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IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64 REPRESENTAÇÕES SOBRE ANTROPOFAGIA INDÍGENA: ANÁLISE DO LIVRO DIDÁTICO PARA ENTENDER A HISTÓRIA Diogo Francisco Cruz Monteiro (Mestre em Antropologia UFS) email: [email protected] Kléber Rodrigues Santos (Mestre em Educação UFS) email: [email protected] Introdução As pesquisas recentes sobre as formas de representação dos índios nos livros didáticos de história têm revelado uma ampla gama de possibilidades de análise para a temática. Elas se preocupam, entre outros aspectos, com as modalidades de adequação do conteúdo destes materiais ao que está prescrito na legislação educacional brasileira, principalmente, em seus artigos que tratam do respeito à diversidade cultural. Os resultados destas investigações revelam uma mudança de perspectiva dos autores de livros didáticos na abordagem sobre as populações indígenas. Optando por metodologias que privilegiam a leitura associada ou isolada de textos escritos e imagéticos, e apoiando-se em vasta documentação, séries de coleções didáticas publicadas no Brasil, pesquisadores atestam a passagem gradativa de visões etnocêntricas para percepções relativistas acerca das culturas indígenas.

REPRESENTAÇÕES SOBRE ANTROPOFAGIA INDÍGENA: …encontro2014.se.anpuh.org/resources/anais/37/1424130350... · 2015-04-17 · Tendo em vista o aumento do espaço dedicado aos povos

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IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE

O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

REPRESENTAÇÕES SOBRE ANTROPOFAGIA INDÍGENA:

ANÁLISE DO LIVRO DIDÁTICO PARA ENTENDER A HISTÓRIA

Diogo Francisco Cruz Monteiro (Mestre em Antropologia – UFS)

email: [email protected]

Kléber Rodrigues Santos (Mestre em Educação – UFS)

email: [email protected]

Introdução

As pesquisas recentes sobre as formas de representação dos índios nos livros

didáticos de história têm revelado uma ampla gama de possibilidades de análise para a

temática. Elas se preocupam, entre outros aspectos, com as modalidades de adequação

do conteúdo destes materiais ao que está prescrito na legislação educacional brasileira,

principalmente, em seus artigos que tratam do respeito à diversidade cultural.

Os resultados destas investigações revelam uma mudança de perspectiva dos

autores de livros didáticos na abordagem sobre as populações indígenas. Optando por

metodologias que privilegiam a leitura associada ou isolada de textos escritos e

imagéticos, e apoiando-se em vasta documentação, séries de coleções didáticas

publicadas no Brasil, pesquisadores atestam a passagem gradativa de visões

etnocêntricas para percepções relativistas acerca das culturas indígenas.

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O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

O lugar do índio na escrita didática da história tem sido ampliado. A ele é

reservado cada vez mais espaço nas laudas dos manuais escolares, destacando-se as suas

atuações e capacidade de interferência nos destinos da trajetória histórica nacional.

As temáticas são diversificadas, refletindo-se sobre os primeiros contatos,

denúncias sobre as consequências históricas da colonização, escravidão, genocídio,

etnocídio e resistência, além dos modos de vida indígena, danças, culinária, rituais

religiosos, arte utilitária, entre outras.

Tendo em vista o aumento do espaço dedicado aos povos indígenas no livro

didático, pretendemos analisar as representações, textuais e pictóricas, sobre a

antropofagia indígena presentes no manual Para Entender a História de Divalte Garcia

Figueira e João Tristan Vargas lançado em 2009.

Decidimos escolher o manual de Figueira e Vargas porque temos a intenção de

saber como a questão indígena está sendo vista pelos livros didáticos contemporâneos.

A antropofagia foi, por muito tempo, associada à ideia de atraso e selvageria dos povos

indígenas, algo que ocorria inclusive na historiografia didática. Assim, pretendemos

analisar como a antropofagia tem sido tratada por esses manuais mais recentes.

Também pretendemos entender como a antropofagia era observada pelos

viajantes e cronistas europeus dos séculos XVI e XVII e entender a sua importância

como cerimônia e ritual na dinâmica interna das sociedades indígenas.

