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Página | 1 - www.ElielVieira.org - RESENHA – “MENTALIZE” ANDRE MATOS Por: Eliel Vieira Fiquei com vontade de escrever uma resenha sobre o álbum Mentalize, segundo trabalho solo de Andre Matos, logo na primeira vez que o ouvi. Contudo, dado a alta carga de complexidade do álbum – desde sua temática até as frases de bateria nas músicas – sempre protelei esta tarefa. Como escrever resenhas sobre álbuns musicais é algo difícil, e como é mais difícil ainda escrever resenhas sobre álbuns complexos, não queria correr o risco de que minha resenha fosse um não-atrativo para as pessoas. Após alguns meses ouvindo Mentalize, aqui vai minha resenha. Sempre polêmico e criativo Andre Matos e seu grupo 1 compuseram um álbum bem particular. Em vários pontos Mentalize é distinto dos outros álbuns de Heavy Metal que tem sido lançados. A temática do álbum mistura religião, misticismo, obscurantismo, ciência e razão – por mais antagônico que isto possa parecer ser a alguns. A capa do disco, aparentemente simples e sem muita sofisticação 2 , contém o que a princípio parece ser um labirinto. Contudo, diferentemente de um labirinto tradicional que possui várias pegadinhas e do qual pouquíssimas pessoas conseguem sair, o labirinto gótico da capa de Mentalize possui apenas um caminho a se seguir, que inequivocamente conduz ao seu centro. De acordo com o mentalizador desta ideia, Andre Matos, o labirinto representa nós mesmos, e o caminho que devemos percorrer até o centro para obtermos autoconhecimento 3 . Pode-se, contudo, imaginar um milhão de coisas ao olharmos este labirinto: não raro perdermos o rumo do caminho do labirinto quando estamos o seguindo apenas com os olhos – o que poder representar a dificuldade que as pessoas têm de se autoconhecer, mesmo pensando a princípio que esta tarefa seja fácil; o encarte do CD é todo furado, formando uma espiral que coincidentemente está em sentido contrário ao sentido do labirinto, o que ajuda a nos confundir – o que pode representar os atalhos que projetamos para tentar 1 Apesar de ser liderada pelo vocalista Andre Matos e se chamar “Andre Matos”, “Andre Matos” é uma banda, com vários integrantes. 2 Quando a imagem da capa do disco foi divulgada na internet algumas semanas antes de seu lançamento, vários fãs da banda a criticaram, considerando-a simples, tosca, rude e sem sentido. 3 Em entrevista à revista Roadie Crew, ano 12, nº 131, Dezembro/2009.

Resenha: "Mentalize" - Andre Matos

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RESENHA – “MENTALIZE”

ANDRE MATOS

Por: Eliel Vieira

Fiquei com vontade de escrever uma resenha sobre o álbum Mentalize, segundo trabalho solo

de Andre Matos, logo na primeira vez que o ouvi. Contudo, dado a alta carga de complexidade do

álbum – desde sua temática até as frases de bateria nas músicas – sempre protelei esta tarefa. Como

escrever resenhas sobre álbuns musicais é algo difícil, e como é mais difícil ainda escrever resenhas

sobre álbuns complexos, não queria correr o risco de que minha resenha fosse um não-atrativo para as

pessoas. Após alguns meses ouvindo Mentalize, aqui vai minha resenha.

Sempre polêmico e criativo Andre Matos e seu grupo1 compuseram um álbum bem particular.

Em vários pontos Mentalize é distinto dos outros álbuns de Heavy Metal que tem sido lançados. A

temática do álbum mistura religião, misticismo, obscurantismo, ciência e razão – por mais antagônico

que isto possa parecer ser a alguns. A capa do disco, aparentemente simples e sem muita sofisticação2,

contém o que a princípio parece ser um labirinto. Contudo, diferentemente de um labirinto tradicional

que possui várias pegadinhas e do qual pouquíssimas pessoas conseguem sair, o labirinto gótico da

capa de Mentalize possui apenas um caminho a se seguir, que inequivocamente conduz ao seu centro.

De acordo com o mentalizador desta ideia, Andre Matos, o labirinto representa nós mesmos, e

o caminho que devemos percorrer até o centro para obtermos autoconhecimento3. Pode-se, contudo,

imaginar um milhão de coisas ao olharmos este labirinto: não raro perdermos o rumo do caminho do

labirinto quando estamos o seguindo apenas com os olhos – o que poder representar a dificuldade que

as pessoas têm de se autoconhecer, mesmo pensando a princípio que esta tarefa seja fácil; o encarte do

CD é todo furado, formando uma espiral que coincidentemente está em sentido contrário ao sentido do

labirinto, o que ajuda a nos confundir – o que pode representar os atalhos que projetamos para tentar

1 Apesar de ser liderada pelo vocalista Andre Matos e se chamar “Andre Matos”, “Andre Matos” é uma banda, com vários

integrantes. 2 Quando a imagem da capa do disco foi divulgada na internet algumas semanas antes de seu lançamento, vários fãs da

banda a criticaram, considerando-a simples, tosca, rude e sem sentido. 3 Em entrevista à revista Roadie Crew, ano 12, nº 131, Dezembro/2009.

