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UMA VIRADA ESPETACULAR NA CONJUNTURA O BRASIL SE INSERE NA ONDA GLOBAL DE INDIGNAÇÕES I. Situação internacional 1. A crise iniciada em 2007/2008 nos Estados Unidos prossegue sem dar sinais de se aproximar de seu fim. Na sua fase mais aguda, em 2008 e no início de 2009, as burguesias de todo o mundo se esqueceram da sua pregação a favor de “menos Estado” e de “confiar nos mercados”, e seus governos injetaram trilhões de dólares e euros na economia, para salvar o sistema financeiro e grandes empresas, e para estimular a demanda. A queda numa Grande Depressão, que tendia a ser pior do que a dos anos 30, foi evitada, mas a recuperação da economia foi limitada. A partir de 2010, sentindo-se mais seguras, as burguesias se inclinaram para outra linha de política econômica. O esforço passou a ser, basicamente, de redução dos déficits públicos (que, é claro, haviam se ampliado muito com os maiores gastos no período anterior) e de controlar o crescimento dos estoques das dívidas. Isto tem sido feito com uma explicitação aberta do caráter de classe destas políticas, como poucas vezes se viu. Depois de rios de dinheiro para bancos e grandes empresas, seguiu-se arrocho drástico para o povo, isto é, redução dos salários, demissões de trabalhadores e redução do gasto público social. Por outro lado, o dinheiro continua a fluir para bancos em dificuldade. Os casos mais extremos destas políticas têm sido postos em prática no sul da Europa, sobretudo na Grécia, em Portugal e na Espanha. A ferocidade destas políticas, neste último caso, tem feito que sejam contraproducentes do ponto de vista do

Resolucao Politica Julho 2013 - OK

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UMA VIRADA ESPETACULAR NA CONJUNTURAO BRASIL SE INSERE NA ONDA GLOBAL DE INDIGNAÇÕES

I. Situação internacional

1. A crise iniciada em 2007/2008 nos Estados Unidos prossegue sem dar sinais de se aproximar de seu fim. Na sua fase mais aguda, em 2008 e no início de 2009, as burguesias de todo o mundo se esqueceram da sua pregação a favor de “menos Estado” e de “confiar nos mercados”, e seus governos injetaram trilhões de dólares e euros na economia, para salvar o sistema financeiro e grandes empresas, e para estimular a demanda. A queda numa Grande Depressão, que tendia a ser pior do que a dos anos 30, foi evitada, mas a recuperação da economia foi limitada.

A partir de 2010, sentindo-se mais seguras, as burguesias se inclinaram para outra linha de política econômica. O esforço passou a ser, basicamente, de redução dos déficits públicos (que, é claro, haviam se ampliado muito com os maiores gastos no período anterior) e de controlar o crescimento dos estoques das dívidas. Isto tem sido feito com uma explicitação aberta do caráter de classe destas políticas, como poucas vezes se viu. Depois de rios de dinheiro para bancos e grandes empresas, seguiu-se arrocho drástico para o povo, isto é, redução dos salários, demissões de trabalhadores e redução do gasto público social. Por outro lado, o dinheiro continua a fluir para bancos em dificuldade. Os casos mais extremos destas políticas têm sido postos em prática no sul da Europa, sobretudo na Grécia, em Portugal e na Espanha.

A ferocidade destas políticas, neste último caso, tem feito que sejam contraproducentes do ponto de vista do controle das dívidas públicas: elas têm provocado fortes recessões, que reduzem os PIBs e as arrecadações. O que se deixa de gastar de um lado não é arrecadado do outro, e as dívidas públicas crescem como proporção do PIB (este é o indicador mais relevante da capacidade de pagamento destas dívidas).

Nem por isso os defensores destas políticas têm recuado. A explicação para esta aparente falta de senso é que seu objetivo, mais do que controlar o gasto público ou reduzir as dívidas, é reduzir o custo da mão de obra e do Estado. Pretende-se melhorar as condições de competitividade dos países do sul da Europa em relação aos países do norte, e da Europa como um todo em relação à China e a outros países em que o custo da mão de obra é muito mais baixo. Ou seja: para dinamizar o capitalismo europeu, pretende-se aproximar o custo da mão de obra nos países mais fracos tecnologicamente da Europa do custo de mão de obra dos trabalhadores mais explorados do mundo.

