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O Rio de Janeiro – o que já é conhecido mundialmente – é uma cidade violenta. A periferia exposta obriga a quem passar a se deparar com a pobreza. Esse fato é fundamental, pois há territorialização da criminalidade por resultado dos contextos históricos e econômicos da sociedade e particularmente dos habitantes dessas comunidades. Michel Misse se presta a estudar os ditos crimes organizados (jogo do bicho, tráfico e comércio de mercadorias políticas) e de início já confirma a complexidade do tema, por conta da diferença da incriminação conceitual, aquela proveniente das leis, daquela na prática social. Assim distinto tratamento é dado ao que é considerado crime ou delito, daquilo que é tolerado como mercado informal ou ilegal. Assim como as acusações dadas a diferentes trocas, as quais podem ser tão presentes e importantes na vida das pessoas, mesmo que ilegais, que a moralidade é insuficiente para julgá-las. O que se denomina de "crime organizado" mostra-se tão plural em seus contextos e variáveis que é equivocado classificá-los numa só expressão. O uso do termo “máfia” sofre do mesmo problema. Porém, acabam sendo frequentemente empregados e a variedade prática e cotidiana de seus aspectos se oculta. Seu próprio objetivo é questionável já que pensar na ação individual do comércio ilegal é impraticável, o ladrão precisa de receptores que de certa forma também participam do processo. Economias formal e informal confundem-se, mesmo que a segunda não venha a se subordinar ao Estado como a primeira.

Resenha - Mercados ilegais, redes de proteção e organização local do crime no Rio de Janeiro MICHEL MISSE

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Mercados ilegais, redes de proteção e organização local do crime no Rio de Janeiro

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O Rio de Janeiro – o que já é conhecido mundialmente – é uma cidade violenta. A

periferia exposta obriga a quem passar a se deparar com a pobreza. Esse fato é

fundamental, pois há territorialização da criminalidade por resultado dos contextos

históricos e econômicos da sociedade e particularmente dos habitantes dessas

comunidades. Michel Misse se presta a estudar os ditos crimes organizados (jogo do

bicho, tráfico e comércio de mercadorias políticas) e de início já confirma a

complexidade do tema, por conta da diferença da incriminação conceitual, aquela

proveniente das leis, daquela na prática social. Assim distinto tratamento é dado ao que

é considerado crime ou delito, daquilo que é tolerado como mercado informal ou ilegal.

Assim como as acusações dadas a diferentes trocas, as quais podem ser tão presentes e

importantes na vida das pessoas, mesmo que ilegais, que a moralidade é insuficiente

para julgá-las.

O que se denomina de "crime organizado" mostra-se tão plural em seus contextos e

variáveis que é equivocado classificá-los numa só expressão. O uso do termo “máfia”

sofre do mesmo problema. Porém, acabam sendo frequentemente empregados e a

variedade prática e cotidiana de seus aspectos se oculta. Seu próprio objetivo é

questionável já que pensar na ação individual do comércio ilegal é impraticável, o

ladrão precisa de receptores que de certa forma também participam do processo.

Economias formal e informal confundem-se, mesmo que a segunda não venha a se

subordinar ao Estado como a primeira.

Seu uso mais comum remete a uma rede sistemática de relações ilegais, onde tais

relações de trocas informais interligam níveis distintos de reação moral a um mesmo

grupo de fenômenos. Tal acusação se baseia não tanto na mercadoria em si, mas no

efeito violento que tal relação pode causar. Há ainda a definição de "crime organizado"

para aqueles em que há envolvimento de agentes de Estado (o que dificulta a distinção

entre cooptação desses agentes ou mais um tipo de mercado ilegal, onde transacionam

mercadorias políticas). No entanto, só se distinguiria de qualquer outro mercado ilegal

pelo fato de que sua mercadoria é constituída por relações de força e poder ou extraída

de autoridade pública.

O jogo do bicho como foco do combate policial, antecede o tráfico de drogas no varejo

que ocorre desde os anos 1980 pra cá. Tal atividade surge como um jogo de apostas

ilegal, o que atraía as camadas que possuem poucas ou não possuem oportunidades no

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mercado. Por não ser regulamentado, tal jogo de apostas se torna jogo de azar vendo

que possíveis e, de certo, eventuais fraudes ocorram.

Havia muita disputa de territórios, o que marcou um período de grave violência nos

anos 50 e 60, a solução encontrada foi formar uma cúpula composta pelos principais

banqueiros – que são aqueles quem comandam o esquema do jogo em diferentes áreas.

Mais tarde os membros se organizam e montam a Liga das Escolas de Samba do Rio de

Janeiro, a partir daí também os desfiles passam a ser transmitidos em rede aberta

nacional de televisão o que se relaciona com a influência que possuíam.

O que hoje parece estar em declínio visto opções legais de aposta, já foi como uma

grande máfia que ainda estende seus braços nos mais diversos segmentos, como a

política e a promoção de eventos e alguns herdeiros dos antigos banqueiros hoje

comandam e disputam o controle sobre a distribuição de máquinas caça níquel.

