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REPRESENTAÇÕES DE DOCENTES SOBRE SEU PAPEL NO PROCESSO DE ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA: ATORES OU AGENTES? Alessandra Preussler de Almeida (UNISINOS) 1 [email protected] O presente trabalho é uma apresentação parcial da pesquisa a respeito da atuação profissional de professores de língua portuguesa no ensino fundamental de escolas públicas de uma cidade do Vale do Rio dos Sinos, RS, a qual decorre de um projeto bem mais amplo de formação continuada e cooperativa para professores graduados em Letras. Pretendemos identificar os fatores relevantes para a constituição do docente como um ator no processo de ensino, a partir da observação do trabalho real (Bronckart, 2006) desenvolvido com turmas dos anos finais do ensino fundamental. Para abordar a realidade do trabalho educacional, valemo-nos do arcabouço teórico-metodológico do Interacionismo Sociodiscursivo, o qual lança o olhar científico para as questões pertinentes ao agir vinculadas à situação de trabalho. Sob essa perspectiva, entendemos que o trabalho de ensinar requer a incorporação, por parte dos trabalhadores da educação, dos atributos, do preparo e do esforço necessários para a execução do agir nas relações de sala de aula, o que os torna atores no contexto em questão. Para Bronckart (2008), o termo ator indica aquele que possui capacidades, motivos e intenções, enquanto o termo agente está associado àquele que é desprovido de tais atributos. Para que o professor possa assumir o seu papel de ator na interação de sala de aula e para que os alunos desenvolvam as habilidades linguísticas da leitura e da escrita, propomos que o ensino de língua na escola aconteça através de um projeto pedagógico embasado no conhecimento e na produção de diversos gêneros textuais. Com o intuito de apresentar parte da pesquisa que esta em processo, trazemos um recorte que se refere à terceira dimensão do plano geral de pesquisa bronckartiano, o trabalho representado pelos actantes, que se configura pela avaliação do trabalho feita pelos próprios profissionais, através de uma entrevista respondida antes da aplicação do projeto pedagógico. A entrevista faz com que os professores reflitam e comentem sobre sua prática, sobre concepção de língua e de 1 Doutoranda da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS.

Representações de docentes sobre seu papel no processo de ensino de Língua Portuguesa: atores ou agentes?

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REPRESENTAÇÕES DE DOCENTES SOBRE SEU PAPEL NO PROCESSO DE ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA: ATORES OU AGENTES?

Alessandra Preussler de Almeida (UNISINOS)1

[email protected]

O presente trabalho é uma apresentação parcial da pesquisa a respeito da atuação profissional de professores de língua portuguesa no ensino fundamental de escolas públicas de uma cidade do Vale do Rio dos Sinos, RS, a qual decorre de um projeto bem mais amplo de formação continuada e cooperativa para professores graduados em Letras. Pretendemos identificar os fatores relevantes para a constituição do docente como um ator no processo de ensino, a partir da observação do trabalho real (Bronckart, 2006) desenvolvido com turmas dos anos finais do ensino fundamental. Para abordar a realidade do trabalho educacional, valemo-nos do arcabouço teórico-metodológico do Interacionismo Sociodiscursivo, o qual lança o olhar científico para as questões pertinentes ao agir vinculadas à situação de trabalho. Sob essa perspectiva, entendemos que o trabalho de ensinar requer a incorporação, por parte dos trabalhadores da educação, dos atributos, do preparo e do esforço necessários para a execução do agir nas relações de sala de aula, o que os torna atores no contexto em questão. Para Bronckart (2008), o termo ator indica aquele que possui capacidades, motivos e intenções, enquanto o termo agente está associado àquele que é desprovido de tais atributos. Para que o professor possa assumir o seu papel de ator na interação de sala de aula e para que os alunos desenvolvam as habilidades linguísticas da leitura e da escrita, propomos que o ensino de língua na escola aconteça através de um projeto pedagógico embasado no conhecimento e na produção de diversos gêneros textuais. Com o intuito de apresentar parte da pesquisa que esta em processo, trazemos um recorte que se refere à terceira dimensão do plano geral de pesquisa bronckartiano, o trabalho representado pelos actantes, que se configura pela avaliação do trabalho feita pelos próprios profissionais, através de uma entrevista respondida antes da aplicação do projeto pedagógico. A entrevista faz com que os professores reflitam e comentem sobre sua prática, sobre concepção de língua e de ensino de língua materna, sobre currículo escolar, sobre metodologia de ensino e sobre avaliação discente.

