tais como
a escravidão, a diferenciação social pelo racismo e a colonização forçada que
destituía representantes locais de poder e também deslocava populações inteiras de
suas terras originais; políticas essas que foram implantadas nas colônias e ao mesmo
tempo que foram negadas e escondidas devido ao discurso justificatório da
modernidade e do progresso para estabelecer e legitimar as práticas do colonialismo.
Aqui é interessante levantar uma pergunta importante. Se a modernidade é um
fenômeno exclusivo europeu como dito anteriormente, como podemos pensá-la em
outras sociedades que não compõem este espaço e não percorreram este
“preâmbulo” histórico? Para refletir as diferentes realidades é necessário fazer um
exercício de deslocamento conceitual que permita pensar esses conceitos,
trabalhados a décadas por historiadores, sociólogos entre outros intelectuais, como
conceitos sem sentidos fixos. Vemos a possibilidade de deslocá-los temporalmente
para podermos discutir outras realidades. Enrique Dussel aponta para a ideia de que
a modernidade não nasceu necessariamente do processo histórico que vimos
anteriormente relacionado a Europa, mas sim desde a “descoberta” da América, em
1492. O que ele propõe com esse deslocamento é que a modernidade e a
colonialidade são projetos que acontecem simultaneamente, onde a modernidade é
um reflexo da colonialidade e da necessidade de diferenciação em relação ao outro
para poder então dominar e explorar esse outro entendido como inferior. Com isso, a
modernidade passa a ser também um fenômeno diretamente ligado com as colônias
e, principalmente, vemos que o imaginário em torno do mito possui ecos e influências
nos casos de violências e segregações raciais que ainda são visíveis nas ex-colônias.
Ao encararmos essa questão, pode-se pensar no conceito de Trans-Modernidade
usado por Dussel, que aponta para a superação do pensamento moderno. Nele a
violência colonial solapada no mito de modernidade é revelada levando em
consideração tanto as questões físicas quanto subjetivas que interferiram na
sociedade colonial. Ele nega a inocência do caráter civilizador do discurso e insere a
História das colônias dentro da História tida como geral, e não mais como um apêndice
desta. Para ele então é na subsunção dessas categorias que se pode superar o
discurso moderno (DUSSEL, 1994, p. 31).
Assim como o moderno, a questão da tradição e as conceituações feitas em
volta do termo também são rodeadas de ideologias. Muitas vezes esses dois aspectos
(moderno x tradicional) são vistos como duas categorias conflitantes, ainda mais
reforçadas pelo pensamento de progresso da modernidade. Como foi exposto
anteriormente com a junção histórica e co-realização de que acaba por incluir outros
agentes históricos na modernidade, podemos abrir espaço para se pensar na
modernização da tradição, pensamento esse explanado por Peter Geschiere
(GESCHIERE, 2006). Essa questão da modernização da tradição é vista como uma
possível saída para poder se estudar a modernidade africana. Nesse pensamento, a
resistência e permanência das tradições, tais como o lobolo3, a centralidade dos
chefes tradicionais e aos ancestrais, no caso de Moçambique por exemplo, podem ser
encarados como a própria modernidade africana, novamente aqui deslocando o
sentido fixo de modernidade e inserindo-o em outras realidades. Entretanto o autor
alerta para que ao pensar em uma modernidade característica africana, não haja um
processo de excepcionalização dos países e exclusão da História mundial, dessa
forma, ele aponta que ao pensar em uma modernização da tradição não significa
necessariamente pensar em uma retradicionalização da sociedade, mas sim repensar
3 O Lobolo, a grosso modo, consiste na cerimônia de casamento onde o noivo paga para a família da
noiva uma quantia em dinheiro ou em bens para “ressarcir” a família da noiva pela perda de um
integrante.
as categorias que a compõe. Analisando historicamente, percebe-se que a tradição
se adéqua às novas características, tais como a monetarização e os processos de
individualização como símbolos da modernidade, mas com a percepção sobre os bens
e o indivíduo permanecendo ambivalentes. Ao utilizar o conceito de
retradicionalização acaba-se por negar o esforço da população em participar das
mudanças modernas e controlá-las pensando apenas em uma visão vista de cima (os
novos agentes) para baixo, sem inserir as modificações e usos que as populações
criam. Assim, os novos imaginários que misturam aspectos relacionados ao entendido
como tradicional e ao concebido como moderno, não revelam uma saudade ou um
apego irracional, mas demonstram o esforço e pragmatismo da população em lidar
com as mudanças estruturais da sociedade. O autor aponta que este processo não é
exclusivo do continente africano, e que é passível de ser visto nas mais diversas
sociedades do mundo, inclusive na sociedade europeia, reforçando a necessidade de
pensar os trajetos históricos dos países para entender qual a razão de terem
desembocado nas configurações que se encontram.