A análise do manual de Figueira e Vargas será realizada com vista na ideia de

representação. Representação não se colocaria como reprodução do real, como um

documento deste real, mas apenas como uma evidência material, como um indício para

se compreender como aquele real se constituiria enquanto imagens. Do mesmo modo,

em nenhum momento se apresenta em qualquer dimensão a questão da parecença, da

verossimilhança, qualquer tipo de necessidade de a representação ser parecida com o

que ela retrata (MENEZES, 2004, p. 27).

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Refletir sobre a representação não significa entendê-la como réplica, duplo,

cópia ou clone, como reprodução igual de uma realidade exterior, mas que ao mesmo

tempo lhe seria idêntica, cópia fiel de todos os seus detalhes e atributos (MENEZES,

2004, p. 27).

Portanto, a representação será aqui referenciada, em seu sentido mais amplo,

como tradução mental de uma realidade percebida, que transmite informações válidas

sobre vários pontos de vista vinculados a contextos específicos, pois a construção do

seu significado é orientada pelas convenções sociais que lhes garantem uma

legitimidade interpretativa.

A antropofagia sob o olhar europeu do século XVI e XVII

No período colonial, missionários, religiosos, artistas, cientistas, navegadores e

viajantes produziram uma gama de registros gráficos, pictóricos e literários sobre o

Brasil. Os europeus organizaram-se em expedições e vieram ao Brasil com os mais

diversos motivos: desbravar terras ainda não habitadas, explorar as riquezas naturais dos

trópicos, coletar informações sobre o clima, a fauna e a flora brasileira, dentre outros.

Estes viajantes demostraram curiosidade e espanto diante do mundo novo

descoberto. O olhar desses viajantes europeus se direcionou principalmente para os

habitantes das terras recém-descobertas. Para os europeus era importante identificar e

compreender os indígenas através de seus hábitos, costumes e crenças.

Nessa época, duas representações foram forjadas a partir dos povos indígenas

que habitavam as “terras brasílicas”. A primeira representação se refere à imagem do

bom selvagem, segundo a qual os índios eram vistos como portadores de uma bondade

natural que viviam num paraíso edênico. Essa visão foi esboçada por Montaigne em sua

obra Essais (I, XXXI, “Des Canibales”). (BOSI, 2006, p. 105).

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Utilizando os testemunhos que os viajantes traziam da América (relatos

contraditórios que mostravam tanto a selvageria dos índios, quanto sua docilidade),

Montaigne contrapôs a maldade, malícia e hipocrisia do europeu à simplicidade dos

índios. A ideia do bom selvagem foi, logo após, retomada por Rousseau, que

contrastava a inocência do primitivo à depravação e tirania dos nobres durante o

governo de Luís XV (BOSI, 2006, p. 105).

Dessa forma, os índios foram apresentados como exemplo do homem universal,

o que caracterizaria a visão do bom selvagem, visão de uma terra (do Brasil) associada

ao Éden (paraíso).

Porém, a partir dos contatos mais diretos entre índios e europeus, a ideia do bom

selvagem começou a ser abandonada, tornando-se objeto de reformulação por seus

equívocos. Assim, apresenta-se a segunda representação que os viajantes europeus

constituíram sobre os indígenas. Essa representação está ligada a crueldade e selvageria,

sendo motivada por aquele que era considerado o mais abominável de todos os

costumes dos nativos: o hábito de comer a carne dos guerreiros inimigos.

Aliado à poligamia, a antropofagia causou um forte impacto sobre o olhar

europeu, superando, inclusive, o fato de os nativos andarem nus, não possuírem

propriedade privada, forma de governo ou religião.

A mais remota representação sobre a antropofagia pode ser vista em Novus

Mundus, edição ilustrada de uma carta atribuída a Américo Vespúcio. Na obra, verifica-

se uma xilogravura (cujo autor foi Johann Froschauer) retratando um grupo de canibais.

