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LUKÁCS, György. Ontologia dell’essere sociale. II. Roma, Riuniti, 1981. (Capítulo: A Reprodução, pp.133-331). A REPRODUÇÃO 1. PROBLEMAS GERAIS DA REPRODUÇÃO [1] Já observamos no capítulo anterior que, na análise do trabalho enquanto tal, consubstanciamos uma enorme abstração. O trabalho, de fato, como categoria desenvolvida do ser social, só pode chegar à sua verdadeira e adequada existência num complexo social que se mova e reproduza processualmente. No entanto, esta abstração era necessária porque o trabalho tem um significado fundante para a especificidade do ser social, do qual ele funda todas as determinações. Todo fenômeno social, por isso, pressupõe direta ou indiretamente, talvez mais indiretamente, o trabalho com todas as suas consequências ontológicas. Esta situação ambígua teve por efeito, entre outros, que em muitos pontos na análise do trabalho, não obstante a necessária abstração metódica, tivéssemos que nos referir ou ao menos aludir a coisas que estavam para além do trabalho artificiosa e abstratamente isolado. Mas é apenas sobre o fundamento destas investigações que agora estamos em condições de considerar o trabalho, como base ontológica do ser social, na sua justa posição no contexto da totalidade social, na relação recíproca daqueles complexos de cujos efeitos e contra-efeitos esta emerge e tem força. [2] Um dos resultados mais importantes a que chegamos é que os atos de trabalho, necessária e continuamente, remetem para além de si mesmos. Enquanto na vida orgânica as tendências para preservar a si e à espécie são reproduções em sentido estrito, específico, ou seja, são reproduções daqueles processos vitais que perfazem a existência biológica de um ser vivo, quando só mudanças radicais do ambiente provocam, pois, neste caso, via de regra, uma transformação radical destes processos, no ser social a reprodução implica, por princípio, mudanças internas e externas. Não devemos nos deixar enganar pelo fato de que as etapas singulares do estágio inicial frequentemente duraram dezenas de milhares de anos. No curso de cada uma destas se verificaram mudanças contínuas – nos instrumentos, nos processos de trabalho, etc. –, as quais, por menores que tenham sido, tiveram consequências que, em certos momentos nodais, se revelaram saltos, transformações qualitativas. O fundamento ontológico objetivo destas transformações, que exibem uma tendência muito desigual, mas no conjunto progressiva, consiste no fato de que o trabalho teleologicamente, conscientemente posto, contém em si, desde o início, a possibilidade (dynamis) de produzir mais do que o necessário para a simples reprodução daquele que realiza o processo de trabalho. Uma das consequências necessárias do trabalho é a fabricação de instrumentos, a exploração das forças naturais (uso do fogo, domesticação de animais, etc.), e isto dá lugar, em certos estágios do desenvolvimento, àqueles pontos nodais que transformam qualitativamente a estrutura e a dinâmica 1

Reprodução

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Para uma Ontologia do ser social - G. Lukács.

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A REPRODUO

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LUKCS, Gyrgy. Ontologia dellessere sociale. II. Roma, Riuniti, 1981. (Captulo: A Reproduo, pp.133-331).A REPRODUO

1. PROBLEMAS GERAIS DA REPRODUO[1]J observamos no captulo anterior que, na anlise do trabalho enquanto tal, consubstanciamos uma enorme abstrao. O trabalho, de fato, como categoria desenvolvida do ser social, s pode chegar sua verdadeira e adequada existncia num complexo social que se mova e reproduza processualmente. No entanto, esta abstrao era necessria porque o trabalho tem um significado fundante para a especificidade do ser social, do qual ele funda todas as determinaes. Todo fenmeno social, por isso, pressupe direta ou indiretamente, talvez mais indiretamente, o trabalho com todas as suas consequncias ontolgicas. Esta situao ambgua teve por efeito, entre outros, que em muitos pontos na anlise do trabalho, no obstante a necessria abstrao metdica, tivssemos que nos referir ou ao menos aludir a coisas que estavam para alm do trabalho artificiosa e abstratamente isolado. Mas apenas sobre o fundamento destas investigaes que agora estamos em condies de considerar o trabalho, como base ontolgica do ser social, na sua justa posio no contexto da totalidade social, na relao recproca daqueles complexos de cujos efeitos e contra-efeitos esta emerge e tem fora.

[2]Um dos resultados mais importantes a que chegamos que os atos de trabalho, necessria e continuamente, remetem para alm de si mesmos. Enquanto na vida orgnica as tendncias para preservar a si e espcie so reprodues em sentido estrito, especfico, ou seja, so reprodues daqueles processos vitais que perfazem a existncia biolgica de um ser vivo, quando s mudanas radicais do ambiente provocam, pois, neste caso, via de regra, uma transformao radical destes processos, no ser social a reproduo implica, por princpio, mudanas internas e externas. No devemos nos deixar enganar pelo fato de que as etapas singulares do estgio inicial frequentemente duraram dezenas de milhares de anos. No curso de cada uma destas se verificaram mudanas contnuas nos instrumentos, nos processos de trabalho, etc. , as quais, por menores que tenham sido, tiveram consequncias que, em certos momentos nodais, se revelaram saltos, transformaes qualitativas. O fundamento ontolgico objetivo destas transformaes, que exibem uma tendncia muito desigual, mas no conjunto progressiva, consiste no fato de que o trabalho teleologicamente, conscientemente posto, contm em si, desde o incio, a possibilidade (dynamis) de produzir mais do que o necessrio para a simples reproduo daquele que realiza o processo de trabalho. Uma das consequncias necessrias do trabalho a fabricao de instrumentos, a explorao das foras naturais (uso do fogo, domesticao de animais, etc.), e isto d lugar, em certos estgios do desenvolvimento, queles pontos nodais que transformam qualitativamente a estrutura e a dinmica das sociedades singulares. Esta capacidade do trabalho de ir com seus resultados alm da reproduo do seu executor cria a base objetiva da escravido, antes da qual existia apenas a alternativa de matar ou adotar o inimigo feito prisioneiro. Daqui o caminho leva, atravs de vrias etapas, ao capitalismo, onde este valor de uso da fora de trabalho se torna a base de todo o sistema. Mas qualquer que seja o horror ideolgico que tome algum terico frente expresso mais-valia tambm o reino da liberdade no socialismo, a possibilidade de uma poca sensatamente livre, tambm repousa sobre esta peculiaridade fundamental do trabalho de produzir mais do que seja necessrio para a reproduo do trabalhador.

[3]Uma dentre as mais importantes destas transformaes o desenvolvimento da diviso do trabalho. Esta , por assim dizer, to antiga quanto o prprio trabalho, dele um produto orgnico necessrio. Hoje ns sabemos que uma forma particular de diviso do trabalho, a cooperao, surge j em estgios muito primitivos: pense-se no caso citado da caa no perodo paleoltico. A sua simples existncia, mesmo que ainda a um nvel muito baixo, faz surgir atravs do trabalho uma determinao futura decisiva do ser social, a comunicao precisa entre os homens reunidos para um trabalho: a linguagem. Sobre este tema deter-nos-emos mais adiante, agora observaremos somente que a linguagem um instrumento para fixar os conhecimentos e exprimir a essncia dos objetos em-si, atravs de pontos de vista que se fazem sempre mais verdadeiros, um instrumento para comunicar as mltiplas e mutveis formas de relacionamento dos homens entre si, em contraposio aos sinais, por mais precisos e desenvolvidos, que os animais trocam entre si e que transmitem conexes fixas, sempre voltadas a uma determinada constelao importante de sua vida. Os sinais, por exemplo, comunicam perigo (aves de rapina) e conseguem comportamentos estveis, por exemplo: o animal se oculta. Enquanto com a linguagem, mesmo em um estgio primitivo, possvel dizer: vem um mamute, no tenha medo, etc. Nesta fase inicial das nossas investigaes a linguagem nos interessa como o rgo mais importante (inicialmente ao lado da gesticulao, depois muito mais desenvolvida que ela) para aquelas posies teleolgicas que sempre tivemos que indicar ao falar do trabalho, mas das quais, ento, no pudemos tratar de maneira adequada. Referimo-nos s posies teleolgicas que no visam a transformar, explorar, etc. um objeto natural, mas tencionam, ao invs, induzir outros homens a executar a posio teleolgica desejada pelo sujeito que fala.

[4] sem duvida evidente que todo tipo de diviso do trabalho requer um mdium semelhante para a comunicao. Quer se trate da cooperao em geral ou de um trabalho em comum para fabricar ou usar um utenslio, etc., comunicaes deste gnero so sempre absolutamente necessrias, e de forma crescente quanto mais se desenvolveram o trabalho e a cooperao. Por isso, medida que progridem o trabalho, a diviso do trabalho e a cooperao, simultaneamente a linguagem deve se elevar a nveis superiores, deve se fazer sempre mais rica, flexvel, diferenciada, etc., a fim de que os novos objetos e conexes possam se tornar comunicveis. De maneira que o crescente domnio do homem sobre a natureza encontra uma sua expresso direta tambm no nmero de objetos e relaes que ele capaz de nomear. A venerao mgica dos nomes das pessoas, coisas e relaes tem aqui suas razes. Em tal nexo, porm, objetivamente vem luz algo que para ns tem uma importncia ainda maior: o fato ontolgico que todas as aes, relaes, etc. por mais simples que possam parecer num primeiro olhar so sempre correlaes entre complexos, pelas quais os elementos destes tm uma operatividade real somente como partes constitutivas do complexo ao qual pertencem. Que o homem, j como ser biolgico, seja um complexo, no h necessidade de se deter a esclarecer. O fato de que a fala no pode ter seno um carter de complexo da mesma forma, tambm uma evidncia imediata. Uma palavra qualquer possui sentido comunicvel somente no contexto da lngua a qual pertence; para quem no conhece aquela lngua, ela constitui uma srie de sons privados de sentido; no mero acaso que alguns povos primitivos designaram o estrangeiro como mudo, como incapaz de se comunicar. Da mesma maneira, no h dvida que a diviso do trabalho forma um complexo pelo qual os atos singulares, as operaes singulares, etc. tm sentido somente no interior do processo do qual so partes; acima de tudo a funo que devem desenvolver precisamente neste complexo a que pertencem que nos diz se so justos ou errados. Igualmente patente que os diversos grupos estveis ou ocasionais produtos da diviso do trabalho, no podem existir e funcionar independentemente um do outro, sem haver inter-relaes recprocas. De maneira que o ser social, at no seu estgio mais primitivo, representa um complexo, onde h interaes permanentes quer entre os complexos parciais quer entre o complexo total e suas partes. Daqui se desenvolve o processo reprodutivo do complexo total em questo, no qual tambm os complexos parciais se reproduzem como fatos autnomos ainda que s relativamente , mas em cada um de tais processos a reproduo da totalidade que, neste mltiplo sistema de interaes, constitui o momento predominante.

