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Resenha: Cem Anos de Solidão Cotidiano como um café sempre tomado sem açúcar, histórico como trinta e dois levantes armados de liberais contra conservadores. Problemas individuais como duas mulheres que amam o mesmo homem e passam a silenciosamente disputa-lo, outros coletivíssimos como trabalhadores em greve assassinados, todos amontoados em um trem sombrio. Cem anos de solidão é um livro que age como uma tomada de fôlego dos universitários que tiram a cabeça para fora do mar de textos acadêmicos, por vezes tão sufocantes. Gabriel García Márquez não é objetivo nem científico nesse livro, na medida em que não recorta espaço e tempo “reais” (empíricos?) para estudar, não cita suas fontes (apesar de com certeza possuí-las) e não faz referências bibliográficas. E isso não tira o valor do livro, que é Literatura e não História, mas ao contrário: acrescenta. São frases que além do sentido imediato trazem significados transcendentes, palavras e construções que levam a tradutora a escrever notas de rodapé para dizer ao leitor o que o autor pretendia. Um texto por vezes “intraduzível” como um Guimarães Rosa. Caminhamos pelo texto de García Márquez levados por uma trama entre a percepção individual (especialmente da família central, os Buendía) e a memória coletiva. Lemos impressões particulares das personagens, suas visões sobre o mundo e as pessoas, da mesma forma que lemos a visão que Macondo (ou melhor, seus habitantes) tem de si mesma, a visão que a pequena vila, afastada de tudo, tem dos acontecimentos e dos personagens de sua história. Um texto em círculo, que constrói repetições pelas gerações familiares: mesmos nomes, mesmas personalidades, o fazer e desfazer perto da morte, irmãos libertinos e outros politicamente ativos, mulheres fortes; como também repetições ao longo da história do povoado: diversas empreitadas , aparentemente loucas, com as inovações técnicas de José Arcadio Buendía, mais tarde com transporte (o trem e o navio), comunicação com o correio aéreo; as lutas liberais e depois sindicalistas, enfim. Vamos aos cem anos de solidão: “Foram eles os primeiros mortais que viram a vertente ocidental da serra. Do cume nublado contemplaram a imensa planície aquática do grande pântano, espraiada até o outro lado do

Resenha - Cem Anos de Solidao

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Resenha: Cem Anos de Solidão

Cotidiano como um café sempre tomado sem açúcar, histórico como

trinta e dois levantes armados de liberais contra conservadores. Problemas

individuais como duas mulheres que amam o mesmo homem e passam a

silenciosamente disputa-lo, outros coletivíssimos como trabalhadores em greve

assassinados, todos amontoados em um trem sombrio. Cem anos de solidão é

um livro que age como uma tomada de fôlego dos universitários que tiram a

cabeça para fora do mar de textos acadêmicos, por vezes tão sufocantes.

Gabriel García Márquez não é objetivo nem científico nesse livro, na

medida em que não recorta espaço e tempo “reais” (empíricos?) para estudar,

não cita suas fontes (apesar de com certeza possuí-las) e não faz referências

bibliográficas. E isso não tira o valor do livro, que é Literatura e não História,

mas ao contrário: acrescenta. São frases que além do sentido imediato trazem

significados transcendentes, palavras e construções que levam a tradutora a

escrever notas de rodapé para dizer ao leitor o que o autor pretendia. Um texto

por vezes “intraduzível” como um Guimarães Rosa.

Caminhamos pelo texto de García Márquez levados por uma trama

entre a percepção individual (especialmente da família central, os Buendía) e a

memória coletiva. Lemos impressões particulares das personagens, suas

visões sobre o mundo e as pessoas, da mesma forma que lemos a visão que

Macondo (ou melhor, seus habitantes) tem de si mesma, a visão que a

pequena vila, afastada de tudo, tem dos acontecimentos e dos personagens de

sua história. Um texto em círculo, que constrói repetições pelas gerações

familiares: mesmos nomes, mesmas personalidades, o fazer e desfazer perto

da morte, irmãos libertinos e outros politicamente ativos, mulheres fortes; como

também repetições ao longo da história do povoado: diversas empreitadas ,

aparentemente loucas, com as inovações técnicas de José Arcadio Buendía,

mais tarde com transporte (o trem e o navio), comunicação com o correio

aéreo; as lutas liberais e depois sindicalistas, enfim. Vamos aos cem anos de

solidão:

