RESENHA Robert Muchembled, Uma História Do Diabo

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RESENHA do livro de Robert Muchembled, Uma História Do Diabo.

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    modelo da Romnia, cujas razes culturais estariam nas antigas sociedades indo-europias,e com o norte-americano, subdividido em quatro itens: o maniquesmo ontolgico emoral; o mito matriarcal; o mito da comunidade fusionista e o culto mtico do dinheiro.O terceiro ponto que aborda refere-se aos imaginrios de uma poca, pois muito maisque referncias cronolgicas, os perodos so marcados, sobretudo, por um nmero deaspectos, como estilos, categorias, vises de mundo. Em quarto lugar, os imaginrios deuma tradio espiritual, j que algumas redes de pensamentos e prticas como a alquimia,gnoses, utopismos, astrologia, ocultismo, misturam-se a certos imaginrios. Comoexemplo, apresenta o gnosticismo dualista. Em ltimo lugar destaca os imaginrios deuma tcnica social. A televiso ento apresentada como uma das tcnicas modernasda imagem, carregada de mitificao, visto que a televiso, que se impe como referencialcomum de uma sociedade, malgrado a multiplicidade dos programas, torna-se assimuma vulgata cujos heris e grandes fatos se tornam um tipo de fundo comum doimaginrio coletivo (2003, p. 120).

    Jean-Jacques Wunenburger nos apresenta um livro que permite, sem dvida,esclarecer alguns pontos do imaginrio de um homem ou de uma cultura: fantasias,mitos, sonhos, romances, fico... Com isso lana um pouco de luz sobre o imaginrioque, ao nos tirar do imediato, permite-nos pensar por intermdio do ldico, quandorazo e saber no nos bastam mais.

    Itinerrios, Araraquara, 23, 237-242, 2005

    Norma Domingos

    MUITO ALM DE UMA HISTRIA DO DIABO...Ana Luiza Sanches CERQUEIRA1

    MUCHEMBLED, Robert. Uma histria do diabo sculos XII-XX. Traduo deMaria Helena Khner. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2001.

    Apesar do ttulo, Uma histria do diabo sculos XII-XX, de RobertMuchembled, oferece muito mais do que apenas isso. Longe de percorrer somentea trajetria da crena em um dos grandes mitos da humanidade a existncia dodiabo , o autor apresenta esta trajetria ligada s modificaes sociais, literrias,religiosas e culturais ocorridas na Europa desde o sculo XII at o incio de nossosculo XXI, marcado por uma revitalizao de Belzebu. Conforme o prprioestudioso afirma, para compreender o lugar que ele (o diabo) tem atualmente emnosso universo mental, em nosso imaginrio, em que sentido as representaesintrojetadas por um indivduo influem em suas aes, precisvamos encontrar todasas suas pegadas (2001, p. 341).

    E exatamente o que Muchembled faz de forma bastante abrangente, recusando-se a desprezar em seu estudo filmes, livros infantis, msicas ou quaisquer expressesculturais (muitas vezes classificadas como menores pelos crticos), considerando-as fontes de informao to vlidas quanto os documentos oficiais visto que, paraele, indcio algum, por nfimo que seja, se mostra portanto intil para compreendercomo uma civilizao se mantm agregada, evolui e perdura. (2001, p. 18).Conseqentemente, os leitores encontraro referncias as mais variadas, desde textosliterrios cannicos, como Frankenstein, de Mary Shelley, e Drcula, de Bram Stoker,at a filmes como Carrie, a estranha, A hora do pesadelo e a polmica obra docineasta Stanley Kubrick, Laranja mecnica.

    O livro limita-se ao estudo das manifestaes do demnio no Ocidente, de meadosda Idade Mdia atualidade, pois no seria vivel, de acordo com o autor (e todosho de concordar com ele) tentar abarcar, em um nico estudo, todas as formas demanifestao do demnio existentes nas vrias pocas e civilizaes. O captulo I dedicado ao surgimento em cena de Sat na Europa, abrangendo os sculos XII aXV, perodo em que a noo teolgica comea realmente a criar razes entre aspessoas da Igreja e os leigos do povo sob a forma de assustadoras imagens. Atento, a viso popular (difundida mesmo entre alguns religiosos) era a de um demniogrotesco mas familiar, bastante prximo ao homem e, por isso mesmo, capaz de ser

    1 Doutoranda do Programa de Ps-Graduao em Estudos Literrios Faculdade de Cincias e Letras UNESP Universidade Estadual Paulista 14800-901 Araraquara SP [email protected].

    Itinerrios, Araraquara, 23, 243-245, 2005

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    vencido. Muchembled destaca que, no primeiro milnio cristo, o diabo era umafigura difusa, dissolvida no politesmo popular e, portanto, sem poder de persuasosobre as massas.

