Resenha Ginzburg Medo Reverência e Terror

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    Recebido 20 de fevereiro de 2014 | Aprovado 14 de dezembro de 2014

    http://dx.doi.org/10.1590/0104-87752015000100016

    Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 31, n. 55, p. 307-311, jan/abr 2015

    GINZBURG, Carlo.

    Medo, reverncia, terror.

    Quatros ensaios de iconografia polticaTraduo de Federico Carotti, Jlio Castaon Guimares

    e Joana Anglica dAvila Melo.

    So Paulo: Companhia das Letras, 2014. 200p.

    E A R

    Colegiado de Artes Visuais

    Universidade Federal do Vale do So Francisco

    Av. Antonio Carlos Magalhes, 510, Juazeiro, BA, 48.902-300, Brasil

    [email protected]

    J faz algum tempo que a dimenso visual da histria e da vida em

    sociedade tem chamado a ateno do principal nome do campo co-

    nhecido como micro-histria, seja na Itlia ou fora dela. Depois deseus estudos mais importantes nesse campo, o autor passou a explorar

    o gnero do ensaio, com a verve da polmica e da erudio, como se

    v nas obras Relaes de fora, Olhos de madeira, O fio e os rastros,

    nas quais Carlo Ginzburg tem apresentado sucessivamente no apenas

    seu farto conhecimento sobre longos perodos da histria do Ocidente,

    particularmente da Europa, mas tem posto essa erudio em funo de

    problemas histricos instigantes, a partir das possibilidades dadas pelo

    mtodo indicirio que ele sistematizara em texto hoje clssico.

    O ponto de partida que rene os quatros captulos do seu mais re-

    cente livro,Medo, reverncia, terror, originalmente publicados como

    quatro ensaios independentes, a temtica mais ou menos comum que

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    lhes abrange e que Ginzburg filia ao conceito de Pathosformeln. Lanado

    pelo historiador da arte alemo Aby Warburg, mestre de uma gerao e

    conhecida referncia do autor italiano, o conceito designa as frmulas

    histricas de representao das emoes na arte, vazadas na gestuali-

    dade corporal ou na expressividade facial dos sujeitos. Mas, desta vez,

    trata-se de uma releitura, considerando-se que Ginzburg, emMitos,

    Emblemas, Sinais, j mapeara o conceito sobre a obra de Warburg.

    Como instrumento analtico, as Pathosformeln constituem uma

    noo que ilumina as razes antigas de imagens modernas e a maneira

    como tais razes foram reelaboradas (p.12), especialmente sob o signo

    da ambivalncia entre emoes contraditrias. As Pathosformeln infor-mariam a criao visual, mesmo que o prprio artista eventualmente

    no saiba de onde vm essas formas que ele emprega. Ao acentuar a

    tenso entre morfologia e histria, que tambm havia sido abordada

    antes, Ginzburg, enquanto historiador, testa o conceito em favor da

    condio histrica das obras de arte, de sua criao e recepo, com

    nfase na questo do poltico e dos temas das trs emoes correlatas

    (medo, reverncia, terror) que, embora distintas, teriam se reforado esustentado a dominao, a contestao e a memria do poder.

    Ricos em imagens, os captulos tm o mrito de no reduzi-las ao uso

    ilustrativo, mas convoca-as para a narrativa, chamando o leitor para que

    veja os indcios privilegiados na abordagem. No entanto, esse exerccio

    chega a ser um tanto exaustivo, dado o volume de vestgios e informa-

    es levantados, que pedem, e permitem, mais anlise das imagens em

    si mesmas. Inclusive, no primeiro captulo, o privilgio no dado

    imagem e sua constituio: o prprio Ginzburg diz que trata, antes, de

    um caso de Logosformel(frmula de ideias), pois a abordagem sobre

    os frontispcios de duas edies do Leviat, de Hobbes, cede espao

    discusso dos conceitos do medo e da reverncia, onde so exploradas

    as possveis conotaes religiosas da construo filosfica do pensador

    ingls sobre o Estado, contrariando a tradio que o considera j secu-

    larizado, e secularizador, da poltica.

    No segundo captulo, uma das mais famosas pinturas do perodorevolucionrio francs, oMarat em seu ltimo suspiro, de Jacques-Louis

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    David, confrontada com outras obras de seu tempo e com as formas

    capturadas indiretamente da religio e que teriam favorecido o surgi-

    mento do culto a esse personagem poltico. O terceiro captulo indaga

    detalhes do cartaz que trazia o rosto do marechal-de-campo ingls Lord

    Kitchener, no comeo do sculo XX, que veio a inspirar no apenas o

    cartaz estadunidense de recrutamento para a guerra com o rosto do Tio

    Sam, como tambm vrios produtos similares da propaganda poltica

    que tiveram por funo intimar o espectador. Segundo o historiador, a

    lngua demtica da propaganda atualizou um motivo clssico da pin-

    tura aquele do olhar vigilante e do dedo apontado que parecem saltar

    da tela rumo ao espectador por fora da expresso pictrica.O quarto captulo, em que Ginzburg mais uma vez visita a obra

    de Pablo Picasso, depois do ensaio anteriormente publicado sobre

    Demoiselles dAvignon, , sem dvida, o mais denso, e o que mais chama

    a ateno dos historiadores interessados nas circunstncias sociais de ela-

    borao de uma obra de arte. Aps nova digresso pelos temas clssicos

    da pintura das paixes encarnadas nos corpos, temas que de algum

    modo chegaram a Picasso, Ginzburg olha para a iconosfera e para osimpressos que envolviam o pintor, antes e no momento da produo de