“Foram eles os primeiros mortais que viram a vertente ocidental da serra. Do cume nublado contemplaram a imensa planície aquática do grande pântano, espraiada até o outro lado do

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mundo. Certa noite, depois de andarem vários meses perdidos entre os charcos, já longe dos últimos índios que haviam encontrado no caminho, acamparam às margens de um rio pedregoso

cujas águas pareciam uma torrente de vidro gelado” Na passagem acima o escritor nos fala sobre a travessia por um grande local desabitado, sem quaisquer resquícios de ações antrópicas. É neste cenário, onde a civilização ainda não havia ousado tocar os pés, que José Arcadio Buendía funda a aldeia de Macondo, povoado cresce alheio à civilização, longe de qualquer influência de um governo ou do clero. Isolados, sem qualquer contato com os centros urbanos e os campos, configuração que poderia ser de muitas aldeias latino-americanas de um período parecido, como visto em Facundo. Esse afastamento germina tradições próprias: a proibição das brigas de galo (que levaram à morte de Prudêncio Aguilar em época anterior à fundação de Macondo); um catolicismo diferenciado (como na América colonial); inovações que chegam através dos ciganos e tem no patriarca do povoado o principal admirador - intermediário confuso entre a tradição e a modernidade, enfim. Falando sobre Nycanor Reyna, o padre, o trecho abaixo mostra o catolicismo diferenciado de Macondo acima referido:

“Pensando que em nenhuma terra fazia falta a semente de Deus, decidiu ficar mais uma semana, para cristianizar circuncisos e gentios, legalizar

concubinários e sacramentar moribundos. Mas ninguém lhe deu importância. Respondiam-lhe que muitos anos tinham ficado sem padre, arranjando os negócios da alma diretamente com Deus, e haviam perdido a malícia do

pecado mortal.” Este texto faz lembrar Sarmiento, que desenvolve uma reflexão similar acerca da religião popular desenvolvida nos pampas argentinos:

“Eis a que está reduzida a religião nas campanhas pastoris: à religião natural. O cristianismo existe, como o idioma espanhol, como tradição que se perpetua, mas corrompido, encarnado em superstições grosseiras, sem instrução, sem

culto e sem convicções” Macondo é nesse sentido bastante reconhecível em diversos povoados

de países da América Latina, especialmente da espanhola. Bastante católica,

mas não como a metrópole. Tem algo de sincrético, cigano, leitura de cartas,

chás que curam, alguma superstição, um catolicismo de fato menos europeu.

Da mesma forma, a cidade é particular, posto que afastada e desligada, até

que começa a tornar-se cada vez mais parecidas com tantas outras: as lutas

entre liberais e conservadores, a rua de comércio do turcos, a chegada do

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trem, a companhia bananeira, a queda de braço entre empresários americanos

e sindicalistas, enfim. A cada passo Macondo nos leva a diversos outros

passos dados pela América colonizada, primeiro por um imperialismo europeu

e depois pelo norte-americano.

Antes disso, enquanto germina, a relação do povoado se da apenas com

os ciganos e suas bugigangas. Melquíades e sua companhia trazem as

inovações técnicas: bússula, astrolábio, mapas, alquimia, ímas, pedra filosofal.

O patriarca dos Buendía se alucina com as novidades, a cada dia assume uma

nova empreitada aparentemente louca, nos mostra o mundo dúbio de realidade

científica e fantasia. Ele é o elo entre a Tradição e a Modernidade. E entre uma

e outra, Macondo “faz sua escolha” (assim mesmo, entre aspas): amarra em

um carvalho a Tradição sob a forma de José Arcadio Buendía; em uma árvore

centenária, ela permanece amarrada em sobrevida, até que chegue sua morte

quase não percebida pelo povo – algo muito significativo. Essa mesma árvore

verá a morte de um Coronel Aureliano Buendía (filho da tradição e símbolo da

segunda geração e das seguintes) já velho e cansado, entregue aos peixinhos

dourados, enquanto é urinada por ele.

Personagem importante, única a percorrer o romance quase todo, é

Úrsula, mulher de José Arcadio Buendía. Logo no início do livro ela sai do

povoado a procura de seu filho Arcadio - que fugiu para cidade acompanhando

um grupo de ciganos. A matriarca fica um tempo ausente e quando retorna trás

consigo a civilização:

“Macondo estava transformado. As pessoas que tinham vindo com Úrsula

divulgaram a boa qualidade do solo e a sua posição privilegiada em relação ao pântano, de modo que a reduzida aldeia de outros tempos transformou-se logo num povoado ativo, com lojas e oficinas de artesanato, e uma rota de

comércio permanente.”