O caso específico de Moçambique:
De forma prática, e pelo que é possível observar na revista Justiça Popular que
circulou por Moçambique durante a década de 80 como um boletim periódico do
ministério da Justiça, que, segundo os autores, buscava trazer as questões jurídicas
para a população, onde é possível perceber os preceitos do projeto modernizador da
Frelimo; o partido busca se organizar juridicamente, para a aplicação das leis com a
criação de Tribunais Populares, havendo então um maior controle da regulamentação
das práticas e das resoluções de conflito. Esse passo é importante de ser analisado,
visto que usualmente tais conflitos eram resolvidos principalmente pela figura dos
chefes tradicionais, que em alguns casos recomendavam a utilização de rituais, que
eram vistos pelo partido como atrasados e perigosos para a população, visto que
haviam sentenças de morte, amputações e exclusão social. Além do que, os chefes
aplicavam sentenças eles mesmos sem consultar o tribunal, devido o costume usual.
Os chefes tradicionais durante o período colonial permaneceram muitas vezes com
seus cargos, dessa forma a FRELIMO via neles não só a permanência do
obscurantismo, mas também das políticas coloniais. As ações eram vistas pelo
partido como:
Um problema de mentalidade, um problema de falta de esclarecimento, um problema de obscurantismo e ignorância. Um problema de sequelas da sociedade tradicional-feudal (encorajados pelo colonialismo português). (Revista Justiça Popular, 3, 1980:06)
A partir desse trecho, fica evidente que o processo modernizador da FRELIMO4
era baseado em formas de pensamento que se alinhavam com uma visão linear da
História, visando sempre o progresso da sociedade que culminaria em uma civilização
emancipada pela razão. Ao mesmo tempo, se observa a crítica ao sistema colonial,
que também era visto como atrasado, pois oprimia e explorava a população.
Baseado nesse contexto, é necessário discutir de que forma o conceito de
modernidade que influenciou as políticas da FRELIMO e a maioria das
conceptualizações, muitas vezes racistas e eurocêntricas, foram concebidas,
observando as devidas diferenças pensando na questão racial entre as duas políticas.
Também é necessário pensar o porquê da escolha da FRELIMO por esse discurso,
que reforçava e perpetuava o caráter opressor do discurso progressista em relação a
população. Se antes era a dicotomia do colonizador versus colonizado, agora se
observa o Homem Novo moderno versus o Homem tradicional. Em um primeiro
momento, pensaremos a modernidade a partir da visão dos europeus, e
posteriormente, de que forma ele foi aplicado e vivido nas colônias.
Ao pensar a Revista Justiça Popular, observa-se que mesmo com o discurso
de caráter legislativo sobre resolução dos conflitos pelos meios legais em
Moçambique, as pessoas ainda recorriam às práticas de ordem tradicional para
responder os seus conflitos sociais e pessoais muitas vezes misturando os dois
aspectos, o direito positivo e o consuetudinário. Dessa maneira, percebe-se que assim
como a modernidade a tradição também é um conceito flexível e que deve ser
pensando na sua configuração histórica e não atemporalmente como uma teoria
desligada das práxis. Como ex colônia, o país foi diretamente afetado pelo discurso
4 A Frelimo é a Frente de Libertação de Moçambique e foi fundada em 1962, com o título de movimento
nacionalista, a fim de combater o colonialismo português e alcançar a independência moçambicana. Ela permanece no poder até a contemporaneidade, sendo o atual presidente Filipe Nyusi. Sobre a história da Frelimo vide Obarrio (2014), Cabaço (2009) Mondlane (1969), Machel (1977), entre outros.
da modernidade debatido anteriormente e, durante o período socialista, o projeto foi
instaurado pela FRELIMO. Na revista Justiça Popular os discursos proferidos pelo
governo em suas matérias são extremamente explícitos no que diz respeito as ideias
de conduta baseadas na modernidade, principalmente na questão de civilizar e de
guiar os homens através da razão e da ideia de indivíduo em detrimento dos aspectos
tradicionais tidos como atrasados sempre priorizando o discurso de uma só nação,
um só povo que não seria ser dividido em “tribos”.
O discurso latente sobre a nação leva a alguns questionamentos: Como poderia
ser formada em um país recentemente saído da guerra de independência e que
passaria por uma guerra interna nos primeiros anos de independência? Na Revista
Justiça popular a unidade nacional é uma pauta recorrente para reforçar o projeto
homogeneizador de um só povo, que vai contra as “questões tribais” que segundo a
FRELIMO são inimigas do Estado moderno. Michel Cahen (CAHEN, 1994) discorre
apontando que a micro-elite moçambicana moderna foi um produto das características
da colonização portuguesa do século XX. Dessa forma, nos primeiros anos de
governo o plano não foi socializar o poder, mais sim nacionalizar e modernizar a
população vinculando a nação com um processo de modernização conservadora.