[5] Originalmente a diviso do trabalho se baseia sobre a diferenciao biolgica das pessoas que formam o grupo humano. O recuo da barreira natural como consequncia do ser social se fazer cada vez ntida e puramente social se revela, antes de tudo, no fato que este princpio de diferenciao, originalmente biolgico, assume em si momentos de sociabilidade cada vez mais numerosos, que terminam por conquistar um papel de primeiro plano na diviso do trabalho, rebaixando a fatos secundrios os momentos biolgicos. Isto aparece claramente quando se examina, por exemplo, o papel que tm os sexos na diviso social do trabalho. Engels revela que o lugar da mulher na vida social (matriarcado, etc.) depende do fato de que o aumento da riqueza atribua s funes econmicas do homem um peso maior em relao quelas da mulher, enquanto no estgio precedente a coisa estava invertida. Ou seja e um fato que todas as mais recentes pesquisas etnogrficas confirmam as formas de uma relao biolgica to elementar como a sexual so, em ltima anlise, determinadas pela estrutura social que se tem no respectivo estgio da reproduo. Isto acontece em todos os campos. Tomemos a relao entre jovens e velhos. primeira vista parece uma relao de carter biolgico, na realidade, os ancies devem a sua posio respeitvel s experincias acumuladas durante uma vida mais longa e, desde que elas se fundam na atividade social, sobretudo no trabalho no sentido mais lato, e j que a natureza somente o local de trabalho (a floresta para a caa), a vida mais longa no seno a base biolgica sobre a qual se realiza a acumulao das experincias de vida socialmente importantes. (Mas, na medida em que as experincias socialmente decisivas no so mais acumuladas por via emprica e conservadas na memria, mas so deduzidas por generalizaes, vai gradualmente decaindo esta posio exclusiva dos ancies).

[6] A diviso do trabalho, no entanto, tem consequncias posteriores que levam s aes e relaes puramente sociais. Pense-se, acima de tudo, nos efeitos daqueles atos teleolgicos que visam suscitar nas outras pessoas a vontade de operar determinadas posies teleolgicas. Tais atos, para serem funcionais, j em um estgio primitivo, requerem o conhecimento das pessoas nas quais deve ser suscitada esta vontade, do mesmo modo pelo qual as posies de trabalho em sentido estrito requerem que os objetos, as foras, etc. naturais em questo sejam conhecidas. Este conhecimento ultrapassa, por sua natureza, o plano biolgico, tem um carter social. Os valores que neste ponto surgem, como o conhecimento dos homens, a arte de persuadir, a engenhosidade, a astcia, etc., alargam por sua vez o crculo de valores e das valoraes (que so sociais em grau de pureza cada vez mais elevado). Se o grupo em questo bastante evoludo a ponto de conhecer j algum tipo de disciplina, esta sociedade adquire um carter mais ou menos institucional, quer dizer, social num sentido ainda mais predominante.

[7] Obviamente, aqui no nos possvel descrever, nem sequer em linhas gerais, o caminho que a diviso do trabalho percorreu desde o nascimento at sua forma atual, extremamente diferenciada. A ns interessa somente mostrar, de forma sumria, como a diviso tcnica do trabalho, que nos estgios evolutivos se afirma com evidncia cada vez maior, se desenvolveu daquela diviso social e que, portanto admitindo todas as interaes existentes antes de tudo um efeito, no uma causa. (Naturalmente, no quadro de uma diviso do trabalho socialmente j fixada, de uma nova orientao tcnica pode derivar no trabalho uma reestruturao concreta do grupo). A diviso do trabalho comea quando as ocupaes singulares se autonomizam em profisses. Isto constitui, obviamente, um grande progresso em termos sejam econmicos, sejam tcnicos, mas no nos esqueamos que a diferenciao das profisses tem como premissa social que em todos os campos do trabalho qualquer um possa obter para si (reproduzir) os produtos imediatamente necessrios para viver, sem que deva produzi-los por si. Esta diviso do trabalho surge relativamente cedo. Pense-se nos ofcios nas vilas orientais organizadas segundo o comunismo primitivo. Mas, tambm as formas superiores desta diferenciao social dizem respeito somente a setores singulares do trabalho, como complexos fechados em si, e no provocam ainda uma diviso do trabalho que envolva as operaes singulares. Assim ainda com as corporaes. Somente na manufatura subdividido o processo de trabalho enquanto tal, mas, mesmo aqui, apenas porque ocupar-se por toda a vida de um determinado momento parcial do processo de trabalho leva a um virtuosismo alm da normalidade. com a mquina que se inicia a verdadeira e prpria diviso do trabalho determinada pela tecnologia.

[8] Poderamos continuar por muito tempo a falar deste processo de transformao do biolgico em social, desta sobreposio e domnio do social sobre o biolgico. Mas aqui s nos interessam as questes ontolgicas de princpio e, depois, podemos tranquilamente interromper esta srie de digresses. O desenvolvimento da diviso do trabalho, ento, traz, pela sua prpria dinmica espontnea, categorias sociais cada vez mais acentuadas. Referimo-nos troca das mercadorias e relao econmica de valor que com ela entra em ao. Assim chegamos ao ponto em que Marx inicia a anlise da reproduo social. Justamente porque ele investiga acima de tudo a economia do capitalismo, isto , de uma formao j social em sua parte mxima, e nela a relao mercantil constitui o ponto de partida ontologicamente mais adequado para a exposio, assim como o o trabalho para o nosso discurso sobre o ser social em geral. A relao de valor pressupe uma diviso de trabalho j relativamente desenvolvida: o fato da troca, mesmo se, como Marx demonstra, se trata no incio de uma troca mais ou menos ocasional entre pequenas comunidades e no entre os membros singulares, significa que j, de um lado, determinados valores de uso so produzidos em quantidade superior necessidade imediata de seus produtores; e, por outro lado, que estes ltimos tm necessidade de bens que eles no esto em condies de se abster por si com o prprio trabalho. Estes dois fatos indicam que no interior da comunidade a diviso do trabalho chegou a um determinado nvel; revelam de fato, que agora determinadas pessoas tornam-se especializadas em determinados trabalhos, e isto implica necessariamente que outros devem executar os trabalhos necessrios para conservar e reproduzir as suas vidas. Esta diferenciao aumenta, obviamente, quando surge a troca de mercadorias tambm no interior de uma comunidade, ainda que ao lado da produo de subsistncia. O devenir-mercadoria dos produtos do trabalho representa, portanto, um estgio superior de sociabilidade; significa que o movimento da sociedade dominado por categorias cada vez mais puramente sociais e no mais somente naturais. Tal dinmica ns a vemos no fato que pelo trabalho, pelo seu progredir por necessidade imanente, se desenvolve uma diviso do trabalho cada vez mais ampla e ramificada; e, correspondentemente, no fato que este desenvolvimento da diviso do trabalho impulsiona em direo troca de mercadorias, enquanto que esta ltima, por sua vez, retroage sobre a diviso do trabalho na mesma direo. J nestas simplssimas e fundamentalissmas categorias da vida econmico-social, por isso, devem realar no apenas a tendncia intrnseca a se reproduzir ininterruptamente, mas tambm o impulso desta reproduo a ascender, a traspassar para formas superiores do econmico-social.

[9] necessrio considerar, todavia, que este desenvolvimento tem um curso dialeticamente contraditrio. De um lado, temos frente um processo que parece irrefrevel, que j no prprio trabalho pressiona no sentido de uma constante evoluo adiante. Esta tendncia, ainda que imediatamente surja no trabalho concreto, no obstante, tem efeitos que no se limitam ao simples melhoramento de seus pontos de partida originais, mas incide, s vezes com resultados absolutamente subversores, sobre o prprio processo de trabalho, sobre a diviso do trabalho, de maneira que impulsiona a economia de subsistncia direta a se inserir na troca de mercadorias e esta ltima a se transformar cada vez mais na forma dominante da reproduo social. Mas, por mais irrefrevel que seja esta tendncia na sua linha histrico-universal e na sua continuidade, todavia as suas fases concretas, que s vezes podem durar sculos ou mesmo milnios, so modificadas, favorecidas ou obstaculizadas pela estrutura, pelas possibilidades evolutivas daqueles complexos totais em cuja moldura elas se desenvolvem concretamente. Deter-nos-emos longamente mais adiante sobre este tema, que decisivo para o tipo de possibilidade e direo reprodutivas das diversas formaes econmicas. No estgio atual do nosso discurso, basta haver realado esta divergncia, que em dadas circunstncias podem se transformar em contraditoriedade, em anttese. Observaremos somente para iluminar um pouco melhor o fundo filosfico-ontolgico desta questo que a situao dialtica discutida por Hegel, isto , o desenvolvimento da contradio e da oposio pelo mero acrscimo de uma simples diferena, de uma heterogeneidade em si, constitui a base ontolgica da situao investigada aqui. No dizemos nada de novo aos nossos leitores se lhes recordamos a necessria desigualdade do desenvolvimento como modo de manifestao desta contradio entre uma inelutvel tendncia geral e os obstculos, as modificaes, etc., que ela encontra ao se atualizar.

[10] A necessidade com que o desenrolar da diviso do trabalho leva troca das mercadorias e, portanto, ao valor como regulador de toda atividade econmica, tem um papel importante no processo aqui descrito pelo qual o ser social se torna cada vez mais social, na sua perene reproduo em graus de sociabilidade continuamente mais elevados. J dissemos que o regulador da troca, o valor de troca, tem um carter social puro; sabemos por Marx que a sua existncia e operatividade, enquanto tais, nada tm a ver com o ser fsico, qumico ou biolgico. No obstante, j neste ponto entrevemos que na sociabilidade pura desta categoria no h nenhum espiritualismo social; tratar-se- sempre e somente de um recuo da barreira natural, no de um desaparecimento da natureza. O valor de troca uma categoria social pura, sabemos, porm, que somente pode se tornar real em indissocivel relao com o valor de uso. Este ltimo, pelo contrrio, um dado de natureza socialmente transformado. Visto, portanto, que o valor de troca s pode se realizar na relao reflexiva com o valor de uso, esta relao o conecta com a base natural geral da sociedade. Isto no diminui em nada o grande passo adiante realizado pela sociabilidade, o emergir e se fazer universal e dominante do valor de troca como mediado puramente social das relaes recprocas entre os homens. Ao contrrio. justamente esta mediao que faz surgir na prxis dos homens relaes sociais to importantes que, uma vez conscientes, tornam as relaes ainda mais sociais.