PALAVRAS-CHAVE: ensino de língua materna - Interacionismo Sociodiscursivo, trabalho representado

Introdução

O presente trabalho está diretamente atrelado ao projeto Por uma formação continuada cooperativa para o desenvolvimento do processo educativo de leitura e produção textual escrita no Ensino Fundamental2, desenvolvido pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da UNISINOS, o qual conta com o apoio da CAPES/Programa Observatório da Educação. A intenção da pesquisa é de produzir conhecimento e proporcionar interação no processo educativo com foco na leitura e na escrita, em escolas do ensino fundamental e público de um município do Vale do Rio dos Sinos. Tal iniciativa prevê um programa de formação continuada, cooperativa e reflexiva, com o objetivo de qualificar e renovar o trabalho docente através da interação do letramento

1 Doutoranda da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS.2 O projeto é coordenado pela Profª. Drª. Ana Maria de Mattos Guimarães.

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acadêmico dos formadores e a prática social dos professores e seus alunos, com o desenvolvimento de propostas didático-pedagógicas de gênero, que favoreçam a qualificação do ensino e o aumento dos índices de aprovação.

O ensino e a aprendizagem têm sido amplamente abordados por leigos, que criticam os baixos índices de aprendizagem dos alunos no nosso país; pelos professores, que enfrentam inúmeras dificuldades para desenvolverem bem o seu papel; por pesquisadores, que apontam as deficiências da nossa educação à luz de diversas correntes teóricas. Considerando que os problemas de aprendizado estão diretamente relacionados às condições de ensino a que são expostos os alunos, é premente que o trabalho educacional precisa ser ainda mais o alvo das atenções de educadores e pesquisadores, com o intuito de transpor os obstáculos que impedem o sucesso na aprendizagem dos nossos alunos.

Bronckart (2006, p. 207) aponta a necessidade de desviar o olhar científico e didático que esteve voltado para os alunos e seus processos de aprendizagem, e redirecioná-lo para a realidade do trabalho educacional, ou seja, o que requer a atenção dos pesquisadores é a ação dos professores em sala de aula e como ela repercute no processo de aprendizagem dos alunos. O autor ressalta a necessidade de verificar quais capacidades e conhecimentos estão implicados no fazer docente e que viabilizam as especificidades inerentes da sala de aula, com o intuito de atender às demandas de aprendizagem e de verificar as possibilidades de sucesso, mas sem perder a ciência de que é uma empreitada desafiadora e também recompensadora. Segundo Bronckart (2006, p. 227), o professor é um ator ao exercer a sua função, no sentido de que é ele que conduz

(...) um projeto de ensino predeterminado, negociando permanentemente com as reações, os interesses e as motivações dos alunos, (...) considerando múltiplos aspectos (sociológicos, materiais, afetivos, disciplinares, etc.), frequentemente subestimados e que, portanto, constituem o “real” mais concreto da vida de uma classe”.