Na xilogravura, podemos identificar onze índios, dentre eles, cinco homens

adultos, três mulheres, três crianças, todos reunidos em uma espécie de cabana perto da

praia. Aparentemente os índios realizam atividades domésticas: cuidam das crianças,

conversam, comem e se beijam. Cenas comuns se não fosse o caso de estarem

degustando uma perna e um braço humanos. De uma das vigas da cabana pendem partes

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de um corpo retalhado que está um pouco acima de uma fogueira. Ao fundo, no mar,

podem ser vistas duas caravelas. A imagem está acompanhada pelo seguinte texto:

Essa imagem nos mostra o povo e a ilha descobertos pelo Rei Cristão

de Portugal ou por seus súditos. Essas pessoas andam nuas, são

bonitas e têm uma cor de pele acastanhada, sendo bem construídas de

corpo. Cabeças, pescoços, braços, vergonhas e pés, tanto de homens

quanto de mulheres, são enfeitados com penas. Os homens têm

também no rosto e no peito muitas pedras preciosas. Ninguém é

possuidor de coisa alguma, pois a propriedade é de todos. Os homens

tomam por mulher a que mais lhes agrade, podendo ser sua mãe,

irmã ou amiga, já fazem distinção. Guerreiam entre si e devoram

uns aos outros, inclusive os que matam em combate, cujos corpos

penduram para assar sobre fogueiras. Vivem 150 anos. E não

possuem governo.1

Na xilogravura existem duas visões opostas sobre os índios: de um lado observa-

se uma “cena familiar”, que lembra o discurso da bondade natural dos nativos,

especificada no detalhe maternal da índia com seus três filhos; do outro lado, aparecem

restos humanos pendurados sendo cozinhados e os índios devorando um braço e uma

perna, enquanto um homem beija uma mulher que carrega uma perna prestes a ser

devorada (LESTRINGANT, 1997, p. 47-52).

A antropofagia foi extensamente abordada nos relatos dos viajantes europeus.

Muitos livros continham imagens que ilustravam os textos. Em 1592, Theodore De Bry,

ourives, livreiro e gravador, publicou o terceiro volume da coleção As Grandes Viagens

chamado America Tertia Pars: memorabile provinciæ Brasiliæ historiam contines, que

apresentou a narrativa do francês Jean de Léry sobre sua viagem ao Brasil e nas

narrativas de Hans Staden, aventureiro alemão que esteve aprisionado entre os

indígenas.

1 LEITE, José Roberto Teixeira. Viajantes do Imaginário: A América vista da Europa, século XV-XVII.

Revista da USP. Dossiê Brasil dos Viajantes. Número 30. São Paulo: USP, 1995, p. 2.

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Em uma das ilustrações da obra, observa-se no lado esquerdo inferior do

primeiro plano uma criança indígena segurando em suas mãos a cabeça de um indivíduo

sacrificado. Ao centro da ilustração, um índio adulto eleva seu machado sobre os

ombros com o qual desfere golpes no corpo que estava sendo destrinchado por outro

índio, que deposita as vísceras da vítima numa espécie de cesto seguro por uma índia.

Ainda no primeiro plano, na margem direita inferior, dois pequenos índios

auxiliam três jovens índias a aumentar as chamas do caldeirão, de onde retiram a cabeça

e algumas partes dos órgãos de um homem executado. Em segundo plano, percebe-se a

figura de um europeu barbado, o aventureiro Hans Staden, com uma expressão marcada

pelo sofrimento, com braços cruzados sobre o tórax, como se estivesse realizando as

últimas preces pela alma do homem que estava sendo sacrificado. Ao seu lado, vemos

três índias que seguram partes do braço e perna de um indivíduo esquartejado.

A representação da antropofagia nas imagens deste manual ainda transmite uma

percepção enganosa sobre está prática. Os índios envolvidos na efetuação das

“carnificinas” eram observados como canibais, violentos, que consumiam a carne

humana para satisfazer uma de suas necessidades biológicas mais imediatas: saciar a

fome. A dimensão ritual é aqui menosprezada.

