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Grupo de discussão 1 Actas do XIXEIEM — Vila Real 2009 Resolução de problemas de valor omisso… A. Silvestre e J. P. Ponte RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS DE VALOR OMISSO: ANÁLISE DAS ESTRATÉGIAS DOS ALUNOS 1 Ana Isabel Silvestre Escola Básica 2, 3 Gaspar Correia, Portela de Sacavém [email protected] João Pedro da Ponte Instituto de Educação, Universidade de Lisboa [email protected] Esta comunicação analisa as estratégias usadas por alunos do 6.º ano de escolaridade, na resolução de problemas de valor omisso. Analisamos, em particular, as estratégias de duas alunas antes e durante uma experiência de ensino, procurando compreender a influência das tarefas iniciais dessa experiência sobre a eficiência nas suas estratégias. Os resultados mostram que as alunas conseguem resolver correctamente problemas de valor omisso com base no seu conhecimento intuitivo. Mostram também que as tarefas realizadas contribuíram para desenvolver nas alunas um conhecimento estruturado sobre relações proporcionais recorrendo a regularidades numéricas dentro e entre variáveis para encontrar o valor omisso de um problema. 1. O desenvolvimento do raciocínio proporcional O raciocínio proporcional é marcado por um lento processo de desenvolvimento (Cramer & Post, 1993; Cramer, Post & Currier, 1993), influenciado por factores associados à própria complexidade que envolve o conceito de proporcionalidade directa, à experiência escolar do aluno e à sua vivência pessoal. A investigação em torno do raciocínio proporcional é um campo de trabalho já bem estabelecido que se encontra presentemente num momento de viragem (Lamon, 2007), procurando conjugar conhecimentos obtidos sobre a natureza das tarefas e das estratégias dos alunos, para desenvolver novos estudos no contexto da sala de aula. A investigação actual convive com a falta de acordo sobre o significado de alguma terminologia (Lamon, 2007), a começar pelo próprio termo “proporcionalidade” que é usado de forma ambígua para designar proporções, razões, proporcionalidade directa e raciocínio proporcional. De facto, nem sempre é fácil reconhecer na literatura se o termo proporcionalidade se refere a uma definição matemática de proporcionalidade directa (como igualdade entre duas razões, a/b = c/d, ou como função linear y = mx, com m 0) ou, pelo contrário, se este termo diz respeito ao conceito psicológico, isto é, aos aspectos do raciocínio que atendem ao significado matemático daquele conceito (estrutura, invariância e equivalência sob uma variedade de transformações). Esta confusão terminológica tem uma forte relação com os vários estudos desenvolvidos ao longo das últimas décadas que tiveram por base diferentes perspectivas 1 Trabalho realizado no âmbito do Projecto de investigação IMLNA - Improving Mathematics Learning in Numbers and Algebra, apoiado pela FCT - Fundação para a Ciência e Tecnologia, ao abrigo do contrato n.º PTDC/CED/65448/2006.

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Resolução de problemas de valor omisso… A. Silvestre e J. P. Ponte

RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS DE VALOR OMISSO: ANÁLISE DAS ESTRATÉGIAS DOS ALUNOS1

Ana Isabel Silvestre

Escola Básica 2, 3 Gaspar Correia, Portela de Sacavém

[email protected]

João Pedro da Ponte

Instituto de Educação, Universidade de Lisboa

[email protected]

Esta comunicação analisa as estratégias usadas por alunos do 6.º ano de escolaridade, na resolução de problemas de valor omisso. Analisamos, em particular, as estratégias de duas alunas antes e durante uma experiência de ensino, procurando compreender a influência das tarefas iniciais dessa experiência sobre a eficiência nas suas estratégias. Os resultados mostram que as alunas conseguem resolver correctamente problemas de valor omisso com base no seu conhecimento intuitivo. Mostram também que as tarefas realizadas contribuíram para desenvolver nas alunas um conhecimento estruturado sobre relações proporcionais recorrendo a regularidades numéricas dentro e entre variáveis para encontrar o valor omisso de um problema.

1. O desenvolvimento do raciocínio proporcional

O raciocínio proporcional é marcado por um lento processo de desenvolvimento (Cramer & Post, 1993; Cramer, Post & Currier, 1993), influenciado por factores associados à própria complexidade que envolve o conceito de proporcionalidade directa, à experiência escolar do aluno e à sua vivência pessoal. A investigação em torno do raciocínio proporcional é um campo de trabalho já bem estabelecido que se encontra presentemente num momento de viragem (Lamon, 2007), procurando conjugar conhecimentos obtidos sobre a natureza das tarefas e das estratégias dos alunos, para desenvolver novos estudos no contexto da sala de aula.

