Resenha a Ferro e a Fogo

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  • 8/3/2019 Resenha a Ferro e a Fogo

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    A FERRO E FOGO: A HISTRIAE A DEVASTAO DAMATA ATLNTICA BRASILEIRA

    Warren DeanSo Paulo, Companhia das Letras, 1996. 484 p.H exatamente 137anos iniciava-se o primeiroprograma de reflorestamento da MataAtlnticacom a recomposio das florestas da Tijuca ePaineiras, no Rio de Janeiro, que poca japresentavam suas constituies florsticasoriginais consideravelmente degradadas em de-corrncia de intensa atividade antrpica. Assimcomo esses, outros segmentos davasta formaoflorestal que originalmente recobria a costa lestedo Brasil entre 8 e 28 de latitude sul e seestendia para o interior cerca de 100km em suaporo norte e mais de 500km na sul, mostra-vam-se tambm sensivelmente depauperados,especialmente em reas do Nordeste e MinasGerais. Acontinuada devastao do bioma MataAtlntica acabou por reduzir sua constituiooriginal a menos de 10% da rea cobertaoriginalmente, o que, independentemente deperdas relativas sua fitofisionomia e diversidadezoolgica, provocou tambm severas alteraesclimticas e pedolgicas, notadamente na regionordestina.O historiador e brasilianista norte-americanoWarren Dean, ao discorrer nos 15 captulos quecompem sua obra sobre a histria das relaesentre o homem e um dos mais importantesecossistemas mundiais a Mata Atlntica ,avalia, atravs de um estudo pioneiro, as vriasfases da interferncia humana sobre esseecossistema nico, apontando as trgicas, emuitas vezes irreversveis, conseqncias doprocesso. Tal panorama, mostra o autor, scomea a se modificar recentemente com o mo-vimento universal de conscientizao ecolgica,que tem induzido a criao de legislao deproteo e programas de reflorestamento,educao ambiental e manejo da floresta.Na esteira da obra clssica de Jean DordstAntes que a natureza morra, que j em 1964alertava sobre o crescente desequilbrio ecolgicono mundo moderno em decorrncia das invaria-velmente desastrosas intervenes humanas nanatureza, Dean, aps breve introduo gnese

    e estabilizao das florestas tropicais da Amricado Sul, nos conduz real temtica de seu livro,que a chegada da "espcie invasora" edevastadora maioro homema esses biomas.A evoluo da ocupao humana da MataAtlntica, que em seus primrdios abrigou dosprimitivos caadores-coletores aos povos indgenastupi, mostrada em paralelo s alteraesantrpicas causadas floresta. Nessa fase pr-portuguesa, o autor destaca as agresses originadaspelas supostamente inofensivas prticas agrcolas"itinerantes" dos indgenas, que atravs desucessivas queimadas acabavam por transformarpequenas reas de floresta primria em focos demata secundria: as capoeiras. Ainda queobservando que tais danos floresta original noeram irreversveis, Dean indaga sobre o que teriaocorrido se os europeus no tivesseminterrompidoa trajetria natural de ocupao e utilizao daflorestapelos autctones. Emqualquer hiptese,o processo histrico de degradao da MataAtlntica acabou por tomar Rimo trgico com achegada dos europeus, cuja desastrosa inter-ferncia naquele ecossistema acelerouconsideravelmente o processo de suadestruio.

    Nos captulos subseqentes, Dean pro-porciona-nos um vivido e bem documentadorelato dos sucessivos ciclos econmicos quecaracterizaram a explorao e degradao daMata Atlntica aps 1500, que, a princpio, seresumiu a atividades extrativistas de essnciasnobresmormente o pau-brasil , e prosseguiucom a gradual derrubadade reasflorestadasparao cultivo de espcies exticas, principalmente acana-de-acar, que representava o esteio daeconomia colonial. O agravamento da destaoda Mata Atlntica d-se com a descoberta dedepsitos de ouro e diamante ao longo de suaporo interna, tendo asatividadesde mineraotransformado certos pontos da floresta originalem"regio escalvada e deserta". importante notarque, nesse cenrio de contnua ocupao humanae sistemtica destruio florstica, muitas espciesdesapareceram por completo de certas reas, oque ocorreu antes mesmo que um inventriopreliminar da biodiversidade da Mata Atlnticapudesse ser produzido. Os botnicos atuais, porexemplo, consideram a existncia de trsvariedades de pau-brasil, tendo uma delas jsidoextinta. O autor, ao examinar as causas e