Ao compreender as formas de agir do professor, recorremos ao aporte teórico-metodológico do Interacionismo Socio-Discursivo (ISD), que tem como especificidade a questão de que “o problema da linguagem é totalmente central ou decisivo, tanto no desenvolvimento humano quanto em relação aos conhecimentos e aos saberes em relação às capacidades do agir e à identidade das pessoas” (Bronckart, 2006, p. 10). Para compreender melhor as questões sobre o papel da linguagem no desenvolvimento humano para o agir, Bronckart toma como pressuposto que as intenções, as motivações, as capacidades e a responsabilidade dos indivíduos podem ser apreendidas através de interpretações ou avaliações de textos feitas por observadores externos (pesquisadores) ou pelos próprios pesquisados. Nesta perspectiva, considera-se que o agir verbal (agir linguageiro) está sempre associado ao agir não-verbal (agir geral) (Bronckart, 2006). Ao verbalizar sobre o trabalho, emerge o papel crucial da linguagem que acessa à memória, organiza, comenta, regula as ações e as interações humanas. Isso tudo é possível uma vez que a linguagem extrapola a condição de um mero código, pois ela é uma atividade, uma prática relacionada ao discurso.

Para analisar os dados, valemo-nos do arcabouço teórico do plano geral de pesquisa (Bronckart, 2008) e suas dimensões do trabalho, mais especificamente, a terceira dimensão: o trabalho representado pelos actantes. A partir dos textos produzidos por professores, orientamo-nos pelo modelo de análise textual intitulado arquitetura textual (ou folhado textual), uma vez que toda interação se constitui em um texto que pertence a um determinado gênero textual. Este estudo faz um recorte das entrevistas sobre o trabalho docente realizadas

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com as duas professoras, nas quais analisamos alguns elementos linguísticos dos níveis ou camadas da arquitetura interna que se mostram reveladores da representação que as professoras fazem do seu próprio agir. Contamos com os mecanismos enunciativos do texto (tomada de responsabilidade enunciativa) que favorecem a coerência pragmática do texto, esclarecem os posicionamentos enunciativos e expressam avaliações – modalizações - sobre o conteúdo temático, bem como trazem as vozes que se responsabilizam pelo enunciado (Bronckart, 1999/2006).

No discurso dos professores sobre o seu trabalho, de imediato emergem questões que demonstram os conflitos intrínsecos ao cotidiano escolar, o que é tratado pela Clínica da Atividade quando Roger, Ruelland e Clot (2007) expressam a necessidade de estender a análise do desenvolvimento da atividade profissional para além da ação realizada, uma vez que esse é um “lugar de conflitos entre e no interior de diversos pólos dentro dos quais aquele que atua dirige a sua atividade” (p. 134). Existem três pólos que estruturam os conflitos os quais se referem ao objeto de trabalho - “simultaneamente os conhecimentos, as afinações e as práticas destinadas a serem apropriadas pelos alunos, as modalidades de ligação a si próprio, aos outros e ao mundo que estas práticas supõem para os alunos, e que se trata de fazer adotar” (2007, p. 134); à atividade dos outros participantes com relação ao mesmo objeto – a atividade dos alunos, mas igualmente daqueles que organizam os documentos reguladores do ensino, dos gestores, dos colegas, da hierarquia pedagógica e dos pais, e outros; e a si mesmo – a maneira como lida com os saberes científicos, escolares, pedagógicos, com a escola e com a sociedade.

Este exercício reflexivo seleciona questões pertinentes à prática docente emergentes de entrevistas feitas com dois professores de Português de anos finais do ensino fundamental de escolas públicas, os quais comentam sobre as suas experiências no ensino de língua materna3. A partir dos seus comentários, destacamos alguns tópicos sobre o trabalho docente para serem discutidos, com o propósito de dialogar com a literatura sobre educação e linguagem e vislumbrar possibilidades de lidar com as questões que angustiam os professores.