A investigação actual convive com a falta de acordo sobre o significado de alguma terminologia (Lamon, 2007), a começar pelo próprio termo “proporcionalidade” que é usado de forma ambígua para designar proporções, razões, proporcionalidade directa e raciocínio proporcional. De facto, nem sempre é fácil reconhecer na literatura se o termo proporcionalidade se refere a uma definição matemática de proporcionalidade directa (como igualdade entre duas razões, a/b = c/d, ou como função linear y = mx, com m ≠ 0) ou, pelo contrário, se este termo diz respeito ao conceito psicológico, isto é, aos aspectos do raciocínio que atendem ao significado matemático daquele conceito (estrutura, invariância e equivalência sob uma variedade de transformações).

Esta confusão terminológica tem uma forte relação com os vários estudos desenvolvidos ao longo das últimas décadas que tiveram por base diferentes perspectivas

1 Trabalho realizado no âmbito do Projecto de investigação IMLNA - Improving Mathematics Learning in Numbers and Algebra, apoiado pela FCT - Fundação para a Ciência e Tecnologia, ao abrigo do contrato n.º PTDC/CED/65448/2006.

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sobre o próprio conhecimento matemático (e.g., Piaget, 1947; Vergnaud, 1983, 1988). A complexidade que envolve este tema é manifesta, se olharmos para o facto do conceito de proporcionalidade directa estar estreitamente relacionado com vários tópicos matemáticos como razão, proporção, fracções equivalentes, conversão de unidades de medida (grandezas extensivas e intensivas) e escalas. A cada um destes tópicos podemos associar novos patamares de complexidade que estão associados à diversidade dos contextos dos problemas e à natureza dos números envolvidos (Misalidou & Williams, 2003; Steinthorsdottir, 2006; Tourniaire & Pulos, 1985), bem como ao modo como os problemas são apresentados (tipos de problemas).

A experiência escolar dos alunos constitui uma condicionante do desenvolvimento proporcional quando nos focamos no treino de procedimentos e verbalização de regras (Greer, 2007; Nescher, 1980) sem desenvolver a compreensão da estrutura matemática da relação proporcional. Este tipo de experiências cria nos alunos a ilusão de que todas as relações são proporcionais (Verschaffel, Greer & de Corte, 2000), com consequências nefastas na aprendizagem de outros tópicos matemáticos e de outros domínios do saber. Tendo em consideração que o conceito de proporcionalidade directa está presente em muitos fenómenos da vida real, a vivência pessoal do aluno poderia, aparentemente, ser um factor facilitador da sua compreensão, mas isso parece não acontecer (Lamon, 2007). Talvez esta situação seja condicionada pela variedade dos contextos, dos mais comuns (por exemplo, preços) aos mais estruturados (por exemplo, densidade), pela dificuldade em reconhecer que a estrutura matemática se mantém independentemente do contexto e consequente incapacidade operar sobre esta estrutura.

Em contraponto, Resnick e Singer (1993) defendem o pendor intuitivo no raciocínio sobre razão e proporção resultante da experiência física e linguística, que leva à formação de esquemas relacionais protoquantitativos. Estes esquemas, segundo as autoras, permitem que as crianças façam julgamentos proporcionais antes de saberem quantificar numericamente uma situação.

No presente estudo, e atendendo aos contributos de vários investigadores, consideramos que o raciocínio proporcional envolve três condições: (i) distinções de relações de natureza proporcional de relações que não o são (Cramer et al., 1993; Lamon, 1995); (ii) compreensão da natureza matemática das relações proporcionais (Cramer et al., 1993); e (iii) capacidade de resolução vários de tipos de problemas (Carpenter et al., 1999; Cramer et al., 1993; Heller, Ahlgren, Post, Behr & Lesh, 1989; Karplus et al., 1983; Lamon, 1993; Post, Behr & Lesh, 1988; Steinthorsdottir, 2003), revelando a flexibilidade mental para realizar diferentes abordagens aos problemas sem ser afectado pelos seus dados numéricos e contexto (Post et al., 1988) e pela forma como os problemas são apresentados (texto, gráficos, tabelas, razões).

