Resenha Monzani

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Resenha do livro do Monzani que vai servir pra eu baixar outras coisas. Incrível.

Citation preview

  • [T]

    Desejo e prazer na Idade Moderna

    MONZANI, Luiz Roberto. Desejo e prazer na Idade Moderna. 2. ed. Curitiba: Champagnat,

    2011.

    Fabiano de Mello Vieira

    Mestrando em Filosofia pela Pontifcia Universidade Catlica do Paran (PUCPR), Curitiba, PR - Brasil, e-mail: [email protected]

    Em Desejo e prazer na Idade Moderna, publicado primeiramente pela Editora da Unicamp e que recebeu agora da Editora Champagnat sua segunda edio, Luiz Roberto Monzani aponta os resultados parciais de uma pesquisa de flego realizada em seu estgio de livre docncia em meados dos anos 1990. Motivado pela experincia em ler Sade de forma mais especfica, Monzani encontra nos textos do Marqus a ex-presso mais nua e crua de algumas premissas que nortearam a Idade Moderna no que diz respeito concepo de natureza humana. Com o cuidado em deixar seu campo terico bem delimitado, o autor faz um recorte preciso nas teorias modernas, que, assim como Sade, apontam uma natureza humana passional, contrria concepo clssica. Nessa trajetria, Monzani dialoga principalmente com Malebranche, Hobbes e Condillac, mostrando os movimentos realizados por cada um destes na elaborao de uma lgica prpria das paixes.

    Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 23, n. 32, p. 223-230, jan./jun. 2011

    ISSN 0104-4443Licenciado sob uma Licena Creative Commons

  • O trabalho de Monzani minucioso, valorizando sua forma mui-to particular de escrita e deixando claro, a cada linha, que, se a ideia de escrever sobre as paixes da modernidade do ponto de vista de uma seleo criteriosa de autores uma tarefa um tanto quanto rdua, ele no a faz de outra maneira seno por meio de uma brilhante contex-tualizao que se inicia na anlise da chamada querela do luxo, o primeiro captulo de um total de quatro.

    O autor justifica a escolha feita para o comeo da discusso da seguinte maneira:

    de fato, o exame da chamada querela do luxo mostra-se exemplar para tentar compreender o conjunto das transformaes conceituais opera-das entre os fins do sculo XVII e o sculo XVIII, pelo menos na sua generalidade, j que expressa, s vezes direta, s vezes indiretamente, a lenta mutao e constituio das novas concepes (sobre o desejo e o prazer) (p. 21).

    Partindo da, Monzani mostra que os textos de Voltaire escritos a partir de 1736 geraram muita polmica ao apontar uma apologia aos tempos modernos, em que o luxo produto dos avanos cientficos e tecnolgicos, e principal responsvel pelo desenvolvimento do comr-cio nas sociedades. Ou seja, haveria, portanto, uma vantagem dos tempos modernos diante dos antigos e o luxo seria um dos respons-veis por tal consequncia.

    Quando o luxo comea a fazer parte do cotidiano das pessoas, ini-ciam-se, de forma mais macia, os ataques a ele. A primeira a atacar foi a Igreja, tomando como exemplo Fnelon (arcebispo de Cambray, exem-plo de ordem rgida e norma do bem comum). Para Fnelon, o luxo um dos maiores males e o soberano tem a obrigao de reprimi-lo, assim como de deter a inconstncia das modas (p. 29). A razo deve predo-minar e o luxo adquire status de desvio, patologia. Monzani d ainda algum destaque para La Bruyre e Bayle, que a partir de suas crticas contrrias Fnelon mas cada qual com sua maneira muito particular de abordagem incrementaram a discusso. O primeiro, aproximan-do-se mais de Fnelon, exalta algumas virtudes, como coragem e honra, e as coloca em oposio s exigncias de uma vida luxuosa, enquanto

    Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 23, n. 32, p. 223-230, jan./jun. 2011

    VIEIRA, F. de M.224

  • Bayle critica o saudosismo das posies anteriores e coloca a renncia ao luxo no campo de uma necessidade das sociedades desfavorecidas da poca. Ou seja, para Bayle, a ordem moral no teria tanta fora dian-te da necessidade.