[11] Quanto mais o valor de troca se difunde, com tanta maior clareza e deciso assume relevo central o tempo de trabalho socialmente necessrio como fundamento econmico da sua grandeza concreta. Com isto, antes de qualquer coisa, o tempo de trabalho individual requerido para a fabricao de um produto adquire uma determinabilidade que transcende o dado natural. Nos primeirssimos estgios do trabalho a coisa principal era o nascimento do produto; o tempo necessrio para obt-lo era assunto de importncia secundria. Do mesmo modo, a diversidade dos rendimentos dos trabalhos singulares originalmente era fundada nas caractersticas biolgicas (tambm psquicas) dos indivduos. Somente em um determinado nvel do processo de produo e troca surge o tempo de trabalho socialmente necessrio como verdadeira categoria social. Nas formas de ser precedentes no pode existir nada sequer anlogo a esta categoria enquanto tal, ainda que ela tambm tenha, no sentido ontolgico, o prprio fundamento no ser natural, vale dizer, na total independncia do tempo em relao s reaes, quaisquer que sejam, nas suas contraposies, isto , na pura objetividade do tempo. Por isso o tempo de trabalho socialmente necessrio pode se tornar a base da circulao das mercadorias que paulatinamente vai se desenvolvendo do valor de troca; ou melhor, a base da circulao econmico-social como um todo. O fato de que ele se torna patente somente na troca de mercadorias, que apenas deste ponto em diante possa vir cientificamente empregado, no significa que exista unicamente em presena da relao da troca. verdade que o valor de uso e o valor de troca so formas objetivas reciprocamente heterogneas, mas a sociabilidade da produo coloca em movimento precisamente um permanente processo de transformao recproca de um no outro. Quando, por exemplo, um capitalista para produzir, contrata os operrios, ele (como qualquer comprador) compra um valor de uso, aquele da fora de trabalho, a sua capacidade de produzir mais do que necessita para a prpria reproduo, justamente a propriedade que determina o valor de troca. S a execuo do trabalho no quadro do tempo de trabalho socialmente necessrio permite que os produtos ora trazidos luz (tambm eles valores de uso) adquiram, por sua vez, um valor de troca, no qual est contido como mais-valia o produto especfico do valor de uso da fora do trabalho. No interessa aqui descrever todo este processo. Queramos s mostrar como as relaes econmicas dos homens so reguladas pelo tempo de trabalho socialmente necessrio. Onde verificamos, alm disso, que a sociabilizao da produo na troca de mercadorias, ainda que com todas as suas formas fenomnicas necessariamente contraditrias, um veculo objetivo do progresso em direo sociabilidade. Diz Marx: Quanto menor o tempo que a sociedade necessita para produzir trigo, gado, etc. tanto maior o tempo que ela ganha para outras produes, materiais ou espirituais. Tanto para o indivduo singular, como para a sociedade, a onilateralidade do seu desenvolvimento, da sua fruio e da sua atividade depende da economia de tempo. Economia de tempo, nisto se resume enfim toda a economia.

[12]Esta universalidade social do tempo de trabalho socialmente necessrio, como regulador de toda produo econmico-social, no capitalismo se apresenta de uma forma reificada e fetichizada, e considerada, tambm por tal motivo, um carter especfico desta formao. Marx, porm, tem muito a nos demonstrar que se trata de uma caracterstica da reproduo social em geral, que naturalmente se apresenta diversa, nos diferentes nveis de conscincia parcial ou de mera espontaneidade, nas diversas formaes. Ele inicia com o exemplo construdo de Robinson, a propsito do qual escreve: Precisamente a necessidade o constrange a distribuir com exatido o prprio tempo entre as suas diferentes funes, que so explicadas segundo as condies objetivas e subjetivas, mas que em cada caso, mesmo tendo em conta todas as diferenas qualitativas, so somente... modos diferentes do trabalho humano. Ainda mais interessantes so as observaes de Marx acerca da economia feudal e daquela de uma famlia camponesa auto-suficiente. Aqui o trao social mais importante a dependncia pessoal, o trabalho s em casos excepcionais assume a forma de mercadoria e, apesar disso, a corvia se mede com o tempo, exatamente como o trabalho produtor de mercadorias. Nem mesmo na famlia camponesa patriarcal, as condies da diviso do trabalho so determinadas diretamente, no interior da famlia, pela troca de mercadorias, mas aqui o dispndio das foras de trabalho individuais medido com a durao temporal se apresenta pela sua prpria natureza como determinao social dos prprios trabalhos, j que as foras de trabalho individuais operam, pela sua prpria natureza, somente como rgos da fora de trabalho comum da famlia. Enfim, no que concerne ao socialismo: Portanto o tempo de trabalho desempenharia um duplo papel. A sua distribuio, executada socialmente segundo um plano, regula a proporo exata das diferentes funes do trabalho com as diferentes necessidades. De outra parte, o tempo de trabalho serve concomitantemente como medida de participao individual do produtor no trabalho comum, e, portanto, tambm da parte do produto comum consumvel individualmente. As relaes sociais dos homens com os seus trabalhos e com os produtos do seu trabalho ficam aqui simples e transparentes tanto na produo quanto na distribuio.

[13]Esta rpida descrio de diversas formas de reproduo social envolve muito mais do que uma mera polmica contra uma fetichizao reificante. Por um lado, ela mostra como, na reproduo no interior do ser social, determinadas tendncias legais, emergentes da essncia da prpria coisa, terminam necessariamente por se afirmar nas mais diversas condies objetivas e subjetivas. Por outro lado, e ao mesmo tempo, evidencia que tal princpio regulativo da produo, mesmo se afirmando nas circunstncias mais variadas, ainda assim sempre ligado s concretas relaes sociais dos homens entre si e, portanto, sempre tambm uma expresso concreta do respectivo aparato da reproduo. Toda tentativa de transportar a outro aparato a estrutura concreta de uma realizao interior de circunstncias concretas no pode seno conduzir a falsificar as formas fenomnicas, objetivamente necessrias e muito ativas, o que, em certas condies, pode ter vastos efeitos econmicos prticos, como aconteceu no sculo XIX a muitos artesos que, no tendo compreendido oportunamente que o tempo de trabalho socialmente necessrio j era medido em termos de grande empresa capitalista, entraram em choque com a sua objetividade e se arruinaram. Aqui observaremos somente que, nas formaes precedentes funcionando normalmente (isto , a prescindir de perodos de crises, de transies), h com frequncia um comportamento mais ou menos correto por via relativamente espontnea. S no estgio evoludo da planificao consciente se torna vital, em sentido prtico-imediato, possuir uma compreenso adequada dos nexos econmicos, que no pode ser substituda pela adoo manipulatria de comportamentos, mesmo que se tenham demonstrados bons em outras estruturas.

[14]Este esboo provisrio, aproximativo e muito incompleto, , todavia suficiente, esperamos, para revelar quais so, nos seus traos gerais, as peculiaridades ontolgicas mais importantes da reproduo do ser social, acima de tudo no seu nexo e contraste com a esfera da vida biolgica. Pode servir de ponto de partida o trao comum de maior peso: em ambas estas esferas do ser a reproduo a categoria determinante para o ser em geral, ser significa, em sentido estrito, se reproduzir. Do ponto de vista biolgico os traos fundamentais e elementares da vida so nascer, viver e morrer, os quais no tm analogia no ser inorgnico, mas so consequncias diretas deste fato ontolgico basilar. Ora, j que o ser social possui como sua prpria base insuprimvel o homem enquanto ser vivente, manifesto que esta forma de reproduo tambm constitui um momento, igualmente insuprimvel, da reproduo social. Mas s um momento, j que pela combinao da atividade social dos homens na reproduo da prpria vida, que constitui sempre o fundamento de ser de todas as suas formas de cooperao, nascem categorias e relaes categoriais completamente novas, qualitativamente diversas que, como vimos e ainda veremos, modificam tambm a reproduo biolgica da vida humana. Esta analogia realmente existe, porm quando entendida como identidade, isto representa um forte obstculo ao conhecimento da reproduo no ser social; encontramos colocaes errneas deste tipo pela fbula de Menenio Agrippa, na teoria das raas, em Othmar Spann, etc. Hoje tal tendncia parece ter se exaurido, mas, em compensao, na base do neopositivismo (e s vezes entre as fileiras dos seus adversrios no suficientemente crticos) h concepes diametralmente opostas que, sedutoras na sua unilateralidade, resultam no menos falsas. Segundo estas, a tcnica seria para o ser social uma potncia automtica, fatal, completamente independente da vontade dos homens e o seu movimento autnomo determinaria em ltima anlise o destino da humanidade. Tambm neste caso retirado do contexto, absolutizado, reificado e fetichizado um nico momento do processo enquanto complexo, com o que igualmente obstaculizado o conhecimento correto deste processo de reproduo. O qual, na realidade, se desdobra em um complexo, constitudo de complexos, e, portanto, pode ser compreendido adequadamente somente na sua totalidade complexo-dinmica.

[15]Portanto, para entender em termos ontolgicos corretos a reproduo do ser social, necessrio, de um lado, ter em conta que seu fundamento ineliminvel o homem com a sua constituio fsica, com a sua reproduo biolgica; e, de outro, no perder jamais de vista que a reproduo se desenvolve num ambiente cuja base certamente a natureza, mas que, no obstante, sempre e cada vez mais modificado pelo trabalho, pela atividade dos homens, da mesma forma a sociedade, na qual se verifica realmente o processo reprodutivo do homem, encontra cada vez menos j prontas na natureza as condies da prpria reproduo as quais, ao contrrio, ela cria mediante a prxis social dos homens. Trata-se daquele processo de afastamento da barreira natural do qual falamos muitas vezes e sob diversos aspectos. A inter-relao entre os seres viventes singulares que se reproduzem e seu ambiente naturalmente um fenmeno basilar tambm da reproduo do ser biolgico. Neste caso, todavia, ela se movimenta no quadro imediato da biologia; ou seja, o ser vivente dado se desenvolve em um determinado ambiente o quanto necessita para reproduo biolgica. Os efeitos deste processo no mundo circundante so puramente acidentais do ponto de vista de sua dinmica interna. Do processo reprodutivo dos diversos seres viventes surgem, geralmente, relaes relativamente estveis, pelas quais, como caracterizao muito genrica desses processos, podemos dizer que eles reproduzem simplesmente a si mesmos, isto , seres viventes com a mesma constituio biolgica. Obviamente, tambm a esfera do ser biolgico tem a sua histria, do mesmo modo como h uma histria geolgica da terra. Esta histria verdadeiramente se move, no seu princpio ontolgico ltimo, em uma direo anloga quela do ser social, medida que para ambas um momento decisivo do desenvolvimento que as categorias pertencentes a graus inferiores do ser so subjugadas, transformadas, para dar lugar ao domnio das prprias categorias. Sem descer a detalhes, apenas observemos que o mundo vegetal se reproduz ainda mediante uma troca orgnica direta com a natureza inorgnica, enquanto o mundo animal j usa como alimento outros organismos; que, alm disso, nas inter-relaes dos animais com o seu ambiente as reaes diretas e exclusivamente biofsicas e bioqumicas so substitudas por outras reaes sempre mais complexamente mediadas (sistema nervoso, conscincia). Sem dvida temos aqui uma semelhana bastante acentuada com o afastamento da barreira natural que se verifique no ser social, onde se destaca, alm disso, o trao comum a ambas as esferas pelas quais os elementos do nvel de ser inferior podem apenas vir replasmados, no sendo possvel, ao contrrio, elimin-los. O ser da esfera da vida baseado ineliminavelmente sobre a natureza inorgnica, assim como o ser social o sobre o ser natural como um todo.