Problemas de valor omisso. Este tipo de problema é provavelmente o mais conhecido e o mais estudado, a par dos problemas de comparação (sem ou com julgamento qualitativo). Estes problemas caracterizam-se por apresentarem três valores numéricos e pedirem o quarto valor designado por “valor omisso” (Cramer & Post, 1993; Lesh, Post & Behr, 1988).

Estratégias de resolução de problemas de proporcionalidade directa. Vários estudos identificam e caracterizam as estratégias usadas pelos alunos para resolver estes problemas. Por exemplo, Post, Behr e Lesh (1988) e Cramer, Post e Currier (1993) identificaram as estratégias: (i) Razão unitária, também conhecida por “quanto para um”, identificada como a estratégia mais intuitiva atendendo ao facto dos alunos a usarem desde os primeiros anos de escolaridade (cálculo de razões unitárias em problemas de divisão e cálculo de múltiplos da razões unitárias em problemas de multiplicação); (ii) Factor de mudança ou factor escalar (Hart, 1983), conhecida por “tantas vezes como”, estratégia que está condicionada a aspectos

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numéricos dos problemas mas está presente no reportório de estratégias das crianças; (iii) Comparação das razões, associada a problemas de comparação, que permite comparar as razões unitárias através de duas divisões; e (iv) Algoritmo do produto cruzado, também conhecida como “regra de três simples”, que, embora eficiente, é um processo mecânico desprovido de significado no contexto dos problemas. Post, Behr e Lesh (1988) identificaram ainda a estratégia da interpretação gráfica, na medida em que os gráficos podem ser usados para identificar razões equivalentes ou para identificar omissão valor desconhecido em problemas de valor omisso. Uma outra estratégia é o building-up/building-down (Christou & Philippou, 2002; Hart, 1984), sendo contudo, necessário ter em atenção que esta estratégia não está confinada à utilização de raciocínios multiplicativos.

Pelo seu lado, Lamon (1994) classifica as estratégias de raciocínio dentro e entre variáveis, tal como são apresentadas na literatura sobre raciocínio proporcional e estruturas multiplicativas, distinguindo entre raciocínios de natureza escalar e funcional. Assim, o raciocínio escalar ocorre quando se realizam transformações dentro da mesma variável e o raciocínio funcional ocorre quando se estabelecem relações entre duas variáveis diferentes. Segundo esta investigadora, a distinção entre estes dois tipos de relação é importante pois os processos cognitivos envolvidos são diferentes. Contudo, a correcta utilização de cada estratégia está dependente de factores como o tipo de problema e as relações aritméticas entre os dados do problema (Kaput & West, 1994; Lamon, 1994).

Especificamente sobre os problemas de valor omisso, Kaput e West (1994) propõem um quadro com três níveis de competência informal de raciocínio proporcional. Estes níveis referem-se a padrões de raciocínio que suportam a identificação do valor omisso, sem realçar a manipulação sintáctica do formalismo algébrico. Os níveis caracterizam-se por: (i) Utilização da estratégia build-up/build down, que inclui a distinção das variáveis A e B quantificadas no contexto do problema (i.e., A e B são respectivamente lápis e cêntimos) e a construção da correspondência semântica entre as variáveis A e B sem refinamento (i.e., 4 lápis correspondem a 40 cêntimos). Também inclui a construção da relação de correspondência entre as respectivas unidades e a distinção entre o terceiro valor numérico dado e o valor omisso ligando-os através do referencial das variáveis (i.e., se 4 lápis correspondem a 40 cêntimos, então 5, 6, 7… lápis correspondem a 50, 60, 70… cêntimos). Neste nível de desempenho os alunos efectuam o cálculo dos incrementos ou decrementos em ambas as quantidades até encontrarem o valor correspondente ao terceiro valor numérico e deste modo identificam o valor omisso do problema. (ii) Estratégia build-up/build down abreviada que difere do nível anterior pelo processo de cálculo usado. Assim, neste segundo nível, os alunos dividem as quantidades A e B dadas para obter o valor unitário, sendo este posteriormente multiplicado pelo terceiro valor numérico do problema (i.e., se 4 lápis correspondem a 40 cêntimos então 7 lápis irão corresponder a 40:4 =10 e 7x10 = 70 cêntimos). (iii) Abordagem através do factor unitário, em que os alunos dividem a variável do valor omisso pela outra variável e depois multiplicam o factor unitário pelo terceiro valor numérico para determinar o valor omisso (i.e., se 15 latas são necessárias para pintar 18 cadeiras, então, com 25 latas é possível pintar 18/15=6/5 e 6/5×25 = 30 cadeiras).