O povoado que crescia tomava forma do que poderia ser uma cidade de

país hispano-americano. Começa a ensaiar uma disputa, como já dito aqui,

entre liberais e conservadores, algumas terras começam a se concentrar nas

mãos de alguns (como um José Arcadio, da segunda geração), o abuso de

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poder de um caudilho, elementos comuns a vários países vizinhos ao nosso ao

logo do Século XIX:

“Os liberais, dizia, eram maçons; gente de má índole, partidária de enforcar os padres, de instituir o casamento civil e o divórcio, de reconhecer iguais direitos aos filhos naturais e legítimos, e de despedaçar o país num sistema federal que despojaria de poderes a autoridade suprema. Os conservadores, ao contrário,

que tinham recebido o poder diretamente de deus, pugnavam pela estabilidade da ordem pública e pela moral familiar; eram os defensores da fé de cristo, do princípio de autoridade, e não estavam dispostos a permitir que o

país fosse esquartejado em entidades autônomas”

O conflito acaba culminando com a derrota dos liberais. Seus partidários, a

partir de um acordo, passam o ocupar cargos dentro do governo conservador.

Coronel Aureliano Buendía, em um momento posterior ao término da guerra,

resume o dito em uma única frase, que serve ao livro e à História das

Academias: “A única diferença atual entre liberais e conservadores é que os

liberais vão a missa das cinco e os conservadores à missa das oito”

Tempos depois se instala em Macondo a empresa americana

“Companhia das Bananeiras” que promove um grande surto industrial na

cidade. Juntamente à chegada do capitalismo, percebemos também o

surgimento de uma classe operária organizada. José Arcádio Segundo passa a

trabalhar na companhia e mantendo a tradição militante da família, iniciada por

Aureliano Buendía, se integra ao movimento sindical, promovendo uma série

de revoltas e protestos contra a empresa estrangeira. É nesse contexto que

acontece a chacina dos grevistas, cujos corpos são levados em um trem

mórbido com José Arcadio Segundo entre os mortos, mas vivo. Ele volta e a

História Oficial dali em diante não passava nem perto da chacina, e todo o povo

desconhecia esse acontecimento. É o poder do discurso oficial, dos livros de

História nas escolas – com o qual nós historiadores devemos estar sempre

atentos e cuidadosos. Essa maquiagem histórica nos é muito conhecida na

América latina e mais reconhecível ainda na América espanhola.

Após o episódio, a “Companhia das Bananeiras” cessa suas atividades e

iniciaram-se longos anos de chuvas intermitentes. É a literatura falando das

companhias que chegam, abusam da mão-de-obra, desrespeitam o

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trabalhador, esgotam a região, o solo, as matérias primas e vão embora

quando o investimento não é mais interessante, deixando para trás um povo

devastado. Depois de anos, quando chega o fim da tormenta, Macondo já não

era a mesma. Houve o surto de desenvolvimento que desconfigurou aquele

antigo povoado, americanizando toda Macondo e seus habitantes, mudando

toda a rotina e costumes. E houve a crise deixada pela empresa, a chuva que

dura anos pode ser vista justamente como essa resseção: ninguém saia de

casa, não havia mais comida, os lares mofavam, as pessoas também, a cidade

aos poucos fica abandonada e vazia. Uma crise severa da qual poucos

permanecem.

O círculo da história, ao qual me referi no começo, se fecha na última

geração. Tudo começa com dois parentes que tem um filho que nasce com

rabo de porco, algo que sempre amedrontou Úrsula – que inclusive evitou o

quanto pode ter filhos com seu marido -, e termina com um sobrinho e sua tia

tendo um caso extraconjugal e por isso um filho, que nasce com rabo de porco.

Pouco ligados às tradições e histórias da família, não sabem o porquê disso e

imaginam que é alguma anomalia que logo desapareceria. Mas não, as

formigas que foram tão combatidas agora já tomavam a casa, levaram o bebê

embora e Macondo foi consumida por uma tempestade enquanto os escritos de

Melquíadas eram decifrados simultaneamente aos acontecimentos.