[16]Mas, mesmo com todas estas analogias e conexes, ns podemos sustentar que as duas esferas no se assemelham muito quanto sua essncia, e j tratamos longamente da causa determinante desta diferena qualitativa: o trabalho, a posio teleolgica que o produz, a deciso alternativa que necessariamente precede esta ltima, so as foras motrizes que lhe determinam a estrutura categorial, e elas absolutamente no se assemelham s foras motrizes da realidade natural. A prioridade ontolgica destas foras motrizes, especificamente sociais, pode ser destacada em cada ponto do processo de reproduo. Falaremos por extenso, mais adiante, das categorias especficas do ser social que no mais exibem qualquer analogia com aquelas da esfera da vida. Aqui, onde nos interessa acima de tudo ilustrar as divergncias elementares entre as duas esferas do ser, mais til nos determos naqueles momentos nos quais se evidencia a insuprimibilidade ltima da vida biolgica, mas nos quais, ao mesmo tempo, descobrimos com igual clareza que eles so nitidamente modificados no contedo e na forma pelo desenvolvimento social, pelas suas formas de reproduo. Para comear, partiremos da alimentao, que fato inevitvel para a reproduo biolgica de cada ser humano enquanto ser vivente, e nos referimos s anotaes escritas por Marx: A fome a fome, mas a fome que se satisfaz com carne cozida, comida com garfo e faca, uma fome diferente daquela que devora carne crua, se ajudando com as mos, unhas e dentes. Aqui enunciada com clareza a dupla determinao: o carter insuprimivelmente biolgico da fome e da sua satisfao, e, ao mesmo tempo, o fato de que todas as formas concretas desta ltima so funes do desenvolvimento econmico-social. Porm, seramos superficiais e no iramos alm dos aspectos externos se entendssemos a fome biolgica como base supra-histrica e a forma social da sua satisfao como superestrutura varivel que a deixa imutvel. Deixando completamente de lado a questo que a passagem dos homens alimentao carnvora no pode seno ter provocado tambm consequncias biolgicas, permanece o fato de que a regulao social da posse da comida tem, indubitavelmente, efeitos biolgicos.

[17]Este determinismo social, porm, vai ainda mais longe e lana uma luz interessante sobre uma questo para a qual j chamamos a ateno, mas sobre a qual devemos voltar: o desenvolvimento do gnero humano. Que o gnero humano, como sustenta Marx contra Feuerbach, no uma categoria muda, abstratamente geral, mas, ao contrrio, uma categoria a qual se torna consciente na sociedade, j se revela deste o incio pelo fato de que somente as pequenas comunidades autnticas, e mais tarde as naes, sintam a si como partes de um gnero, como realidade da espcie humana, enquanto que aqueles que vivem fora deste mbito so vistos como excludos dela. Apenas quando surge e se intensifica o mercado mundial, o gnero humano ascende ordem do dia, como problema universal que envolve todos os homens. Ora, este processo aparece com muita evidncia na evoluo do modo de preparar o alimento: seu carter localstico e se integra em unidade lentamente, e em termos muito relativos, at no plano nacional. No se diga que tais diferenciaes so determinadas exclusivamente por motivos naturais (o clima, etc.). Certamente estes, em especial nos primrdios, tiveram notvel importncia. Porm, seria muito artificial querer reduzir as diferenas entre as cozinhas da ustria, da Baviera e do Wurttemberg, sobretudo a causas naturais. No difcil observar como, no momento em que se comeou a viajar ao exterior, muitos consideravam absolutamente repugnante a maneira estrangeira de comer. Hoje, pelo contrrio, com o maior desenvolvimento do mercado mundial e das relaes entre os pases, fcil se perceber que as cozinhas vo gradualmente se internacionalizando. O processo que Goethe, num alto nvel ideolgico, assinalava usando a expresso de literatura mundial, est penetrando cada vez mais na cotidianidade da alimentao humana no sentido extensivo e intensivo. E o fato de que isto assuma hoje, de vrias maneiras, as formas da manipulao, do consumo de prestgio, etc. mostra precisamente a que alto grau de sociabilizao se chegou tambm neste campo.

[18]A mesma linha evolutiva podemos verificar em um outro setor da vida biolgica: o da sexualidade. J nos referimos s grandes mudanas sociais que intervieram na relao entre homem e mulher (matriarcado, etc.). indubitvel que estas mudanas, transformando radicalmente o comportamento tpico na vida social, incidiram da mesma forma radical sobre a relao sexual. Quem esteja em posio de domnio, ou de subalternidade, etc., no questo social externa a esta relao, que modifica s externamente, na superfcie, a relao sexual. Ao contrrio, mudanas similares de posio fizeram nascer nas pessoas modos espontneos de comportamento, tipicamente aprovados ou repelidos, que incidem a fundo sobre aquilo que para um sexo sexualmente atraente ou repulsivo no outro. Bastar recordar como hoje considerando a enorme superioridade dos homens a atrao sexual entre irmos e irms, por exemplo, possa ser considerada extinta. Em tudo isso emerge um importante trao futuro da reproduo social pelo que concerne sexualidade: a recproca atrao sexual no perde jamais seu carter essencialmente fsico, biolgico, mas a relao sexual, com a intensificao das categorias sociais, acolhe em si um nmero crescente de contedos que, mesmo se sintetizando mais ou menos organicamente com a atrao fsica, tm, todavia, um carter direta ou indiretamente humano social que heterogneo em relao a ela. Como todo desenvolvimento no interior da reproduo do ser social, tambm este se mostra desigual. Basta ter em mente a homossexualidade dos cidados da plis, dos quais os primeiros dilogos platnicos nos descrevem o carter ertico-tico, o papel das heteras na dissoluo da civilizao da plis, o erotismo na espirituosidade asctica do medievo, etc. A desigualdade deste desenvolvimento nasce nesses setores porque a legalidade no ser social tem uma dupla face: de um lado, a lei geral tende inarrestavelmente a transformar as categorias deste ser em categorias sociais, feitas pelos homens, visando a vida dos homens, de outro lado, as tendncias que aqui se apresentam no tm carter teleolgico, embora se componham de tendncias objetivo-universais a partir das posies teleolgicas singulares. Por isso, elas evoluem no sentido que as necessidades lhes apontam, as quais fazem nascer as posies teleolgicas, mas, j que na enorme maioria dos casos estas necessidades no so claras em si mesmas, e j que toda posio teleolgica coloca em movimento cadeias causais que so mais numerosas e diversas do quanto se desejava com aquela posio, a sntese social vai alm de todas as posies singulares, realiza em termos gerais e objetivos mais do que estava contido nelas, mas o faz na maior parte dos casos de tal modo que as possibilidades de realizao para os indivduos singulares, que resultam das suas consequncias, s vezes parecem divergentes, ou melhor, opostas, em relao ao curso geral do desenvolvimento. Assim o foi quando da ascese espiritualista crist surgiu a moderna interioridade ertica burguesa que, em definitivo, foi por ela preparada historicamente; sem Vita Nuova no se teria nenhum Werther. Assim hoje com a desmedida e espiritualmente vazia ideologia e prtica do sexo. certo que a interioridade ertica burguesa jamais conseguir superar verdadeiramente a opresso da mulher; dela deriva uma falsa conscincia cujo arco muito extenso vai da sincera exasperao hipocrisia. O desenvolvimento da indstria, todavia, leva tendencialmente em direo a uma sua superao de fato. J Kollontai proclamava, na poca da revoluo russa, a ideologia do copo d`gua. Que uma reao espontnea desigualdade sexual, assim como o ludismo foi uma reao espontnea contra as desumanidades inevitavelmente provocadas pela introduo dos sistemas mecnicos na indstria. Quando por isso se olha com olhos muito crticos justamente moda do puro sexo, no se deve deixar de considerar tambm essa sua colocao no desenvolvimento, se bem que naturalmente tambm aqui entrem muito em jogo categorias manipulatrias como o consumo de prestgio, etc.

[19]Certamente no necessrio prosseguir na anlise para esclarecer mais uma vez o condicionamento social daqueles contedos e daquelas formas que nas sociedades evoludas recobrem, replasmam, modificam socialmente a sexualidade biolgica pura. Ns aqui estamos voltados s grandes tendncias histricas, mas no nos esqueamos que as suas formas fenomnicas incidem profundamente at nos aspectos corporais e, da maneira de vestir cosmtica, influenciam de maneira decisiva o funcionamento dos instintos ertico-sexuais que, por sua vez, tm ligaes muito estreitas com o desenvolvimento de relaes humanas extremamente importantes. Fourier foi o primeiro a ver nas mudanas da relao sexual, nas relaes entre homem e mulher, no lugar que a mulher ocupa na sociedade, o critrio para medir o grau de desenvolvimento concreto do gnero humano. Marx acolhe esta linha de pensamento e nos Manuscritos Econmico-Filosficos escreve: A relao imediata, natural, necessria, do homem com o homem a relao do homem com a mulher. Nesta relao genrico-natural a relao do homem com a natureza imediatamente a sua relao com outro homem, como a relao do homem com o homem imediatamente a sua relao com a natureza, a sua prpria determinao natural. Nesta relao aparece, portanto, sensivelmente, e reduzido a um fato intuitivo, at que ponto, no homem, a essncia humana do homem venha a ser natureza, ou a natureza venha a ser a essncia humana do homem. Por esta relao pode-se, portanto, julgar todo o grau de civilizao do homem. Pelo carter desta relao se evidencia quanto o homem se tornou e se apreendeu como ente genrico, como homem. A relao do homem com a mulher a relao mais natural do homem com o homem. Nela se mostra, portanto, at que ponto o comportamento natural do homem tornou-se humano, ou seja, at que ponto a sua essncia humana se lhe tornou essncia natural, at que ponto a sua natureza humana se lhe tornou essncia natural. Nesta relao se mostra tambm at que ponto a necessidade do homem tornou-se necessidade humana: at que ponto, pois, o outro homem como homem tornou-se uma necessidade para o homem, e at que ponto o homem na sua existncia a mais individual, ao mesmo tempo ente de comunidade. No preciso explicar que, neste trecho de Marx, com o termo natureza no se entende o mero ser biolgico. O termo natureza aqui um conceito de valor que se desenvolve do ser social. Ele designa a inteno espontneo-voluntria do homem realizar em si mesmo as caractersticas do gnero humano. Ao mesmo tempo este gnero contm, obviamente, o reenvio insuprimvel base biolgica da existncia humana.

[20]Com clareza ainda maior, se possvel, emerge a peculiaridade especfica do ser social naquele complexo de atividade que costumamos chamar educao. Naturalmente, tambm aqui existem determinadas analogias nas espcies animais superiores. Mas, estas passam a segundo plano quando se percebe que a ajuda prestada pelos animais adultos aos seus filhotes se reduz a faz-los aprender de uma vez por todas, ao nvel da habilidade requerida pela espcie, determinados comportamentos que, pelas suas vidas, permanecero constantemente indispensveis. Na educao dos homens, ao contrrio, a essncia consiste em torn-los aptos a reagir adequadamente a eventos e situaes imprevisveis, novas, que se apresentaro mais tarde nas suas vidas. Isto significa duas coisas: em primeiro lugar, que a educao do homem no sentido mais lato em verdade no jamais totalmente concluda. A sua vida, se d o caso, pode terminar numa sociedade de carter totalmente distinto, com exigncias nos seus confrontos que so completamente diversas daqueles para as quais a educao em sentido estrito o havia preparado. Ele pode ento, reagir com a atitude de mestre Antnio hebbeliano: No entendo mais o mundo, e em tal caso a sua existncia fracassou, qualquer que seja o resultado, trgico, cmico ou simplesmente miservel. Apenas este fato j nos diz como entre educao em sentido estrito e educao em sentido lato no se pode traar um limite ideal preciso, um limite metafsico, embora sobre o plano prtico imediato isto seja feito, mesmo que de maneira fortemente diferenciada segundo a sociedade e as classes. O motivo que nos fora a fazer algumas observaes sobre educao em sentido estrito , acima de tudo, mais uma vez, elucidar o erro hoje difundido, segundo o qual seria a sua peculiaridade biolgica que faria o homem se desenvolver mais lentamente como exemplo autnomo da prpria espcie. verdade que a simples extenso do processo educativo retroage sobre a constituio biolgica do homem. Porm, j vimos, falando de fome e amor, que os motivos primrios da mudana so de carter social e no biolgico. Se hoje nas fbricas no trabalham mais as crianas, como no incio do sculo XIX, no por razes biolgicas, mas pelo desenvolvimento da indstria e, sobretudo, pela luta de classe. Se hoje, nos pases civilizados, generalizada a obrigatoriedade escolar e os rapazes ficam fora do trabalho um tempo relativamente longo, tambm este tempo deixado livre para a educao um produto do desenvolvimento industrial. Toda sociedade reclama dos prprios membros uma dada massa de conhecimentos, habilidades, comportamentos, etc.: contedo, mtodo, durao, etc. da educao em sentido estrito so consequncias das necessidades sociais assim surgidas.