    Uma ajuda importante no processo de divulgao da imagem de um diabo maisameaador, que castiga os seres humanos com a permisso de Deus, foi, segundo oautor, tomada de emprstimo do modelo narrativo do Oriente prximo: o mito csmicodo combate entre deuses, construindo-se no Ocidente a figura do Sat rebelde que seope a Deus e faz da Terra extenso de seu imprio, dominando os homens. Estaimagem foi importante no apenas para os religiosos, mas tambm para todos osgovernantes, interessados, naquele momento, em constituir uma Europa unificada eforte renovando os sonhos imperiais herdados da Roma antiga.

    Nos captulos II, III e IV so destacados os sculos XVI e XVII, quando aobsesso pelo demnio atinge as raias do absurdo e as fogueiras de feitiaria matampessoas aos milhares. At meados dos sculos XII e XIII, o sincretismo de crenasconvivia, sem maiores problemas, com um cristianismo fraco para expurgar assupersties populares. a partir do sculo XVI que ganha fora total a imagem dodiabo implacvel, e as aes humanas passam a estar estritamente ligadas noo decastigo. Com isso, aumenta o poder simblico da Igreja e o inferno torna-se algo maispresente na vida dos antigos leigos.

    At mesmo a medicina colabora neste processo ao pregar que o diabo pode seassociar matria. Com isso, auxiliou a espalhar a crena de que ele capaz deencarnar em animais e no homem (principalmente nas mulheres, as quais setransformam em sinnimo de pecado e periculosidade), elemento importante para oincio da caa s feiticeiras. o triunfo da demonologia, especialmente no corredorde circulao que leva da Itlia ao mar do Norte. Durante este perodo, o diabotransfere-se, definitivamente, para o meio da humanidade, virando mania a busca porsinais e marcas nas mulheres, as quais comprovariam o envolvimento sexual delascom o demnio.

    O captulo V apresenta o incio da decadncia do demnio poderoso, motivadapela ascenso de Estados nacionais rivais (pondo fim ao ideal de unificao europeu),pelo progresso da cincia (a qual comea a conhecer melhor o interior do corpohumano) e pelas novas concepes introduzidas no sculo XVIII, o Sculo das Luzes.Filsofos, artistas, membros da elite e at mesmo alguns religiosos comeam a exprimirdvidas (ainda tmidas, mas futuramente promissoras) em relao realidade efetivade Sat. A decadncia irreversvel da imagem do diabo assustador vem detalhada nocaptulo VI: no sculo XIX o Mal deixa definitivamente de ser representado comoalgo externo ao homem, passando a ser algo intimamente unido a ele. Ao invs desentir-se culpado e temeroso, o indivduo deste sculo acredita ter direito ao prazer,no receando mais o inferno.

    Por fim, temos o captulo VII, o qual demonstra que a antiga crena no diabocontinua algo atuante na vida das pessoas embora de maneira bem diferente do queocorria no auge da demonologia , seja atravs da utilizao de demnios (ou seresinspirados neles, como vampiros e criaturas hbridas) em filmes, livros, publicidade ehistrias em quadrinhos; da propagao de seitas de adoradores de Sat (e deassassinatos ligados a estas seitas); ou da crena em ETs, horscopos, telepatia eoutros elementos ligados antiga noo de feitiaria. O bero desse culto renovadoao diabo so os EUA e, em escala menor, a Inglaterra e as terras germnicas, locaisonde a imagem do demnio ainda levada bastante a srio. J na Frana, o senhordas trevas no passa de motivo de riso e curiosidade.

    Concluindo, Robert Muchembled brinda aqueles que tiverem a pacincia e adisposio de ler suas 349 pginas com uma maravilhosa panormica das mutaessofridas pelo diabo com o passar das dcadas, entrelaando essas manifestaes aocontexto de suas ocorrncias. Uma histria do diabo sculos XVII-XXI trazinformaes primorosas no apenas para os interessados em Sat, mas para todosaqueles que queiram saber mais a respeito de vertentes literrias como o romantismo,o fantstico, o frentico, o gothic novel ingls; das diferentes formas da medicinaencarar o corpo humano e tratar as doenas; sobre pintura e escultura; sobre osprocessos envolvendo feiticeiros(as) e as provas apresentadas pelos legisladores parase acus-los(ls); sobre HQs, publicidade, desenhos animados, Internet... Enfim, aobra imperdvel para os interessados em aprofundar seus conhecimentos sobre aevoluo do pensamento humano, sem preconceitos quanto s vias utilizadas para amanifestao deste pensamento, pois, como afirma o autor, mesmo o indivduonutrido de clssicos e de msica erudita [...] pode ter lido na infncia livrinhos ilustradospara a juventude, ter ouvido rock heavy-metal, ter absorvido uma srie de lugares-comuns atravs do cinema ou da televiso (2001, p. 10).

    Itinerrios, Araraquara, 23, 243-245, 2005 Itinerrios, Araraquara, 23, 243-245, 2005

    Ana Luiza Sanches Cerqueira Muito alm de uma hisria do diabo...