    Guernica, em 1937: a arquitetura, os objetos escultricos, a imprensa,

    os textos surrealistas. E o cotejamento com os esboos fotografados

    do mural ampliam ainda mais esse espectro documental, e colocam a

    possibilidade de anlise das operaes de escolha e excluso do artista,

    repercutidas na obra acabada e no tecido histrico para o qual ela vir

    luz e do qual far parte.

    Pode-se dizer que os ensaios de Ginzburg tm a ver com um mo-

    mento em que a historiografia tem se preocupado com aquilo que foi

    chamado por vrios nomes, como cultura visual, modos de ver, com a

    visualizao, enfim, do passado e que no preocupao exclusiva dos

    historiadores que privilegiam a abordagem de documentos visuais, mas

    um ngulo estratgico de questionamento dos vestgios que pode inte-

    ressar seja aos historiadores da arte, seja aos da mdia, ou aos da poltica.

    E isso indicativo de uma ateno tica, pontuada pelo autor logo noprimeiro captulo, ao assdio exercido atualmente pelas imagens, que,

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    por sua ubiquidade, tornaram-se cada vez mais indissociveis das nossas

    prticas de conhecimento, de produo cultural e de insero na esfera

    do poltico. Embora o autor defina critrios prprios de anlise e chegue

    s suas concluses em funo de problemas especficos, inegvel a

    constatao de que seus textos engrossam a fileira de uma historiografia

    que tem relacionado o poltico e a dimenso visual, exemplificada no

    captulo sobre poder e protesto do livro de Peter Burke, Testemunha

    Ocular, ou no outro livro deste sobre Lus XIV, e nas diferentes tradies

    de estudos que tm relacionado a arte s suas demais implicaes na so-

    ciedade, e da podem se incluir, dentre outros, os nomes de importantes

    historiadores, como o prprio Warburg e seu crculo de Hamburgo eLondres, Pierre Francastel, Svetlana Alpers, Michael Baxandall, Louis

    Marin e Georges Didi-Huberman, embora Ginzburg se afaste delibe-

    radamente de algumas perspectivas deste ltimo.

    Resta que, em que pese a defesa, por Ginzburg, de um mtodo por

    excelncia conjectural, nem sempre ficam claros os trnsitos de perdas

    e acrscimos das Pathosformeln, o que demandaria estudos de mais

    flego do que os ensaios podem comportar. Mas isso em si reveladorde que o historiador italiano no toma o conceito de Warburg como car-

    tilha mecnica, mas como provocao para que se investiguem questes

    particulares com rigor de mtodo para tratar os artefatos trabalhados

    como documentos, como ele demonstra em relao ao circuito social

    de produo, circulao e, eventualmente, consumo de algumas obras.

    Alm disso, lembramos que certas vertentes da historiografia bra-

    sileira, por vezes genericamente chamada de histria cultural, acos-

    tumaram-se a trabalhar com as emoes e sensibilidades, nem sempre

    com chaves de leituras como a do medo, mas, em todo caso, com pouca

    articulao com a questo do poltico, e pouca explorao da dimenso

    visual, salvo algumas excees. Mas se existe nesse tipo de abordagem

    o risco de s veros vestgios histricos das emoes naqueles produtos

    que foram nomeados como o sendo o sorriso da sociedade (como

    a arte, a literatura ou mesmo a publicidade), seria possvel pensar na

    existncia, entre os grupos sociais sem escrita e sem o mercado insti-tucionalizado de arte, de formas histricas recorrentes, e que sofrem

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    reinterpretaes, na expresso e na representao das emoes? Seus

    vnculos, cotidianos, insuspeitos, com a poltica, no constituiriam ma-

    tria de interesse para o historiador, sobretudo em espaos, como os que

    h e houve no Brasil, nos quais a poltica, seus ritos e seu espetculo

    foram durante muito tempo expressos, veiculados e vividos em termos

    orais, gestuais, costumeiros, cerimoniais, que recorriam tambm ao

    ver e sua historicidade? Por outro lado, a ferramenta conceitual das

    Pathosformeln serve para o tratamento de outras imagens, aquelas cha-

    madas de tcnicas pela crtica especializada, como o cinema e a foto-

    grafia, que, a depender do circuito social, podem, com efetividade, jogar

    o papel inequvoco de cristalizao e veiculao das paixes polticas?Para finalizar, entendemos, portanto, que o livro de Ginzburg abre

    clareiras metodolgicas que ultrapassam suas referncias predominante-

    mente europeias, sendo til no sentido de pensar, para outras configu-

    raes sociais, uma histria poltica, ou uma histria social da arte, ou

    uma histria das sensibilidades, que desbordem seus campos tradicio-

    nais, pondo em xeque os engavetamentos histria cultural, histria

    poltica etc. , e enfocando os problemas a partir do cruzamento deabordagens.