[21]Uma vez alteradas, e se assim permanecem tempo suficiente, tais circunstncias tm, como obvio, determinados efeitos de retorno sobre a constituio fsica e psquica dos homens. O tipo to persistente do aristocrata ingls muito mais um produto da marca recebida pela educao em Eton ou Oxford-Cambridge que da transmisso hereditria. Mas em geral, quando se considera a longa persistncia dos tipos classsticos ou profissionais, preciso pensar, acima de tudo, que em tais marcas uma parte ao menos igual quela da educao em sentido estrito obviamente pertence educao em sentido lato (frequentemente espontnea). Se esta ltima perde intensidade ou at mesmo se dirige prpria dissoluo social, a transmisso hereditria perde a sua capacidade de produzir tipos. Quanto a tal processo de dissoluo, instrutivo examinar os Buddembrook de Thomas Mann, onde vemos que toda tradio reproduzida mediante a educao em sentido lato condenada a desaparecer quando a reproduo da sociedade no seu complexo lhe subtrai a possibilidade de desenvolvimento, de influir sobre alternativas reais presentes e futuras. Que a falncia da tradio originada da educao possa se manifestar em termos to contrapostos como em Thomas e Christian Buddembrook, confirma posteriormente a lei geral que aqui se exprime: comparados s geraes anteriores, Thomas e Christian se unem no mesmo tipo de insucesso.

[22]Assim, a problemtica da educao permanece voltada ao problema sobre o qual ela se funda: a sua essncia consiste em influenciar os homens a fim de que, frente s novas alternativas da vida, reajam no modo socialmente desejado. Ora, este propsito se realiza sempre em parte e isto contribui para manter a continuidade na transformao da reproduo do ser social; mas ele a longo prazo fracassa em parte, ainda uma vez, como sempre, e isto o reflexo psquico no s do fato que tal reproduo se realiza de modo desigual, que ela produz continuamente movimentos novos e contraditrios, aos quais nenhuma educao, por mais prudente, pode preparar suficientemente, mas tambm do fato que nestes momentos novos se exprime de maneira desigual e contraditria o progresso objetivo do ser social no curso de sua reproduo. Como sempre at agora, tambm aqui vai sublinhado que ns falamos em progresso no sentido objetivo-ontolgico e no em sentido valorativo. Do ponto de vista imediato isto significa que o ser social ao reproduzir a si mesmo se torna cada vez mais social, que edifica o prprio ser cada vez mais forte e intensamente com categorias prprias, sociais. Porm, este aspecto em aparncia ontolgico formal do processo de reproduo , ao mesmo tempo sobre o plano ontolgico-objetivo um processo de integrao das comunidades humanas singulares, o processo com o qual se realiza um gnero humano que no mais mudo e, portanto, uma individualidade humana que vai se explicitando em modos cada vez mais multilaterais (cada vez mais sociais).

[23] medida que progride, descobrindo e realizando coisas novas, novas necessidades, novos caminhos para satisfaz-las, o processo de trabalho provoca na sociedade, juntamente prpria difuso e aperfeioamento crescentes, uma diviso de trabalho no simplesmente tcnica, mas tambm social. No nossa tarefa, agora, descrever em termos histricos tal processo. Dele aclararemos somente alguns momentos decisivos nos quais este processo reprodutivo do trabalho e a diviso do trabalho, que aqui se desenvolve, do um novo cunho ontolgico estrutura do ser social. Originalmente a diviso do trabalho , com certeza, apenas ocasional, e por isso consiste num mero agir tecnicamente em comum no caso de determinadas operaes ou cooperaes. provvel que tenha decorrido um perodo bastante longo antes que a diviso do trabalho viesse a se consolidar em profisses determinadas ou pudesse se tornar uma estrutura social especfica que se pe frente aos indivduos como uma forma j autnoma do ser social, retroagindo, assim, sobre seus modos de vida como um todo. Marx perpassa este problema nos seus apontamentos para A Ideologia Alem: Os indivduos sempre partiram de si mesmos, consideram sempre os prprios movimentos. As suas relaes so relaes do seu processo real de vida. Como acontece que as suas relaes se tornam autnomas em oposio a eles? Que as potncias da sua prpria vida se tornam mais potentes em oposio a eles? Em uma palavra, a diviso do trabalho, cujo grau depende da fora produtiva a cada vez desenvolvida. A diviso do trabalho se mostra, pois, um efeito do desenvolvimento das foras produtivas, mas um efeito que, por sua vez, constitui o ponto de partida de um desenvolvimento ulterior. Certamente ela deriva, no imediato, das posies teleolgicas singulares dos indivduos, e, todavia, uma vez que exista, est frente aos indivduos como potncia social, como importante fator do seu ser social, que ela influencia, alis, determina. um efeito que, nos seus confrontos, assume um carter autnomo de ser, ainda que seja derivado dos seus prprios atos de trabalho. Estamos pensando, antes de tudo, em dois complexos que diferenciam fortemente a sociedade originalmente unitria: a diviso entre trabalho intelectual e fsico, e a diviso entre cidade e campo, os quais, porm, se cruzam continuamente com a gerao das classes e dos antagonismos de classe.

[24]O caminho que leva primeira delas est j presente, em germe, na primeirssima diviso do trabalho. As posies teleolgicas necessrias so, como vimos, de duas formas: aquelas que visam transformar, com finalidades humanas, objetos naturais (no sentido amplo do termo, inclusive, pois, a fora da natureza) e aquelas que tencionam incidir sobre a conscincia dos outros homens para impeli-los a executar as posies desejadas. Quanto mais se desenvolve o trabalho, e com ele a diviso do trabalho, tanto mais autnomas se tornam as formas das posies teleolgicas do segundo tipo, e tanto mais podem se desenvolver em um complexo por si da diviso do trabalho. Esta tendncia evolutiva da diviso do trabalho na sociedade se encontra, necessariamente, com o nascimento das classes: as posies teleolgicas deste tipo, por via espontnea ou institucional, podem ser postas a servio de um domnio, independente de quem se sirva disto; daqui a frequente ligao do trabalho intelectual, tornado autnomo, com os sistemas de domnio classista, ainda que seus incios sejam mais antigos e, apesar de, no curso da luta de classe, como se observa tambm no Manifesto Comunista, uma parte dos prprios representantes do trabalho intelectual se deslocar, com certa necessidade social, para o lado dos oprimidos que se rebelam. To pouco tais questes podem ser discutidas aqui. Somente chamamos a ateno para mostrar que, se a reproduo social, em ltima anlise, se realiza nas aes dos indivduos, no imediato a realidade social se manifesta no indivduo, todavia estas aes, para se realizarem, se inserem, por fora das coisas, em complexos relacionais entre homens os quais, uma vez alcanados, possuem uma determinada dinmica prpria; isto , no s existem, se reproduzem, operam na sociedade independente da conscincia dos indivduos, mas do tambm impulsos, direta ou indiretamente, mais ou menos determinantes s decises alternativas. Portanto, o contato e a influncia recprocos de tais complexos no podem seno possuir certa polivalncia, j que as suas tendncias principais dependem, tambm, das legalidades gerais da reproduo, enquanto complexo, da formao de que se trata, da sua estrutura, da sua linha evolutiva, do seu grau de desenvolvimento, etc. Em todo caso, daqui deriva na reproduo do ser social uma diferenciao entre os homens que, uma vez mais, no encontra analogia na esfera biolgica. Precisamente porque as circunstncias que determinam o contedo, a forma e a direo das decises alternativas dos homens so, em definitivo, resultado da atividade humana, no interior do gnero humano surgem diferenciaes qualitativas muito amplas e profundas, de maneira que s vezes parece que est colocada em causa a unidade. Mas , naturalmente, s uma aparncia que o desenvolvimento histrico-social se encarrega, mais cedo ou mais tarde, de dissolver. Contudo, a sua simples existncia como aparncia socialmente operante elucida, novamente, a diversidade qualitativa entre ser social e biolgico. De fato, neste ltimo no possvel tal ciso, ainda que s aparente, no interior de uma espcie; podemos verificar diferenciaes s sobre a base biolgica, mas ento nascem novas espcies que, todavia, so to mudas como aquela que existia antes da separao ou transformao. Tambm em tais casos, por isso, o gnero humano mostra ser uma categoria histrico-social que vai se desenvolvendo (de modo desigual e contraditrio).

[25]As coisas so anlogas para a outra diviso do trabalho que, a partir de certo ponto, perpassa a histria da humanidade: aquela entre cidade e campo. Os primrdios dos assentamentos que depois se tornaram cidades tm lugar por razes produtivas e de segurana. (Deste aspecto, da relao entre defesa, conquista, etc. e produo falaremos em seguida). Aqui devemos acima de tudo revelar que a cidade um complexo que surge de momentos muito complexos, heterogneos entre si, e que cumpre funes sociais muito complexas, s vezes fortemente heterogneas. Por isso impossvel circunscrever em uma definio aquilo que uma cidade: as cidades do antigo oriente, da poca da plis, do medievo, dos vrios estgios do capitalismo, etc. no podem ser reduzidas ao mesmo denominador a partir de uma perspectiva fixa. E evidente, todavia, que o nascimento das primeiras cidades foi um importante passo em direo sociabilizao do ser social, do qual tem sido possvel retroagir, embora as funes polticas, econmicas, militares da cidade sofram desde o incio uma contnua mudana, e ainda que, de quando em quando, tenham havido longos perodos de decadncia das cidades. Igualmente rica em mudanas tem sido a relao recproca entre cidade e campo, a comear pelas transformaes advindas no ser das pessoas do campo, desde a economia at os costumes, aps e acompanhando o nascimento das cidades. por si evidente que, de tal modo, cresce o peso das categorias predominantemente sociais na configurao do ser social. A cidade um complexo que no tem analogia alguma nos graus de ser inferiores: nela at as funes mais simples da vida so mediadas pela sociedade, a ligao com a natureza entendida como um fato em desvanecimento. (At um jardim, um parque, na cidade uma estrutura predominantemente social).