    Todo esse percurso na histria do luxo ao longo do tempo se justifica no final do captulo, com a explanao sobre a Fbula das Abelhas de Mandeville, que narra a histria de uma colmeia (como espelho da sociedade humana) marcada pela desonestidade e pelo egosmo, mas que vive em plena prosperidade. A abordagem feita por Mandeville denuncia a essncia naturalmente egosta do homem, po-rm, necessria para o desenvolvimento de uma sociedade prspera e feliz. Necessria, pois obedece a um critrio utilitarista que visa pro-duo de benefcios individuais e consequentemente coletivos. O fato que, aps alguns desdobramentos tericos, a questo do luxo para nosso autor resume-se da seguinte forma:

    o problema do luxo faz o primeiro rompimento com a cadeia tradicional: necessidade desejo satisfao e remete a outra: desejo necessidade indeterminada elaborao imaginria concretizao do objeto satis-fao fugaz desejo (p. 69).

    sobre o desejo que Monzani trata no segundo captulo. Ele par-te do desejo que tem como par de oposio a averso e que se junta com outros dois pares: amor/dio e prazer/desprazer, formando assim a lgica que perdura desde a antiguidade e que assim apresentada por Santo Toms. O amor a um bem supremo (summum bonum) guiar todas as paixes do homem. Para Santo Toms, por exemplo, Deus re-presenta esse bem e, assim, segue-se a lgica nas palavras de Monzani:

    o objeto apreendido , em primeiro1ugar, amado (ou odiado) e, em vir-tude desse ato passional primordial primrio, passa a ser desejado (ou no) e sua posse levar delectao (ou no) (p. 76).

    Thomas Hobbes o primeiro a fazer uma importante inverso dessa montagem, no sculo XVII, porm, fato que a ateno hobbe-siana mostrou-se mais inclinada ao produto advindo da natureza

    Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 23, n. 32, p. 223-230, jan./jun. 2011

    Desejo e prazer na Idade Moderna 225

  • do homem do que ela propriamente. Para Hobbes, as experincias so vivenciadas enquanto movimento em um primeiro momento e aten-dem tambm exigncia de um movimento o vital at chegarem ao corao e alcanarem o estatuto de paixes. Nesse retorno so qualifi-cadas como boas ou ruins, provocando prazer ou averso, respec-tivamente. Essa qualificao se d em relao sua participao junto ao movimento vital. Ou seja, h uma tendncia a ser bom, o movi-mento que vai em direo autopreservao primeira lei natural do homem. A necessidade de se autopreservar leva o homem ao egosmo em seu grau mximo e, dessa forma, aproxima-se da ideia lanada por Mandeville e sua Fbula das abelhas.

    Contudo, essa idia, segundo Monzani, fez com que alguns au-tores, como Gadave, Malherbe e Magri, reconhecessem o par prazer/dor como fenmeno primeiro na lgica das paixes, porm, no essa a ideia que nosso autor expe. Sua leitura a respeito da lgica passional em Hobbes supe o desejo como item primeiro da trade, atuando em parceria com o conatus movimento vital. Ou seja, o que vem primeiro o conatus, que de certa forma desejo de conservao de si.

    Assim diz Monzani:

    no h nenhum dualismo original em Hobbes, como se poderia ser levado a pensar: existe uma nica tendncia, que nos inclina a certas coisas, e nos leva a repudiar outras. o mesmo desejo que se especifica em aproximao ou distanciamento, conforme o caso. Desejo de auto-conservao (p. 93).

    O prazer para Hobbes, segundo Monzani, seria o efeito ben-fico do movimento vital (p. 97) e o amor se d quando o objeto de desejo est presente. Como possvel perceber, os elementos da lgica passional continuam os mesmos e o que muda a ordem em que se encontram.

    Considerando o desejo em Hobbes como algo que mantm a sua essncia inquieta, Monzani, em seu terceiro captulo, aprofunda essa noo a partir do ponto de vista de alguns outros autores, dentre eles Malebranche e Locke.

    Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 23, n. 32, p. 223-230, jan./jun. 2011

    VIEIRA, F. de M.226

  • Malebranche era um padre que, sobre influncia direta de auto-res cristos, como Santo Agostinho e So Toms, conceituou a vontade como uma inclinao irresistvel ao bem felicidade. Aos olhos de Malebranche s h um motivo de amor: a felicidade, que nada mais que o estado de prazer (p. 149). A inquietude para esse autor encontra fundamento na caracterstica finita do bem em satisfazer o desejo de felicidade, visto que o homem no tem Deus como a nica causa dos prazeres. Ou seja, a busca contnua de felicidade elege objetos finitos como estatutos do bem enquanto tal, em uma sucesso tambm con-tnua. A concluso que nenhum objeto traz a felicidade completa e, pensando assim, Malebranche se mantm fiel tradio agostiniana de que a inquietude nada mais do que

    o movimento incessante em direo a Deus que nos criou para ele, para am-lo, que obedece estrita definio de vontade entendida como movimento para o bem em geral e que nos ilumina, a cada repouso, no sentido de apontar para a insuficincia dos bens particulares, no invencveis, reconduzindo essa prpria vontade no ultrapassamento progressivo dessas mesmas coisas finitas (p. 155).

    Malebranche ainda nos possibilita outra leitura da inquietude, agora em um plano horizontal, da experincia da conscincia, mos-trando que a caracterstica indefinida do desejo inerente natureza humana. Segundo Monzani, essas duas leituras representam a estrita consequncia da dupla concepo de vontade que analisamos antes: como movimento em direo ao bem e como desejo de felicidade (p. 158). Esse polo antropocntrico da teoria malebranchista muito se as-semelha noo de desejo em Hobbes, porm, preciso destacar uma diferena fundamental. Malebranche contesta o carter originrio do desejo, pois se renovado incessantemente porque existe algo ante-rior, impulsionando-o.

    Ainda trabalhando o captulo sobre a inquietude, Monzani acres-centa discusso a teoria de Locke, que, a partir de uma laicizao da teoria malebranchista, inaugura a tendncia que prevaleceu no final do sculo XVII e boa parte do sculo XVIII. A partir da ideia de um unea-siness termo que mais tarde encontrou em inquietude sua melhor

    Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 23, n. 32, p. 223-230, jan./jun. 2011

    Desejo e prazer na Idade Moderna 227

  • traduo diz que o homem busca a felicidade, porm, uma felicidade palpvel, resultante de um estado de deleite/prazer. Ele chama de bem aquilo que proporciona o prazer ou diminui o desprazer, o contrrio chama de mal. Todas as aes do homem buscam, ento, eliminar o uneasiness e, consequentemente, produzir prazer que constitui a felici-dade. Sendo assim, uneasiness pode ser definido como uma insatisfao que coloca em movimento.

    Monzani, mesmo aps uma verdadeira dissecao da uneasi-ness lockeana, em alguns momentos ainda no capaz de torn-lo livre de comparaes com a teoria malebranchista e a hobbesiana. Ora se aproxima da noo de inquietude de Malebranche, ora assemelha-se com a noo de desejo em Hobbes, mas tal complexidade no passou despercebida por Monzani. Assim ele diz:

    de qualquer maneira, de Hobbes a Locke, via Malebranche, a anlise enriqueceu-se e aprofundou-se. O mesmo fenmeno aparece dotado de significaes inditas. Mas isso foi conseguido custa de ambiguidades, de deslizes conceituais e lexicais (p. 185).

    O certo que essa passagem por Locke possibilita o encontro com a teoria de Condillac, seu seguidor e responsvel pela operao da ltima inverso na lgica das paixes e que tratada no quarto captulo do livro. Monzani observa que na obra chamada O tratado das sensaes, de 1754, Condillac utiliza-se da metfora da esttua de mrmore como fico metodolgica para embasar sua hiptese de que nunca se conhece a natureza mais ntima das coisas, apenas aquilo que nos sensvel. Para ele, h duas coisas a serem consideradas: o dado inicial, a percepo, e o conjunto das diferenciaes progressivas, a que esse dado se submeter at atingir seu grau pleno, que o que se de-nomina o conhecimento (p. 193). Dessa forma, pensar uma esttua de mrmore como apenas uma estrutura receptiva, livre de qualquer conhecimento prvio, possibilita o entendimento do caminho proposto por Condillac na constituio de um sujeito.