1. Um olhar inicial para os dados: elementos enunciativos

Ao olhar para os dados gerados a partir da entrevistas, identificamos alguns elementos enunciativos (vozes e modalizadores) para serem destacados nesta breve análise inicial. Tanto as vozes quanto a modalizações podem revelar como o enunciador, no caso o docente, assume o enunciado e como se constitui como tal. Parece-nos adequado atentar para as marcas de pessoa, pois segundo Machado e Bronckart (2009, p. 59), este fator evidencia “como o texto representa o enunciador no seu agir representado”. Além disso, é possível colocar em evidência o estatuto individual ou coletivo (em diferentes graus) que é atribuído a um determinado agir quando se usa diferentes pronomes pessoais alternadamente (eu, a gente, nós).

D4.: Olha, pra mim, ensinar é fazer eles chegarem e... facilitar pra que eles entendam determinada, determinado conteúdo. Como eu vou explicar... por exemplo, tem um texto lá pra interpretar. Se eu for falando direto, o que eu achei do texto, eu vou dar a minha interpretação, então eu procuro, nas minhas aulas, fazer com que eles cheguem à conclusão. Então, às vezes, eles

3 Foi utilizada uma entrevista semiestruturada com duração de mais de 60 minutos para o levantamento de dados.4 As duas professoras são identificadas como D. e S.

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vêm me perguntar uma coisa, daí eu devolvo outra pergunta pra eles pensarem porque é difícil... o mais difícil, eu acho, é fazer eles pensarem, é eles chegarem à conclusão porque é muito mais fácil tu dares a resposta, né, conduzir pra que eles consigam encontrar a resposta.

Ao conceituar o que é ensinar, a professora D. se remete ao seu agir em sala de aula e faz soar a sua voz quando utiliza o pronome eu consecutivamente, ou seja, assume uma postura de quem se responsabiliza pelo que é anunciado e demonstra o controle do papel docente, especialmente, ao desafiar seus alunos para que eles consigam superar a sua maior dificuldade: que é fazer com que eles sejam autônomos e reflexivos. A introdução do pronome tu, afasta o procedimento de dar a resposta que é rejeitado pela professora. Desta forma, o pronome referente indicativo da segunda pessoa do singular representa qualquer outro professor que talvez faça o que a professora entrevistada diz não fazer.

O excerto da fala da professora S suscita uma análise mais apurada, no entanto, destacamos alguns elementos que refletem a postura da entrevistada como participante de um projeto de formação continuada para professores, no qual há a expectativa de que os professores sejam participativos e autônomos, bem como levem essas características para a sua prática em sala de aula. A professora S. comenta e avalia as suas expectativas sobre a elaboração dos projetos didático-pedagógicos que foram elaborados por cada professor, depois de alguns meses de encontros semanais em que se estudam questões relacionadas à prática docente. Ao dizer achei, lança mão das modalizações epistêmicas (Lousada, 2006) para demonstrar que não está de acordo com o que está sendo proposto:

S.: Bom no projeto, foi assim: eu entrei assim, como é que é... com aquela expectativa de criança... mas aí teve um pouquinho de decepção ao longo do processo, né... depois assim eu achei que nós haveríamos ter mais apoio dos outros, achei que não era eu fazendo o projeto, mas seria eu e mais um grupo... eu achei que todos iriam fazer um projeto então pra nós apresentarmos juntos... e aí a gente fosse fazer aquela coisa, né, justamente o fora do comum que eu estava esperando assim, né. Aí quando é, ah, não é tu mesma que vai fazer, tu mesma que corre atrás, tu mesma que vai bolar tudo... eu meio que pensei: ah, que coisa! Até porque eu fiquei de certa forma insegura, bem insegura, né. No começo, eu estava completamente perdida... e aí eu fiquei meio decepcionada com tudo, porque daí, continua sendo eu então né...

A voz da enunciadora é identificada pelo pronome eu como quem critica a dinâmica das atividades desenvolvidas no projeto em questão. Também, ao empregar nós, eu e mais um grupo e a gente, assume a sua decepção e insegurança ao perceber que seu desejo de contar com o apoio coletivo constante para a elaboração das suas aulas não se realizaria. Por sua vez, a sequência de orações com o pronome tu se refere ao agir esperado de qualquer um dos participantes do projeto e que é pertinente ao metiê do professor, mas que não é assumido pela professora S., que também não percebe que a iniciativa de fazer as proposições pedagógicas integra não apenas a proposta para aquele grupo de formação de professores, mas da sua prática cotidiana na escola.