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    conseqncias biolgicas da expanso europiasobre a floresta Atlntica, no se preocupa emdiscutir a posairafilosfica da sociedade da pocaem relaoaomeio ambiente, que assumia que osrecursos naturais eram inesgotveis e que,conseqentemente, a supremacia do homem sobrea naftireza lhe dava o direito de domin-la etransform-la de acordo com suas convenincias.A evoluo do conhecimento dos ecos-sistemas brasileiros, com as primeiras tentativasde converter o saber emprico dos indgenasquanto identidade e uso dasespcies da florestapara a linguagemcientfica universal, registradapor Dean j no Brasil colnia. O inventariamentocientfico da fauna e flora, porm, somente seintensifica a partir do incio do sculo XIX, emdecorrncia dos esforos individuais de inmerosnaturalistas viajantes estrangeiros e brasileirosque coletaram espcimes durante expediespelo pas. O conhecimento preliminar da riquezafaunstica eflorsticadaMata Atlntica, contudo, noproduziu qualquer efeito inibidor em relao aoprocesso de sua contnua destruio, nem mesmoquanto proteo de seus recursos explotveis.A transio do governo colonial para oimperial considerada pelo autor como tendoacelerado ainda mais o processo de devastaoda Mata Atlntica, j que os brasileiros, exercendoento plena soberania sobre a floresta,passarama "atac-la com redobrado vigor e entusiasmo"visando benefcios imediatos. Cabe citar adominncia da cultura do caf poca, que, porutilizar reas de plantio imprprias para a culturacanavieira,como as regies montanhosas, acaboupor contribuir para a destruio de pores atento intactas da floresta.

    O cenrio de agresso floresta acelera-seconsideravelmente a partir do inciodosculoX Xem decorrncia, entre outros fatores, da explosodemogrfica, do crescente extrativismo predatrioe das prticas da mono-cultura e pecuria.Somados a esses, outros fatores to ou maisagressivos, como a poluio atmosfrica, adegradaodosolo e a contaminaodossistemashdricos provocados principalmente poratividades industriais , contriburam para adrstica reduo de reas saudveis da florestaoriginal.Nos ltimos captulos do livro, o autor discuteas iniciativas de recuperao e preservao das

    reas remanescentesdeMata Atlntica, destacandoa saga dosambientalistas cientistas e leigos para a instituiode cdigosflorestais e a criaode parques e reservas, medidas que tm serevelado razoavelmente eficientes. Nessecontexto,o autor nos revela as primeiras tentativas,realizadas ainda no sculo XIX, de conservar ereflorestar a mata no caso, a Floresta da Tijuca , para proteger os mananciaisda cidade do Riode Janeiro. Registra tambm o alerta, poca,dos cientistas brasileiros FranciscoFreire Alemo,Guilherme Sdidi deCapanema e Ladislau Nettoem relao ao desaparecimento de populaeslocalizadas de espcies animaise a preocupaodos mesmos em conservar as reas restantes decobertura original. Adespeito, porm, da ao dosconservacionistase da legislao que a protege, aMata Atlntica segue sendo sistematicamenteagredida.Governos recentes tmassociado a seusdiscursos desenvolvimentistas a necessidade depreservao do meio ambiente, mas tm semostrado ineficientes em coibir agresses sflorestas brasileiras.Por se mostrar atualmente reduzida a frag-mentos e ainda abrigar uma grande diversidadede espcies endmicas de plantas e animais, aMata Atlntica foi recentemente includa pelaconceituada organizao de proteo ao meioambiente Conservation International entre os 17pontos mais crticos do planeta em termos debiodiversidade ameaada. A conscientizaouniversal de que o ser humano um merocomponente de um planeta vivo e que suasobrevivncia depende de complexos ciclosinterdependentes de uma cadeia trfica estapenas comeando a se difundir. Nesse sentido, aobra de Warren Dean presta-se como um alerta-denncia para a necessidade de se compreendero funcionamento de um ecossistema antes dealter-lo, especialmente em se tratando de sistemada complexidade deuma floresta tropical.Por suaampla abordagem e expressivo volume de dadosapresentados tanto de fontes primrias comobibliogrficas constitui ainda excelente fontede consulta para todos aqueles que se interessampor temas relacionados conservaoeexploraode recursosnaturais.

    MagaliRomeroSPesquisadora do Museu da Vida/Casa de Oswaldo Cruz