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Resenha comparativa entre “Conto alexandrino”1 (Machado de
Assis) e “O médico e o monstro”2 (Robert Louis Stevenson)
Jonatas T. Barbosa3
O “Conto alexandrino”, de autoria de Joaquim Maria Machado de Assis, publicado
originalmente na Gazeta de Notícias no ano de 1883, é uma de suas obras que tratam da
crueldade de forma mais explícita. Contudo, diferente de “A causa secreta”, conto
machadiano em que a crueldade abordada deriva do comportamento sádico do personagem
Fortunato, no “Conto Alexandrino” a ciência é a fonte da crueldade. O conto explora a
transgressão dos limites éticos resultante do progresso científico.
A ciência como elemento construtor da monstruosidade será o ponto de contato que
usaremos para relacionar o “Conto Alexandrino” à obra O médico e o monstro, escrita pelo
escocês Robert Louis Stevenson e publicada em 1886. Ao longo deste ensaio analisaremos as
semelhanças e as diferenças entre os monstros nas duas narrativas.
“O médico e o monstro” explora, também, a desmedida do homem quando
conduzido exclusivamente pela racionalidade científica, formal e sem espaço para a
sensibilidade à vida humana. Dr. Jekyll, um médico bem sucedido e prestigiado socialmente,
deseja separar o lado perverso e benigno da alma humana através da ingestão de uma
fórmula química. Ele obtém sucesso, dando origem a Mr. Hyde, um monstro derivado se sua
própria essência perversa.
Usaremos o termo monstro e monstruosidade de forma distinta. Monstro será
definido como a criatura que, apenas com sua presença, é capaz de estimular o medo e
repulsa. O requisito para a existência do monstro é sua presença física, direta ou
indiretamente percebida por outros personagens. Um monstro, com todos os seus atributos
repulsivos e impuros devem existir ao alcance dos personagens ou em suas memórias e
imaginação.
A monstruosidade não se define por uma presença corpórea em um tempo e um
espaço, como o monstro Mr. Hyde. Trata-se de uma “qualidade” do ato cruel, mas sem que
1 ASSIS, Machado de. Conto Alexandrino. In:___. Obras completas. V. 2. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1962. 2 STEVENSON, Robert Louis. O médico e o monstro. In: SHELLEY, M., STEVENSON, R. L., STOKER, B.
“Frankenstein”, “Drácula” e “O médico e o monstro”. Tradução de Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Ediouro,
2001. 3 Graduando do Curso de Letras da UERJ, bolsista voluntário de Iniciação Científica e membro do Grupo de
Pesquisa “O Medo como Prazer Estético”, sob a orientação do Prof. Dr. Julio França (UERJ).
seu agente venha a ser necessariamente um monstro. Encontramos essa evidência no
“Conto alexandrino” em que o agente da crueldade não atinge o status de monstro causador
de horror artístico, conforme a definição de Nöel CARROLL4 (1999, p. 45), porque a narrativa
não sugere ao leitor repugnância por Herófilo e seus discípulos, mas, sim pelos seus atos.
Não há uma indicação, na narrativa, que sugira que eles sejam materialização da causa do
medo e da repulsa por si só, como é o caso explícito de Hyde.
Desde o início do “Conto alexandrino” a pretensão de Stroibus em obter sucesso em
seus estudos científicos é clara. A narrativa não esconde os objetivos do filósofo, nem a
forma que utiliza para alcançá-los. Podemos transitar livremente entre as ações metódicas
em que submetia os ratos a cortes e mutilações, e as reflexões argumentativas do
personagem. A perspectiva da razão sempre prevalece, sem que os personagens hesitem e
reflitam sobre o aspecto dramático da crueldade que inflige aos animais. Para apoiar o
discurso de Stroibus, o próprio narrador chega a interferir em favor da necessidade
científica: “A ciência, como a guerra, tem necessidades imperiosas” (ASSIS, 1962, p. 413).
Sendo assim, o contraste causado pela presença constante da racionalidade asséptica
intensifica a recepção da monstruosidade que compõe os atos de crueldade.
Em “O médico e o monstro”, diferente do “Conto alexandrino”, a ciência como causa
da existência do monstro não é evidente, a não ser no desfecho da narrativa. Durante a
leitura, tem-se a impressão de estarmos seguindo os pontos de vista dos personagens que
interagem com Jekyll/Hyde. Essa frequente sensação de subjetividade também é conferida
pelo caráter epistolar de alguns capítulos. A narrativa, inicialmente, induz o leitor a descobrir
qual a relação entre Jekyll e Hyde, dando ênfase ao que os personagens sentem ao
encontrá-los. O fato de ser a ciência a fonte criadora do monstro é escondido do leitor.