2. Conflitos emergentes no discurso

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Entre os conflitos expressos pelos professores entrevistados, surgem questões relacionadas ao objeto de trabalho, tais como: interpretação e produção de textos são importantes, mas “será que eu não deveria dar um pouco mais de gramática” (professora D.); é preciso eleger os conteúdos a serem trabalhados e que sejam significativos para aqueles alunos naquele contexto; e o que se ensina na escola pode ser muito distante da realidade e das necessidades dos alunos.

A respeito dos conflitos gerados devido aos demais participantes, é possível identificar que:

os alunos têm dificuldade de compreensão de textos, não querem pensar e estão acostumados com respostas prontas, “ Os alunos têm muita dificuldade de compreender, entender os textos...”;

eles são desinteressados e há falta de vontade para fazer as atividades, “Eles não gostam de muita coisa, tudo que se propõe é ruim inicialmente, depois alguns até mudam de idéia.”;

há indisciplina muitas vezes que atrapalha o aproveitamento escolar, “Um dia é bom, um dia é ruim, fazem de tudo pra me incomodar, mas não é sempre”;

e faltam recursos materiais para que as aulas sejam mais interessantes, “A dificuldade é que não tem recursos materiais para fazer aulas mais interessantes”.

Quando os conflitos estão ligados a si mesmo, ou seja, ao professor, percebe-se que:

o professor se sente solidário com os alunos diante das dificuldades sociais a que são expostos e, ao mesmo tempo, reconhece sua impotência por não poder intervir nessa realidade, “ Às vezes tu até entende porque eles vem aqui e não querem aprender... é um círculo vicioso, é um monte de coisas, assim que não é só a escola que vai dá, né, a escola assim é só uma parte, mas tem toda uma estrutura que tem que ser mudada”;

a responsabilidade de refletir sobre o uso da língua materna recai totalmente para o professor de português, “Eu acho que não cabe só pra gente que fala, que corrige a ortografia, que eles escrevam o nome com letra maiúscula... É uma cultura tão forte de só a gente cobrar... Eles estavam se recusando a fazer (texto na aula de matemática) porque texto é responsabilidade... porque texto é só na aula de português.”

muitas vezes, o professor prepara uma aula e a receptividade não é unânime, “Nem sempre dá pra atingir todo mundo...” ;

também outra questão que angustia é a falta de domínio dos meios digitais ou a dificuldade para acessá-los, o que impede de adotar outros meios para qualificar sua aula “Ah, a sala de informática, esse ano está difícil de usar porque como não tinha professor, a professora de lá tinha que atender as outras turmas...”

Não há como evitar o conflito e, ao deparar-se com as situações conflituosas, o professor precisa identificar o seu problema e buscar soluções para resolvê-lo. A quem

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recorrer? Onde buscar? Como amenizar os conflitos e gerir essas dificuldades, especialmente aquelas que são do alcance do professor?

Os docentes podem se abastecer de soluções históricas no gênero profissional (sugerido por Clot, inspirado por Bakhtin), o qual é “um patrimônio coletivo, tecido de suporte incorporado como recurso e que dá resposta à atividade pessoal e permite a quem atua responder à profissão” (2007, p.135). Por sua vez tal patrimônio é “o produto da história das soluções que permitiram coletivamente libertar-se dos conflitos de atividades, do stock de ma-neiras de fazer, técnicas e simbólicas, acumuladas, fossilizadas na história de uma profissão”. (2007, p.135). Os autores indicam a validade dos debates profissionais e da confrontação das experiências entre os docentes, a fim de que a profissão possa se adaptar às inovações e necessidades. Justamente a proposta de formação continuada e cooperativa é uma possibilidade para que se criem oportunidades a fim de que a gestão dos conflitos e dos dilemas não se restrinja apenas ao indivíduo uma vez que, muitas vezes, não há tempo nem com quem compartilhá-los no cotidiano da escola. Acredita-se que o gênero profissional dificilmente é transformado se não houver o momento de troca e de análise para que o coletivo partilhe soluções e estas sejam incorporadas pela instituição, para serem devidamente prescritas, documentadas, e para que novamente retornem aos professores e sejam postas em prática pelo coletivo.