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burlar a necessidade do autoconhecimento que, ao invés de nos ajudar, apenas nos atrapalham; os furos

deste atalho parecem formar uma espiral parecida com uma galáxia – podendo significar que a busca

pelo autoconhecimento é universal, comum a todo ser vivente. Enfim, podem-se imaginar mil coisas

ao olharmos a capa do disco.

Todos estes furinhos no encarte obviamente acarretaram um ônus: a tarefa de ler as letras das

músicas no encarte tornou-se muito mais difícil do que o usual. Mas nada que tire o brilho de termos

em mãos um encarte que é totalmente furado da primeira à última página.

Musicalmente falando, Mentalize não fica para trás no que se refere a sofisticação e qualidade.

No geral podemos dizer que o álbum é mais “direto” que seu antecessor, Time to be Free. A primazia

de Mentalize fica com as guitarras e com os graves do baixo e da bateria, diferentemente de Time to be

Free, onde as orquestrações tinham um papel de destaque bem maior nas músicas.

Diferente do usual para bandas do estilo, Mentalize não começa com uma Intro orquestrada. A

primeira faixa, Leading On começa em um clima um tanto sombrio, com uma voz assustadora

sussurrando em um tom estranho e os tribais de bateria sendo conduzidos progressivamente mais

firmes por Eloy Casagrande até a aparição dos demais instrumentos e do começo da música em si. Este

clima meio Cine Trash me lembrou bastante alguns momentos do primeiro álbum de Black Sabbath,

considerado por muitos o álbum que mudou a história do Rock. Como um todo Leading On lembra

vagamente Nothing to Say, clássica música do álbum Holy Land, segundo da era Andre Matos na

banda Angra.

A segunda música do álbum, I Will Return começa com uns coros bastante interessantes,

lembrando aqueles corais escolares que vemos em filmes americanos – com a sonoridade meio “doce”.

Logo após temos a entrada das guitarras e o peso da música. E música possui bastante variações de

intensidade: há momentos que temos apenas piano, momentos em que o baixo de Mariutti se destaca,

momentos dos corais, momentos em que ela lembra o Heavy Metal dos anos 70 e momentos que ela

parece que Gothic Rock. É uma das minhas faixas preferidas do disco.

A seguir temos Someone Else. A música também começa em um clima meio sombrio e com os

instrumentos dando as caras aos poucos, não de uma vez. Andre Matos contribui com o clima

sombrio cantando as primeiras frases da música com um efeito meio trash na voz. O ponto forte desta

música é seu refrão, que é bem meloso e se destaca do resto da música. Os solos de guitarra em

Someone Else também são um grande atrativo, especialmente por volta dos 4 minutos de música,

quando eles formam uma espécie de dueto com o fundo de piano que é executado.

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A quarta faixa do disco é Shift the Night Away. Depois de um dueto entre tribais de bateria e

solos melosos de guitarra a música apresenta seu peso e velocidade. “Metal melódio” se encaixa

perfeitamente em uma curta definição de Shift the Night Away. A melhor parte da música é lá pelos

2:30 min., quando os solos de guitarra ficam em evidência. O refrão é forte e ele combina perfeitamen-

te com a voz de Andre Matos, criando um contraste muito legal com os coros dos vocais back.

Back to You é a quinta faixa. É aquele tipo de “balada progressiva” que começa calmamente e

vai aumentando a intensidade até seu ápice. Gosto deste tipo de música quando elas contêm (como é o

caso de Back to You) uma letra que se assemelha a uma história, com a melodia acompanhando a

história. É uma música muito criativa, progressiva, daquelas que você apresenta para sua namorada

que não gosta de Heavy Metal no intuito dela se converter.

A sexta faixa do disco é a que dá nome ao álbum, Mentalize. Ela não é muito rápida, mas é a

mais pesada do disco. Seu estilo combina bastante com seu conteúdo lírico: a letra fala sobre os

mistérios da física quântica e do misticismo por trás destes mistérios. O conteúdo da letra é bastante

especulativo e não-objetivo – e não poderia ser diferente, afinal estamos lidando com uma música, não

com um compêndio de física. Nesta faixa os famosos coros (que estão presentes em todo o disco) são

mais fortes e “masculinos” – bem trues! – diferente dos coros mais “doces” que vemos em outras

faixas como I Will Return.