Ao representar pedaços de corpos humanos sendo assados, há uma atenção

especial aos detalhes mórbidos do ritual. O europeu aflito ao fundo, a presença de

mulheres, o modo como destrincham a carne e separam minuciosamente as partes que

serão comidas. As crianças retratadas participam intensamente da matança. A intenção

da cena é realmente chocar o observador.

Para o europeu do século XVI e XVII, a antropofagia estava fora dos

paradigmas etnocêntricos centrados em sua própria cultura. Dessa forma, os indígenas

eram os “outros”, seres diferentes que tanto atraiam curiosidade quanto despertavam o

temor. Por não compreender elementos da cultura indígena como a antropofagia, o

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europeu reduzia os nativos em seres inferiores, cujas crenças, organização política,

valores e princípios tinham que se transformar em europeus, mesmo que para isso

fossem dominados, escravizados ou destruídos (GEBRAN, 2014, p.2-3).

Antropofagia: perspectiva ritual e cerimonial

Antropofagia é o ato de alimentar-se de carne humana, praticado através de um

ritual de sacrifício. O costume era característico da sociedade Tupi-guarani.

Falar da prática de antropofagia a partir de sua faceta ritual é possível, levando-

se em consideração as minúcias do fator “guerra” e suas implicações sociais para as

diversas sociedades indígenas no Brasil. Fausto (1992) informou que, entre os

tupinambá as guerras não eram motivadas por ambições materiais, mas sim por um

sentimento de vingança. O principal objetivo das expedições guerreiras era fazer cativos

para serem executados e comidos em praça pública, num processo de vingança

socializada.

A execução ritual [...] poderia demorar vários meses. Após ser

recebido no grupo local de forma hostil, e travar um diálogo com os

homens sobre vinganças passadas e futuras, o cativo passava a viver

na residência do seu captor, que lhe cedia uma irmã ou filha como

esposa. Significativamente, o termo tupinambá para cunhado e

inimigo é o mesmo – tobajara -, mas o inimigo era um cunhado sui

generes, pois em vez de fornecer alimento por intermédio do serviço

da noiva, recebia comida para ser depois, ele mesmo, devorado. [...] O

cativo [...] tinha um papel central nas relações interaldeãs. Ele deveria

ser mostrado aos parentes e amigos, circulava pelas aldeias

circunvizinhas, e quando decidiam, enfim, executá-lo, seus captores

convidavam os membros das aldeias aliadas, mesmo as mais distantes,

para participarem do festim canibal. A execução do prisioneiro

permitia articular [...] os grupos locais em unidades maiores [...]

reafirmando a aliança, ou a inimizade. Tratava-se [...] de socializar ao

máximo a vingança, tornando uma só morte superprodutiva: uma

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espécie de sobretrabalho ritual. (FAUSTO, 1992, p. 390-391, grifos do

autor)

Esta breve descrição do aspecto ritual da antropofagia revela-nos que ele estava

imerso num complexo sistema de construção de significados culturais. Ele era um dos

pilares estruturais de maior relevância para este tipo de organização indígena. Associado

às atividades bélicas e à vingança2, a antropofagia como ritual socializado, permitia a

negociação e o estabelecimento de relações de aliança e solidariedade entre os grupos

indígenas envolvidos naquele evento.

Ao refletir sobre a “Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá”,

Fernandes (1978), observou que a participação nas atividades guerreiras era um

mecanismo de graduação de status social, baseado nos méritos pessoais que repousavam

no “curriculum guerreiro” de cada indivíduo. A guerra e a antropofagia faziam parte do

universo de atitudes viris dentro da sociedade tupinambá. Essas atividades integravam o

processo de obtenção de status, progresso e até mesmo de escolha de esposas.

De acordo com Fernandes, os Tupinambá viviam em estado crônico de guerra.

As consequências das atividades guerreiras, para o autor, estariam impregnadas em

todas as esferas daquela sociedade. A guerra possuía uma evidente função social, sendo

que todos os membros tinham alguma participação nos conflitos.