Um dos comentários da professora D. expõe como o fato de trabalhar sozinho desmotiva e desfavorece a implementação de novas possibilidades, pois segundo ele: “A tendência da gente é reproduzir o que a gente viveu, então pra tu mudares certas práticas, é complicado, mas acho que o projeto está sendo bem legal porque gradualmente eu já estou mudando algumas coisas..”. Sem dúvida, a cooperação entre os participantes do processo é um elemento que diferencia e que repercute de forma positiva no trabalho do professor de língua que, muitas vezes, sente-se sozinho na sua escola e não consegue trocar ideias e experiências com os seus colegas, e como consequência disso, os alunos perdem, o professor perde, uma vez que, segundo Wells (2009, p. 39), a qualificação do trabalho docente passa pela colaboração que se dá através do que se faz e o que se diz conjuntamente: “... the quality of their experience is dependent on ‘the company they keepand what they do and say together”.

3. Pesquisa e envolvimento dos participantes

A possibilidade de tratar de questões que nos sensibilizam, que se referem ao nosso trabalho e às nossas crenças, que fazem parte do nosso cotidiano, motiva e dá sentido para destinarmos nosso tempo à pesquisa sobre o trabalho do professor. Wells (2009) traz uma questão muito relevante ao questionar o quanto as pesquisas em educação, que visam à qualificação dos processos de ensino e de aprendizagem, realmente conseguem contribuir para melhorar as práticas dos participantes da pesquisa. O projeto do qual estamos participando tem compromisso com o sucesso na aprendizagem e, desde que iniciou, traz possibilidades de atingir os envolvidos neste estudo, na medida que garante a formação contínua de seus participantes através de insumo teórico e reflexão sobre suas práticas, bem como confere aos docentes a condição de pesquisadores com a finalidade de aguçar o olhar para a sua sala de aula e ampliar as condições de desenvolvimento da leitura e da escrita de seus alunos.

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O professor assume o seu papel de pesquisador do seu próprio trabalho, olha para o seu objeto de pesquisa, que é o aluno e sua aprendizagem, com o intuito de compreender a situação da sua sala de aula, que é única, cujos conflitos não podem ser resolvidos através de fórmulas ou modelos prescritos em manuais. Da mesma maneira, é possível propor que o aluno também se torne um pesquisador de questões que são pertinentes à sua vida e fique responsável pelo seu conhecimento, ao indagar sobre o quê e como está aprendendo. Esse comportamento inquiridor e reflexivo do aluno é incentivado pela postura do professor que questiona, sugere, estimula, desafia, elogia...

4. Linguagem e interesse

Muitas vezes, ouvimos o que a professora S. diz: “Os alunos não se interessam por nada”. O que fazer então para estimulá-los? A linguagem exerce um papel fundamental no desenvolvimento intelectual, social e emocional das crianças uma vez que é a interação entre crianças ao desenvolverem atividades conjuntas com o adulto como mediador, que ocorre a apropriação de conceitos, habilidades e valores próprios da sua cultura (Vigotsky, 1978). Neste processo, também está presente o que Bakhtin (1986) chama de dialogismo em que os indivíduos assimilam as palavras e as ideias do outro. Enfim, é consenso que o diálogo com outras crianças e adultos desencadeia recursos para a constituição do pensamento individual ou discurso interno, segundo Vigotsky. Por isso, a importância da rodinha, que ocorre diariamente na educação infantil e que desaparece no decorrer do ensino fundamental. É possível resgatar a dinâmica desta atividade para produzir seus efeitos positivos na aprendizagem de alunos do ensino fundamental.