A seguir temos The Myriad. Ela curiosamente começa dando pinta que vai ser monstruosa-

mente pesada: tribais na bateria e frases firmes de guitarra logo nos primeiros segundos. Porém a

música não contém nada do peso que ela aparentou profetizar no seu início. A música é cadenciada

quase em sua totalidade, onde as distorções das guitarras são apenas coadjuvantes de luxo. É uma

música muito gostosa de se ouvir, cujas excentricidades passam desapercebidas quando a ouvimos sem

lhe dar a devida atenção.

When the Sun Cried Out é a oitava faixa do disco, e uma das minhas favoritas. Ela começa

bem ao estilo Nightwish, com aqueles coros “ah ah ah!” misturados com o peso das guitarras e a

melodia dos teclados. Ela alterna períodos de peso e velocidade (refrão) com passagens mais

cadenciadas e melódicas (estrofes e solos). Uma faixa bastante interessante.

A nona faixa do disco chama-se Mirror of Me . Eu não a odeio. Ela dá para descer. Quando

coloco o álbum para ouvi-lo do início ao fim eu a escuto sem problemas. Seu problema é que, diferen-

temente das demais músicas do álbum, ela não tem nenhum destaque. Não há nada nela sobre o qual

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eu possa falar “Isto é demais nesta música”. Parece aquele tipo de faixa que foi composta durante as

gravações apenas para encher o álbum. Não é uma faixa ruim – apenas normal demais.

A seguir temos Violence, a mais misteriosa faixa de Mentalize. Andre Matos deixou o seguin-

te desafio na entrevista que deu à revista Roadie Crew: “Isso as pessoas terão que descobrir”4 quando

foi perguntando qual era o motivo da música terminar da forma como termina. Eu tenho minha teoria

pessoal sobre Violence e é baseada em duas pistas. Primeiro, a música acaba exatamente do jeito que

ela começa, com uma orquestração curta e estranha, o que poderia ser uma dica de que “as coisas são

como sempre são”. Esta talvez seria a sina de Violence, a vida é um ciclo que não pode ser alterado.

Isto parece ser testificado pelos trechos finais da música: “All we see is flesh / longing for the next

episode of pain, cause / violence and decadence are / tragic routes that cross each other / no one cures

the consequence / left behind by violence” 5. Esta seria a razão da musica terminar igual seu começo: a

sina do ser humano pela violência é algo do qual ele não pode escapar. Enfim, é apenas uma teoria,

uma proposta de resposta ao desafio deixado por Andre Matos. À parte do desafio, Violence é uma

excelente faixa – uma de minhas favoritas em Mentalize.

A Lapse in Time é a décima primeira faixa do disco e é a mais excêntrica de todas. Não tem

guitarra, nem baixo, nem bateria. Apenas a voz de Andre Matos e o acompanhamento de piano. A

música mostra todo o talento de Andre Matos adquirido com seus estudos de música erudita. Tem

uma letra muito solitária, carregada de sentimentos. Maravilhoso!

Logo após a calmaria de A Lapse in Time temos a explosão de Powerstream. Uma pedrada

Power Metal do início ao fim. Pesada, rápida (a mais rápida do disco) e melódica. Destaque para o

baterista Eloy Casagrande, que teve seu potencial muito bem aproveitado nesta faixa. Powerstream

lembra muito Endeavour, faixa final de Time to be Free – aquele tipo de música para fechar com

excelência o álbum. Como bônus track, contudo, a versão brasileira de Mentalize traz ainda uma

última música. A grata surpresa Don’t Despair, gravada originalmente em 1992 na primeira demo tape

da banda Angra, Reaching Horizons. Sempre havia me perguntado por que raios esta música jamais

havia sido aproveitada pelo Angra em seus álbuns posteriores. Foi ótimo ouvi-la agora em Mentalize

com uma qualidade melhor do que a gravação original. Além de ser uma música excelente, o fato de

Andre Matos ter a regravado tantos anos depois de sair do Angra é uma forma dele lembrar a todos

que o Angra jamais estaria onde está se não fosse por ele.

4 Roadie Crew, ano 12, nº 131, Dezembro/2009.

5 Tradução aproximada: “Tudo o que vemos é carne / esperando pelo próximo episódio de dor, porque / violência e

decadência são / caminhos trágicos que cruzam uns aos outros / ninguém cura a consequência / deixada para trás pela

violência”.

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Enfim, Mentalize é um excelente álbum de Heavy Metal. Como apreciador do estilo, gostei

bastante da musicalidade do álbum, que ficou mais madura do que Time to be Free. Como alguém que

aprecia bastante originalidade, preza bastante pelo conteúdo lírico das músicas e que lê bastante sobre

religião, ciência e a famosa polêmica sobre a questão da existência de Deus, não houve outro resultado

possível além de gostar deste álbum.

Apesar de ter escrito bastante (jamais havia escrito uma resenha tão grande antes), só se

entende um álbum musical depois de ouvi-lo. Então eu recomendo Mentalize a todos que apreciam

música de qualidade. Recomendo a todos que estão um passo além da mediocridade da cultura musical

brasileira e mundial atualmente.

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