2. Metodologia

Este estudo segue uma abordagem qualitativa e interpretativa (Denzin & Lincoln, 1998) e tem como objectivo compreender como se desenvolve o raciocínio proporcional dos alunos do 6.º ano de escolaridade no quadro de uma experiência de ensino. O início desta experiência é marcado pela formulação de uma hipótese de aprendizagem (Steffe & Thompson, 2000), da qual fazem parte as metas de aprendizagem dos alunos, a planificação das actividades de

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ensino e a formulação de uma conjectura sobre o processo de aprendizagem referente ao raciocínio dos alunos. Neste estudo, a hipótese de aprendizagem envolve uma trajectória que (i) começa pela identificação relações de proporcionalidade directa através da investigação de regularidades numéricas entre variáveis e dentro das variáveis, (ii) passa pela necessidade de compreender o significado da constante de proporcionalidade no contexto dos problemas e pelo desenvolvimento da capacidade de representar os dados em diferentes estruturas de representação, bem como compreender as características gráficas das relações proporcionais e, por fim, (iii) estabelece conexões entre as regularidades numéricas entre variáveis e os conceitos de razão, proporção e constante de proporcionalidade. A apropriação com compreensão destas regularidades permite aos alunos, por um lado, a construção do conceito matemático de proporcionalidade directa, embora de um modo pouco formal, e, por outro lado, a utilização de estratégias universais para investigar a existência de relações proporcionais e resolver problemas sobre elas. Pensamos que no 6.º ano, no momento em que de forma explícita o programa indica o tópico da proporcionalidade directa, o trabalho desenvolvido com os alunos deve levá-los a compreender a estrutura matemática subjacente às relações proporcionais. Assim, pode dizer-se que a unidade de ensino segue uma abordagem alternativa à usual baseada na identidade fundamental das proporções, evitando a utilização de regras sem significado para os alunos.

Para desenvolver este estudo foi constituído um grupo de trabalho colaborativo (Boavida & Ponte, 2002), formado pela primeira autora na qualidade de investigadora e por mais três professoras. No seu todo, este estudo não é uma investigação colaborativa, mas uma parte significativa do respectivo desenvolvimento é assegurada pelo grupo colaborativo. As professoras disponibilizam-se para trabalhar no grupo e põem em prática a unidade de ensino da proporcionalidade directa construída pela primeira autora com os objectivos referidos, alterando substancialmente o modo como leccionam este tópico. Os seis alunos que constituem estudos de caso pertencem às suas turmas.

O design de estudo de caso é apropriado para investigar as aprendizagens dos alunos das turmas onde se realiza a experiência de ensino, uma vez que com ele podemos conhecer uma entidade bem definida, como uma pessoa, evidenciando as suas características próprias, em particular os aspectos que interessam ao pesquisador (Ponte, 2006). Num estudo de caso, o investigador utiliza geralmente fontes múltiplas de dados (Stake, 1994; Yin, 2003), o que lhe confere credibilidade metodológica. Yin (2003) salienta que a principal vantagem da utilização de múltiplas fontes de dados é o desenvolvimento de linhas de convergência da investigação, processo também referido como triangulação dos dados. Stake (1994) indica que este uso de múltiplas percepções é necessário para clarificar o sentido, dado identificar diferentes maneiras de encarar o fenómeno. As técnicas de recolha de dados usadas nos estudos de caso tendem a ser diversificadas, incluindo observações directas e indirectas, diários, questionários, narrativas, registos áudio e vídeo, entrevistas e outras. Segundo Yin (2003), numa efectiva triangulação dos dados, um facto ou fenómeno é corroborado por dados obtidos através de técnicas diferentes e provenientes de várias fontes. Neste estudo, a recolha de dados inclui três entrevistas semi-estruturadas a alunos baseadas em tarefas que envolvem raciocínio proporcional antes, durante e a após a experiência de ensino e ainda um pré-teste e um pós-teste a realizar antes e depois da experiência de ensino. Nesta comunicação apresentamos as estratégias desenvolvidas por duas alunas - Carolina e Célia.