Existem estratégias, segundo Wells (2009, p.46), para ampliar as condições de diálogo sobre as questões pensadas coletivamente, as quais podem favorecer as oportunidades de aprendizagem. Entre elas, estão: eleger tópicos que interessem aos alunos; incentivar a expressão de ideias, opiniões e experiências de cada aluno; estimular o hábito de ouvir e criticar; fazer com que a avaliação seja uma tarefa compartilhada. É interessante que Dewey, em 1938 (em Experience and Education), já propunha que houvesse a preocupação de escolher temas que despertassem o interesse dos pupilos ou que apresentassem questões que desafiassem a sua exploração. Portanto, não se trata de sempre e apenas ancorar o trabalho de sala de aula no que os alunos querem fazer, mas de trazer assuntos que instiguem conhecê-los porque são significativos para o grupo de alunos ou para a comunidade.

Os dois professores reproduzem o que muitos outros comentam a respeito do descaso de alguns alunos, senão todos, diante das atividades escolares, que são cumpridas por alguns para se “verem livres daquilo” ou são rechaçadas por outros (“É muita mão, sora!”) que deixam de completá-las. Contudo, também é possível verificar que o investimento em um projeto significativo pode surpreender, segundo a professora D.: “...saíram coisas que eu pensei que não fossem sair. Saiu melhor do que eu esperava. Eu acho que o fato é que eles gostam dessas histórias de detetive, que eles adoram contar tragédia, eles amam contar tragédia”. Portanto, o que se quer propor é que se retomem atividades que favoreçam o aprendizado através de questões que suscitem o interesse dos alunos e que viabilizem a expressão de suas ideias e opiniões.

Wells (2009, p.48) traz uma questão determinante para o andamento e o planejamento das aulas de qualquer disciplina e que, muitas vezes, devido às demandas do cotidiano escolar, não é levada em consideração: ouvir. O professor precisa ouvir o que os alunos têm a dizer para poder conhecê-los, questioná-los e levá-los a refletir sobre o que estão aprendendo e a arriscarem-se a ir além dos seus conhecimentos. Assim como os alunos

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também precisam ouvir a si mesmos e perceberem que o que dizem é importante e responsabilizarem-se por aquilo que é dito; além disso, é um exercício também ouvir o outro para saber o que ele tem a dizer, que é uma postura que confere respeito à situação e aos participantes. A valorização e o aperfeiçoamento dessa habilidade pode ser um fator crucial para que as interações em sala de aula sejam favoráveis para o aprendizado.

Considerações finais

Existe a premência da investigação do trabalho docente para compreender sua complexidade e fazer proposições para qualificar a atuação dos profissionais da educação e produzir resultados favoráveis ao aprendizado. O presente artigo mostra um panorama breve da pesquisa iniciada recentemente a respeito da atuação profissional de professores de língua portuguesa de uma rede pública de ensino. Ao pensar na docência, apostamos que é possível identificar elementos que fortaleçam as práticas profissionais e indiquem quais os caminhos para que o professor possa ser um ator do seu próprio agir, ainda que circunstâncias externas adversas, que fogem da alçada do professor, façam parte do cotidiano escolar.

A formação continuada e cooperativa tem sido um das possibilidades para que os professores encontrem uma oportunidade de interação, de incorporação dos atributos, do preparo e do esforço no sentido de qualificar a sua prática, conferindo-lhes autonomia para a elaboração de um projeto pedagógico embasado no conhecimento e na produção de diversos gêneros textuais. Espera-se que esta empreitada desafiadora repercuta diretamente no sucesso de aprendizagem dos alunos e, consequentemente, na elevação dos índices de aproveitamento escolar.

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