[26]O processo social da separao entre trabalho fsico e intelectual , tambm, posteriormente potencializado pela mera existncia da cidade. Quanto mais a cidade se torna o centro da indstria e quanto mais a produo industrial de um pas adquire predomnio quantitativo e qualitativo sobre a agrcola, tanto mais forte a concentrao nas cidades de todos os ramos do trabalho intelectual e tanto mais o campo excludo, por longos perodos, dos progressos da cultura. Ao mesmo tempo se tem que o nmero de pessoas que levam adiante a produo agrcola vai diminuindo constantemente em relao populao industrial, comercial, etc., isto , em substncia, em relao populao urbana. A humanidade, portanto, vai cada vez mais decisivamente se distanciando da sua situao de partida, quando a troca orgnica direta com a natureza imediatamente circundante envolvia, por inteiro, o trabalho de todos os indivduos. Entre as diversas mediaes que removeram esta imediaticidade originria, as quais, com o tempo, se tornaram estruturas em si, instituies, a cidade se coloca, cada vez mais, entre os complexos mais importantes, com uma sua autonomia relativa, e isto quanto mais ela vai perdendo o carter de intermediao (a antiga cidade-estado foi por longo tempo uma concentrao de pessoas substancialmente dedicadas agricultura, e em circunstncias completamente opostas, tambm a cidade medieval revela traos anlogos), quanto mais se torna, sob todos os aspectos, o efetivo antpoda social do campo. Devamos, ao menos, nos referir a este processo j que ele nos mostra de uma outra perspectiva, como o desenvolvimento econmico-social, de forma diferente nos domnios, mas sempre e em toda parte, faz que o edifcio do ser social, no processo de reproduo em graus continuamente superiores, se torne social em termos cada vez mais puros e exclusivos. Esta tendncia, todavia, no est fora do quadro geral por ns muitas vezes delineado: tambm ela desigual e contraditria porque, tambm neste caso, progressos ntidos no campo da estrutura objetiva total se acompanham e se tornam indissoluvelmente ligados a fenmenos sociais nos quais a necessria e tpica reao humana tendncia principal de contraposio mais ou menos decidida. Portanto, tambm aqui reina um contraste entre o progresso econmico-objetivo e as suas manifestaes psicolgico-culturais. Por isso o jovem Marx escreve a propsito do antagonismo entre cidade e campo: Ele a expresso mais crassa da subsuno do indivduo diviso do trabalho, uma determinada atividade que lhe imposta: subsuno que faz de um o limitado animal urbano; de outro, o limitado animal campons, e que renova cotidianamente o antagonismo entre os seus interesses. Naturalmente isto afirmado, acima de tudo, se referindo aos comportamentos gerais tpicos; no entanto, naturalmente, em todos os estgios de maneira diversa segundo o lugar, o tempo, etc. existem indivduos que superam tais deformaes, ainda que, como bvio, estas superaes no sejam jamais simplesmente individuais, mas constituam, ao invs, solues tendenciais abertas, a cada vez, pela situao social concreta dos homens. O xito ou o fracasso so atos, comportamentos, que se desenvolvem nos indivduos; as determinaes sociais que lhes produzem, fixando e mantendo a sua objetividade social, podem se exprimir, na realidade, somente nestas formas individuais, somente no mdium da individualidade.

[27]Todas estas formas da diviso do trabalho se entrecruzam, no seu desenvolvimento social, com a sua forma historicamente mais importante, a da diferenciao das classes. J dissemos que a sua origem no especfico valor de uso, surgido gradualmente, da fora de trabalho poder produzir mais do quanto necessrio para produzir a si mesma. , portanto, o desenvolvimento da produo, com as suas formas e os seus limites especficos, que determina o tipo de diferenciao, da funo e perspectiva social das classes, ainda que em termos de interao, pois o modo de estruturao das classes, a sua relao recproca, retroage fortemente sobre a produo (limites produtivos da economia escravista). Ora, posto que as classes constituam complexos sociais singulares economicamente, objetivamente determinados, estes complexos podem existir somente na referncia recproca, como determinaes reflexivas, e, alm disso, onde a conscincia desta relao reflexiva joga um papel determinado, s vezes determinante. Por exemplo, diz Marx, um dado homem rei, somente quando outros homens se comportam como sditos frente a ele e vice-versa, eles crem serem sditos porque ele rei. Porm, ainda que nesta passagem haja certo exagero irnico, existem vrias passagens de Marx nas quais fica claro que ele considera a tomada de conscincia da situao de classe como uma determinao, se no do existir, certamente do ser-assim da relao de classe. Na Misria da Filosofia disse: As condies econmicas haviam primeiro transformado a massa da populao do pas em trabalhadores. A dominao do capital criou uma situao comum, interesses comuns para esta massa. Desta forma, esta massa j uma classe nos confrontos do capital, mas no ainda por si mesma. Na luta... esta massa se rene, se constitui em classe por si mesma. No 18 Brumrio esta conscincia surge, verdadeiramente, como critrio do ser-classe. Marx escreve a propsito dos camponeses: Na medida em que milhes de famlias vivem em condies econmicas tais que distinguem os seus modos de vida, os seus interesses e a sua cultura daqueles das outras classes e os contrape a elas de modo hostil, elas formam uma classe. Mas, na medida em que, entre os camponeses pequenos proprietrios existem somente ligaes locais, e a identidade dos seus interesses no cria entre eles uma comunidade, uma unio poltica em escala nacional e uma organizao poltica, eles no constituem uma classe. Naturalmente trairemos completamente as suas intenes se deste caso-limite do qual nos d uma formulao um tanto extremada segundo uma tica antes de tudo poltica e no econmico-social, no ontolgica chegssemos a concluir que o ser classe qualquer coisa associada conscincia. J a formulao precedente do problema, onde o para-si se desenvolve do em-si, nos indica qual seria proporo que Marx, propriamente, entendia: aquilo de objetivamente existente da classe que se desenvolveu das relaes concretas de produo, da estrutura da formao concreta. Que a conscincia seja capaz de exercer uma funo modificatria objetiva sobre o ser social da classe, pode surpreender somente quem, seguindo certas tradies do marxismo vulgar, considere como concepo marxista da sociedade aquela que v uma base puramente objetiva e uma superestrutura puramente subjetiva. Mas, como o prximo captulo se ocupar exatamente deste complexo de questo, podemos e devemos remeter a ele.

[28] preciso, aqui, apenas examinar melhor um lado do problema, aquele que, anteriormente com Marx, consideramos relao reflexiva no ser das classes. Do ponto de vista da ontologia do ser social isto quer dizer, antes de qualquer coisa, que toda classe, enquanto complexo social, pode existir somente em uma sociedade determinada, que por isso a sua existncia relativamente autnoma comporta uma insuprimvel referncia a esta sociedade na sua totalidade e s outras classes dentro dela, que uma classe s existe socialmente em inter-relao prtica com as outras classes da sua formao. No h nada mais falso, portanto, que considerar determinadas relaes de classe isolando-as desta sua colocao na respectiva totalidade. A escravido, por exemplo, a forma classista dominante na antiguidade; os seus resduos no princpio do medievo so um episdio privado de consequncias; a escravido dos negros na Amrica, ao invs, no obstante o seu carter evidentemente anacrnico e monstruoso, parte integrante do capitalismo nascente. Isto quer dizer que, de um lado, pressuposto o complexo daquela sociedade na qual as diversas classes esto em relao reflexiva entre si, e, de outro que a relao de reflexo uma relao prtica, a sntese, a legalidade, etc., daquelas aes de tipo social que para os homens resultam da sua existncia de classe. Marx explicita este fato com toda clareza quando, frente ao idealismo de Bruno Bauer, cita o lema da revista da Loustalot, no tempo da revoluo francesa:

Os grandes s nos parecem grandes,

Porque estamos de joelhos.

Levantemo-nos!*E comenta: Mas, para se levantar, no suficiente se levantar no pensamento, e deixar pender sobre a prpria cabea real, sensvel, o jugo real, sensvel que no possvel eliminar com as idias. Do trecho citado acima fica claro que Marx, mesmo acentuando a realidade, mesmo julgando no relevante para a realidade a sua transformao s no pensamento, todavia no considera, em absoluto, irrelevante o pensamento em geral. Trata-se, simplesmente, do fato que ele, tambm sobre este ponto, reprova como duplamente falsas para o ser social as alternativas abstratas do materialismo mecanicista (a realidade procede por seu caminho legal completamente independente daquilo que ocorre na conscincia dos homens) e do idealismo filosfico ( o pensamento do homem que determina, transforma, o ser etc.) e procura, sempre concretamente, a colocao ontolgica do pensamento no interior das conexes do ser, das relaes do ser, das transformaes do ser, etc. do ser social. Tambm aqui estamos na constelao por ns assinada h muito tempo: o movimento do ser social consiste, em ltima anlise, no co-agir das decises alternativas singulares realizadas. Todavia, por um lado, estas devem ser decises reais que direta ou indiretamente se convertem em aes reais; por outro lado, as consequncias materiais destas decises, tanto nos casos singulares como nas snteses complexivas, resultam ser completamente diversas daquelas que os indivduos ainda que se trate de muitos indivduos tinham imaginado, tinham desejado. A anlise aprofundada dos problemas que daqui derivam ser feita no captulo seguinte.

[29]Precisamente as lutas de classe na sociedade foram com muita frequncia usadas para interpretar o ser social como uma espcie de ser natural. No nos deteremos aqui sobre as intenes reacionrias que, no mais das vezes, esto associadas a tais teorias, se bem que a sua obstinada repetio, at em perodos nos quais sequer a aparncia atribui a elas certa plausibilidade, indica, claramente, que nascem de um interesse a ignorar conexes verdadeiras atravs de princpios sociais deste gnero. Falando em aparncia, entendemos as sociedades passadas nas quais o ser de classe era adquirido mediante ato natural do nascimento (castas, ordens), ainda que tambm em tais casos somente a pertinncia de um dado indivduo a um determinado estrato social era adquirida mediante esta causalidade so social, enquanto que a prpria articulao social, por exemplo em castas, ordens, etc., era o produto de um desenvolvimento econmico-social. Falamos de causalidade porque a subsuno social do indivduo s leis gerais do desenvolvimento da sociedade no pode, do ponto de vista do indivduo, no ter um carter insuperavelmente casual. Mas, at quando tal aparncia j desapareceu completamente, como no capitalismo, continuamente h teorias semelhantes na qual o social vem, no pensamento, retransformado num fato natural: citamos como exemplo o assim chamado darwinismo social, que se esfora para provar que a luta pela existncia seria uma lei comum natureza e sociedade. Todas estas teorias no vem que na verdadeira e prpria luta pela existncia se trata direta e realmente da vida ou da morte em sentido biolgico, de matar para comer ou ento morrer de fome, enquanto todas as lutas de classe na sociedade centram-se sobre a apropriao daquela mais-valia que constitui o valor de uso especfico da fora de trabalho humana. (Matar na guerra, quando esta no conduzida por motivos de canibalismo, no tem nada a ver com a luta pela existncia da natureza). A prpria guerra, como veremos mais adiante, um fenmeno que s vezes se faz relativamente autnomo dependente da reproduo econmico-social ora indicada. Isto vale, tambm, para as formas mais cruis de escravido; ter reduzido ao mnimo as possibilidades dos escravos reproduzirem a prpria vida, forando ao extremo as jornadas de trabalho deles extorquidas, nada mais significa seno que esta cota de mais-valia dos escravos foi assim exagerada por ter sido fortemente limitada a reproduo mdia do sistema escravista; o seu carter econmico-social se revela no fato de que este tipo de produo s foi possvel na presena de um afluxo quase ilimitado de escravos e se extinguiu com sua diminuio. (ltimo perodo do imprio romano). Por outro lado, a economia do incio do capitalismo mostra que, dada a oferta de operrios em aparncia inexaurvel, tal extremizao da explorao foi possvel ainda que frente a homens considerados livres.