3. Resultados

Desempenho dos alunos antes de se iniciar a experiência de ensino. Todos os alunos realizaram um pré-teste. Neste existiam questões sobre relações proporcionais e outras

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questões em que tal relação não existe. Entre os problemas sobre relações proporcionais constavam problemas de valor omisso e de comparação com e sem julgamento qualitativo. Para resolver estes problemas os alunos puderam usar a calculadora.

O problema do automóvel tem um contexto simples para os alunos e os valores numéricos não se relacionam através de um factor inteiro.

Um automóvel demora 30 minutos a percorrer 50 quilómetros. Se permanecer à mesma velocidade, quantos quilómetros percorre em 75 minutos?

Na resposta da Carolina é explícita a opção pela estratégia building up/down. Parece existir um primeiro momento de trabalho centrado no building up mas para obter o terceiro par numérico (125 km - 75 minutos) a aluna utiliza uma estratégia buiding down secundária que coloca no canto superior direito. Aqui a aluna já utiliza as abreviaturas das palavras quilómetro e metro que escreve por extenso em todos os pares numéricos da estratégia central. Não é evidente o modo como calcula os pares numéricos e é provável que o tenha utilizado raciocínios aditivos para conjugar os valores (por exemplo: 100 km e 25 km, 60 minutos e 15 minutos).

Célia utiliza uma estratégia semelhante à de Carolina. De facto, o modo como organiza os dados que vai obtendo é típico da estratégia building up. Mais uma vez não é possível saber com certeza de que modo a aluna obtém sucessivamente os pares numéricos mas é provável que tenha iniciado os cálculos nas colunas (minutos e quilómetros) que se situam mais à direita. Quando percebe que o par numérico (90,150), isto é, 90 minutos ultrapassavam os 75 minutos pretendidos, pára esse primeiro momento de trabalho. De seguida, parece ter iniciado uma segunda etapa, duas colunas mais à esquerda, sendo provável que o valor 75 resulte da soma de 15 e 60 da estrutura tabular mais à direita. O mesmo processo deve ter sido usado para calcular 125. Depois, a aluna escreve um conjunto sucessivo de valores que são metade dos valores anteriores na tabela (de cima para baixo) mas não se percebe o que pretendia com esses cálculos.

Vejamos a resposta das alunas ao problema do Sr. Alto e do Sr. Baixo (Misalidou & Williams, 2003).

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Na figura podes ver o Sr. Baixo medido com clips. O amigo do Sr. Baixo é o Sr. Alto. Quando medimos a altura dos dois amigos com fósforos o Sr. Baixo mede quatro fósforos e o Sr. Alto mede seis fósforos. Quantos clips são necessários para medir o Sr. Alto?

Na resposta de Carolina podemos observar que a aluna utiliza uma estratégia pictográfica para estabelecer a relação entre o número de fósforos e número de clips. Esta estratégia mostra que a aluna, partindo de uma estratégia informal e rudimentar, apercebe-se da existência de uma invariante (1 fósforo equivale a 1,5 clips). Não é perceptível se a aluna utiliza adições ou multiplicações para calcular o valor 9.

Célia organizou os três valores numéricos dados pelo problema mas parece não compreender a relação proporcional entre os números de clips e de fósforos. Ou também pode ter sido traída pela colocação ingénua do sinal “=” em vez um termo apropriado (por exemplo, “corresponde”) que a ajudasse a pensar na relação.

Desempenho dos alunos durante experiência de ensino. Esta experiência pretende desenvolver nos alunos a capacidade de raciocínio proporcional e não apenas a de resolver correctamente problemas que envolvem relações proporcionais. As tarefas foram pensadas para que, numa primeira fase, num contexto familiar e mobilizando o seu conhecimento intuitivo, os alunos compreendessem que nem todas as relações matemáticas são

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proporcionais. E simultaneamente, se apropriassem com compreensão, da estrutura multiplicativa inerente a este tipo de relações através da investigação de relações numéricas. A segunda fase, prevê a resolução de problemas de valor omisso e de comparação com base no conhecimento desenvolvido sobre as relações proporcionais.

A identificação de relações proporcionais é um dos aspectos que caracterizam o raciocínio proporcional. Deste modo, a primeira tarefa, que constitui uma tarefa de investigação para os alunos desta faixa etária, pede para que eles investigarem o que terá acontecido numa corrida.