Os Tupinambá comiam a carne do prisioneiro buscando a reapropriação das

qualidades dos parentes ancestrais que teriam sido mortos por ele. Apesar de

considerarem a capacidade guerreira do inimigo, era mais importante fazer com que a

energia dos ancestrais completasse seu ciclo, retornando para o seio do grupo, de forma

que a morte material proporcionasse a superação da morte espiritual.

2 Para Florestan Fernandes (1978), o massacre ritual da vítima era, a um tempo, condição, princípio e fim

da vingança.

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Tal reapropriação era vista quase como uma exigência feita pelos espíritos dos

parentes mortos, dentro de um sistema fechado em movimento contínuo em que o

inimigo era sacrificado para atender a necessidade do espírito do ancestral. Assim,

criava-se uma “cadeia circular de obrigações impostas imperativamente pela

necessidade de estabelecer a relação sacrificial”. (FERNANDES, 1989, p. 331).

Após o aprisionamento e sacrifício de sua primeira vítima, o jovem índio deveria

observar um complexo conjunto de ritos de passagem. Esses ritos destinavam-se, entre

outros objetivos, “a resguardar o sacrificante e a comunidade das represálias do espírito

da vítima e a atribuir um “novo” nome ao sacrificante (ritos de renomação), englobando

papéis como Avá e Tujuáe”: “homem casado”, “chefe de maloca”, “chefe de grupo

local”, “chefe de bando guerreiro”, “líder guerreiro e pajé”. (FERNANDES, 1978, p.

200-201, grifos do autor).

Em meio ao desenvolvimento dos rituais de renomação, eram praticadas as

incisões, que objetivavam simbolicamente os “nomes” adquiridos através dos sacrifícios

humanos. “Elas funcionavam como símbolos sociais, cada homem trazendo em seu

corpo as marcas de sua bravura, poder e prestígio”. (FERNANDES, 1978, p. 207).

As incisões correspondiam ao número de nomes adquiridos pelos

guerreiros e que exprimiam o prestígio social dos seus portadores: “o

número de incisões indica o número de vítimas sacrificadas e lhes

aumenta a consideração dos companheiros”; “... e os que se riscam,

quando tomam nome novo, a cada nome que tomam fazem sua feição

de lavor, para que se veja quantos nomes têm;” “... quando esta

ranhura sara, vêm-se cicatrizes, que valem por ornato honroso;” “... e

na verdade quanto mais estigmatizados mais valentes e corajosos são

reputados...”; “ o riscar é que fazem umas ricas pelo corpo de preto, a

qual lhes fica servindo para diante de insígnia militar...” (LÉRY;

SOARES; STADEN; EVREUX, BRANDÃO apud FERNADES,

1978, p. 207). Evidentemente, os guerreiros que consumavam um

número elevado de sacrifícios, tinham o corpo recoberto de incisões.

(FERNANDES, 1978, p. 207-208)

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Observa-se que a corporalidade torna-se dado fundamental para o universo

simbólico e o modo de vida indígena. Idioma focal nas sociedades indígenas sul-

americanas, o corpo e suas ornamentações são como arquivos de identidades, como

elementos diacríticos.

Ele, o corpo, afirmado ou negado, pintado e perfurado, resguardado ou

devorado, tende sempre a ocupar uma posição central na visão que as

sociedades indígenas têm da natureza do ser humano. Perguntar-se

[...] sobre o lugar do corpo é iniciar uma indagação sobre as formas de

construção da pessoa. (SEEGER et al. 1979 apud PORTO ALEGRE,

1998, p. 108)

Estas observações revelam elementos valiosos para o entendimento dos

significados simbólicos e da importância da corporalidade no processo de atribuição de

papéis constantes dos códigos culturais singulares do povo Tupinambá, em sua conexão

específica de cotidianização diferenciadora do carisma, aliada às atividades guerreiras e

ao sacrifício daí resultante. Nese sentido, vislumbramos na representação imagética da

corporalidade fonte imprescindível para a inserção profunda no universo estrutural de

diversos grupos indígenas.