O narrador acompanha os pontos cegos da trama, concentrando-se nos problemas
causados por Hyde e na atmosfera de mistério tecida em torno dele. O homem cruel e
desconhecido é o elemento que desestabiliza a vida dos londrinos desde a primeira vez que
é visto. Quando ele se aproxima de Enfield, que o descreve a seu amigo Utterson, deixa
fortes indícios de que Hyde é um monstro, pura essência do mal:
4 Segundo Carroll, o horror artístico é o estado emocional causado por monstros de ficção de horror. Para
causarem o horror artístico, os monstros devem ser avaliados, pelo leitor, como fisicamente (e talvez moral e
socialmente) ameaçadores e repulsivos.
– Não é fácil descrevê-lo. Há algo de errado com sua aparência; Aldo de desagradável, algo positivamente detestável. Nunca vi homem com quem tivesse antipatizado tanto, e agora mal sei por quê. Deve ser deformado, de algum modo; passa uma forte impressão de deformidade, embora eu não esteja apto a especificá-la. É um homem de aparência extraordinária, e no entanto não sou capaz de mencionar uma única característica incomum. Não senhor; não faz sentido para mim. Não consigo descrevê-lo. E não é por me falhar a memória, pois afirmo-lhe que sou capaz de visualizá-lo neste exato instante. (STEVENSON, 2001, p. 634)
Essa impressão de horror é confirmada por todos os personagens que entram em
contato com Hyde ao longo da história. Todavia, o leitor fica esclarecido de que o monstro
Hyde é resultado da experiência científica apenas no último capítulo (chamado “Depoimento
completo de Henry Jekyll sobre o caso”), em que o mistério é desvendado pelo ponto de
vista da consciência do próprio Dr. Jekyll.
A ambição dos cientistas Jekyll e Stroibus é a chave para os resultados inesperados de
suas experiências científicas. A ciência, por si, não é uma entidade que induz o homem à
transgressão, ela é apenas um meio, pois é o homem, que pretensiosamente a interpreta e a
utiliza sem pesar.
No “Conto alexandrino”, Stroibus diz ter violado o segredo dos deuses (ASSIS, 1962,
p. 412), o que lhe permitia modificar o comportamento humano, conferindo a si mesmo o
poder da divindade. Ele não só descobre como alterar a natureza dos homens como acha
que pode dominá-los: “Temos coisa melhor do que esses tratados, interrompia Stroibus.
Trago uma doutrina, que, em pouco, vai dominar o universo; cuido nada menos que em
reconstituir os homens e os Estados, distribuindo os talentos e as virtudes”. (IBID.)
São sinais claros de uma pressuposta desmedida humana. Apesar de o filósofo ter,
com a ajuda de Pítias conseguido provar, na prática, sua teoria, ambos se tornam vítimas da
má fortuna causada pela soberba. Stroibus e Pítias, após ingerirem o sangue do rato,
transformam-se em ladrões. Os filósofos são consagrados e respeitados por seu feito, mas o
sucesso da conquista é paradoxal. Eles próprios haviam se convertido nos ratos de seu
laboratório. Por isso, entre outros crimes, roubam livros preciosos da biblioteca de
Alexandria. Uma transgressão direta às leis do rei Ptolomeu. Crime passível de morte.
Contudo, o destino reservado aos dois filósofos se provou pior do que a pena capital.
O caso de “O médico e o monstro” é similar. Dr. Jekyll teoriza que o homem é
dividido em duas essências, uma má e outra boa. Produz, então, uma fórmula através de
experimentos químicos que resulta na divisão dessas duas essências do homem. Dr. Henry
Jekyll demonstra a mesma prepotência sobre a natureza humana desconhecida que
Stroibus, ao presumir ter total controle: “Posso me livrar de Hyde quando quiser”
(STEVENSON, 2001, p. 644). O uso contínuo da fórmula desestabiliza o equilíbrio de seu
próprio ser. Em consequência, Hyde chega a cometer um homicídio, e, por fim, não há saída
além da morte de “ambos”.
A diferença em relação ao modo como as duas histórias tratam a desmedida
científica se revela, no “Conto alexandrino”, no foco das questões éticas da ciência e nos
limites de sua autonomia e autoridade, enquanto em “O médico e o monstro”, se concentra
na relação problemática do homem com sua própria dualidade antagônica, o conflito entre a
perversidade e a compaixão, e como ceder a esses impulsos perversos abalam a sociedade.