[30]Mas, se no dermos ouvidos a estas teorias erradas, e no importa se tenham surgido de boa ou m f, observamos que o desenvolvimento das classes, e da sua relao recproca, revela a mesma tendncia verificada em outros complexos sociais: o crescente carter social do ser e das suas relaes. Depois do iluminismo e especialmente depois de Hegel, frequente se apresentar isto como um desenvolvimento em direo liberdade. O problema da liberdade enfrentado, em nvel social, por tantos lados e em tantos sentidos que impossvel trat-lo no atual estgio de nossa anlise. Dentro dos limites que podemos falar agora, isto , exclusivamente em termos ontolgicos gerais, o problema se apresenta assim: medida que as leis econmicas gerais se tornam mais claras e unvocas, quer dizer, medida que afasta a barreira natural , sempre mais abertamente casual o lugar que o indivduo singular ocupa na sociedade. Esta relao entre caso singular e lei geral um fato ontolgico universal. Frequentemente, porm, a isto no prestamos muita ateno porque o destino casual, por exemplo, de uma molcula singular, no interessa a ningum, enquanto que aquilo que suscita um interesse cognoscitivo o modo pelo qual se afirma a lei geral. No entanto, esta relao vale por toda parte, at na sociedade. Quando, por exemplo, na crise econmica, segundo o quanto sustenta Marx, se afirmam com violncia a unidade da produo capitalista e as suas justas propores, concretamente isto significa que o valor de troca do patrimnio de X ou ento de Y se desvalorizou e que ele prprio se arruinou. Mas, poder um dia ser eliminada a causalidade pela qual quem sofrer o destino deste X ser certo Jos, ou Joo? Acreditamos que no. E nos parece que tanto mais claramente se apresenta tal causalidade, quanto mais explcita e pura se torna a sociabilidade do processo de reproduo. Aqui temos, sem dvida, uma aparncia de liberdade que, todavia, mera aparncia porque, com a crescente sociabilizao do ser social, o indivduo termina subjugado a conexes, relaes, etc., objetivas cada vez mais numerosas. Falaremos, em seguida, das consequncias posteriores desta situao.

[31]Todavia, mesmo no levando em conta o modo pelo qual a questo da liberdade resolvida, a causalidade da qual partimos deve ser melhor concretizada. Nas observaes feitas nos referimos a dois tipos de causalidade objetivamente heterogneos entre si. Ao primeiro tipo pertence a relao, que s pode ser casual, entre o nascimento de um indivduo em sentido biolgico e a situao social que media tal nascimento. Com isso no se quer negar que a transmisso hereditria, ainda pouqussima conhecida por ns, seja regulada por leis; este fato, porm, no invalida o tipo especfico da casualidade do qual falamos. A causalidade da relao entre lei geral e seus objetos singulares, como j mostramos, tem um carter completamente diferente no ser social, onde o simples singular da natureza inorgnica se desenvolve em um sujeito individual que capaz e obrigado a operar posies teleolgicas. Estas, naturalmente, no so capazes de transformar a universalidade da lei e seus efeitos universalmente casuais, do ponto de vista do indivduo singular que submetido lei, porm criam para os singulares uma margem de manobra que pode, em certa medida, modificar os efeitos da lei geral sobre eles. De fato, bvio que, a propsito dos efeitos da crise descrita, no ser indiferente para os prprios singulares o seu comportamento econmico; as suas aes podem lhe conduzir a evitar as consequncias catastrficas ou, ao contrrio, for-los para dentro da catstrofe. Ao avaliar esta margem necessrio, naturalmente, ter em conta que, para nenhum sujeito podem ser totalmente visveis todas as consequncias das posies teleolgicas; isto por certo restringe esta margem, mas no a anula em absoluto.

[32]No cremos que seja intil deter-se sobre aquelas causalidades que so dados ineliminveis da vida do indivduo porque isto esclarece o quanto pouco as leis gerais da economia, que determinam contedo, forma, direo, ritmo, etc., da reproduo, na sua realizao concreta tm carter mecnico. Igualmente importante , porm, ter presente que o grande nmero de margens de manobra casuais constitui, nos seus efeitos reais, uma parte notvel da vida social dos homens. Para compreender a estrutura dinmica que daqui deriva necessrio entender corretamente o papel e o significado seja da causalidade, seja da necessidade, no seu estreito entrelaamento. O fato que parece se verificar certa polarizao pela qual, primeira vista, a sociedade no seu complexo apresenta um predomnio da lei, da necessidade, enquanto na vida do indivduo, ao contrrio, predominam causalidades de ndole particular, no nos deve induzir a instituir um exagerado polarismo racionalista. O entrelaamento entre lei e causalidade perpassa tanto o todo quanto suas partes. Mais adiante veremos como das complicadas inter-relaes, ao mesmo tempo legais e casuais, entre complexos no interior do complexo total do ser social, em ambos os plos, quer no indivduo singular quer na totalidade da sociedade, o seu ser-precisamente-assim emerge como categoria ontolgica por ltimo determinante. Aqui, tal concluso do nosso discurso pode somente ser enunciada como uma declarao, porque esta categoria pode obter o seu autntico carter sinttico somente da combinao das mais variadas determinaes, por ter somente o nome em comum com o ser-precisamente-assim emprico, posto como princpio e como fim. Aqui, devamos apontar tal concluso, a fim de que a indissolvel coexistncia entre categorias por princpio antitticas e heterogneas, por ns continuamente sublinhada, perca um pouco do seu carter paradoxal.

[33]O ser social um complexo, mas isto absolutamente no significa que ele carea de articulaes. Significa, apenas, que estas no precisam ser entendidas da maneira filosfica que se tornou convencional. Quando a filosofia se ps a criar sistemas, eles resultaram sempre, se considerados na sua imediaticidade, em ordenamentos depurados, homogeneizados, de tipo esttico ou dinmico, mas nos quais frequentemente domina uma hierarquia exatamente proporcionada. Na maior parte dos casos, porm, esta ordem rigorosa contradiz a si mesma, porque os princpios ordenadores derivam com frequncia com escassa ou nenhuma conscincia de uma tcita homogeneizao de princpios heterogneos. Falando de Hegel, procuramos fazer ver que os princpios lgicos da construo se entrecruzam e se mesclam continuamente com aqueles ontolgicos, que esta falsa homogeneidade da heterogeneidade comprime, fortemente, na camisa de fora de uma hierarquia logicista aquilo que corretamente apreendido do ponto de vista ontolgico, assim estranhado a si prprio. Desnaturalizaes semelhantes das prprias intenes so encontrveis, como bvio, em todas as filosofias. Nas nossas consideraes tomamos o comeo e o mtodo do marxismo, materialista e dialtico, reflexo ontolgico-reflexivo da realidade. O materialismo, na ontologia, implica no somente que ela venha livre daqueles ofuscamentos provocados pelas categorias lgicas e gnoseolgicas, mas, tambm e sobretudo, que se distinga, de maneira inequvoca, entre consideraes ontolgicas e valorativas. A velha ontologia que ou tentava substituir em termos filosficos uma religio superada, como aquela da Antiguidade tardia, ou que vinha desenvolvida por via direta da premissa religiosa, como aquela da escolstica, por fora das coisas se encontrava a criar uma graduao hierrquica entre as formas de ser, na qual o ser mais elevado (deus), sendo o ser mais genuno, deveria necessariamente constituir, ao mesmo tempo, o vrtice da hierarquia de valor: pense-se na ligao entre ser e perfeio na prova ontolgica da existncia de deus. Naturalmente, tambm a ontologia materialista, se adequando essncia da realidade, deve reconhecer que o ser possui alguns graus. Todavia, os aspectos e os critrios de tais graduaes devem ser tratados, exclusivamente, pela caracterizao do ser enquanto ser. Isto significa, em primeiro lugar, perguntar-se qual o grau pode possuir ser mesmo quando faltam os outros, e qual, ao invs, pressupe, ontologicamente, o ser daqueles outros graus. Se nos colocamos estas questes, as respostas so claras e facilmente verificveis: a natureza inorgnica no pressupe, em nenhuma forma, nem o ser biolgico nem aquele social. Pode existir em termos completamente autnomos, enquanto o ser biolgico pressupe uma particular constituio do inorgnico e, sem uma perene integrao com ele, no capaz de reproduzir seu prprio ser nem mesmo por um momento. Do mesmo modo o ser social pressupe a natureza orgnica e inorgnica e, sem estes como base, no pode desenvolver as prprias categorias que, no obstante, so diferentes comparadas a tudo naqueles dois graus do ser. Daqui a possibilidade de um ordenamento dos graus do ser sem propsitos valorativos, sem confundir com estes propsitos o problema da prioridade ontolgica, da independncia e dependncia ontolgica.

[34]Em segundo lugar, numa pesquisa puramente ontolgica como esta, a dependncia de uma esfera do ser da outra aparece baseada no fato de que, na esfera dependente, surgem categorias qualitativamente novas comparadas quelas da fundante. Estas categorias novas no so, jamais, capazes de eliminar completamente aquelas que dominam a sua base de ser. As suas relaes recprocas produzem, ao invs, transformaes que conservam os nexos legais do ser que funda a nova esfera, porm inserindo-lhes em novos nexos, fazendo desenvolver suas determinaes em novas situaes dadas, sem poder obviamente, alterar a essncia desta legalidade. As novas categorias, leis, etc., da esfera dependente se mostram novas e autnomas em relao quelas da esfera fundante, mas exatamente na sua novidade e autonomia, s pressupem sempre como base do prprio ser. Disto decorre, em terceiro lugar, como dissemos muitas vezes em outros contextos, que o desenvolvimento da especificidade categorial de uma esfera dependente nunca tem lugar de um golpe, alcanado de repente sua completude, mas constitui o resultado de um processo histrico no qual a perene reproduo das novas formas de ser produz, em um nvel cada vez mais desenvolvido, autnomo, nas suas conexes postas, relativamente, sobre si mesmas, as categorias, as leis, etc. especificamente caractersticas destas formas. Dado que as foras impulsoras destes processos histricos so interaes extremamente complicadas no interior de complexos e entre complexos, dado que no apenas no interior da nova esfera delimitada existem tendncias heterogneas que agem uma sobre a outra; mas, tambm, as relaes do ser fundante com aquelas que se constroem sobre ele revelam interaes entre tendncias heterogneas, estes mesmos processos histricos devem necessariamente ter um carter contraditrio e desigual.