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2. Um fator que complica a saída da crise, do ponto de vista das burguesias, é a mudança em curso na correlação de forças internacional. Os EUA continuam a ser a economia mais forte, embora sofram um declínio relativo; a Europa e o Japão, mesmo muito mais fortes tecnologicamente do que a China, a Índia e outros países, e ainda pesem muito, de conjunto, na economia mundial, têm perdido relativamente mais do que os EUA.

Além de não estar claro qual poderia ser o novo modelo de desenvolvimento capitalista para uma nova fase de expansão da acumulação, tampouco está claro qual país – ou países – liderarão a economia numa próxima fase. A China tem sido o centro mais dinâmico do capitalismo, mas está longe de ter capacidade de direção mundial. Os EUA, apesar de seus problemas, ainda são o centro indiscutível das finanças e do sistema monetário. A falta de uma liderança internacional mais clara torna mais difícil a criação dos consensos intraburgueses necessários para viabilizar uma saída capitalista mais forte. Esta situação tem alguma semelhança com a dos anos 30 do século XX; na época, estava em curso uma mudança do centro do capitalismo, do Reino Unido para os EUA.

3. A profundidade da crise econômica em curso não implica que ela não possa ser superada em termos burgueses. Ela pode; mas, se isto acontecer, será um processo demorado, que passará por ataques aos trabalhadores e ao povo ainda mais duros do que os vistos até agora. Para recuperar o capitalismo, será necessário um sofrimento prolongado dos trabalhadores, e a perda, pelos assalariados de países centrais, de muitas das conquistas que tiveram desde a Segunda Guerra Mundial. Mesmo assim, não está claro que tipo de recuperação virá depois.

Evidentemente, trata-se de uma perspectiva que deve ser recusada com veemência por todos os povos. Fazê-lo de forma consistente exige o enfrentamento frontal da lógica neoliberal e, além disso, da lógica burguesa da propriedade privada. Exige um verdadeiro programa de transição. Não é uma coisa fácil, depois de décadas de domínio da ideologia neoliberal e de recuo da ideia de socialismo. São indispensáveis raciocínio claro e muita coragem; somos compelidos a isto.

4. Outra questão coloca qualquer possibilidade de saída burguesa da crise numa luz ainda mais desfavorável: vivemos uma crise mais lenta e, por enquanto, menos visível do que a crise econômica mundial, mas mais profunda: a crise ambiental. Neste ano, foi divulgada uma notícia que confirma a gravidade de uma das suas vertentes, a ampliação das emissões de gases de efeito estufa que provocam aquecimento global: a concentração de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera já ultrapassa 400 partes por milhão, o que é considerado pelos cientistas como um grande sinal de alarme.

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Os combustíveis fósseis, fonte maior de emissões de CO2, são a principal fonte energética que move a máquina capitalista global. Ao mesmo tempo, têm grande peso na acumulação capitalista: seis das 10 maiores empresas do mundo em faturamento e lucro são petroquímicas, e apenas 13 corporações dos ramos de combustíveis fósseis e automobilístico (que se entrelaçam com o sistema financeiro) concentram valor que ultrapassa o PIB alemão, o 4º do mundo. A queima desses combustíveis já conduziu a um aumento da ocorrência de eventos extremos, como ondas de calor, enchentes e outros, cujos impactos são profundamente desiguais. Recaem mais fortemente sobre pequenas nações, sobre os pobres e as mulheres, sobre os povos indígenas e demais comunidades que dependem dos modos de vida tradicionais. Por isso, indígenas, comunidades tradicionais, mulheres e pobres estão na linha de frente na luta contra a crise ecológica, em especial no enfrentamento do agronegócio.

O agravamento da crise climática será inevitável, a não ser que mais de 4/5 do carbono fóssil permaneça no subsolo. Isto mostra que o capitalismo é uma engrenagem brutal de violência intergeracional, já que transfere para a juventude e as gerações seguintes a maior parte do ônus associado à mudança e à desestabilização do sistema climático terrestre.

Poucas coisas são tão claras quanto a incapacidade de enfrentamento minimamente sério da crise ecológica no interior do capitalismo. Este enfrentamento, além bater de frente com os interesses de setores chave da economia capitalista, como os citados acima, exige ampla cooperação internacional. Exige também o abandono da lógica do crescimento infinito da acumulação de capital e, logo, da produção pela produção – tudo o contrário do que o capitalismo pode dar. Mesmo que o capitalismo pudesse se reorientar e abandonar combustíveis fósseis e indústria automobilística, o problema ambiental não estaria resolvido. Por mais que a ruptura com a economia capitalista pareça difícil, é a alternativa mais realista, se queremos evitar um futuro catastrófico.