Analisando o ritual antropofágico nos manuais didáticos

No manual Para entender a História, de Divalte Garcia Figueira e João Tristan

Vargas, publicado em 2009, a antropofagia aparece em somente uma página. Apesar de

destinar um pequeno espaço para tratar da antropofagia, o livro didático dedica dois

grandes capítulos aos povos indígenas.

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A discussão sobre a antropofagia encontra-se num capítulo sobre os povos que

habitavam a costa litorânea do território brasileiro na época da chegada dos portugueses,

mais precisamente, a propósito dos grupos indígenas que estabeleceram as primeiras

relações com os portugueses, os Tupi-guarani.

Para entender a História procura não veicular estereótipos ou preconceitos

historicamente construídos. O manual de Figueira e Vargas, assim como outros manuais

da década de 2000, foi produzido sob a lógica da avaliação, escolha e distribuição de

livros didáticos, representada pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).

Editoras e os autores de manuais didáticos observaram os critérios de exclusão

de uma obra didática no PNLD, ficando mais atentos à veiculação de todo tipo de

estereótipo ou preconceito, a existência de erros de informação, conceituais ou de

desatualizações graves, proselitismo e, por último, a verificação de incoerências entre a

proposta explicitada e o que foi efetivamente realizado ao longo da obra (MIRANDA;

LUCA, 2011, p. 127-128).

Para entender a História se afasta da perspectiva dos cronistas europeus do

século XVI e XVII, não enxergando a antropofagia como prática exótica, selvagem e

bárbara. O texto destaca o viés cerimonial, sendo que a fome não é vista como causa das

execuções:

Em várias nações indígenas no Brasil, realizava-se uma cerimônia em

que, depois de um prisioneiro ser executado, era praticada a

antropofagia, isto é, seu corpo era devorado pelo grupo. Isso não era

feito por fome, já que havia animais para caçar, assim como as frutas e

outros vegetais da mata. (FIGUEIRA; VARGAS, 2009, p. 130)

O livro destaca o caráter da valentia e o sentido assumido pela vingança:

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Por que, então, a antropofagia? Uma das explicações mais aceitas

sobre isso, fundamentada nos testemunhos daquele tempo, leva em

conta a importância que a valentia tinha para os índios. Indígenas de

várias nações acreditavam que, comendo a carne do inimigo, estariam

levando para dentro de si mesmos a bravura dele. Era raro um inimigo

ser devorado sem antes se ter certeza sobre sua coragem. O costume

da antropofagia fornecia motivo para mais combates, porque os

parentes do morto sempre buscavam vingá-lo. (FIGUEIRA;

VARGAS, 2009, p. 130)

Assim, o livro didático não mostra os índios como povos atrasados que possuíam

uma agressividade inata. Os indígenas são representados por meio de seus interesses,

entendendo-se o desejo de vingar os antepassados mortos em combate, a apropriação

das qualidades guerreiras do inimigo, a participação de mulheres e crianças nos

conflitos, o ritmo e o sentido das hostilidades e o papel da antropofagia na sustentação

dos mecanismos de reprodução social.

Ao final da página do manual, observa-se um boxe que contém um pequeno

texto e uma gravura de Theodore De Bry. O conteúdo do boxe dialoga com o texto

principal ao abordar o valor da valentia entre os Tupi-guarani.

O texto do boxe fala sobre I-Juca-Pirama, poema épico baseado nas fontes

históricas coloniais, que possui uma interpretação plausível sobre a antropofagia. Além

do próprio ritual antropofágico, ressalta-se ainda a questão da valentia, presente desde o

título da obra que em tupi significa: “O que há de ser morto e que é digno de ser morto”.

(FIGUEIRA; VARGAS, 2009, p. 130).

Dentro de um curto espaço, o livro de Figueira e Vargas consegue realizar uma

interpretação baseada em estudos mais atualizados sobre os povos indígenas e a

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antropofagia3, utilizando as fontes do século XVI com precisão e dialogar, inclusive,

com textos literários.

O boxe termina exibindo uma das gravuras de Theodore De Bry que ilustra a

obra Americae Tertia Pars. Essa imagem contém três momentos diferentes da

cauinagem4, cerimônia tipicamente associada ao ritual antropofágico.