[35]Todavia, se tomamos um perodo suficientemente amplo de tal desenvolvimento, observamos que existem tendncias legais identificveis com exatido em linha de princpio. Na filosofia h, com frequncia, grandes dificuldades em conhec-las corretamente. Antes de qualquer coisa porque, como j mostramos, necessidade, direo, ritmo, etc., destas tendncias so conhecidas somente post festum. Porm, quando no se busca, ao contrrio da proposta de Marx, na anatomia do homem a chave da anatomia do smio, se chega falsa concluso, evidentemente lgica e gnoseolgica, de apreender o processo como teleologicamente dirigido quilo que vem em seguida. Nos processos concretos, porm, no se pode encontrar nenhuma fora motriz teleolgica. Em cada etapa singular, e na passagem quela sucessiva, podem ser identificadas somente conexes causais e as interaes que elas constituem. At no ser social, onde sem dvida as posies singulares operadas pelos homens tm carter teleolgico, as suas interaes reais tm sempre um carter causal puro. A essncia destas posies teleolgicas, como vimos tratando no trabalho, consiste precisamente em colocar em movimento cadeias causais cujas consequncias causalmente determinadas vo muito alm do contedo da posio teleolgica em si. No se deve, em suma, supor nas tendncias evolutivas destas direes dinmicas uma teleologia realmente operante, nem pelo que diz respeito ao ser social, nem pelo que concerne natureza orgnica. A direo do processo reprodutivo, discernvel apenas post festum, pode induzir facilmente a hipotizar uma teleologia, mas o pensamento correto deve resolutamente repelir tais tentaes. Mesmo que as legalidades concretas que vigoram neste campo no sejam por ns conhecidas suficientemente, indubitvel o fato de uma tal direo evolutiva em ambos os graus limtrofes: aquela que ns, no ser social, muitas vezes chamamos afastamento da barreira natural, o constante reforo quantitativo e qualitativo das foras, relaes, categorias, leis, etc. especificamente sociais, se revela como aquele processo no qual as determinaes do ser social se tornam cada vez mais nitidamente sociais, com cada vez maior clareza se desprendem do seu vnculo com as determinaes naturais. Um processo anlogo se verifica tambm na natureza orgnica, na qual as determinaes biolgicas se fazem cada vez mais puras, cada vez mais especificamente biolgicas. A analogia se limita, obviamente, a esta linha geral de movimento: as determinaes singulares, pelo contrrio, as suas relaes, as suas tendncias de crescimento, no apresentam mais nenhuma semelhana.

[36]Certamente podem-se interpretar estes processos em sentido valorativo. Porm, de imediato, se mostra evidente que o ponto de vista da valorao no surge, neste caso, da essncia da coisa, que, pelo contrrio, ele escolhido arbitrariamente, de maneira puramente ideal, e aplicado do exterior sobre uma matria heterognea; e por esta razo que, tambm na histria do pensamento, tem ocorrido frequentemente, e ainda hoje ocorre, a atribuio de predicados de valor quilo que natural, enquanto se valora negativamente a sociabilizao da sociedade. Quando, pelo contrrio, estes processos so examinados apenas como fatos ontolgicos, isto , como tendncias evolutivas internas de um tipo de ser, possvel se aproximar notavelmente, na reflexo intelectiva, do ser-precisamente-assim do ser social. E a perspectiva ontolgica tambm aqui se revela criticamente fundada, ao contrrio do arbtrio ora indicado da valorao. De fato, j na anlise ontolgica do trabalho tivemos como estabelecer que o valor certamente possui, no interior do ser social, um sentido unitrio, derivado do ser, que ele um tipo de comportamento prtico que se deve adotar inelutavelmente, que se desenvolve necessariamente das determinaes especficas do ser social e obrigatrio para o seu funcionamento especfico, mas que, em relao natureza, tanto inorgnica quanto orgnica, no pode seno se apresentar como mera colocao subjetiva, e portanto insuperavelmente arbitrrio. A situao muda imediatamente, como bvio, quando no se trata mais da natureza em-si, mas do intercmbio orgnico da sociedade com a natureza. O trabalho, assim como todas as formas sociais mais complexas da prxis, realiza as posies teleolgicas objetivamente necessrias tambm sobre aqueles objetivos naturais que reentram no crculo deste intercmbio orgnico e, atravs delas, surgem, com necessidade ontolgica, valores e valoraes. Marx, falando do ouro e da prata no contexto do problema do dinheiro escreveu: O ouro e a prata no so por natureza dinheiro, mas o dinheiro por natureza ouro e prata. Pela primeira vez so expostos os critrios de fato, determinados pela economia, que tornam um objeto natural apto a funcionar economicamente como dinheiro: a uniformidade da qualidade, a propriedade de conter um tempo de trabalho relativamente grande... em um volume exguo, etc. Porque as propriedades naturais do ouro e da prata correspondem a tais critrios, o dinheiro por natureza ouro e prata. E Marx tambm indica como, deste intercmbio orgnico da sociedade com a natureza, pode de fato derivar at o valor esttico do ouro e da prata.16[37] este o mtodo para enfrentar a anlise ontolgica da estrutura interna do ser social. Isto , necessita-se indagar que categoria ou complexo categorial teria a prioridade ontolgica em relao ao outro, qual pode existir sem aquele cujo ser, ao invs, pressupe ontologicamente o ser de outro. Se consideramos o ser social desta tica puramente ontolgica, percebemos rapidamente que sem a reproduo biolgica dos homens no possvel nenhum ser social. Este ponto do nexo entre natureza orgnica e ser social , ao mesmo tempo, a base ontolgica de todas as categorias mais complexas e mediadas deste grau de ser. Os homens, por muitssimo tempo, se reproduziram predominantemente sobre um plano meramente biolgico, sem introduzir neste processo as formas de objetividade propriamente sociais. Pelo contrrio, inimaginvel que tais formas existam sem a reproduo biolgica dos homens como sua base de ser. preciso, portanto, atribuir a prioridade ontolgica a este momento do ser, da mesma maneira pela qual num grau superior de desenvolvimento o valor de uso (o objeto natural elaborado com o trabalho, em termos econmicos) que tem a prioridade ontolgica em relao ao valor de troca; mais uma vez, temos que a existncia, o funcionamento do valor de uso possvel sem troca, mais exatamente, sem valor de troca, e isto foi por longos perodos uma realidade, enquanto um valor de troca no capaz de existir sem um valor de uso.

[38]Justamente por causa desta prioridade ontolgica, a reproduo biolgica da vida humana tem uma prioridade igualmente ontolgica em relao a toda outra atividade humana, a toda outra prxis. Obviamente o trabalho, no qual, como mostramos, a especificidade do ser social pela primeira vez se expressa, esteve inicialmente e por longos perodos a servio direto de tal reproduo. A qual , porm, ao mesmo tempo, gnese ontolgica do ser social, enquanto todos os momentos da reproduo biolgica da vida humana conquistam sempre mais um carter social, do vida a determinaes que justamente sobre o plano do ser no tm mais nenhuma analogia com a reproduo biolgica da vida (alimento cozido, vestimentas, etc.); e, de outra parte, pela dialtica do trabalho, da diviso do trabalho, etc. necessrias a tal escopo, introduzem no processo reprodutivo tambm aquelas atividades que so articuladas reproduo biolgica de forma to mediada que j possuem uma constituio social cada vez mais pura (linguagem, troca, etc.). Eis porque Marx, quando afirma a prioridade da economia como metodicamente decisiva para o materialismo histrico, parte exatamente deste fato ontolgico de fundo: Com pessoas despojadas de pressupostos como os alemes devemos comear com a constatao do primeiro pressuposto de toda existncia humana e, portanto, de toda histria, o pressuposto que para poder fazer histria os homens devem ser capazes de viver. Mas o viver implica, antes de tudo, o comer e beber, a habitao, o vestir e outros mais. A primeira ao histrica , portanto, a criao dos meios para satisfazer estas necessidades, a produo da vida material em-si, esta precisamente uma ao histrica, uma condio fundamental de qualquer histria; que ainda hoje, como milnios atrs, deve ser realizada cada dia e cada hora simplesmente para manter os homens vivos.17

[39]No preciso muito para entender que, aqui, se trata de uma deduo ontolgica e no gnosiolgica, lgica ou muito menos de teoria da cincia. A prioridade de ser da reproduo biolgica do homem como ponto de partida de sua atividade econmica, esta como base ontolgico-gentica de suas atividades, enfim, cada vez mais puramente sociais: este um fundamento ontolgico que articula indissoluvelmente o materialismo dialtico, a filosofia geral do marxismo, com a sua teoria do desenvolvimento histrico-social, com o materialismo histrico; tal articulao se torna ainda mais slida e fundamentada se pensamos que tambm a historicidade, como vimos, um princpio ontolgico basilar da concepo de mundo do marxismo. Se postergarmos, como justo, soluo deste problema do ser todos os outros princpios cognitivos, estas conexes, por um lado, indicam com clareza a prioridade ontolgica do ser, por outro lado, fornecem um fundamento ontolgico, apreensvel com igual clareza, ao desenvolvimento histrico das atividades humanas mais complexas, na aparncia completamente independentes da atividade econmica. O materialismo histrico alcana uma sua necessidade interna, resulta fundamentado de uma maneira cientificamente slida, apenas sobre a base de uma ontologia dialtico-materialista.18 [40]No entanto, a aproximao no ontolgica a uma questo eminentemente ontolgica conduz, tambm, a outras confuses filosficas. O mtodo orientado em sentido gnosiolgico leva tanto mais quanto mais se encontra sob a influncia de Kant , por fora das coisas, a misturar incorretamente os mbitos problemticos do ser e do valor. interessante observar como, ainda que Kant rejeitasse nitidamente a lgica da prova ontolgica da existncia de deus, entre seus seguidores comeou, ao contrrio, a se delinear uma convergncia cada vez mais decisiva entre prioridade do ser e grau de valor. E numa dupla direo: aqueles que, no obstante todas as atenuaes gnosiolgicas do mtodo marxiano, queriam de qualquer maneira permanecer fiis ao materialismo histrico e no renunciavam prioridade do econmico na vida social, deram prioridade ontolgica do econmico um tom de valor, tratando com um certo desprezo filosfico toda a superestrutura e, em especial, tudo quanto fosse ideolgico, s vezes com a postura, nem sempre consciente, de ter que tratar com um simples epifenmeno em relao economia, que seria a nica coisa ativa e importante; aqueles, ao contrrio, entre os quais o realamento do valor se torna a tendncia dominante, por este msero motivo desdenharam, por um lado, frequentemente tambm sem se darem conta, as leis sociais e transformaram o desenvolvimento ontologicamente fundado de Marx em um tipo de desenvolvimento de valores. No tem importncia, do nosso ponto de vista, que o modelo fosse dado pelo progresso infinito kantiano ou ento pela filosofia da histria maneira de Hegel. E interessante o fato de que ambas estas tendncias filosficas, com as quais deformado o mtodo de Marx, se encontram em pessoas politicamente orientadas tanto esquerda quanto direita.

[41] o prprio Marx quem, pelo contrrio, estabelece, com grande exatido, a distino entre ser e valor. Todavia, por tudo que dissemos precedentemente, fica claro que e