5. Entretanto, há um descompasso entre a necessidade objetiva para os povos de enfrentamento da lógica neoliberal e da lógica burguesa da propriedade privada, de um lado, e, de outro lado, o nível de consciência dos trabalhadores e de todos os setores que lutam contra a exploração e a opressão. Depois de décadas de domínio neoliberal, predomina a visão de que não há alternativa ao capitalismo. Até agora, a esquerda socialista não constitui, em geral, alternativa viável de governo.

Por outro lado, vivemos, desde 2011, uma situação internacional de crescimento de lutas. A primavera árabe abriu um processo prolongado de mobilizações e transformações; a Europa assistiu a manifestações de indignados e tem vivido um grande processo de greves e lutas contra as políticas de austeridade; a indignação

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ocupou Wall Street e se espalhou pelos EUA, mobilizou estudantes chilenos e do Quebec, trouxe grandes multidões às ruas da Turquia e chegou, com força, ao Brasil.

6. Combinam-se uma profunda e duradoura crise econômica e social e crescimento nas lutas de povos de várias partes do planeta, com a participação de múltiplos atores sociais: trabalhadores, juventude, mulheres, indígenas, camponeses pobres, todos os que sofrem com o racismo, desempregados. Em alguns casos, e em regiões cruciais do planeta, revoltas populares modificam a correlação de forças e a ordem regional. No norte da África e no Oriente Médio estão em andamento processos revolucionários inconclusos, como se verifica agora no Egito e na luta contra o ditador genocida Assad.

Ainda que a esquerda socialista revolucionária não tenha peso e inserção de massas (com exceção dos casos da Grécia, onde a esquerda radical tem peso eleitoral de massas e, em menor medida, de Portugal, com o Bloco de Esquerda), a mudança em curso na situação política internacional abre novas possibilidades para sua construção. O processo de reorganização das classes trabalhadoras se desenvolve agora com milhões de jovens, trabalhadores e mulheres em movimento por suas reivindicações e demandas.

7. Com grandes lutas, rebeliões populares e vitórias contra as políticas neoliberais nos primeiros anos do século XXI – na Bolívia, na Argentina, no Peru, no Equador, na Venezuela –, os povos da América Latina foram protagonistas mundiais no enfrentamento ao imperialismo, deram início a pelo menos um processo revolucionário que se colocou abertamente o objetivo da construção do socialismo (Venezuela). Por essa razão, a região manteve-se como alvo prioritário do império do Norte, que reativou sua Quarta Frota no Atlântico Sul, reforçou e ampliou bases no Paraguai e na Colômbia (país que, ao ingressar na OTAN, tornou-se um Israel do subcontinente), promoveu golpes de Estado em Honduras e Paraguai e fez diversas tentativas nos países da Alba. Além disso, CIA e NSA praticam sabotagem e ingerência por todo o continente – como o atual escândalo da espionagem da internet no Brasil comprova. Neste momento, ao mesmo tempo em que os países que foram vanguarda da primeira década do século vivem dificuldades e impasses – e enfrentam o risco de retrocessos, caso não se coloquem no horizonte políticas de ruptura global com o imperialismo – uma nova onda de rebeliões juvenis e populares, como a grande luta nacional dos estudantes do Chile, o movimento anti-fraude eleitoral no México, manifestações urbanas no Peru e, agora, a primavera dos indignados brasileiros, prometem abrir um novo ciclo de ofensiva dos explorados.

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II. Situação brasileira: uma virada na conjuntura e na relação de forças

1. Já em 2011 teve início a retomada da atividade social no Brasil. Ela se intensificou em 2012, ano com o maior número de greves desde 1996 – com destaque para a fortíssima greve do funcionalismo federal capitaneada pela vitoriosa paralisação de três meses dos docentes universitários (em que já se destacavam como vanguarda os setores mais jovens de servidores), assim como para as fortíssimas greves nos canteiros de obras do PAC e nos estádios da Copa do Mundo. Esta tendência confirmou-se em 2013. Além das lutas de muitas categorias por melhores salários e condições de trabalho, multiplicaram-se as mobilizações por uma agenda ampla e diversificada. Contra o conservadorismo homofóbico, machista e racista, em particular contra a indicação do deputado Marco Feliciano para a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, levantaram-se inúmeros grupos, associações e simpatizantes da causa LGBTT. Cresceram em número e participantes as Marchas das Vadias, levando às ruas uma jovem geração de feministas. Pelo direito à vida e à preservação de suas terras, as lutas de povos indígenas de todo o país se fizeram cada vez mais visíveis, em particular contra a construção do monstrengo Belo Monte.