Esta tarefa, realizada pelos alunos em grupo, previa a utilização da folha de cálculo Excel e a elaboração de um relatório. Neste relatório os alunos teriam apresentar o resultado do seu trabalho e também uma descrição da sua estratégia para o realizar. Vejamos parte do relatório do grupo de Carolina, no qual é descrito, de forma muito abreviada, o modo como pensaram para responder ao que lhes era solicitado.

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A qualidade do trabalho de alguns grupos é surpreendente, pelo facto de os alunos terem mobilizado conhecimentos construídos durante a realização de tarefas anteriores, havendo uma referência explícita aos mesmos, com o objecto de dar sentido ao trabalho que estão a desenvolver. É o caso do grupo do Tomás.

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Os relatórios dos alunos constituíram a base para uma discussão alargada na turma sobre o facto de, perante uma mesma situação, os personagens (coelho e tartaruga) terem tido um comportamento diferente relativamente às variáveis implicadas na corrida e existir uma regularidade na corrida da tartaruga Nini. Foi particularmente interessante a forma como os alunos explicaram que, no caso da Nini, os valores numéricos da distância e do tempo variavam de forma a manter a mesma velocidade - a maioria dos alunos denominou por “ritmo” - reconhecendo a existência de variação dos pares numéricos das duas variáveis que mantêm velocidade constante (invariante). Esta discussão foi também importante para os alunos compreenderem que, utilizando estratégias diferentes, podem encontrar uma resposta coerente. Um foco de forte discussão foi o significado do valor da constante de proporcionalidade no contexto do problema, pois como vimos, o grupo de Carolina obteve esse valor através da divisão do tempo pela distância (0,4), enquanto o grupo de Tomás optou pela divisão da distância pelo tempo (2,5). Os alunos foram também desafiados pela professora para averiguarem a existência de outras regularidades e alguns apresentaram o factor escalar que, dentro de cada variável, permite obter os valores indicados na tabela. A tarefa 2 pedia aos alunos para investigarem a possibilidade do coelho Barnabé ganhar a corrida utilizando a mesma estratégia da tartaruga Nini, recorrendo à folha de cálculo. Classificamos esta tarefa como uma exploração, pretendendo-se que os alunos se envolvessem na determinação de possíveis relações multiplicativas entre as variáveis, agindo sobre elas de modo a que o coelho ganhasse a corrida. A correcção da tarefa na aula seguinte foi um novo momento para explorar regularidades numéricas inerentes às relações proporcionais.

A terceira tarefa coloca aos alunos alguns problemas de valor omisso, apresentados em diferentes estruturas de representação. Vejamos a resolução de duas alíneas de um problema.

Na questão 1.1., o grupo de Célia explora a relação funcional entre as variáveis.

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Quando respondem à questão 1.2. os alunos fazem uso do significado da constante de proporcionalidade (4 tartarugas por toca) para escrever o mesmo par numérico.

Os alunos revelam necessidade de explicitar todos os cálculos e utilizam a calculadora com frequência para os validar. Contudo, revelam estar a apropriar-se da estrutura multiplicativa e começam aos poucos a comunicar por palavras como pensaram e o significado os valores numéricos que obtêm.

Na aula seguinte, durante a correcção desta tarefa, Carolina intervém:

Professora: Algum grupo fez de outra maneira?

Carolina: (Coloca o dedo no ar.)

Professora: Carolina, diz lá.

Carolina: É assim stôra... Nós fizemos da mesma maneira. Só que nós...

Manuel: Não fizemos não! (Manuel pertence ao grupo da Carolina.)

Carolina: Fizemos sim! Olha aqui. (Aponta para a folha.)

Professora: Manuel deixa a Carolina falar agora. Falas tu depois.

Carolina: Oh stôra, fizemos da mesma maneira só que nós dividimos o número de tocas pelas tartarugas e dá 0,25 que é... Sim. É a parte da toca que dá a cada tartaruga. Não é? E numa [toca] estão lá quatro tartarugas.

Professora: Então qual é a tua dúvida Carolina?

Carolina: É que esse grupo teve uma boa ideia. (No quadro está desenhada a tabela apresentada a pelo grupo da Célia.) Mas... Não sei como hei-de dizer... Não é preciso fazer a terceira coluna porque já está lá uma toca para quatro tartarugas e depois multiplica-se por cem e dá cem tocas e quatrocentas tartarugas.

Professora: Muito bem Carolina. Então vamos lá ver. (Escreve sobre da tabela duas setas dentro da mesma variável e “x 100”.)