O "movimento" tratado no texto é a gíria que nomeia o mercado pequeno de drogas

ilícitas, na pequena "boca de fumo". Geralmente a gíria é utilizada se referindo à um

grupo de vendedores. "Aonde que tá o movimento?", se refere à localização da boca,

"Pôr um movimento" se referindo à instalação de um ponto de vendas em determinado

local, são exemplos.

Apesar da legislação para crimes de porte de drogas (venda e consumo) terem

endurecido as penas ao movimento da década de 60, a incriminação de portadores de

drogas, tendo como principal alvo a maconha, aumentou exponencialmente e

proporcionalmente ao endurecimento das penas, aumentando também o nível de

policiais incriminados por terem recebido propina de usuários e traficantes. Ou seja,

apesar das penas terem endurecido o que tecnicamente teria que diminuir a incidência

de crimes por porte de entorpecentes e o mercado ilícito de drogas aumentou, e

aumentaram também as incriminações tanto de portadores quanto de autoridades que

eram coniventes.

Em todos os períodos em que o porte de drogas já estava criminalizado nunca houve

uma real distinção entre traficante e usuário, e muitas vezes os usuários portando pouca

quantidade são enquadrados por tráfico, por que quem define qual é a ilicitude cometida

é o policial com total autonomia. No entanto em meados da década de 90 as

incriminações por tráfico foram bem maiores do que por uso (não esquecendo que

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muitos usuários são presos por suposto tráfico). Ainda assim as pessoas incriminadas

expressamente por posse e não por tráfico cresceram em proporção às incriminadas por

tráfico no fim da década também de 90.

O fator gerador da sensação de insegurança na cidade do Rio de Janeiro nos anos 70 não

foi o trafico de drogas, apesar do movimento também ter instaurado muita violência na

cidade, mas sim o aumento significativo dos assaltos, furtos e roubos no município, que

levaram ao cerceamento da classe média em seus prédios e condomínios.

Nesse mesmo período, nota-se (se tratando de delinquência juvenil) a mudança no

padrão de infrações contra o patrimônio, onde o furto foi sendo tendencialmente

substituído pelo roubo até ultrapassá-lo, e a posse e o tráfico de drogas superam de

maneira extraordinária o resto. Até os anos 80, o jogo do bicho dominava o mercado

informal ilegal do Rio de Janeiro, apenas a partir do final dos anos 70 que o tráfico de

cocaína veio a se consolidar e ser efetivamente controlado pela rede de quadrilhas

chamada “Comando Vermelho”.

O período conseguinte é marcado por desconfiança entre as lideranças do Comando

(visto que não havia uma só liderança, mas sim líderes de diferentes territórios),

aumento de repressão policial e grande entrada de crianças e adolescentes no tráfico,

causando consequentemente o aumento de mortalidade nessa faixa etária. A morte e

prisão de vários participantes do Comando Vermelho ocasionou o fracionamento das

redes em novos comandos (Terceiro Comando, Amigo dos Amigos, etc.) e impulsionou

a disputa por território. Esse processo teve seu ápice demonstrado em 1994, onde a taxa

de homicídios dolosos no Rio de Janeiro atingiu 70/100.000 hab.

Após series de episódios violentos (como queima de ônibus, fechamento de comércios,

ataques a instalações do governo, assassinato de importantes figuras públicas como Tim

Lopes, dentre outros episódios) provenientes de reações articuladas de dentro dos

presídios, o início do declínio dos "comandos" foi assinalado. O tráfico não

desapareceu, mas diminuiu consideravelmente.

Em consequência disto, parte das quadrilhas de traficantes já se preparavam para

continuar a existir mesmo sem o tráfico explorando outras atividades ilegais de

exploração econômica, baseadas no controle sobre suas áreas, como por exemplo:

serviços de tevê a cabo, controle de frotas de vans, cobranças de pedágio, dentre outras

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atividades. Tais ações podem ser chamadas de "mercadorias políticas". As quais são

bens públicos, grande parte pertencente ao Estado, que são apropriados e transformados

num bem privado, numa “mercadoria”, que vai ser então trocada por dinheiro ou

favores. E é "política", pois seu valor depende de uma correlação de forças, depende de

uma variação de poder entre as partes que estão fazendo a transação.

É importante ressaltar que a corrupção policial foi uma característica comum nos

diferentes tipos de crimes organizados analisados. O jogo do bicho foi fundamental para

o crescimento da prática, muitos policiais participaram ativamente ou receberam

propina em troca da impunidade. Assim aconteceu com o tráfico e com seu declínio,

muitos passam a oferecer e cobrar por "proteção" aos moradores e comerciantes de

comunidades. Em seguida, estes policiais ainda assumem algumas das posturas das

quadrilhas além de também passar a explorar as mercadorias políticas. Milícia e tráfico

acabam se tornando muito semelhantes na prática e, exemplo disto são os inúmeros atos

de violência como são relatadas, no caso das milícias, ações agressivas contra

moradores que discordam da contribuição para receberem proteção. A confirmação da

existência da sobreposição destes mercados ilegais é fundamental para entender o eixo

de reprodução da violência no Rio de Janeiro.