Cresceram também nos últimos anos a revolta e a organização contra a política de encarceramento e extermínio das populações mais pobres das periferias, especialmente de jovens e negros, a luta de setores populares pelo direito à moradia e contra as remoções, despejos e “reurbanizações” segregadoras, em particular as resultantes das Copas das Confederações, da Copa do Mundo da Fifa de 2014 e das Olimpíadas de 2016. Paralelamente à subida de temperatura do caldeirão social, um abaixo-assinado contra a posse de Renan Calheiros (PMDB) como presidente do Senado foi entregue em Brasília, em fevereiro passado, com nada menos de 1,5 milhão de assinaturas.

2. A reanimação dos movimentos reagia contra as dificuldades da situação econômica, as receitas de “austeridade” do governo e a política de elevação dos juros: o baixo crescimento da economia limitava o emprego, o endividamento individual e familiar batia no limite (impedindo a continuidade do fenômeno do consumo de bens duráveis), a retomada da inflação corroía parcialmente os ganhos. Se a situação econômica vinha se deteriorando para o conjunto dos que vivem do trabalho, para as camadas mais jovens, o problema era e é sensivelmente mais grave: submetidos a subempregos, estágios mal-remunerados (quando remunerados) ou diretamente dependentes das famílias para estudar, garotas e garotos veem sua independência adiada e seu futuro tornado incerto diante do desemprego muito maior em sua faixa etária. Nessa camada também, o

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descontentamento com o conservadorismo sócio-comportamental, com a corrupção de governos e parlamentos e com o caráter repressivo dos estados é muito mais alto que na média da sociedade.

O descontentamento estrutural com a má qualidade dos serviços de saúde, tanto públicos quanto privados, e de educação, de transportes, água, luz e toda infra-estrutura urbana veio se chocando, nos últimos dois anos pelo menos, com um verdadeiro festival de benefícios ao capital concedidos pelo governo PT-PMDB e anunciados farta e festivamente pela mídia. Privatizaram-se portos, aeroportos, rodovias; reduziram-se impostos, facilitaram-se empréstimos para industriais e latifundiários, retomaram-se os leilões do petróleo. E, por fim, além de tudo isso, governos e parlamentos concederam com pompa e circunstância todas as facilidades também para a Fifa transformar os estádios em arenas de luxo, pedaços do território nacional submetidos ao controle estrangeiro – e o esporte mais popular no país num entretenimento para poucos privilegiados.

3. Foi neste contexto que a combinação de um movimento contra aumentos de preços dos transportes públicos (também motivado por sua má qualidade) com a indignação contra a repressão policial e a revolta contra os gastos abusivos e contra o modelo excludente e repressor da Copa das Confederações levaram à explosão das jornadas de junho.

Houve um levante nacional popular, com eixo na juventude. Mobilizaram-se milhares de trabalhadores e trabalhadoras jovens e dos setores médios, bem como estudantes, contra todo tipo de governo, contra as casas legislativas, contra praticamente todos as instituições vigentes, por reivindicações no geral justas: contra o aumento das tarifas de transporte, contra os gastos da Copa, fora Feliciano, por mais verbas para saúde, mais verbas para educação, contra a corrupção.

Ao lado da juventude no seu conjunto, destacaram-se os movimentos populares de luta pela moradia e os movimentos de juventude das periferias urbanas, que desenvolveram ações radicalizadas como bloqueios de avenidas e estradas por suas reivindicações.

Setores de direita tentaram disputar a pauta e o próprio caráter das mobilizações, impulsionados pela grande mídia, especialmente a Rede Globo, apoiando-se na ampla desconfiança existente em relação aos partidos, especialmente aos partidos que vêm de uma tradição de esquerda, e que no poder frustraram milhões de pessoas. A juventude, que entra na cena política depois de dez anos de governos petistas, não vê diferença entre estes governos e os de outros partidos. É importante notar que os partidos da direita tampouco têm legitimidade para ganhar as ruas abertamente; a disputa do movimento pela direita não conseguiu resultados significativos.