    Monzani aponta que Condillac examina individualmente cada um dos sentidos, fazendo uma espcie de montagem (desmontagem) da mquina sensvel, de modo a entend-la posteriormente na relao

    Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 23, n. 32, p. 223-230, jan./jun. 2011

    VIEIRA, F. de M.228

  • entre os diversos sentidos. As sensaes trariam ento contentamento ou descontentamento a partir de experincias de prazer ou desprazer, respectivamente. Para Condillac, o prazer, bem como a dor (despra-zer), pode ser corporal ou espiritual, sendo apenas os corporais sen-sveis, enquanto os espirituais acontecem em um nvel intelectual. As experincias de prazer e desprazer vividas pelo sujeito provocam o movimento de aproximao do que lhe causou prazer ou afastamen-to daquilo que lhe causou desprazer, iniciando assim o ciclo formado pela seguinte ordem estabelecida: prazer/dor inquietude necessi-dade desejo satisfao (p. 246). Condillac resume a nova ordem da seguinte maneira

    mudemos a cena, e suponhamos que a esttua tenha obstculos a ul-trapassar para obter a posse daquilo que deseja. Agora as necessidades subsistem por muito tempo antes de serem satisfeitas. O mal-estar, fra-co em sua origem, torna-se insensivelmente mais vivo; ele se transfor-ma em inquietude, por vezes termina em dor. Enquanto a inquietude leve, o desejo tem pouca fora, a esttua sente-se pouco pressiona-da a gozar: uma sensao viva pode distra-la e suspender sua dor. Mas com a inquietude o desejo aumenta; chega um momento em que ele age com tanta violncia, que s se encontra remdio no gozo: ele se transforma em paixo (CONDILLAC 1947-1950 apud MONZANI, 2011, p. 241)

    A diferena entre Locke e Condillac, nesse ponto, est na dis-tino que Condillac faz entre inquietude e desejo, caracterizando o primeiro como algo que despertaria o desejo a partir de sentimentos desagradveis intensos, enquanto em Locke a inquietude pode ser en-tendida como derivada do prprio desejo. Essa nova lgica sugerida por Condillac em que se encontra a primazia do prazer rompe com o ciclo da necessidade e possibilita o aparecimento do suprfluo. Nesse ponto, possvel perceber a inteno de Monzani ao justificar a impor-tncia de trabalhar minuciosamente no primeiro captulo o conceito de luxo e suas variaes ao longo da histria. A inverso total da escala que se inicia com a primazia do amor perante as outras paixes coloca ainda o desejo nessa posio, em Hobbes, at alcanar a ordem estabe-lecida por Condillac, em que o prazer inicia a cadeia.

    Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 23, n. 32, p. 223-230, jan./jun. 2011

    Desejo e prazer na Idade Moderna 229

  • Na concluso, Monzani refora a ideia de que se trata de uma pesquisa em andamento e, portanto, o que se tem so resultados de um percurso que, ao chegar nesse ponto, se desdobra ainda em algumas outras possibilidades, dentre elas duas em especial. A primeira trata-

    -se de uma possvel articulao entre a ideia de esttua em Condillac e a de sujeito em Rousseau como tendo um mesmo ponto de partida; e a segunda na incluso da discusso sobre o sexo resultante dessa revalorizao do princpio do prazer no discurso filosfico.

    Por fim, pode-se dizer que a obra Desejo e prazer na Idade Moderna, de Luiz Roberto Monzani, possui elementos que a caracteriza como um criterioso exemplar de histria da filosofia, cheio de contextualiza-es, e uma excelente amarrao entre os diversos autores escolhidos, porm, no se limita a isso, pois o rigor com que trata os conceitos ci-rurgicamente delimitados demonstra tambm a veia epistemolgica do autor.

    Recebido: 30/04/2011Received: 04/30/2011

    Aprovado: 09/05/2011

    Approved: 05/09/2011

    Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 23, n. 32, p. 223-230, jan./jun. 2011

    VIEIRA, F. de M.230