Com isso, o slogan “de Rovuma a Maputo, uma só nação” aludindo às fronteiras
físicas extremas do país (Norte a sul), não é só um discurso de unicidade, mas uma
negação das diferenças regionais da população que não são necessariamente
estabelecidas geograficamente pelas fronteiras do país marcadas no período colonial.
Assim, o discurso de união e de modernização da sociedade acabou por não criar
uma identificação da população com o projeto e muito menos uma democratização do
poder e das formas políticas de controle social, mas sim uma nova forma de opressão.
Essa forma de opressão se dá pelo fato do caráter eurocêntrico do debate sobre o
desenvolvimento e os parâmetros da ideia de progresso assumidos pela elite no
poder.
Considerações Finais
Após pensar brevemente a questão do processo autoritário que envolveu a
construção da nação em Moçambique, podemos retomar as elaborações teóricas de
Aníbal Quijano. Para ele, esses parâmetros de desenvolvimento que apontamos
anteriormente configurados com o capitalismo, gerou uma diferenciação entre raças
que foi utilizada como um instrumento de dominação associada a produção cultural e
intelectual nas quais naturalizam como mais desenvolvidas as práticas provenientes
da Europa e como subdesenvolvidas as provenientes de outras regiões. Em
Moçambique a diferenciação entre raças não pode ser pensada da mesma maneira
como Quijano pensou para a América Latina. Dessa forma, foram utilizadas outras
diferenças, tais como a escolaridade, o poder aquisitivo entre outras que são
alimentadas pelo padrão de colonialidade. Para esse autor, o colonialismo foi o
cenário histórico para a constituição da ideia de raça como instrumento de
classificação e serviu como um eficaz mecanismo de dominação juntamente com a
ideia de progresso, de valor do trabalho, meritocracia e outros. Esse pensamento se
mantém mesmo com o fim do período colonial, visto que foi naturalizado nas práticas
cotidianas da população das regiões afetadas pelo colonialismo.
A conjuntura do governo moçambicano era formada por uma elite, que, em sua
maioria, havia vivido algum tempo no exterior e que assumiram esse discurso de
desenvolvimento e progresso. Esse é o movimento de incorporação e de
naturalização do discurso eurocêntrico que Quijano define, entre outros, como
colonialidade do poder importante para entender a permanência do discurso moderno
colonial mesmo após o colonialismo.
A partir dessa discussão, observa-se de que forma a modernidade e a tradição
se configuram tanto no discurso historiográfico, quanto na própria práxis incorporada
pela FRELIMO e que pode ser vista nas diversas matérias que compõem a Revista
Justiça Popular, perpassando, de alguma maneira, esta ideia de colonialidade do
poder a partir da qual podemos problematizar a modernidade e seu discurso mítico e
a permanência após o período colonial, quanto a própria tradição e os discursos que
a compuseram como negativa e atrasada. Sendo assim, a pequena bibliografia
brevemente discutida aqui pode ajudar a procurar respostas se pensarmos em um
deslocamento temporal e numa maior flexibilidade dos conceitos de modernidade
incorporadas a uma crítica ao eurocentrismo e a violência negada do processo
colonial que, por sua vez, não tiram a responsabilidade da elite moçambicana no
processo histórico do país.
Referências
Fonte
Revista Justiça Popular- Boletim do Ministério da Justiça de Moçambique.
Exemplares do 1 ao 13. Disponível em:
http://www.mozambiquehistory.net/justica_popular.php. Acessado em 29 de junho de
2016.
Bibliografia
CAHEN, Michel. Os Outros: Um historiador em Moçambique, Basel, 1994.
CURTIN, P.D. “Tendências recentes das pesquisas históricas africanas e contribuição
à história em geral”. In: KI-ZERBO, Joseph. (coord). História Geral de África: I
Metodologia e pré-história de África. SP: Ática [Paris]: Unesco, 1982
DUSSEL, Enrique. El encubrimiento del otro: hacia el origen del mito de la
modernidad. Editorial Abya Yala, 1994.
FEIERMAN, Steven. “African histories and the dissolution of world history”. In: BATES,
R. H.;MUDIMBE, V. Y.; O’BARR, J. (editors).Africa and the disciplines: the
contributions of research in Africa to the Social Sciences and Humanities.
University of Chicago Press, 1993, pp.167-212.
GESCHIERE, Peter. Feitiçaria e modernidade nos camarões: alguns
pensamentos sobre uma estranha cumplicidade. Afro-Ásia. 2006
QUIJANO, Aníbal. "El fantasma del desarrollo en América Latina." Revista
venezolana de economía y ciencias sociales 6.2 (2000): 73-90.
RANGER, Terence. "A invenção da tradição na África Colonial." in: HOBSBAWM, Eric
e RANGER, Terence. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra (1984).