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O processo foi altamente progressivo. O sistemático enfrentamento com a repressão policial, o método do bloqueio de estradas e ruas e as ações ofensivas sobre palácios do governo, congresso nacional, assembleias legislativas, câmaras municipais não são componentes de movimento reacionários, não têm nada a ver com os métodos da classe dominante. Foram depredadas agências bancárias, o que indica a revolta contra o capital financeiro – o que, obviamente, não tem nenhum conteúdo de direita. O método principal que marcou as mobilizações, e levou às vitórias iniciais, foi o das massas nas ruas.

As grandes mobilizações abriram uma dinâmica muito rica de atos diários, múltiplos atores, múltiplas reivindicações; de politização intensa da sociedade, de reuniões de diversos setores sociais (jovens, moradores das periferias, movimentos pelo transporte público, movimentos pela educação etc.), com muito mais gente que antes, para discutir o que reivindicar agora, como se organizar.

4. À diferença de outros momentos de grandes mobilizações de massa no país – como o das passeatas estudantis e greves operárias de fins dos anos 70, das Diretas Já, em 1984, do Fora Collor, em 1992 – este levante não tem direção nacional com autoridade. Surgiu com um corte geracional: as centenas de milhares de jovens que foram às ruas não têm referência na história de PT, PC do B, CUT, UNE. Veem estes partidos e organizações como são hoje e os tomam, corretamente, como vinculados aos inimigos. Afinal, estão no poder ou o apoiam, e é este poder que aplica as medidas contra as quais o povo se rebela.

Sindicatos e centrais sindicais, mesmo os da esquerda socialista, brilharam pela ausência nas três semanas decisivas. Sua inação em junho foi sintoma da crescente burocratização do movimento sindical nas últimas décadas. Não é acaso que a juventude indignada não somente não tenha referência nos sindicatos como, em alguns momentos, os coloque no mesmo saco dos odiados partidos da ordem.

O giro posterior dos movimentos sociais dirigidos por governistas para participar dos protestos, e seu esforço para somar-se à onda geral de indignação, chamando a paralisações e manifestações setoriais por demandas salariais e trabalhistas, e ao dia de luta e paralisações em 11 de julho, não atenuou o desgaste dos petistas e de seus governos, que também recorreram à repressão, e nem do PC do B, o partido dos negócios da Copa do Mundo (e também o partido dos negócios em geral, especialmente do agronegócio).

Foram movimentos e grupos setoriais e sociais mais novos que contribuíram para impulsionar as mobilizações e foram mais reconhecidos por elas. Na juventude, tiveram peso setores com uma pauta específica bem definida, como o MPL em São Paulo (e movimentos semelhantes em diversas cidades do país) na questão do transporte urbano, grupos e articulações autonomistas, e ainda correntes amplas de

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juventude animadas por militantes do PSOL. Destacaram-se também os movimentos populares por moradia e os de juventude das periferias urbanas, que foram os que levaram adiante ações radicalizadas como bloqueios de avenidas e estradas por suas reivindicações.

Entretanto, mesmo o MPL, maior referência na luta contra o aumento das tarifas, não se credenciou, nesta conjuntura, como uma nova direção do conjunto. O fato de o MPL ter sido a maior referência indica, ao mesmo tempo, o forte componente autônomo destes movimentos e sua salutar desconfiança em relação aos partidos e instituições tradicionais.

Por fim, a baixa inserção social da esquerda socialista, de seus partidos e instrumentos, ainda que tenham participado efetivamente do ascenso desde o primeiro momento, contribui para o quadro de falta de referência ou referências nacionais nesta poderosa onda de mobilizações.

5. Os governos, do federal aos municipais, passando pelos Executivos dos principais estados, bem como as casas legislativas, foram colocados totalmente na defensiva. Foram obrigados a aceitar reduções de preços dos transportes públicos e a reconhecer, ainda que a contragosto e cheios de contradições, seu enorme desprestígio. Anunciaram às pressas as mais diversas medidas paliativas no intuito desesperado de “salvar as batatas”: CPI das empresas de ônibus no Rio, grupos de trabalho pela mobilidade urbana, fim do projeto da “cura gay” na Câmara. Ainda assim, as pesquisas de opinião revelaram uma queda drástica do prestígio dos vários níveis de governo, em particular do governo federal. Alguns governos estaduais viram seus índices de aprovação caírem pelo menos no mesmo nível, como é o caso de Sérgio Cabral (RJ). O povo demonstrou que não se contentará com concessões cosméticas. Será bastante mais difícil enganá-lo.