Desempenho dos alunos no teste intermédio. O teste intermédio foi realizado a meio da experiencia de ensino, por coincidir com o final do 2.º período de aulas, sendo as questões semelhantes às do pré-teste. Vejamos as respostas das alunas.

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Um automóvel que circula a uma velocidade constante demora 10 minutos a percorrer 15km. Quanto tempo demora a percorrer 90km?

Na sua resposta, Carolina mostra uma melhoria na organização dos dados do problema e na comunicação escrita sobre o modo como pensou. A aluna opta por uma estratégia escalar (factor inteiro) que identifica entre os valores numéricos da variável distância.

Pelo seu lado, Célia melhora também a organização dos dados, como se pode verificar na sua resposta:

A aluna opta por uma estratégia funcional embora o factor não seja um número inteiro. O valor numérico 1,5 foi obtido pela divisão da distância pelo tempo e não como ela indica (tempo/distância), sendo provável que tenha optado por esta relação porque é mais fácil compreender o significado de 1,5 do que 0,7 (arredondado às décimas). Contudo, tem necessidade de explorar as relações multiplicativas entre os dados, talvez para se certificar da veracidade dos valores das variáveis. A aluna continua a revelar dificuldade em explicitar por palavras a forma como pensa.

Vejamos outro problema.

Uma florista coloca em cada ramo de flores duas rosas brancas por cada quatro rosas amarelas Se a florista fizer um ramo com dez rosas brancas, quantas rosas brancas terá de colocar no ramo para manter a relação entre rosas brancas e amarelas?

Carolina parece ter usado uma estratégia funcional pois, embora tenha construído uma tabela onde constam valores numéricos supérfluos seguindo uma estratégia building up, escreve que as rosas amarelas são sempre o dobro das rosas brancas.

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A resposta de Célia mostra que ela optou por uma estratégia escalar, sendo provável que tenha obtido o factor constante através da divisão de 10 por 2. Contudo, parece ter sentido necessidade de se certificar da existência das “regularidades” multiplicativas que estudou durante as aulas.

4. Conclusão

Antes do ensino da proporcionalidade directa, as duas alunas revelam ser já capazes de resolver correctamente problemas de valor omisso. As suas estratégias são de pendor intuitivo e resultam da sua experiência pessoal e escolar. No pré-teste ambas apresentam o valor omisso pedido para o problema do automóvel, contexto de que aparentemente são conhecedoras. Ambas desenvolveram uma estratégia building up/down embora não seja possível verificar se os valores obtidos resultam de raciocínios aditivos e/ou multiplicativos. No entanto, não aplicam esta estratégia na questão do Sr. Alto. Deste modo, é evidente que responder correctamente a problemas de valor omisso não significa que o aluno seja capaz de realizar raciocínios proporcionais noutras situações. De facto, as alunas não foram capazes de explicar quais os conhecimentos matemáticos que utilizaram para resolver os problemas. É algo intuitivo, que não sabem explicar.

As estratégias utilizadas no teste intermédio, revelam que as alunas compreendem as relações multiplicativas escalares e funcionais inerentes às relações proporcionais e é com este recurso que determinam o valor omisso dos problemas. A explicitação destas relações parece resultar do conhecimento que construíram durante as primeiras aulas da experiência de ensino. Assim, face às estratégias que apresentam, antes e durante a experiência de ensino, podemos dizer que existe uma padrão de passagem do nível um para o nível três de competência informal de raciocínio proporcional de Kaput e West (1994). Contudo, parecem existir factores, tais como, os que envolvem a aplicação do conhecimento e da destreza com os números e as operações em situações de cálculo (Mcintosh, Reys & Reys, 1992), que interferem na opção por uma estratégia, que pode ser menos exigente do ponto de vista cognitivo, não significando isto um desempenho qualitativamente inferior. De facto, Carolina revela ser capaz de desenvolver diferentes estratégias na resolução dos problemas de valor

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omisso e de as comunicar oralmente mas com frequência a aluna procura uma estratégia menos morosa, que envolve cálculos simples. A experiência de ensino parece ter contribuído também para desenvolver nas alunas a capacidade de resolução de problemas, identificando variáveis, os dados numéricos e formulando estratégias de resolução. As alunas revelaram alguma melhoria na apresentação escrita das suas estratégias mas só a Carolina foi capaz de descrever com algum detalhe o seu raciocínio.

5. Referências

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