A gravura é utilizada com sucesso no que se refere à complementação do texto

escrito, subsidiando com representações pictóricas sem causar nojo, repulsa ou

indignação. A ilustração corrobora as informações apresentadas no texto sobre a

antropofagia.

No primeiro plano da imagem, o cauim é preparado. As mulheres aparecem

mastigando (o milho e a mandioca não aparecem) e cuspindo nos jarros para posterior

fermentação em grandes jarros. No segundo plano, o cauim é servido pelas mulheres ao

guerreiro aprisionado e aos demais membros do grupo responsáveis pela captura.

Finalmente, no terceiro plano, observam-se cinco homens dançando em pé, enfeitados

com cocares e usando maracás.

Porque justamente essa imagem foi escolhida? Porque as tradicionais gravuras,

do próprio De Bry, que mostram os detalhes mais grotescos, brutais e selvagens da

antropofagia não foram adotadas nesse caso? Porque não foram utilizadas imagens com

mulheres carregando membros decepados do inimigo, crianças participando da

carnificina ou carne sendo levada a caldeirões ferventes e grelhas?

Provavelmente a escolha da ilustração não tenha sido aleatória. É possível que a

motivação da escolha tenha sido não chocar o observador, ao contrário do que pretendia

3 Grandes estudiosos sobre esses temas podem ser vistos entre as referências bibliográficas do manual:

John Manuel Monteiro, Leyla Perrone-Moisés, Maria Regina C. de Almeida, John Murra, Tzvetan

Todorov, entre outros. 4 Cerimônia realizada pelos povos Tupi-guarani em que o cauim, bebida obtida através da fermentação do

milho ou da mandioca, era preparado e consumido.

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o autor da gravura, Theodore De Bry. A partir de um ponto de vista europeu, De Bry

acentuou a selvageria da cerimônia realizada, na qual as mulheres seriam como bruxas

preparando poções mágicas para um festim demoníaco.

Portanto, ao escolher essa gravura, o livro de Figueira e Vargas acaba

enfatizando a perspectiva ritualística e cerimonial da antropofagia. Em sentido oposto às

intenções de De Bry, o manual confere importância ao ritual antropofágico, vendo-o

como elemento fundamental para a organização social dos Tupi-guarani, já que possuía

um sentido religioso ‒ visto como principal fonte para a realização das vinganças dos

antepassados ‒, não visando simplesmente satisfazer as necessidades fisiológicas.

Considerações finais

O manual Para entender a História, de Divalte Garcia Figueira e João Tristan

Vargas, apresenta a antropofagia como prática ritual ordenadora da estrutura social,

estritamente vinculada aos códigos culturais dos Tupi-guarani. O livro didático

analisado se afasta do tipo de figuração que coloca a antropofagia indígena como

conduta digna de reprovação, associada à animalidade e selvageria.

Temos plena consciência das dificuldades enfrentadas por autores dos manuais

para sintetizar, traduzir e transpor didaticamente os conteúdos históricos, tarefa ainda

mais absorvente quando se trabalha com temas tão amplos e complexos quanto os dos

rituais de antropofagia.

Apesar das dificuldades inerentes ao manejo didático de assuntos como a

antropofagia, os manuais oferecem ao ensino de história vantagens metodológicas e

cognitivas imprescindíveis. Suas imagens e textos podem ser utilizados em diversas

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situações de ensino-aprendizagem, para o desenvolvimento de leituras, interpretações e

comparações entre as visões divergentes acerca da antropofagia.

Livros didáticos, como o de Figueira e Vargas, desde que bem conduzidos por

professores capacitados, possibilitam ao estudante o conhecimento dos meandros e

pormenores que permeavam a antropofagia, as percepções negativas do outro europeu,

além de permitirem a compreensão das dimensões rituais e sociais do sacrifício e

consumação da carne humana, vislumbradas a partir de uma concepção o mais

aproximada possível do universo mental dos povos indígenas.

Referências bibliográficas

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Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

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