No grande desgaste dos poderes e das instituições, talvez haja a exceção do Judiciário, preservado por enquanto da ira popular.

Ainda que as mobilizações tendam no imediato a se reduzir, o povo tomou gosto pelas manifestações de rua e aprendeu que este é o caminho para vitórias. O fato de terem sido obtidas conquistas a partir da mobilização nas ruas traz uma nova perspectiva para a consciência social e política do povo brasileiro. Hoje, a partir do exemplo da redução das tarifas, é visível que, com organização e luta, podem-se conquistar vitórias e construir uma nova sociedade.  Isto representa, sem dúvida, uma mudança na correlação de forças entre as classes sociais. Há, portanto, ascenso, mudança da situação política e embaralhamento do cenário daqui para frente, incluindo possivelmente o cenário eleitoral de 2014. Embora as eleições presidenciais ainda estejam bem distantes, é possível prever razoável desgaste do PT e seus aliados, certa estagnação dos tucanos, crescimento de Marina Silva e um

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crescimento dos votos brancos e nulos, em particular entre a juventude.

6. A consciência do movimento é nacionalista, democrática, de luta por direitos sociais; um tanto confusa e, por isso, aberta a ser disputada pelas ideias mais à direita. Afinal, o povo entra nesse processo indignado, mas muito influenciado pelo senso comum e pela mídia, após anos de refluxo e baixa atividade coletiva e política. Mas, no geral, a consciência é progressiva em relação às pautas do movimento, ao repúdio à repressão e ao método de ocupar às ruas.

Como já foi mencionado acima, acompanhando a tendência mundial, há grande desconfiança em relação aos partidos políticos e às organizações tradicionais da classe (sindicatos). O próprio sentimento antipartido é legítimo, pois é expressão de um rechaço ao que os partidos, em especial o PT fizeram. Mas isto afeta também, como um efeito colateral, os partidos da esquerda socialista, pois na consciência média o PT é de esquerda, e está fazendo o que faz no poder. A mídia, aliás, tem procurado falar no governo federal como um “governo de esquerda”, reforçando esta percepção.

7. Podemos falar em crise institucional ou crise de regime? Se esta terminologia for reservada para situações de iminência de uma crise de troca de poder, ou de possibilidade disso, ela é exagerada. Mas se ela for tomada num sentido mais amplo, se o critério for de perda de legitimidade das instituições perante o povo e a maioria da população com a consequente ação das ruas, ela pode ser usada. A autoridade central, o governo federal, está muito questionada. Os discursos de Dilma tiveram pouco efeito para paralisar ou amenizar o movimento e não conseguiram consenso para unificar “os de cima” para encontrar uma saída política desta crise.

Nesta situação, que é uma espécie de meio-termo ou transição entre a normalidade e uma crise institucional aberta ou uma crise de regime, na relação entre instituições e povo, não cabe uma política de poder mais direta, para a agitação. Por outro lado, como o governo tomou a iniciativa de propor um plebiscito, ainda que limitadíssimo, para reformar o sistema eleitoral, o debate de alternativas políticas para a crise entrou na agenda.

Em primeiro lugar, é preciso denunciar a limitação do plebiscito anunciado por Dilma Rousseff, propor uma reforma política muito mais ampla em todos os temas, e exigir a ampliação da consulta popular para toda a pauta das ruas. É correto colocar em debate a alternativa de uma Constituinte Soberana; ela poderá ser trazida ao centro das discussões acompanhando a evolução da conjuntura.

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8. A dimensão do processo é comparável às mobilizações pelo Fora Collor e pelas Diretas Já, apesar da ausência de uma direção global do processo. Há pelo contrário, como vimos, um vazio de direção: amplas massas nas ruas, mas uma esquerda socialista com baixa inserção social, com a direita também disputando (com pouco êxito) os rumos destas mobilizações.

Seu impacto já é maior do que o do Fora Collor. Está colocada a possibilidade de que tenha sido aberto um processo semelhante ao que se passou nos anos finais da crise da ditadura e na mobilização pelas Diretas Já, quando as velhas direções da esquerda brasileira (PCB, PTB) declinaram, o PT se formou e se tornou hegemônico da esquerda.

Obviamente, ainda está por se resolver a questão da reconstrução da esquerda socialista brasileira, necessária depois da completa absorção do PT pelo estado burguês. Sem isto, não existirá uma alternativa de governo à esquerda do atual governo federal. Mas a novidade é que as novas condições do país são as mais favoráveis para o avanço na construção desta alternativa desde a eleição de Lula, em 2002. O PSOL tem potencial para canalizar esse processo, desde que passe por mudanças profundas: começando por comprovar à juventude que saiu às ruas que é um partido que se organiza para lutar e não só para participar de eleições.

8. Há diferenças entre as políticas defendidas pelas várias frações da burguesia e pelos partidos da ordem: o grande partido da burguesia – a grande mídia – e os partidos da direita tradicional buscam aproveitar a situação para desgastar o PT e se reforçar, enquanto o PT luta para recuperar a iniciativa política e superar o desgaste sofrido. Entretanto, estas várias orientações têm um denominador comum: colocar o quanto antes um ponto final nas mobilizações, e retomar o curso tradicional da vida política.

As alternativas em disputa, são, então: de um lado, o aprofundamento do movimento, a construção de uma nova hegemonia na esquerda, a construção de uma alternativa à esquerda do PT e de todos os partidos da ordem; do outro, a contenção do movimento, sua canalização para o jogo institucional “normal”, e a manutenção da polarização entre o PT e seus aliados, e a direita tradicional.

9. Este ascenso no Brasil se insere no processo mundial, é parte dele, com características similares: eixo na juventude, indignação, choque com as instituições e partidos tradicionais, auto-organização, autonomismo e método das ruas, também com peso da direita (ou extrema-direita, que em alguns casos é bem forte, como na Grécia) e em meio a um processo de reorganização da esquerda socialista e revolucionária que tem agora uma oportunidade histórica de começar a superar a

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etapa da fragmentação.

10. A virada à esquerda no cenário político brasileiro já começa a demonstrar o potencial de impacto na correlação de forças em todo o subcontinente, ao reforçar mobilizações já em curso, como a dos estudantes chilenos, ou incentivar revoltas similares, como no Paraguai e no Peru, ampliando as mobilizações em nossa região. O novo cenário aumentará a importância de uma política da esquerda socialista brasileira para os países vizinhos. O desgaste do PT no Brasil debilita em alguma medida o sub-imperialismo brasileiro – já que o petismo-lulismo tem sido seu condutor. O sub-imperialismo do Brasil é um dos principais entraves à integração dos povos latino-americanos e ao avanço de suas lutas. A imposição pelo Brasil de projetos de infraestrutura, com a condição de sua entrega às suas empresas-chave (Odebrecht, Camargo Correa, Petrobrás, Vale, Queiroz Galvão) segue a mesma fórmula utilizada pelo imperialismo estadunidense de sabotagem econômica e entrega de setores estratégicos à iniciativa privada. A priorização do Projeto Brasil ao invés de outras formas de integração, como a Alba e a Unasul, aumentam a vulnerabilidade de países que estão em um processo de lutas mais avançado, e impede a real solidariedade entre os povos e nações irmãs.

III. Plataforma política e programática

1. É necessário ter a compreensão de que disputar rumos do movimento se faz em primeiro lugar com política; que as coisas mais importantes a serem definidas são uma plataforma programática e os eixos de agitação que vamos expressar nas ruas. Da mesma maneira, é fundamental buscar construir esta pauta e estes eixos unitariamente com todos os setores e movimentos organizados combativos de esquerda.

2. Eixos da plataforma política e da tática para sua defesa

2.1 Reforma política só com controle e participação popular já!

Em primeiro lugar, qualquer plebiscito deve ser imperativo: o que a população decidir na consulta é que deve determinar o que vai se reformar. O Congresso apenas deve formatar, do ponto de vista legislativo-formal, aquilo que a população soberanamente decidir. Em segundo lugar, seus temas devem ser ampliados.

2.2 O plebiscito proposto por Dilma Rousseff é limitado e distante. Nem assim, os partidos da ordem o aceitaram. Devemos exigir a ampliação do plebiscito para todas as questões que estavam nas ruas. A população não deve ser consultada apenas sobre reforma política, mas sobre todas as reivindicações econômicas e

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sociais.

O povo deve decidir sobre as demandas das mobilizações em curso no país. Nossa proposta de plataforma vai, portanto, além dos temas da reforma política.

2.3 Em relação aos temas da reforma política, nossas propostas centrais são:

– Fim do Senado Federal. Parlamento unicameral.

– Revogabilidade dos mandatos.

– Fim da reeleição para os cargos executivos.

– Uma só reeleição para cargo legislativo.

– Fim das emendas individuais ao Orçamento anual da União.

– Extinção de todos os cargos comissionados criados nos governos Lula e Dilma na administração federal, bem como nos dois últimos mandatos nos estados.

– Financiamento público de campanha.

– Salário de parlamentar igual ao das suas profissões de origem.

2.4 Em relação à pauta de reivindicações sociais, nossas propostas principais são:

– Auditoria da dívida pública e suspensão do pagamento de seus juros.

– Desmilitarização das PMs, extinção imediata das tropas de choque. Abaixo a repressão!

– Passe livre nacional, com tarifa zero para todos (na compreensão que o transporte público é um direito, não uma mercadoria), iniciando-se com estudantes, pessoas com deficiência, idosos e desempregados. A tarifa zero deve ter base em recursos originários da redução do pagamento da dívida pública.

– Contra os crimes da Copa. Paralisação de todas as obras até a garantia das condições de moradia para todas as famílias ameaçadas. Pela garantia do trabalho de camelôs, ambulantes e pequenos comerciantes; contra o monopólio dos patrocinadores da Fifa. Política emergencial, com dotação orçamentária, de combate a exploração sexual de mulheres, crianças e adolescentes. Nenhum centavo a mais de dinheiro público para obras da Copa do Mundo. Auditoria pública com participação popular de todos as licitações de obras da Copa. Pelo direito de manifestação durante os jogos. Contra o PLS que institui o crime de terrorismo no Brasil.

– Reforma Agrária Agroecológica, PEC do Trabalho Escravo.

– Contra a PEC 215 (que trata da demarcação e titularização das terras indígenas e

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de quilombolas) e todas as outras ofensivas impulsionadas pelo Estado Brasileiro, pelo agronegócio e pelo latifúndio contra os movimentos de luta pela terra. Pela demarcação e titularização imediata de todas as terras indígenas e quilombolas.

– Revogação dos leilões do petróleo. Re-estatização do setor, com a devolução à Petrobras de todos os campos operados pelas mais de 70 empresas privadas hoje em atuação. Por uma Petrobras 100% estatal! Suspensão imediata do leilão do grande bloco de Libra, do pré-sal, programado para outubro! Suspensão de todo investimento em energia nuclear. Fusão Petrobras-Eletrobrás para criação de uma megaestatal energética capaz de voltar todos os esforços de P&D e investimentos para energia limpa e renovável.

– Suspensão da construção de Belo Monte.

– Recursos públicos para saúde pública (10% do orçamento da União para a saúde), educação (10% do PIB para a educação pública já), transporte e moradia.

– Defesa dos direitos humanos, defesa dos direitos das mulheres, contra o racismo e a intolerância religiosa.

– Contra a redução da maioridade penal e contra qualquer proposta de ampliação do tempo de internação (privação de liberdade) de adolescentes. 

– Contra a homofobia, contra a cura gay. Fora Feliciano, e defesa do Estado laico.

– Pela democratização dos meios de comunicação e garantia do direito humano à comunicação. Auditoria das concessões de rádio e televisão, proibição da propriedade cruzada dos meios e da outorga de concessões para políticos em exercício de mandato. Todo apoio às rádios e TVs comunitárias. Banda larga universal e de qualidade.

– Contra a privatização do patrimônio público e da infraestrutura. Suspensão da privatização de portos, aeroportos, ferrovias e rodovias.

– Contra o PL 4330, da “terceirização”.

– Anulação da Reforma da Previdência e fim do fator previdenciário.

– Redução da Jornada de Trabalho para 40 horas, sem redução de salários.

– Direito irrestrito de greve. Liberdade de organização sindical. Fim do imposto sindical.

– Congelamento do preço dos aluguéis, acompanhado de uma política ampla para a moradia. Moratória de todos os despejos e reintegrações na cidade e no campo. 

– Reforma tributária geral, com impostos baseados no critério da progressividade: quem ganha mais, paga mais. Elevação substancial dos impostos sobre a propriedade e a herança. Imposto sobre as grandes fortunas!

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As plataformas de reivindicações a serem submetidas a consulta popular poderão incluir também consultas também sobre temas estaduais ou municipais.